Dificilmente houve um julgamento criminal de tanta repercussão nos últimos anos como o caso envolvendo o casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá. Durante os cinco dias de atividades em plenário, centenas de pessoas aglomeravam-se em volta do fórum de Santana, na capital paulista, com o intuito de presenciar e fazer parte daquele momento, de sentirem o gosto da vingança com a condenação anunciada mesmo antes dos trabalhos iniciados. Ademais, a cobertura dada pela mídia transformou mais um caso de homicídio, entre tantos que ocorrem no país, em verdadeiro espetáculo, com direito à demonização do advogado de defesa.
Inegável o interesse midiático no julgamento de crimes de competência do Tribunal do Júri, eis que, por sua peculiaridade, aguça a curiosidade popular, no entanto, por vezes, ultrapassam seu poder–dever de informar, transformando o plenário em espetáculo público, olvidando-se dos direitos constitucionais que ostenta o acusado, influenciando, inclusive, o dever de imparcialidade dos jurados – cidadãos leigos - no julgamento da causa.
A morte de uma criança inocente, principalmente pelo modo como aconteceu, está longe de ser um fato normal. Ao contrário, a vida humana é bem de enorme valor e deve ser respeitada. Quando acontece um crime de homicídio é natural o sentimento de revolta das pessoas, mas nada justifica as agressões verbais e físicas ao advogado de defesa, que estava ali, naquele momento, a defender um direito constitucional de todos os cidadãos: um julgamento justo dentro do contraditório e com a ampla possibilidade de defesa. O que levou aquela multidão a agredi-lo de forma tão intensa?
Não temos as respostas exatas, no entanto, podemos destacar dois pontos importantes: a falta de formação cidadã e o sensacionalismo utilizado na cobertura dos fatos. Primeiramente, ficou claro que o brasileiro ainda não assimilou os preceitos do Estado Democrático de Direito e não aceitou a condição de que TODOS devem ser tratados com dignidade no processo, por pior que seja a acusação. Em tese, ninguém é melhor ou pior no processo penal, ou seja, todos devem ter o mesmo tratamento digno. Até decisão condenatória com trânsito em julgado o acusado ostenta a condição de inocente e, durante a execução da pena, o então condenado deve ser tratado com respeito aos seus direitos fundamentais.
Mas parece que cada indivíduo insiste em dividir as demais pessoas entre boas e más. As boas são aquelas que não cometem crimes ou, se os praticam, não são tão graves assim. As más, ao contrário, devem apodrecer no fundo de uma cela sem direito a um julgamento justo. Entretanto, quais os critérios para se fazer essa distinção entre bonzinhos e malvados? Um casal que supostamente mata uma criança é pior que um governante que permite a morte de dezenas de cidadãos por falta de atendimento hospitalar? E aquele que desvia milhões das verbas públicas em proveito próprio, aumentando o rombo da dívida pública e impedindo investimentos na área social?
Como a população está condicionada a assimilar aquilo que a mídia despeja, sem refletir a respeito, Nardoni e Jatobá foram alçados à condição de seres indignos. Não poderiam sequer pensar em ter um advogado constituído, pois deveriam ser prontamente condenados e, se possível, executados em praça pública. O mais assustador é que, no mais das vezes, as impressões veiculadas pelos meios de comunicação proporcionam maior efeito na convicção dos jurados do que propriamente os elementos probatórios trazidos em plenário.
A falta do exercício da cidadania, aliada ao exagero injustificável da imprensa, provoca resultados prejudiciais ao processo democrático. Não se vê o advogado como agente fundamental para o funcionamento da Justiça, com a mesma importância do juiz e do promotor. Como já bem asseverou Francesco Carnelutti em As misérias do Processo Penal:
A essência, a dificuldade, a nobreza da advocacia é esta: sentar-se sobre o último degrau da escada ao lado do acusado. As pessoas não compreendem aquilo que de resto nem os juristas entendem; e riem, zombam e escarnecem. Não é um mister, que goza da simpatia do público, ainda do Cirineu. As razões, pelas quais a advocacia é objeto, no campo literário e também no campo litúrgico, de uma difundida antipatia, não são outras senão estas[1].
O próprio direito penal, em diversas situações, passa de instrumento de limitação do poder punitivo do Estado à ferramenta de vingança. É esta a idéia passada diariamente pela mídia sensacionalista.
Há muito o direito penal e o processo penal deveriam ser expostos ao público leigo como promotores dos valores essenciais à manutenção da democracia e da estabilidade social. Não é possível que os ideais do Iluminismo, que foram conquistados ao longo de séculos, sejam jogados no lixo pela falta de educação e cultura da população e pela ganância da mídia, que fatura milhões com o sensacionalismo barato. Os crimes devem ser noticiados da forma mais sensata, poupando os acusados da exposição desnecessária e não os julgando sem o devido processo legal. Não cabe à mídia (nem a alguns membros do Ministério Público!) julgar os acusados de um crime, esta é função do magistrado ou dos jurados. O ideal seria o processo se desenvolver apenas nos autos e somente ali as partes envolvidas poderiam se manifestar.
Desenvolver a cidadania e promover o Estado Democrático de Direito é tarefa de todos: Estado, mídia, escola, família e todas as demais instituições sociais. Com certeza, uma população formada por pessoas conscientes, capazes de viverem com autonomia, é um grande passo para uma sociedade mais harmoniosa, inclusive com menos crimes. Sem cidadania, os conflitos continuarão a acontecer e não haverá super-herói capaz de nos proteger dos vilões eleitos pela mídia.
São Paulo, 15 de maio de 2010.
João Paulo Orsini Martinelli
Coordenador-adjunto do Departamento de Internet do IBCCRIM
Regina Cirino Alves Ferreira
Coordenadora-adjunta do Departamento de Internet do IBCCRIM
Notas
[1] Trad. José Antônio Cardinalli. Campinas: Bookseller, 2005, p. 28.
"Excelente a entrevista de Sérgio Salomão Shecaira. A admirável trajetória de Shecaira se entrelaça com a marcante história do IBCCRIM e ambos têm tudo a ver com Liberdades."
Cristiano Avila Maronna - São Paulo/SP
"Excelente a entrevista concedida pelo Professor Sérgio Salomão Shecaira na última edição da Revista Liberdades. De fato, o Professor é um exemplo de dedicação acadêmica e preocupação com as mazelas do cárcere brasileiro. Oxalá o parlamento e a magistratura ouvissem mais intelectuais como ele. Certamente nossa situação prisional não estaria no estado em que se encontra."
Fabiana Gonçalves Okai - São Paulo/SP
ESCREVA PARA NÓS!
revistaliberdades@ibccrim.org.br
Sumário:
Introdução; 1. A presunção de inocência como garantia política; 2. A presunção de inocência como norma de tratamento; 3. A presunção de inocência como norma de julgamento; 4. A tutela normativa da presunção de inocência na ordem internacional; 5. A tutela normativa da presunção de inocência no direito brasileiro; 6. A tutela jurisdicional da presunção de inocência na Corte Interamericana de Direitos Humanos; 7. A tutela jurisdicional da presunção de inocência no Brasil e sua repercussão na conformação das normas processuais penais à Constituição Federal; Bibliografia.
Resumo:
O princípio da presunção de inocência se insere entre as garantias processuais do devido processo legal. Tal norma, prevista em atos normativos internacionais e na Constituição brasileira, é interpretada sob três enfoques: de garantia política, de norma de tratamento e de norma de julgamento. A tutela jurisdicional da presunção de inocência, operada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelos tribunais nacionais, também evidencia os seus três aspectos,repercutindo na adequação das normas processuais penais à Lei Maior.
Palavras-chave:
Direito processual penal – garantias processuais – presunção de inocência.
Introdução
Avultada como dogma de sistema processual acusatório, a presunção de inocência se insere entre as garantias do devido processo legal. Por demais olvidada na história do direito processual penal, é exsurgida em reação a odiosas práticas inquisitivas concretizadas no período medieval. Apenas a comprovação legal da culpabilidade do acusado, contraposta à propalada presunção, pode elidir a inocência do acusado. Trata-se de "uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado"[1].
Visando a evitar equívocos de interpretação, urge frisar o seu significado. O princípio da presunção de inocência, também denominado não-consideração prévia de culpabilidade, traduz-se em status ocupado por investigado ou por acusado no desenrolar da persecução penal: estado de inocência, até que se perfaça trânsito em julgado de uma decisão condenatória[2].
A clareza da aventada preceituação é insofismável (in claris cessat interpretatio). Por conseguinte, é inadmissível interpretação restritiva[3].
Assentada a denotação da presunção de inocência, é possível extrair da doutrina e da jurisprudência os seus diferentes enfoques: a presunção de inocência como garantia política; a presunção de inocência como norma detratamento; e a presunção de inocência como norma de julgamento.
