12 de Outubro de 1997
"HC. Reforma Agrária. Movimento Sem Terra. Movimento popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático."
(HC nº 5.574/SP, 6ª Turma, STJ, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 08.04.97, m.v.).
A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu, em 8 de abril do corrente ano, ordem de habeas-corpus em favor de José Rainha Jr., Laércio Barbosa, Claudemir Marques Cano, Felinto Procópio dos Santos e Márcio Barreto, acusados da prática dos crimes de esbulho possessório e formação de quadrilha ou bando armado.
Os sobreditos acusados pertencem ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, organização que pugna pela realização da reforma agrária em nosso País.
O crime de esbulho possessório colima — de acordo com a análise do art. 161 e §§ do CP — a tutela da posse e do patrimônio imobiliário(1). Além disso, o tipo penal exige, também, um específico elemento anímico, qual seja, o fim de esbulho possessório, pois "é exato que quem invade terreno ou edifício alheio, turba. Porém, se essa turbação não tiver o fim de esbulho possessório, o crime não se verifica" (TACrim-SP, Rec., rel. Oliveira E. Costa, RT 547/351, Código Penal e sua interpretação Jurisprudencial, Alberto Silva Franco e outros, p. 2.087, 5ª edição).
O MST, é notório, utiliza como instrumento político a ocupação de terras, para pressionar o Estado a cumprir mandamento constitucional, ou seja, promover a reforma agrária. E, na arguta observação constante da ementa do acórdão ora analisado, "a pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático".
Como bem lembrou o ministro Luiz Vicente Cernicchiaro em seu voto, "a Constituição da República dedica o Capítulo III, do Título VII à Política Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrágia. Configura, portanto, obrigação do Estado. Correspondentemente, direito público subjetivo de exigência de sua concretização".
Ocorre que, "no preciso momento em que a democracia liberal celebra a sua vitória, parecem gastar-se os seus valores e desvanecer-se as suas promessas", em razão da "divergência entre o modelo normativo do Estado Democrático de Direito e o seu funcionamento de fato"(2).
Essa situação decorre da "inadequação estrutural das formas do Estado de Direito às funções do Welfare State"(3), uma vez que o paradigma da moderna democracia liberal atribui efetividade ao sistema de proteção das liberdades, mas nenhuma eficácia em relação aos direitos sociais, permanecendo estes na abstração do campo retórico, confinados na discricionariedade política e administrativa, cada vez mais laxadas e caracterizadas pelo "jogo desregulado dos grupos de pressão e das clientelas, da proliferação das discriminações e dos privilégios e do desenvolvimento desse caos normativo que hoje... denunciam e contemplam como 'crise da capacidade reguladora do direito'". "Na sociedade dos dois terços(4), a democracia política arrisca-se a favorecer ainda mais as classes fortes e ricas, que enquanto majoritárias insistem cada vez mais abertamente no princípio majoritário e na diferença pelas regras, limites e controles, enquanto que é o Estado de Direito, com os seus limites e vínculos impostos ao Estado e ao mercado, para tutela não só das liberdades, mas também dos direitos sociais, que desempenha uma função de defesa e de garantia relativamente às pessoas mais débeis."(5)
A responsabilidade das ciências jurídicas e políticas pela ausência de uma solução para o problema da não concretização de um Estado Social e Democrático de Direito, é inegável, como alerta Ferrajoli: "É o caso da maior parte dos direitos sociais — à saúde, à educação, à subsistência, à assistência, etc. — cujas violações por parte do Estado não são sanáveis com técnicas de invalidação jurisdicional análogas às criadas para as violações dos direitos de liberdade, requerendo a instituição de técnicas de garantias diferentes e geralmente mais complexas. O paradigma garantista é todavia o mesmo: a incorporação de vínculos substanciais, consistentes quer em deveres positivos (de fazer), quer negativos (de não fazer), às decisões dos poderes públicos... Devemos realmente reconhecer que para a maior parte de tais direitos (nota do autor: direitos sociais) a nossa tradição jurídica não elaborou técnicas de garantia tão eficazes quanto as criadas para os direitos de liberdade e de propriedade.(6) ... Deste modo, os direitos fundamentais configuram-se como outros tantos vínculos substanciais impostos à democracia política: vínculos negativos, os gerados pelos direitos de liberdade, que nenhuma maioria pode violar; vínculos positivos, gerados pelos direitos sociais, que nenhuma maioria pode deixar de satisfazer."(7)
