01 de Outubro de 2020
Introdução
A expansão do direito penal é um fenômeno cuja incidência é notória nas últimas décadas, seja por meio das transformações na estrutura do delito, seja pelo crescimento do número de pessoas criminalizadas. No primeiro caso, o Brasil acompanha uma tendência de tantos outros países, com transformações na criminalização primária caracterizadas pelo maior destaque aos crimes de perigo, ampliação de normas penais em branco, novos contornos de desmaterialização do bem jurídico, dentre outras,([1]) que foram seguidas por uma inflação legislativa em matéria penal. No segundo caso, o Brasil se distancia de boa parte dos países do ocidente por ter levado a cabo um processo de criminalização secundária nas últimas três décadas de tamanha expressividade, que singulariza seu expansionismo penal.([2])
Em um e outro caso, contribuiu de maneira decisiva o chamado direito penal de emergência, vetor de uma política criminal que aposta no endurecimento das normas penais como forma de responder às demandas sociais por segurança pública. Ocorre que, paradoxalmente, a expansão punitiva materializada em um processo de encarceramento em massa converteu o sistema penitenciário brasileiro em um caso de verdadeira emergência humanitária, dada a piora significativa nas condições de aprisionamento de centenas de milhares de pessoas.
Em meio a esse quadro, irrompe uma emergência sanitária em decorrência da pandemia do novo coronavírus (COVID-19), que por suas características específicas torna ainda mais delicada a crise humanitária nas prisões. Esse fenômeno tem gerado reflexões por todo o mundo e demanda a tomada de ações concretas e emergenciais, especialmente no campo da execução penal.
O Direito Penal de emergência
Emergência remete à ideia de urgência que uma determinada situação deve ser atendida em razão da sua gravidade. Presente em diversas circunstâncias da vida social, em alguns casos a resposta à crise emergencial demanda interferência do direito. Em muitos casos, a emergência pode requerer uma ampliação na esfera de direitos, como maior proteção ambiental ou incremento de verba para alguma salvaguarda social, por exemplo. Há ocasiões, contudo, em que as soluções aventadas para enfrentar a urgência encontra no direito posto uma barreira. Em tais circunstâncias, as próprias Constituições costumam prever estados específicos de restrições de direitos, como faz a brasileira com o estado de defesa e o estado de sítio.
Se há emergências reais e que demandam intervenções que incluem modificações na ordem jurídica, existem situações em que a emergência é construída ou que, mesmo real, a solução para enfrentá-la não encontra no direito a resposta adequada. A emergência, que por definição contém alguma situação de risco, não deixa de ser ela própria um perigo – notadamente quando construída – a direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, a emergência tem sido o instrumento por meio do qual os distintos grupos de poder têm podido ver realizadas muitas das suas aspirações políticas.([3])
Na esfera penal, as ligações entre direito e emergência ganham especial relevância a partir da década de 1970, na Itália, com as transformações legislativas que decorreram de ampla campanha midiática e da opinião pública para pressionar as autoridades no controle da criminalidade, especialmente nas questões envolvendo o terrorismo e a máfia.([4]) Um conjunto de leis de exceção foi aprovado, conferindo maiores poderes à polícia e aos juízes, além de violar uma série de garantias do acusado tanto no direito penal quanto no processo e execução penal.
Esse movimento político-criminal, que passou a ser conhecido como direito penal de emergência, tomou corpo em boa parte do mundo com uma inflação legislativa em momentos de apelo social influenciada pelos meios de comunicação. Como regra, problemas preexistentes são construídos como uma emergência a partir de algum caso específico, que ganha projeção midiática, e propõe-se como solução o aumento do rigor da lei penal. A política criminal passa a ser dotada de uma lógica simplista para acalmar os reclamos pela solução da emergência criada e a pena é alçada à categoria de resposta única a problemas que historicamente não é capaz de resolver.
A falta de comprovação dos efeitos declarados do direito penal de emergência não impede que sua consequência real se materialize, pois mesmo sem solucionar a questão para a qual foi idealizada, as modificações legislativas permanecem no ordenamento jurídico de modo definitivo.([5]) A construção da emergência é, portanto, um mecanismo para o endurecimento penal definitivo, que, sem o seu apelo, teria maior dificuldade para se impor como engenho de ampliação do poder punitivo estatal.
No Brasil, é exemplo do direito penal de emergência a criação do regime disciplinar diferenciado pela Lei
O direito penal de emergência trabalha, pois, com emergências artificialmente construídas por pressão midiática a partir de casos que tomam a atenção da opinião pública e apresenta respostas inadequadas e violadoras de direitos e garantias fundamentais que, a despeito de não realizarem seus objetivos declarados, permanecem na ordem jurídica, produzindo efeitos materializados na expansão do poder punitivo do Estado e na violação concreta de direitos humanos. Trata-se, portanto, de um instrumento autoritário de política criminal, que aposta no endurecimento penal como forma de responder a problemas que ele não é capaz de solucionar, mas que segue em vigor mesmo que a situação problemática que o originou não tenha se modificado na realidade concreta.