A propósito, bem salienta doutrina, representada por Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró: "A invocação do benefício da dúvida pelo réu no processo penal remonta a tempos imemoriais. Desde os primórdios do processo penal acusatório vigorava a denominada presunção de inocência. Atualmente, a doutrina analisaa presunção de inocência sobre vários enfoques: a) como garantia política do estado de inocência; b) como regra de julgamento no caso de dúvida: in dubiopro reo; c) como regra de tratamento do acusado ao longo do processo[4]."
No mesmo sentido, identificando normas decorrentes da presunção de inocência, Maurício Zanóide de Moraes enfatiza que "a concepção de presunção de inocência, sob a perspectiva constitucional de um âmbito de proteção amplo, compreende um significado de ‘norma de tratamento’, relacionado mais diretamente com a figura do imputado, e outros dois significados como ‘norma de juízo’ e como ‘norma probatória’, estes últimos mais ligados a matéria probatória[5]."
Não se trata, obviamente, de aspectos divorciados. Pelo contrário: estão imediatamente relacionados. A apresentação da garantia sob seus diferentes enfoques facilita a compreensão de seus corolários[6].
1. A presunção de inocência como garantia política
A presunção de inocência constitui garantia fundamental do devido processo legal que assegura, contra o arbítrio punitivo estatal, valores constitucionais: a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a verdade e a segurança[7].
É indissoluvelmente ligada aos princípios do favor rei e do favor libertatis, ambos relacionados à tutela da liberdade do cidadão. Toda questão pertinente ao status libertatis há que ser interpretada de forma mais benigna a cidadão que venha a ser criminalmente perseguido.
De uma análise desatenta, poder-se-ia dizer que a garantia deva ser observada só pelas autoridades judiciais. No entanto, cuida-se de interesse comum, constitucionalmente tutelado. Por isso, impõe-se a obrigação de cumpri-la não só àsautoridades públicas – nelas incluídas as judiciais[8]–, como também aos concidadãos.
Em suma, como garantia política, a não-consideração prévia de culpabilidade se expressa em termos gerais: é assegurada a todos os indivíduos, indistintamente, sejam ou não investigados ou acusados por suposta prática de crime;e deve ser observada pela coletividade.
Mas, como visto, é mais extenso o seu significado. Formalizada investigação ou acusação em desfavor de alguém, a garantia é enfatizada sob outros enfoques.
2. A presunção de inocência como norma de tratamento
Investigados ou acusados não devem ser equiparados a condenados. Sob a perspectiva deste corolário, a presunção de inocência se traduz em norma de tratamento que disciplina a persecução penal, tanto na fase investigativa, quanto na fase processual.
Releva notar, por primeiro, um aspecto geral da referida regra de tratamento: a impossibilidade de extrair da mera investigação ou acusação efeitos prejudiciais ao investigado ou ao imputado[9]. Somente a auctoritas rei judicata de decisão condenatória é apta a elidir o seu estado de inocência.
A propósito, a doutrina salienta a inadmissibilidade de quaisquer espécies de punição antecipada ou de medidas que se traduzam em prévio reconhecimento de culpabilidade. A utilização desmedida de algemas em investigação, audiências e sessões de julgamento exemplifica esta consideração[10]. Para além da sanção processual aplicada à violação da garantia, poderá o infrator responder por prática de ilícito, penal, civil ou administrativo, se sua conduta se amoldar aalguma infração legal.
A presunção de inocência como norma que orienta o tratamento a ser dispensado a investigados e acusados está imediatamente relacionada aos direitos e garantias processuais integrantes do devido processo legal. Entre eles,destacam-se: a legalidade, a inadmissibilidade da prova obtida por meios ilícitos,a imparcialidade do órgão jurisdicional, a publicidade dos atos processuais eo contraditório[11].
Considerado o deletério efeito simbólico da ação penal, é de se enfatizar a integração entre a presunção de inocência e a exigência de legalidade da persecução penal. Aqui, a disciplina das medidas cautelares e a regulamentaçãoda prova sobressaem.
Objetivando assegurar resultado útil e justo a um processo, não se exclui a possibilidade de expedição de medidas cautelares, reais ou pessoais. Todavia, os seus pressupostos (fumus commissi delicti, conjugado com periculum libertatis ou com periculum in mora) e requisitos legais hão que ser demonstrados[12].
A este respeito, como bem enfatiza Antonio Magalhães Gomes Filho, a presunção de inocência "impede a adoção de medidas restritivas da liberdade pessoal antes do reconhecimento da culpabilidade, salvo os casos de absoluta necessidade (pour s’assurer de as personne)"[13].
Acrescenta Antonio Scarance Fernandes que "se o réu apenas pode ser considerado culpado após sentença condenatória transitada em julgado, a prisão, antes disso, não pode configurar simples antecipação de pena"[14]. Provimentos cautelares não podem significar antecipação de julgamento da responsabilidade penal do investigado ou do acusado. Por isso, antecipação de cumprimento de pena (a famigerada execução dita provisória) – nela incluídos os seus efeitosprimários e secundários – e decreto de prisão cautelar como corolário da imputação são inadmissíveis[15].
Oportunamente, se instaurada a fase processual, o acusado poderá ser julgado. Exige-se, para sua condenação, a comprovação legal da culpabilidade. Neste sentido, apenas a prova produzida secundum legis pode elidir o seu estadode inocência, fundamentando uma condenação.
É de se ressaltar, a propósito, que o resultado probatório apto a lastrear um decreto condenatório deve ser extraído de elementos de provas produzidas sob o crivo do contraditório, em plena dialética processual, perante juízo natural, independente e imparcial[16]. Dele se excluem as provas obtidas por meios ilícitos,que, pela violação a direitos e garantias fundamentais, são inadmissíveis.
Ainda sobre a legalidade da prova, aspecto muito debatido cinge-se ao ônusda prova no processo penal.
Salienta a doutrina que, rigorosamente, o ônus da prova tem natureza "subjetiva": sob este enfoque, é atribuído, exclusivamente, à Acusação, Ministério Público ou querelante[17]. Dos poderes instrutórios do juiz e da regra de comunhão de prova, extrai-se a inadmissibilidade de valoração negativa de não-produção de prova sobre fato relevante por parte da Defesa[18]. Não cabe ao acusado produzir prova,sobretudo em seu desfavor.
Entretanto, adverte-se que, tecnicamente, não se pode admitir o dito ônus "objetivo" de prova, o qual é considerado regra de julgamento: em processo penal, a dúvida sobre fato relevante é resolvida em favor do réu[19].
Também é conexa à presunção de inocência, como norma de tratamento, apublicidade dos atos processuais.
A publicidade, de forma imediata, possibilita conhecimento dos atos processuais pelas partes, indispensável para o contraditório se operar. Por isso, é repudiado o sigilo dos atos processuais em relação às partes[20]. Isto não afasta a possibilidade de concretização de medidas sigilosas, especialmente primeira fase da persecução penal, como os meios de investigação de prova. Porém, realizada a diligência, às partes deve ser assegurado o acesso aosrespectivos termos.
De outro lado, a publicidade, de maneira mediata, permite controle por parte da sociedade, interessada no deslinde da persecução penal. No entanto, é limitada pelos direitos e garantias fundamentais do investigado ou do acusado, entre os quais estão o direito a intimidade e a presunção de inocência[21]. Portanto, a mídia e as autoridades públicas não podem propalar informações sobre o desenvolvimento da persecução penal arbitrariamente, atribuindo a ela conotação de decreto condenatório de antemão lavrado[22].
3. A presunção de inocência como norma de julgamento
A concretização de um justo julgamento não depende somente da observância dos cânones legais para a declaração de culpabilidade. Se não emergirem da prova, obtida por meios lícitos e legitimamente produzida, elementos suficientes para a formação de convencimento judicial exigido para a condenação, a absolvição se impõe. Neste ponto, a presunção de inocência opera como regra de julgamento: expressa-se no in dubio pro reo[23].
No entanto, a insuficiência de prova não é o único fundamento para uma absolvição. Outros razões justificam o reconhecimento da inocência do acusado, v.g., a comprovação da inocorrência do fato e a atipicidade da conduta[24]. Por isso, afirma-se que também constitui regra de julgamento a observância da dita "ordem hierárquica das decisões diversas da condenação" (ordine gerarchico delle formule decisorie diverse delle condanna). Deve ser reconhecido, entre os fundamentos legais da absolvição, o mais favorável ao acusado: o julgador deve examiná-los de forma motivada e gradativa, do mais para o menos favorável, de modo que este só possa ser sucessivamente invocado se esgotada apossibilidade de aplicação daquele[25].
Ademais, a precisa observação expendida por Mario Chiavario merece destaque: é necessária motivação adequada das decisões, porque a presunção de inocência é infringida com o registro de considerações em motivação de decisão não-condenatória das quais se possa extrair que o juiz considerou culpado o acusado[26]. Lembra o autor julgado da Corte Européia de Direitos Humanos em que se reconhecera como violação à presunção de inocência, sob a perspectiva ora tratada, condenação ao pagamento de despesas processuais em decisão na qual se reconhecera extinção de punibilidade por prescrição[27].