Levando em conta, pois, a necessidade de compreensão da democracia não sob o prisma meramente formal, mas, principalmente, tendo em vista o seu aspecto substancial(8), aponta o douto voto do eminente ministro Cernicchiaro: "No amplo arco dos Direitos de Cidadania, situa-se o direito de reivindicar a realização dos princípios e normas constitucionais. ... É, pois, direito reclamar a implantação da reforma agrária. Legítima a pressão aos órgãos competentes para que aconteça, manifeste-se historicamente. Reivindicar por reivindicar, insista-se, é direito. ... A postulação da reforma agrária... não pode ser confundida, identificada com o esbulho possessório, ou alteração de limites. Não se volta para insurpar a propriedade alheia. A finalidade é outra. Ajusta-se ao Direito. Sabido, dispensa prova, por notório, o Estado, há anos vem remetendo a implantação da reforma agrária. Os conflitos resultantes, evidente, precisam ser dimensionados na devida expressão. Insista-se. Não se está diante de crimes contra o patrimônio. Indispensável a sensibilidade do magistrado para não colocar, no mesmo diapasão, situações jurídicas distintas. ... Tenho o entendimento, e este tribunal já o proclamou, não é de confundir-se ataque ao direito de patrimônio com o direito de reclamar a eficácia e efetivação de direitos, cujo programa está colocado na Constituição. Isso não é crime; é expressão do direito de cidadania."
Destarte, não se pode olvidar que "numa sociedade de classes, os bens jurídicos hão de expressar, de modo mais ou menos explícito, mas inevitavelmente, os interesses da classe dominante, e o sentido geral de sua seleção será o de garantir a reprodução das relações de dominação vigentes, muito especialmente nas relações econômicas estruturais"(9).
Por fim, "realizar a democracia, levar a sério os direitos fundamentais do homem, tal como são solenemente proclamados nas nossas constituições e nas declarações internacionais, quer dizer hoje pôr fim a esse grande apartheid que exclui da sua fruição quatro quintos do gênero humano"(10).
Notas
(1) Delmanto, Celso, Código Penal Comentado, p. 161, 3ª ed., 1991, Edição Renovar.
(2) Ferrajoli, Luigi, in "O Estado Constitucional de Direito Hoje: O Modelo e sua Discrespância com a Realidade", artigo publicado na Revista do Ministério Público de Portugal nº 67, pp. 39 e 40.
(3) Ferrajoli, Luigi, in "O Direito como Sistema de Garantias", artigo publicado na Revista do Ministério Público de Portugal nº 61, p. 30.
(4) Ferrajoli alude à sociedade dos dois terços, em seu "O Estado Constitucional de Direito Hoje: O Modelo e sua Discrepância", p. 46, como sendo aquela nas quais "a maioria é formada por classes ricas ou desafogadas que identificam a liberdade essencialmente com a recusa das regras, enquanto as classes débeis, pobres e excluídas se reduzem cada vez mais ao estado de minorias".
(5) Ferrajoli, "O Estado Constitucional de Direito Hoje: O Modelo e sua Discrepância", p. 46.
(6) Ferrajoli, "O Direito como Sistema de Garantias" p. 44.
(7) Ibidem, p. 38.
(8) Necessidade esta igualmente vislumbrada por Ferrajoli ("O Direito como Sistema de Garantias", pp. 41 e 42), que enfatiza a importância do papel do juiz neste modelo garantista de democracia substancial, cuja legitimidade não se funda na maioria política, e sim na "intangibilidade dos direitos fundamentais".
(9) Nilo Batista, "Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro", RJ, Ed. Renan, 1990, p. 96. Cf., também, a lúcida análise sobre o "decisionismo processual" e "subjetivismo inquisitorial" como elementos "antigarantistas na teoria de Ferrajoli, em "Penso, logo, hesito", artigo publicado no Boletim do IBCCRIM 58/10, da lavra do insigne advogado Maurício Zanóide de Moraes, que expõe a inconveniência da adoção da chamada súmula vinculante.
(10) Ferrajoli, "O Direito como Sistema de Garantias", p. 46.
Cristiano Maronna
Advogado em São Paulo e colaborador do Boletim.