Prisões no Brasil e emergência humanitária
O ambiente prisional brasileiro é um cenário de vulnerações cotidianas e sistemáticas, onde a população privada de liberdade se enquadra numa massa selecionada com notórios marcadores: pobreza, etnia, cor da pele, formas de exteriorização, situação familiar, gênero, delitos cometidos etc.([8]) Conforme dados do CNJ (Portal BNMP),([9]) o Brasil possui 886.333 pessoas privadas de liberdade. Atualmente, a população presa é oito vezes maior do que há 30 anos atrás. Junto ao encarceramento massivo e seletivo também se verifica um alto nível de superlotação. O censo Infopen([10]) registrou, em 2019, um déficit de vagas no sistema prisional brasileiro de pouco mais de 312.000, alcançando um percentual de superlotação prisional de cerca de 170%.
As constantes violações identificadas no sistema penitenciário brasileiro ofendem a dignidade humana e toda a distribuição de políticas de acesso aos direitos sociais, como saúde, educação, trabalho, proteção à maternidade e à infância. Essas vulnerações, somadas às condições prisionais desumanas, corroboram um aprisionamento em tese ilegítimo.
A desumanidade nas prisões inicia na seleção e exclusão das pessoas que integram grupos sociais marginalizados e se solidifica nas persistentes violações dos direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade. A omissão do Estado em dignificar a estrutura carcerária escancara uma normalidade do desumano.([11]) Para Juliana Borges,([12]) os sistemas punitivos são fenômenos sociais, que se constituem a partir de uma ideologia hegemônica e absolutamente ligada à sustentação de determinados grupos sociais em detrimento de outros. Mais do que transcorrido pelo racismo, o sistema punitivo, estabelecido e ressignificado historicamente, reconfigura e mantém a opressão que tem na hierarquia racial um dos pilares de manutenção. Com efeito, as bases de atuação do sistema penal brasileiro não conseguiram se divorciar por completo de seu passado colonial, de maneira que o racismo constitui um referencial central e determinante de sua atuação.([13]) Assim, as condições de cumprimento de pena são precedidas de atos de repunição. Nos espaços de privação de liberdade, como a prisão, a população negra – grande parte da população prisional – vive em condições subumanas, submetida à superlotação, à falta de água, comida, deficitário atendimento médico, cujas condições propiciam a prática do genocídio, do extermínio da juventude negra.([14])
O Brasil configura uma questão penitenciária contraditória: admite ambientes prisionais que potencializam a morte e o risco de morte das pessoas presas ao lado de leis e discursos normativos pretensamente civilizados.([15]) As degradantes condições estruturais e operacionais do sistema punitivo brasileiro são importantes elementos para compreender a desumanidade e especialmente o fenômeno mortes sob custódia prisional no país.
O atual momento do sistema punitivo é mais um marco da história de massacres nas prisões do país. Além de Carandiru, em 1992, Crimes de Maio, de 2006, e os massacres ocorridos de 2010 a 2019 em várias unidades prisionais do país, o contexto de Covid-19 se apresenta como um padrão de mortalidade e exposição ao risco de morte em ambientes prisionais. O próprio significado da vida digna em prisão([16]) é reconfigurado a uma nova imposição de dor.
As informações penitenciárias registradas nos Censos Infopen se aproximam ao que Elías Neuman([17]) chamou de prisão-morte, pois demonstram vulnerações que violam a dignidade humana e também toda a gama de direitos individuais e sociais, especialmente, em consideração à Covid-19, o direito social à saúde. Trata-se de uma conjuntura que se distancia da trajetória constitucional e da incorporação dos direitos no âmbito das prisões e demonstra a existência real de uma emergência humanitária.
Covid-19
A Covid-19 exacerbou uma situação de colapso do sistema prisional brasileiro. À emergência humanitária acresceu-se uma sanitária. O panorama contemporâneo de crise epidemiológica reflete a gramática desumana nas prisões do país, amplificada pela situação de mortalidade e exposição ao rico de morte da população prisional e do pessoal penitenciário. Nesse sentido, a emergência humanitária se coloca numa posição central em defesa dos direitos humanos.