4. A tutela normativa da presunção de inocência na ordem internacional
A garantia da não-consideração prévia de culpabilidade foi consagrada ematos normativos internacionais, muitos dos quais integram o ordenamento jurídico brasileiro.
Quanto ao sistema universal de proteção dos direitos humanos, destacam-se três textos normativos.
No art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 1789, prevê-se que "todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei".
O art. 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, adotada na Organização das Nações Unidas (ONU), estabelece que "todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa".
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, em seu art. 14, item 2, reconhece que "toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa".
Também nos sistemas regionais a garantia é expressamente prevista.
Na Convenção Européia sobre Direitos Humanos, conforme disposto no art. 6º, item 2, "qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada".
O art. 8º, item 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), dispõe que "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa".
Como se pode verificar, o princípio da presunção de inocência foi positivado em textos normativos internacionais, dos quais se extrai, imediata ou mediatamente, os seus diversos aspectos: garantia política, norma de tratamento e norma de julgamento.
O mesmo se pode afirmar quanto a sua previsão no direito brasileiro.
5. A tutela normativa da presunção de inocência no direito brasileiro
O ordenamento jurídico brasileiro consagra expressamente o princípio da presunção de inocência. O Poder Constituinte originário estabeleceu no art. 5º, caput e inciso LVII da Constituição da República Federativa do Brasil: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".
Além disso, o referido art. 8º, item 2 da Convenção Americana sobre Direitos Revista Liberdades - nº 4 - maio-agosto de 2010 36 Humanos, incorporada ao ordenamento nacional pelo Decreto nº 678, de 1992, e pelo Decreto Legislativo n. 89, de 1998, também o prevê. Tal dispositivo integraLei Maior, conforme determina o seu art. 5º, § 2º e § 3º [28].
Portanto, na ordem constitucional instaurada em 1988, a não-consideração prévia de culpabilidade foi consagrada sem restrições: em favor da liberdade, o Poder Constituinte não inseriu qualquer ressalva no texto normativo constitucional. Cuida-se de opção política garantista tendente ao resguardo da dignidade da pessoa humana. O seu significado e todos os aspectos que dela decorrem (v.,supra, n. 1 a 3) podem ser extraídos dos transcritos textos normativos[29].
Mas a garantia não é reconhecida somente em atos normativos.
A doutrina nacional, tão logo promulgada a Lei Maior, imediatamente albergou a garantia, adaptando as disposições normativas do Código de Processo Penal, publicado em 1941.
O mesmo se pode dizer da jurisprudência. A sua tutela jurisdicional é frequente nos tribunais internacionais, entre os quais se destaca a Corte Interamericana de Direitos Humanos, e nos tribunais nacionais, especialmente em arestos do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, que expandiram o sentido do preceito normativo, acolhendo os seus diferentes aspectos.
Mais vagarosa foi a atuação do Poder Legislativo, quanto a efetivação da presunção de inocência na legislação ordinária.
6. A tutela jurisdicional da presunção de inocência na Corte Interamericana de Direitos Humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, competente para processar e julgar casos relativos à interpretação dos dispositivos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, não raramente reconhece a violação às garantias previstas no art. 8º.
No caso Suárez Rosero vs. Ecuador, declarou-se a violação de muitas das previstas garantias processuais, nelas incluída a presunção de inocência,sobretudo nos enfoques de garantia política e de regra de tratamento[30].
Como corolário de investigação, decretou-se prisão cautelar em desfavor do Sr. Rafael Iván Suárez Rosero, que permaneceu preso por mais de 1 mês, incomunicável[31], sem expedição de ordem judicial. Continuou preso depois de formalizada acusação contra si, quando já lavrado mandado de prisão. No total, a sua prisão perdurou por volta de 4 anos, embora a pena máxima cominada aodelito fosse de apenas 2 anos, à qual foi condenado.
In casu, operou-se verdadeira antecipação de cumprimento de pena, com a decretação de odiosa prisão "cautelar-punitiva". Pior do que isso: mantiveram-no preso por prazo desproporcional, em muito superior à pena máxima cominada à fattispecie. Quando então concedida a tão almejada libertação, só pode ser concretizada depois de cerca de 1 ano, em razão da formalidade instituída paraapreciação de seu requerimento.
Deste caso, é interessante destacar que, em razão de declarada violação do art. 2º da Convenção pelo art. 114-bis do Código Penal equatoriano, o Estado-Parte, após ter sido condenado, providenciou a sua derrogação, em cumprimento à sua obrigação de adotar medidas legislativas para efetivar os direitos e liberdades nela previstos.
O mencionado art. 114 bis estabelece prazos tidos por razoáveis para restrição da liberdade, que, decorridos, redundam na libertação do detido. Previa-se uma exceção de inaplicabilidade, fundada na natureza do delito investigado, por ser previsto na Ley sobre Substancias Estupefacientes y Psicotrópicas. Tal exceção fora revogada[32].
No caso Tibi vs. Ecuador, a Corte também assinalou que a prisão preventiva é uma medida cautelar, não punitiva, repudiando a antecipação de cumprimento de pena[33]. Considerou a necessidade de equilíbrio entre garantismo e eficiência no decorrer da persecutio criminis.
Apesar de inexistentes indícios em seu desfavor, o Sr. Tibi foi pré-julgado,indevidamente presumido culpado, considerado o tratamento processual que lhe foi dispensado[34].
Enfatizou-se, demais disso, que o princípio da presunção de inocência constituium fundamento das demais garantias judiciais.
Uma vez mais, a Corte declarou a violação da garantia ora versada no caso Acosta Calderón vs. Ecuador[35]. Afirmou-se a imprestabilidade da atribuição de caráter punitivo à prisão cautelar, pela impossibilidade de antecipação de cumprimento de pena[36].
Por derradeiro, merece destaque o caso Ricardo Canese vs. Paraguay, no qual se salientou, entre os enfoques da presunção de inocência, o de regra de julgamento[37].
Em julgamento deste caso, a Corte frisou tratar-se de garantia essencial para o efetivo exercício do direito de defesa. Enfatizou, também, que a presunção de inocência "implica que el acusado no debe demostrar que no ha cometido el delito que se le atribuye, ya que el onus probandi corresponde a quien acusa"[38].
Ademais, reconheceu-se a necessidade de prova dita "plena" para a condenação. Se houver prova incompleta ou insuficiente, impõe-se a absolvição, consoante esposado no julgamento[39].
Dos arestos citados, extrai-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos está a cumprir a sua precípua missão de zelar pelo efetivo cumprimento das disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos. Os seus julgados servem não só como precedentes para solução de demandas ulteriores, como também repercutem no direito interno dos Estados-Partes[40].
7. A tutela jurisdicional da presunção de inocência no Brasil e sua repercussãona conformação das normas processuais penais à Constituição Federal
Desde a promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, a jurisprudência, embasada em ensinamentos doutrinários, envidou esforços para a efetivação da presunção de inocência. Possibilitou a tutela jurisdicional do processo legal e justo.
Quanto a perspectiva do tratamento dispensado ao acusado no decorrer da persecução penal, os julgadores, com acerto, reconheceram a impossibilidade de extrair da mera investigação ou acusação efeitos prejudiciais ao investigado ou ao imputado.
Um exemplo disto é o entendimento sacramentado na Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal, que assim dispõe: "só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado."
Concomitante às discussões travadas na Egrégia Corte, o Poder Legislativo retomou a análise do tema que constava em projetos legislativos. Isto resultou na edição da Lei n. 11.689, publicada em 9 de junho de 2008, que expressamente proibiu o uso de algemas durante o período em que se permanecer em plenário de júri, ressalvada a utilização se necessária para garantir a segurança dos que estejam presentes (art. 474, § 3º do Código de Processo Penal).
A vedação da utilização de algemas em plenário, na segunda fase do procedimento para crimes julgados pelo tribunal popular, foi providencial. O prejuízo ao acusado, por possível interferência na isenção dos jurados, era nítido.
No entanto, urge se atentar para a menor extensão da previsão normativa, se comparada com os termos sumulares. O entendimento sacramentado pelo Supremo Tribunal Federal, com caráter vinculante, não se restringe a delitos processados e julgados perante o Tribunal do Júri: aplica-se a persecução penal de qualquer espécie delitiva, por todo o desenrolar da persecução penal.
Outros efeitos da persecução penal, igualmente prejudiciais a investigado ou a acusado, ainda persistem. É o caso da valoração da existência de investigação ou de processo criminal, tida como "mau antecedente" por alguns, com respaldo na amplitude dos termos da lei penal ("antecedentes", previstos no art. 59 do Código Penal). Entretanto, há entendimento firmado em sentido contrário, reconhecendoa violação da presunção de inocência[41].
Ainda sob a perspectiva da regra de tratamento, merece citação a jurisprudência firmada com relação a publicidade imediata, indispensável para que os atos processuais sejam conhecidos pelas partes. A Súmula Vinculante n. 14 do Supremo Tribunal Federal estabelece que "é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa."
Correto o posicionamento sumulado: de nada adianta propalar estado de inocência a alguém, sem lhe conceder a concomitante possibilidade de conhecer os atos de persecução penal instaurada e de exercer o direito de defesa. É por tais motivos que se deve viabilizar a publicidade dos atos processuais assegurada pela Lei Maior (art. 5º, caput e inciso LX e art. 93, caput e inciso IX).
A tutela jurisdicional e sua repercussão na atividade do legislador parece mais expressivos em tema de medidas cautelares no processo penal.
Volvendo aos enfoques da garantia ora analisada, reitere-se que não resta excluída a possibilidade de expedição de medidas cautelares, nelas incluídas as espécies de prisões processuais admissíveis no ordenamento jurídico brasileiro: prisão em flagrante, prisão temporária e prisão preventiva[42]. Consoante preconizado no art. 93, inciso IX da Lei Maior, em decisão judicial motivada, deve-se ressaltar a presença dos seus pressupostos e requisitos previstos para restrição da liberdade, com fundamento em elementos concretos.
Promulgada a atual Constituição em 1988, evidenciou-se, como consequência inarredável da não-consideração prévia de culpabilidade, o reconhecimento de que algumas normas previstas em dispositivos da legislação ordinária até então vigentes não tinham sido recepcionados pela ordem jurídica instaurada.
Com efeito, afigurou-se claro ser írrito o disposto nos artigos 393, caput e inciso I, 408, § 1º, 594 e 595 do Código de Processo Penal, pela impossibilidade de decreto de prisão como decorrência automática de decisão condenatória ou de pronúncia recorríveis. Sob este argumento, também se extraía a inconstitucionalidade de normas previstas em diplomas normativos cuja publicação sucedeu à Constituição: a Lei n. 9.034, de 1995 (art. 9º); e a Lei n.11.343, de 2006 (art. 59).
Tampouco a privação de liberdade pode constituir pressuposto recursal, conforme sugeria a lei processual ao disciplinar a apelação. Indevidamente, o apelante seria equiparado a condenado. Além disso, semelhante disposição significava ilegítima limitação ao efetivo exercício de direito a recurso, extraído das garantias da ampla defesa e do duplo grau de Jurisdição, que igualmenteintegram o direito pátrio[43].
Por isso, foi deveras repudiado o enunciado da anacrônica Súmula n. 9 do Superior Tribunal de Justiça, da qual constava: "A exigência de prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência"[44]. O próprio órgão judiciário corrigiu o equívoco, por meio da elaboração da Súmula n. 347: "O conhecimento de recurso de apelação do réu independe de sua prisão", dispõe o novo enunciado, repisando o ensinamento doutrinário.
Diversos são os arestos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal que refutam a possibilidade de decreto de prisão como efeito automático da condenação[45]. Afirmou-se, por repetidas vezes, que a prisão, como medida cautelar, é possível neste momento processual somente se presentes os seus requisitos legais, apresentados em decisão motivada.
Aliás, o reconhecimento de impossibilidade de antecipação de pena também passou a ser acolhido pela jurisprudência brasileira em se tratando de recursos extraordinários, especial e extraordinário[46]. Como se prevê que serão recebidos apenas no efeito devolutivo (art. 27, § 3º da Lei nº 8.038, de 1990), sustentava-seser possível iniciar o cumprimento de pena, em execução dita provisória.
O incorreto o entendimento foi reparado: embora se admita que estes recursos não integrem a garantia do duplo grau de jurisdição, a condenação só pode ser cumprida quando se perfizer o trânsito em julgado da decisão. Do contrário, tem-se violação da presunção de inocência, por antecipação de cumprimento de pena, pelas mesmas razões apontadas quanto ao recurso de apelação (ubieadem ratio, ibi eadem jus).
Decorridos mais de 20 anos de vigência da Constituição, o legislador houve por bem atender aos protestos da doutrina e da jurisprudência em movimento que passou a ser conhecido como "Reforma Processual Penal de 2008", operada pelos seguintes atos normativos: a Lei 11.689 e a Lei n. 11.690, ambas publicadas em 9 de junho de 2008; e a Lei n. 11.719, de 20 de junho de 2008.
A Lei n. 11.689 revogou o disposto no art. 408, § 1º da lei processual penal. Estabeleceu que, em decisão de pronúncia, se estiver preso o acusado, o julgador decidirá, motivadamente, sobre a manutenção, a revogação ou a substituição de prisão ou de medida restritiva de liberdade anteriormente decretada. Estando solto, para decretar a prisão, deve, também fundamentadamente, observar os seus pressupostos e requisitos (cf. nova redação do art. 413, caput e § 3º do Código de Processo Penal).
No mesmo sentido, a Lei n. 11.719, entre outras alterações, inseriu parágrafo único no art. 387 do Código de Processo Penal, que dispõe sobre a sentença condenatória. Se estiver preso o acusado, a autoridade judicial, ao condená-lo, deverá fundamentar a manutenção de sua restrição de liberdade. Caso esteja solto, motivadamente, deliberará sobre a decretação de sua prisão ou de outra medida cautelar, sem prejuízo de conhecimento de apelação que vier a ser interposta.
Em coerência com o nela disposto, a mencionada lei revogou o art. 594 da lei processual.A evolução do direito processual penal brasileiro operada pelas novas normas é evidente.
Conforme os citados dispositivos, a exigência de motivação para o decreto de prisão cautelar passou a ser expressamente prevista em lei. Embora de todo dispensável, em face do disposto no art. 93, inciso IX da Constituição Federal, reconheça-se que a exigência reforça o mandamento constitucional. Por conseguinte, impede o cômodo expediente de referência a dispositivos legais não recepcionados constitucionalmente - divorciado da melhor doutrina - para decreto de prisão como corolário da imputação, concretizado por julgadores resistentes em admitir a nova ordem constitucional, sobretudo em casos tidospor "graves".
Outrossim, a nova disciplina legal enfatiza o caráter cautelar de prisão que anteceda uma sentença penal condenatória definitiva, efetivando a presunção de inocência. A prisão em flagrante, a prisão temporária e a prisão preventiva passam a ser, também no plano das normas positivadas, as três únicas espécies de prisão cautelar previstas no direito pátrio.
Esqueceu-se do disposto nos já referidos art. 393, caput e inciso I e art. 595, ambos do Código de Processo Penal, no art. 9º da Lei n. 9.034, de 1995, e no art. 59 da Lei n. 11.343, de 2006. Mas tais regras não possibilitam o decreto de prisão como efeito automático da condenação, porque isto significaria escandalosa incompatibilidade com a atual regulamentação da prisão cautelar e com a presunção de inocência, prevista na Constituição Federal[47].
Demais disso, a jurisprudência evoluiu ao assegurar que a inocência do acusado só possa ser elidida com a comprovação legal da culpabilidade. Isto significa que, em atos de instrução, os direitos e as garantias processuais devem ser assegurados, entre os quais está a legalidade. O procedimento legal dos meios de prova delimita a prática de tais atos[48].
Outro aspecto relevante reconhecido pela jurisprudência pátria é a inexistência de ônus da prova para a defesa em processo penal[49]. Apesar de alguns magistrados serem relutantes em admitir que o ônus de comprovar as imputações seja, exclusivamente, da acusação, o legislador, convicto da inexistência do ônus para a defesa, estabeleceu que o acusado será absolvido se "existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § 1o do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência" (art. 386, caput e inciso VI).
Note-se que os argumentos de corrente intermediária, que propugnava por se admitir ônus para a defesa quanto às excludentes de ilicitude e de culpabilidade, não mais se sustentam. Isto porque a Lei n. 11.690 complementou o fundamento da absolvição, possibilitando a sua declaração mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência. Cuida-se de verdadeira regra de julgamento, instituída emfavor da liberdade, que potencializa a presunção de inocência.
A referida reforma processual manteve a clássica regra de julgamento, fundada na inexistência de elementos suficientes, que impõe a absolvição. O in dubio pro reo, antes previsto no inciso VI do art. 386 do Código de Processo Penal brasileiro, foi inserto em seu inciso VII.
Uma derradeira observação: em sendo caso de condenação, os seus efeitos exigem prévia configuração de coisa julgada. São inadmissíveis, por conseguinte, não só o já referido cumprimento de pena antes de se tornar definitiva, como também a inscrição do nome do pronunciado ou do provisoriamente condenado no intitulado rol dos culpados, considerado, sobretudo, os efeitos simbólicos da persecução penal[50]. Nesta questão, também a jurisprudência pôde concretizar entendimento consentâneo com o estado de inocência do acusado[51].