É notória a tensão política e social em torno da saúde pública, intensificada pela pandemia. O país não possui condições e estrutura adequada para o tratamento do coronavírus a todas as pessoas contaminadas, o que caracteriza um ambiente já conhecido de vulneração dos direitos dos cidadãos, notadamente o direito social à saúde. Dessa forma, a específica periculosidade da pandemia é que ela agravou uma situação de crise já existente há muitos anos em diversos países, o que pode ser traduzido como uma normalidade da exceção.([18])
Conforme o Boletim Semanal do CNJ sobre o Covid-19,([19]) foram registrados 29.403 casos confirmados de coronavírus no sistema prisional, correspondendo a um aumento de 50,6% nos últimos 30 dias e 8,2% na última semana. Desse total, 71% diz respeito a pessoas presas, e 29% a servidores. Com relação aos óbitos, foi registrado um total de 183 falecimentos, um aumento de 22,8% nos últimos 30 dias, e 3,4% na última semana. Do total de mortes registradas, 56,8% estão relacionadas a pessoas presas e 43,2% a servidores. Importante mencionar que foram realizados, segundo o mesmo Boletim, 36.899 testes em pessoas privadas de liberdade, e outros 28.777 em servidores. A taxa de contaminação entre os testes realizados na população privada de liberdade chega a 79,68%, já para os servidores esse índice é de 29,62%. O referido Boletim aponta que houve uma evolução dos casos e das mortes por Covid-19 entre pessoas privadas de liberdade em distintas regiões do país.
Diante disso, medidas foram adotadas visando enfrentar o impacto do vírus nas unidades penais. A Recomendação 62, de março de 2020, do CNJ, recomendou aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo, como, por exemplo, a reavaliação das prisões provisórias e a concessão de saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto para determinados grupos de risco citados no documento.
Ocorre que, essas medidas, tais como listadas no corpo da Recomendação, já se encontravam alicerçadas, do ponto de vista estritamente jurídico, por vários precedentes. Registra-se, em síntese, os seguintes julgados: ADPF 347 (Medida Cautelar julgada em 2015) acerca da declaração do “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário nacional, diante da violação massiva e persistente de direitos fundamentais, das falhas estruturais e da falência de políticas públicas; RE 592.581 (julgado 2015), indicando a supremacia da dignidade da pessoa humana, que legitima a intervenção judicial; RE 580.252 (julgado em 2017), considerando que é dever do Estado a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento; e HC Coletivo 143.641 (julgado em 2018), reconhecendo o STF a incapacidade do Estado em garantir cuidados mínimos à maternidade nas prisões. Em suma, tais julgados já alertavam, embora naquele momento diante de uma conjuntura de anormalidade sem Covid-19, para a necessidade de um verdadeiro direito penal de emergência humanitário.
No entanto, o período de pandemia demonstrou até o momento que, a despeito dos julgados acima, a própria Suprema Corte não tem respondido de maneira satisfatória aos reclamos emergências que agravaram a vida prisional no país, tanto em ações individuais ([20]) quanto em demandas coletivas, como as medidas cautelares requeridas no bojo da ADPF 347 ou mesmo habeas corpus coletivos para pessoas no grupo de risco.([21])
O sistema prisional brasileiro não possui capacidade de fornecer atendimento à saúde das pessoas presas. Junto a isso, o aumento contínuo e desenfreado da população prisional amplifica as violações e obstaculiza a distribuição dos recursos humanos e dos serviços penais. Nas prisões, as pessoas (população prisional, familiares, servidores etc.) estão expostas ao risco de infecção. Trata-se de uma relação de perigo concreto que pode constituir a enfermidade com relação a todas as pessoas, estando detidas ou não.([22])
À guisa de conclusão: Por um Direito Penal de emergência humanitário
O Direito Penal de emergência, caracterizado pelo endurecimento das normas penais como resposta às demandas sociais por segurança pública, paradoxalmente, contribuiu com a expansão punitiva e o aumento exacerbado da população prisional. Tal processo converteu o sistema penitenciário brasileiro em um caso de evidente emergência humanitária em virtude do agravamento significativo das condições de aprisionamento do país.
Frente a isso, torna-se imprescindível reclamar por um direito penal de emergência sanitária, a fim de que ações concretas e emergenciais sejam tomadas especialmente no campo da execução penal, em estrito e absoluto respeito aos direitos humanos. O atual momento do sistema punitivo é um novo marco da história de massacres nas prisões do país. Trata-se de uma situação que se distancia da trajetória constitucional, e acentua o estado de colapso do sistema prisional brasileiro. A crise epidemiológica contemporânea escancara a gramática desumana nas prisões, ampliada pela mortalidade e exposição ao risco de morte da população prisional e do pessoal penitenciário. Assim, a emergência humanitária se coloca numa posição central em defesa dos direitos humanos.
Uma ação em face da emergência humanitária acima descrita passa necessariamente por medidas de desencarceramento,([23]) que elimine ou reduza a superlotação prisional e tenha como consequência a salvaguarda de vidas humanas em concreto risco nas prisões. Ao contrário do tradicionalmente chamado direito penal de emergência, há aqui uma verdadeira emergência, de viés humanitário, com respostas adequadas aos fins propostos e cujo resultado tem guarida no quadro normativo dos direitos humanos.
É preciso, pois, reconhecer que a real emergência é causada pelo próprio sistema penal e o direito penal de emergência legítimo é aquele de viés desencarcerador, que tem por resposta salvar vidas, reduzir danos e dores e reafirmar a dignidade humana. Um direito penal de emergência humanitário.