Destarte, o processo penal brasileiro vai se amoldando aos direitos e garantias processuais assegurados constitucionalmente e, por conseguinte, à dignidade da pessoa humana. O significado e as decorrências do princípio da presunção de inocência foram acolhidos pela doutrina e pela jurisprudência nacional. Apesar de vagarosamente, também o legislador está a caminhar no mesmo sentido.
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Marcio Geraldo Britto Arantes Filho
Mestrando em Direito Processual Penal e graduado
em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco (Universidade de São Paulo - USP). Advogado.
Notas
[1] Cf. FERRAJOLI, Luigi, Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica et al. 2. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 506. Confiram-se, a propósito, as bem lançadas palavras de THOMAS HOBBES DE MAMESBURY: "Todas as penas aplicadas a súditos inocentes, quer sejam grandes ou pequenas, são contrárias à lei de natureza, pois as penas só podem ser aplicadas por transgressão da lei, não podendo portanto os inocentes sofrer penalidades" (Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 239).
[2] Como bem assinalado por VINCENZO GAROFOLI, deve-se "confermare la cognitività della regola della ‘considerazione di non colpevolezza’, poiché ad essa non atribuisce alcun potere di modificazione in ordine allo status dell’imputato, che rimane innocente fino a sentenza definitiva" (Presunzione d’innocenza e considerazione di non colpevolezza – la funigibilità delle due formulazioni. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Milano, Giuffrè, anno XLI, 1998. p. 1.196).
[3] É o que salienta a doutrina, ao comentar a previsão da presunção de inocência no direito brasileiro (Cf. TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 386-387).
[4] Cf. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003. p. 280. Também LUIGI FERRAJOLI diferencia diferentes sentidos da garantia: "no sentido de ‘regra de tratamento do imputado’, que exclui ou ao menos restringe ao máximo a limitação da liberdade pessoal; ou no sentido de ‘regra de juízo, que impõe o ônus da prova à acusação além da absolvição em caso de dúvida" (Direito e Razão ... op. cit., p. 507).
[5] Cf. Presunção de Inocência no processo penal brasileiro: análise da estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. 2008. Tese (Livre Docência) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2008. p. 456.
[6] "Não se deve considerar esses três significados como algo destacado do já referido sobre ‘favor rei’ e sobre ‘in dubio pro reo’. Muito ao contrário, deve-se pressupor estas duas formas de manifestação, pois, como se viu quando delas se tratou de modo específico, será na presunção de inocência, como ‘norma de juízo’, que serão aplicadas no nível judicial de efetivação das normas ao caso concreto." (Cf. MORAES, Maurício Zanóide de. Presunção de Inocência no processo penal brasileiro... op. cit, p. 457.
[7] No mesmo sentido do ora afirmado estão as considerações de LUIGI FERRAJOLI, que se refere à presunção de inocência como garantia de liberdade, de verdade e de segurança (Direito e Razão ... op. cit., p. 506).
[8] Cf. CHIAVARIO, Mario. La presunzione d’ innocenza nella giurisprudenza della Corte Europea dei Diritti dell’uomo. In: Studi in ricordo di Gian Domenico Pisapia. Milano: Giuffrè, 2000. v. 2. p. 102. A necessidade de observância da garantia por autoridades públicas diversas das judiciais foi afirmada no julgamento do caso pela CORTE EUROPÉIA DE DIREITOS HUMANOS (Case of Allenet de Ribemont vs.France, disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=33080679&skin=hudoc-en&action=request, acesso em 23/10/2009). O Estado francês foi condenado por violação a garantia da presunção de inocência, pois das declarações de um Ministro de Estado prestadas em entrevista, extraiu-se prévia atribuição de responsabilidade penal a um investigado.
[9] Cf. UBERTIS, Giulio. Principi di Procedura Penale Europea – Le regole del giusto processo. Milano: Rafaello Cortina Editore, 2000. p. 71-72.
[10] O mesmo se pode dizer quanto a "situações, práticas, gestos e palavras em que se exprimem verdadeiras antecipações do juízo condenatório", como no caso da posição emblemática e solitária do réu no próprio espaço físico das salas de julgamento (Cf. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na Convenção Americana sobre direitos humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Revista do Advogado, São Paulo, n. 42, abr. 1994. p. 32). Semelhante consideração é expendida por GIULIO UBERTIS (Principi di Procedura ... op. cit., p. 71-72).
[11] No mesmo sentido estão as considerações expendidas por GIULIO UBERTIS. Acentua o autor que é relacionada à imparcialidade e à neutralidade metodológica do órgão jurisdicional: "l’organo giurisdizionale non può i alcun modo essere coinvolto in compiti che, anteriormente all’esaurirsi della verifica processuale dell’acusa, implichino uma sua adesione a quell’opinio delicti che é invece il motore dell’ordinaria attività del publico ministero" (Principi di procedura... op. cit., p. 64-67). Confiram-se, também, os ensinamentos de MARIO CHIAVARIO: "la presunzione si trova misconosciuta se, senza un previo accertamento legale della colpevolezza di um imputato, una decisione giudiziaria che lo riguarda riflette la convinzione che egli sia colpevole". "Cominciamo col ricordare che nella giurisprudenza della Corte europea non manca la consapevolezza del raccordo tra la presunzione d’innocenza e le componenti del ‘processo giusto’, sino all’affermazione che fa della stessa presunzione un elemento essenziale – e non meno essenziale per il fatto di essere autonomamente previsto – del ‘procés équitable’" (La presunzione d’ innocenza ... op.cit., p. 95/99).
[12] O encarceramento preventivo, segundo LUIGI FERRAJOLI, é tido por absolutamente ilegítimo. Sustenta-se a incompatibilidade de seus requisitos com o postulado da presunção de inocência. Chegase expressamente a propor "um processo sem prisão preventiva" (Direito e razão... op. cit., p. 507-516). Embora não se desconheçam os argumentos ponderáveis expendidos pelo citado autor, não nos parece possível imaginar um sistema processual que não preveja a prisão cautelar. Aliás, ao admitir, na persecução penal de delitos graves, a "simples condução coercitiva do imputado à presença do juiz" e a sua "detenção durante o tempo estritamente necessário", que pode durar horas ou dias, ele, a nosso ver, concorda com a restrição cautelar da liberdade.
[13] Cf. O princípio da presunção de inocência na constituição de 1988 ... op. cit., p. 31
[14] Cf. FERNANDES, Antonio Scarence. Processo penal constitucional. 5. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 328.
[15] ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO extrai da presunção de inocência: "a mais elementar e fundamental conclusão é que nenhuma restrição à liberdade pessoal do acusado pode ser imposta como forma antecipada de punição" (Presunção de inocência: princípio e garantias. In: GOMES FILHO, Antonio Magalhães et al. Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: RT, 2003. p. 139). O mesmo autor enfatiza a inadmissibilidade de "quaisquer formas de encarceramento ordenadas com antecipação de prisão" (Presunção de Inocência e prisão cautelar. São Paulo,: Saraiva, 1991, p. 65/66). Recorde-se, a propósito que, a Lei de Execução Penal estabelece a necessidade de trânsito em julgado da decisão condenatória para o início da execução de sanção penal (cf. artigos 105, 147 e 164 da Lei nº 7.210/84). MARIO CHIAVARIO, por seu turno, ao mencionar a impossibilidade de antecipação de cumprimento de pena, corretamente enfatiza a proibição absoluta de executividade das sentenças impugnadas ou impugnáveis (La presunzione d’ innocenza ... op. cit., p. 83).
[16] Precisamente, ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO reconhece que não se pode operar mera ratificação de elementos colhidos na fase investigativa (O princípio da presunção de inocência na constituição de 1988 ... op. cit., p. 31-32).
[17] Cf. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova ... op. cit., p. 433. LUIZ FLÁVIO GOMES, na mesma esteira, afirma que o "ônus de comprovar os fatos e a atribuição culpável (imputação subjetiva) deles ao acusado, por força do art. 156 do CPP, cabe a quem formula a acusação" (Estudos de Direito Penal e Processo Penal. 1. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 112).
[18] Pondera-se que a prova poderá ser produzida pelo juiz e pela parte contrária (Cf. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova ... op. cit., p. 433). No mesmo sentido, está o ensinamento de ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, que enfatiza o seguinte aspecto da presunção de inocência: "regra processual segundo a qual o acusado não está obrigado a fornecer provas de sua inocência, pois esta é de antemão presumida (étant présumé innocent)" (Cf. O princípio da presunção de inocência na constituição de 1988 ... op. cit., p. 31).
[19] Cf. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova ... op. cit., p. 433.
[20] Cf. GIULIO UBERTIS ressalta a ligação entre presunção de inocência e "il rifiuto della segretezza" (Principi di Procedura ... op. cit., p. 67).
[21] Cf. VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: RT, 2003. p. 129-190.
[22] No mesmo sentido, estão os ensinamentos de GIULIO UBERTIS. Principi di Procedura ... op. cit., p. 65. Não raramente, a liberdade de expressão do pensamento e a liberdade de informação confrontam com o princípio da presunção de inocência, que deve prevalecer sobre as primeiras. Embora se assegurem as mencionadas garantias, é da mais alta relevância salientar que tanto a crônica, quanto a crítica são limitadas e devem ser restringidas se esbarrarem em direitos personalíssimos. "Não somente a crônica, que é a exposição objetiva dos fatos, com o fim de informar e formar a opinião pública, mas também a crítica, que pressupõe um juízo de valor positivo ou negativo, devem respeitar a dignidade da pessoa humana, evitando a linguagem com significado ofensivo" (Cf. VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal ..., p. 133 e 165). Para além de evitar o pernóstico efeito simbólico da persecução penal, o resguardo de direitos e de garantias fundamentais do investigado e do acusado é inarredável. Interessante notar, a este respeito, que a norma nº 27 do Código de Ética do jornalista, vigente em Chile, estabelece que o jornalista deva salvaguardar a presunção de inocência dos acusados, respeitando as diferentes etapas do processo judicial. Deve se comprometer a resguardar a identidade de qualquer pessoa entrevistada, em caráter confidencial, e a evitar seu possível reconhecimento por suas características, vestimenta ou identificação do ambiente em que se esteja.
[23] Como bem exposto por GIULIO UBERTIS, a culpabilidade do imputado deve ser demonstrada sem dúvida razoável (Principi di Procedura ... op. cit., p. 69).
[24] O Código de Processo Penal brasileiro, por exemplo, prevê os seguintes fundamentos para absolvição: "Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: I - estar provada a inexistência do fato; II - não haver prova da existência do fato; III - não constituir o fato infração penal; IV – estar provado que o réu não concorreu para a infração penal; V – não
existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal; VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § 1o do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência; VII – não existir prova suficiente para a condenação."
[25] Cf. UBERTIS, Giulio. Principi di Procedura ... op. cit., p. 70. Acrescente-se o correto entendimento de se atribuir prioridade a declaração de causas extintivas relacionadas a possibilidade de uma absolvição com fórmula de mérito, que devem prevalecer sobre decisões extintivas da punibilidade (Cf. CHIAVARIO, Mario. La presunzione d’ innocenza ... op. cit., p. 86).
[26] Bem enfatiza o autor a necessidade de "un’ esigenza di severo autocontrollo delle espressioni che vengono usate anche nelle motivazioni delle pronuncia giudiziali, ad evitare che la presunzione d’ innocenza sai di fatto violata per una ecessiva disinvoltura verbale" (La presunzione d’ innocenza ... op. cit., p. 88-91). Parece-nos que a violação se evidencia, v.g., ao se referir a existência de elementos consideráveis sobre a culpabilidade que justificariam a condenação do acusado em decisão que seja estribada no in dubio pro reo. Diferente é a situação em que se examinam elementos de prova favoráveis e desfavoráveis ao acusado. A distinção é tênue: a nosso ver, é inadmissível dizer que haja elementos a justificar uma condenação, se não for possível decretá-la; de outro lado, pode-se apontar para elementos desfavoráveis, que, conjugados aos demais, não são suficientes para uma condenação.
[27] A citação se refere ao "Case of Minelli v. Switzerland" (CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Minelli v. Switzerland, disponível em
http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=33076941&skin=hudoc-en&action=request, acesso em 23/10/2009).
[28] Outros atos normativos internacionais podem ser invocados, por também preverem expressamente a garantia processual: o art. 9º da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, o art. 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o art. 14.2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
[29] ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO ensina que a efetiva aplicação da garantia decorre da consideração das duas previsões positivadas no direito brasileiro, que se completam (Cf. O princípio da presunção de inocência na constituição de 1988 ... op. cit., p. 30-31).
[30] Cf. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Suárez Rosero vs. Ecuador. Fondo. Sentencia de 12 de noviembre de 1997. Serie C, n. 35, disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_35_esp.pdf, acesso em: 22/10/2009.
[31] O Sr. Suárez permaneceu incomunicável por mais de 30 dias, enquanto a Constituição equatoriana estabelece o prazo máximo de 24 horas. A medida, de nítido caráter excepcional, foi justificada pela necessidade de investigação. Ademais, não se asseguraram a ele garantias mínimas, como o direito ao acesso a Justiça e a uma defesa técnica e efetiva (Cf. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITO HUMANOS. Caso Suárez Rosero... cit., itens 34 e 38-52, p. 11-15 e 16-18).
[32] Interessante relevar que, na motivação da decisão, expressou-se a inadmissibilidade da restrição de direito do acusado pela natureza do delito. Bem enfatizou a Corte que, em face de detenção indevida, implicitamente se viola direito de todos os membros da comunidade, igualmente titulares do direito à liberdade (Cf. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITO HUMANOS. Caso Suárez Rosero... cit., itens 93- 99, p. 25-27).
[33] Cf. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITO HUMANOS. Caso Tibi vs. Ecuador. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 7 de septiembre de 2004. Serie C, n. 114. Disponível em:
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[34] Confiram-se as considerações expendidas pela Corte: "considerados en su conjunto, los datos correspondientes al procesamiento penal del inculpado no solo no acreditan que se le hubiera tratado como corresponde a un presunto inocente; sino muestran que en todo momento se actuó, con respecto a él, como si fuere um presunto culpable, o bien, una persona cuya responsabilidad penal hubiere quedado clara y suficientemente acreditada" (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITO HUMANOS. Caso Tibi vs. Ecuador... cit., item 182, p. 28).
[35] Cf. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITO HUMANOS. Caso Acosta Calderón vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de junio de 2005. Serie C, n. 129. Disponível em:
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[36] A Corte decidiu que "se incurriría en una violación a la Convención al privar de libertad, por un plazo desproporcionado, a personas cuya responsabilidad criminal no ha sido establecida. Equivaldría a anticipar la pena, lo cual contraviene los principios generales del derecho universalmente reconocidos". A "privación de libertad fue arbitraria y excesiva (supra párrs. 70 y 81), por no existir razones que justificaran la prisión preventiva del señor Acosta Calderón por más de cinco años" (CORTE IDH. Caso Acosta Calderón vs. Ecuador... cit., itens 111 e 112, p. 35 e ss.).
[37] Cf. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITO HUMANOS. Caso Ricardo Canese vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2004. Serie C, n. 111. Disponível em:
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[38] Cf. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITO HUMANOS. Caso Ricardo Canese vs. Paraguay... cit., item 154, p. 83.
[39] "La Corte ha señalado que el artículo 8.2 de la Convención exige que una persona no pueda ser condenada mientras no exista prueba plena de su responsabilidad penal. Si obra contra ella prueba incompleta o insuficiente, no es procedente condenarla, sino absolverla. En este sentido, la Corte ha afirmado que en el principio de presunción de inocencia subyace el propósito de las garantías judiciales, al afirmar la idea de que una persona es inocente hasta que su culpabilidad sea demostrada" (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITO HUMANOS. Caso Ricardo Canese vs. Paraguay... cit., item 153, p. 83).
[40] Reitere-se aqui a já propalada repercussão do julgamento do caso Suárez Rosero vs. Ecuador no direito interno, certo que redundou em derrogação de norma nele inserta.
[41] A propósito, confira-se o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal: STF, 2ª T, AI 741101 AgR/ DF, Rel. Min. Eros Grau, j. 28/04/2009, DJU 29/05/2009, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 07/09/2009. No sentido da possibilidade de valoração de registro de investigação ou de processo penal como "mau antecedente", v. STF, 1ª T, AI 604041 AgR/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 03/08/2007, DJU 31/08/2007, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 07/09/2009.
[42] "A prisão em flagrante delito, a prisão preventiva e a prisão temporária, são, na realidade tipicamente cautelares, isto é, têm por finalidade a assecuração do resultado profícuo do processo penal de conhecimento de caráter condenatório, quer para a garantia da ordem pública, quer em razão da conveniência da instrução criminal ou para preservar a aplicação da lei penal" (TUCCI, Rogério Lauria. "Presunção de inocência" e prisão provisória – Análise crítica da Súmula nº 09 do Superior Tribunal de Justiça. Fascículos de Ciências Penais, ano 5, n. 2, v. 5, Porto Alegre, abr-jun. 1992. p. 134).
[43] No ordenamento jurídico brasileiro, a garantia da ampla defesa é expressamente prevista no art. 5º, caput e inciso LV da Constituição Federal. O mesmo se diga quanto a garantia do duplo grau de Jurisdição, em face do disposto no art. 8.2, alínea "h" do Pacto de São José da Costa Rica (Decreto 678/92), considerado o previsto no art. 5º, § 2º e § 3º da Lei Maior, que atribuem natureza constitucional aos tratados sobre direitos humanos. Há quem afirme que esta garantia é implicitamente prevista no texto constitucional, ao se definir a competência dos tribunais. Prefere-se o primeiro entendimento, por ser expressa a previsão. Na esteira do ora afirmado estão as considerações de ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO e ANTONIO SCARANCE FERNANDES (Recursos no processo penal: teoria geral dos recursos, recursos em espécie, ações de impugnação, reclamação aos tribunais. 6. ed. São Paulo: RT, 2009. p. 19-24 e 89-90) e de ROGÉRIO LAURIA TUCCI (Direitos e garantias ... op. cit., p. 389/395).
[44] O próprio legislador, outrora draconiano, passou a reconhecer que "em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade", conforme o art. 2º, § 2ºda Lei nº 8.072/90.
[45] No Supremo Tribunal Federal, verifiquem-se os seguintes julgados: STF, 2ª T, AI 95464/SP, Rel. Min. Celso de Mello, j. 03/02/2009, DJU 13/09/2009, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 08/09/2009; STF, Trib. Pleno, HC 85369/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 26/03/2009, DJU 30/04/2009. disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 08/09/2009; e STF, Trib. Pleno, HC 90279/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 26/03/2009, DJU 21/08/2009, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 08/09/2009.
[46] Confiram-se, no Supremo Tribunal Federal, os seguintes julgados: STF, 2ª T, HC 91232/PE, Rel. Eros Grau, j. 06/11/2007, DJU 07/12/2007, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 08/09/2009; STF, 2ª T, HC 96059/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, j. 10/02/2009, DJU 03/04/2009, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 08/09/2009. E no Superior Tribunal de Justiça: STJ, 6ª T, HC 67346/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 28/08/2007, DJU 17/09/2007, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 08/09/2009.STJ, 6ª T., HC 89195/GO, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 22/04/2008, DJU 29/09/2008, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 08/09/2009.
[47] No mesmo sentido, cf.: GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Recursos no processo... op. cit., p. 114-115.
[48] Neste sentido, cf.: STJ, 5ª T., HC 121216/DF, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 19/05/2009, DJU 01/06/2009, disponível em: http://www.stj.jus.br, acesso em: 08/09/2009.
[49] A respeito da inadmissibilidade de ônus da prova para a defesa, v.: STF, 2ª T, HC 95740/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/06/2009, DJU 26/06/2009, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 07/09/2009; STF, 1ª T., HC 90779/PR, Rel. Min. Carlos Britto, j. 17/06/2008, DJU 24/10/2008, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 07/09/2009. Em sentido contrário, cf.: STF, 1ª T, HC 94237/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 16/12/2008, DJU 20/02/2009, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 07/09/2009.
[50] Cf. TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias ... op. cit., p. 390.
[51] A propósito, servem de paradigma, quanto a impossibilidade de inserção do nome do provisoriamente condenado no rol dos culpados, os seguintes arestos: STF, 2ª T, HC 82812/PR, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 03/06/2003, DJU 27/06/2003, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 08/09/2009; e STF, 2ª T, HC 83947/AM, Rel. Min. Celso de Mello, j. 07/08/2007, DJU 01/02/2008, disponível em: http://www.stf.jus.br, acesso em: 08/09/2009.
Com muita honra a Revista Liberdades publica nesta edição entrevista exclusiva concedida pelo professor Bernd Schünemann, um dos grandes nomes do Direito Penal alemão. Com vasta produção científica, é autor e coordenador de diversas obras científicas, entre livros e artigos, traduzidos para os mais variados idiomas. Bernd Schünemann é professor catedrático de direito penal, direito processual penal, filosofia do direito e sociologia jurídica na tradicional Ludwig-Maximilians Universität (Munique, Alemanha). A entrevista foi encaminhada por e-mail por João Paulo Orsini Martinelli, coordenador-adjunto da Revista Liberdades, a Luís Greco – assistente científico do professor Schünemann –, que a concretizou em Munique e a traduziu ao português.
Por fim, cumpre destacar que tanto o professor Schünemann quanto Greco palestrarão no 16º Seminário Internacional do IBCCRIM, que ocorrerá entre os dias 24 e 27 de agosto de 2010 em São Paulo.
1) Primeiramente, professor, gostaríamos que o senhor contasse um pouco de sua carreira (quando começou os estudos de direito penal, por quais universidades passou, quem foram seus professores mais importantes).
BERND SCHÜNEMANN – Eu estudei Direito nas Universidades de Göttingen, Berlim e Hamburgo. O interesse pelo Direito Penal surgiu naturalmente. Em primeiro lugar, tive a sorte de assistir a aulas de Direito Penal com Claus Roxin. Ele era uma personalidade marcante, que entusiasmava todos que o escutavam. Mas outro fator que sempre me atraiu foi a proximidade do Direito Penal à Filosofia e a perfeição dogmática das construções do Direito Penal. Enquanto no Direito Civil tudo partia de uma ponderação de interesses, no Direito Penal havia algo como um verdadeiro sistema, fundado filosoficamente, do qual se extraíam respostas para as questões discutidas.
2) Na sua opinião, por que a Alemanha é o país que mais produz no direito penal? De onde vem tanta qualidade da doutrina germânica?
BS – Um dado fundamental é seguramente o estreito contato com a Filosofia. A dogmática penal alemã sempre foi filosoficamente informada e orientada, sempre se preocupou com o que estava sendo pensado fora dos estreitos limites do Direito. Outro fator relevante deve ser o a contingência histórica de que o liberalismo alemão é um tanto tardio. Ele alcançou seu apogeu no meio do século XIX. Isso gerou uma grande sensibilidade para o caráter especialmente problemático do Direito Penal, enquanto ramo do Direito mais restritivo das liberdades, uma sensibilidade que inexiste em outros países já de mais antiga tradição liberal.
3) Como o senhor avalia hoje o direito penal alemão?
BS – A meu ver, o direito penal alemão se encontra numa situação um tanto crítica. No plano legislativo, o que se observa é algo que acabo de batizar – num estudo que está no prelo – de "diletantismo autoritário". As leis são feitas por burocratas que não só nada sabem de Direito, como que não têm qualquer compromisso com os princípios do Estado de Direito. O exemplo mais claro desse diletantismo autoritário é a recente lei processual que, em 2009, reconheceu a figura da transação penal por meio da introdução do § 257c na Strafprozessordnung (Código de Processo Penal alemão). Até então, os juízes transacionavam, é verdade, mas sem base legal. Hoje a Alemanha conhece transações penais inclusive em casos de homicídios. O juiz está legalmente autorizado a aceitar uma confissão do acusado prometendo-lhe uma diminuição da pena!
Já no plano da doutrina, vislumbro um certo cansaço, uma hegemonia da atitude positiva-legalista e exegética, que opera de modo completamente irrefletido e acrítico. Isso se observa especialmente, mas não só, no âmbito da europeização do Direito Penal.
4) Qual o papel da teoria da imputação objetiva na teoria do delito?
BS – A imputação objetiva é uma tentativa de reconduzir a teoria do delito à teoria dos fins da pena, especificamente à teoria para a qual o fim da pena é a intimidação geral por meio de uma cominação.
5) O direito penal atual tem ferramentas suficientes para enfrentar o problema do terrorismo?
BS – De modo algum! O problema do terrorismo só pode ser solucionado politicamente, porque a sua razão de ser são, muitas vezes, decisões políticas contraproducentes, contra as quais o terrorismo acaba sendo não mais que a reação. O que não se sabe é se essas decisões são tomadas culposamente, por ingenuidade dos governantes, ou se eles as tomam com dolo, contando com a reação terrorista, segundo uma estratégia de "governing through crime". Aliás, já o fato de que seja o terrorismo, e não essas causas políticas, que se encontre no centro das atenções, constitui uma manifestação de decadência e miopia intelectual.
6) É possível considerarmos que a pessoa jurídica pode praticar delitos? Qual sua opinião sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica?
BS – Há razões convincentes para não punir a pessoa jurídica. A punição viola o princípio da culpabilidade, porque ela acaba atingindo terceiros, especialmente os acionistas, que não praticaram delito algum. Ela também se mostra de todo ineficaz para prevenir delitos, porque ela não afeta aqueles que tomam as decisões de cometer delitos dentro de uma empresa, e sim a própria empresa (e os acionistas).
Defendo, portanto, que a solução não é a pena, e sim uma medida de segurança, que chamei de "curatela empresarial" (Unternehmenskuratel): a empresa cujos gerentes cometem delitos deve ser submetida a um curador público, ou seja, a uma figura similar ao síndico de falências, cuja atrubuição será cuidar de que a empresa não possa continuar a servir de instrumento para violações da lei penal.
7) Recentemente, o senhor escreveu um trabalho sobre paternalismo, inclusive publicado no Brasil. O senhor defende alguma forma de paternalismo do Estado por meio do direito penal?
BS – O chamado paternalismo duro – a proteção do indivíduo responsável contra decisões tidas por irracionais, ainda que bem refletidas e tomadas em condições de normalidade – é indefensável em um direito penal de um Estado de Direito. Mas há espaço para a proteção de irresponsáveis – o chamado paternalismo suave (soft paternalism), bem como para a proteção contra decisões apressadas e tomadas em condições de especial debilidade (como no caso da usura).
8) O senhor defende o uso do direito penal para a tutela de bens jurídicos difusos, principalmente a ordem econômica após a grande crise mundial iniciada em 2008?
BS – Os bens jurídicos coletivos merecem, definitivamente, ser protegidos pelo direito penal. O meio ambiente, pressuposto da existência de toda a vida na Terra, é dentre todos os bens jurídicos, a rigor, o mais fundamental, de modo que a sua destruição constitui nada menos do que o protótipo de crime.
Quanto à crise financeira de 2008, aqui o que parece ter ocorrido não foi, em primeira linha, lesão a bens coletivos, e sim a bens individuais, a saber, ao patrimônio de instuições bancárias e de crédito. Os executivos que, animados pela expectativa de receber gordas bonificações pelos balanços positivos, optaram por participar de jogos especulativos de alto risco, investindo em títulos de crédito oriundos das hipotecas dos devedores americanos insolventes, causaram sérios prejuízos às instituições em que trabalhavam. É ingênuo e provavelmente tendencioso dizer que a crise é sistêmica e que, portanto, nenhum indivíduo pode ser responsabilizado. Pelo contrário, deve-se investigar se as condutas desses executivos não configuram delitos de bancarrota (contra o patrimônio dos credores) ou de infidelidade patrimonial[1], e se a resposta for, como suspeito, afirmativa, eles devem ser punidos como quaisquer outros criminosos.
Já a nova crise econômica que começa a delinear-se e que se manifesta especialmente na Grécia tem por objeto, sim, bens coletivos, a saber, a integridade da moeda. Essa crise é causada, principalmente, por especulações contra o Euro, cujo caráter criminoso é manifesto. Acabo de defender, num trabalho que está por ser publicado, que essas condutas especulativas que colocam em risco a própria União Européia podem ser subsumidas sob o tipo penal da sabotagem contrária à constituição (verfassungsfeindliche Sabotage, § 88 StGB).
9) Na sua opinião, professor, quais os filósofos mais importantes para o direito penal? Que filósofos o senhor mais aprecia?
BS – Para o penalista, um dos filósofos mais importantes é, sem dúvida, Kant. A moderna filosofia analítica também me parece indispensável para uma argumentação cuidadosa e diferenciada – ela é, por assim dizer, a ciência mãe da ciência do direito.
Pessoalmente, leio Nietzsche com grande prazer, porque nele enxergo um agudo crítico da hipocrisia do mundo burguês, mas não creio que ele tenha tanto a dizer ao penalista.
10) Por fim, o senhor recebe diversos alunos e pesquisadores da América Latina em seu departamento. Como o senhor avalia o direito penal latinoamericano?
BS – Para mim, o contato com o mundo latino é sempre motivo de alegria e um aspecto central de meu trabalho. Não só tive vários doutorandos latinos, que vieram desde a Argentina até a Costa Rica. Hoje tenho uma assistente argentina e um assistente brasileiro, os dois fazendo comigo a livre-docência. O que me entusiasma no mundo latino são, em primeiro lugar, o interesse e a vivacidade com que se discutem os problemas. Enquanto na Alemanha, impera o marasmo e a passividade, na América Latina há muito mais consciência crítica. Não sei que futuro terá o direito penal alemão, mas não tenho dúvida de que na América Latina, a tendência é ascendente. É por isso que fiz questão de coordenar até recentemente um projeto de intercâmbio acadêmico entre meu instituto e a Universidade de São Paulo, e é por isso que tenho grande prazer em voltar ao Brasil para o congresso do IBCCRIM.
***
Notas
[1] N.T.: Untreue, § 266 StGB – o delito do administrador de patrimônio alheio que se vale de seus poderes para lesionar aquele cujo patrimônio ele administra.
Sumário:
Introdução; 1. Noções Introdutórias; 2. Distinção entre crimes omissivos próprios e impróprios; 3. Dever de garantia. História dogmática do instituto. Considerações sobre os critérios formal, material e material-formal.
Resumo:
O artigo discute os principais aspectos dogmáticos dos delitos omissivos. Inicialmente, referiu-se que o crime omissivo tem natureza meramente normativa, não gerando alterações no "real verdadeiro" (Faria Costa). Verificou-se, ainda, que não se confunde com o crime comissivo, sendo, em regra, menos grave do que este. Logo depois, foram analisados os principais critérios de distinção entre delitos omissivos próprios e impróprios, optando-se pelo critério do tipo legal (Armin Kaufmann). Posteriormente, foram estudadas as fontes do dever de garantia, passando-se pelas teorias formal, material e material-formal. Concluiu-se que esta é a mais adequada, na medida em que possibilita a busca do sentido social do dever de garantia e, ainda, confere limites não verificados na teoria material. Por fim, acrescentou-se que, especificamente no Ordenamento Jurídico Brasileiro, o estudo do dever de garantia deve partir do art. 13, § 2°, do Código Penal, sob pena de agressão ao princípio da legalidade. Ressaltou-se, contudo, que a invocação deste dispositivo legal não é suficiente, sendo necessário buscar a relação comunicacional-base, que seja capaz de ancorar, em cada situação, legitimamente, o chamado dever jurídico de garante.
Palavras-chave:
Delitos Omissivos - Natureza normativa - Critério do tipo legal (Armin Kaufmann) - Fontes de dever - Teoria material-formal - Relação comunicacional-base.
I. Noções introdutórias
Atualmente, existe um significativo consenso doutrinário acerca da natureza meramente normativa do crime omissivo[1]. Trata-se de uma realidade a ser buscada não mais na dimensão do ser, mas sim na do dever ser da normatividade jurídico-penal[2].
Como explica Fragoso[3]:
A omissão é algo inteiramente distinto da ação. No plano ontológico existem apenas ações. Omissão não é inércia, não é não-fato, não é inatividade corpórea, não é, em suma, o simples não fazer. Mas sim não fazer algo, que o sujeito podia e devia realizar. Em conseqüência, não se pode saber, contemplando a realidade fenomênica, se alguém omite alguma coisa. Só se pode saber se há omissão referindo a atividade ou inatividade corpórea a uma norma que impõe o dever de fazer algo que não está sendo feito e que o sujeito podia realizar.
No mesmo sentido, posiciona-se Faria Costa, identificando o fazer enquanto alteração do real verdadeiro e o omitir enquanto alteração de um real construído:
O fazer releva-se, sem dúvida, através de uma qualquer conduta, só que esta conduta arrasta, implacavalmente, uma mudança no mundo exterior do real verdadeiro. O "omittere" é de igual modo – desde que olhado pela óptica de uma apreensão global da vida enquanto "comunicatio" – uma manifestação inequívoca do modo-de-ser humano, um comportamento que, como tal, deve ser lido e valorado, mas que não desencadeia, não causa, só por si, alterações ao mundo exterior, alterações ao real verdadeiro[4].
Assim sendo, a natalidade do crime omissivo está condicionada à normatividade, "in casu", jurídico-penal. "A omissão, enfim, surge para assumir o papel do fenômeno jurídico-penalmente relevante, diante do ‘descumprimento de um mandamento que, recepcionado em âmbito jurídico-penal, obrigava o sujeito a atuar’[5]."
Nesse contexto, é possível distinguir o crime omissivo do comissivo: aquele deriva da violação de uma norma mandamental, preceptiva; este, por sua vez, da violação de uma norma proibitiva. Justamente por isso, o delito omissivo representa um impacto maior na liberdade do sujeito.
Reconhece-se que, em geral, o delito omissivo é menos grave que o comissivo, "sempre que se trata de obstar à verificação de um resultado típico a violação de deveres de acção não se apresenta, em regra, tão grave como a violação das proibições correspondentes.[6]" Justamente por isso, no que tange ao delito omissivo impróprio, o Código Penal Português, no seu art. 10[7], consagra uma causa de atenuação de pena[8-9].
II. Distinção entre crimes omissivos próprios e impróprios
Passa-se a analisar, ainda que sucintamente, os principais critérios para a distinção entre crimes omissivos próprios e impróprios, quais sejam, o do resultado e do tipo legal[10-11]. O critério do resultado, também chamado de tradicional, é o mais comum, sendo adotado pela maioria dos países, e vale-se de alguns elementos trazidos por Luden (primeiros esboços sobre a distinção) e, ainda, de certos aspectos dos critérios normológico e de Herzberg. Compreende-se que os crimes omissivos próprios consistem na desobediência ao mandamento legal (aquilo que é imposto pela lei), independentemente de ocorrer o resultado.
No que concerne aos crimes omissivos impróprios, entende-se que estão vinculados à ocorrência de um resultado, pois têm como fundamento a relevância do resultado, desde que haja a condição de garante. Ou seja: "os crimes omissivos impróprios são aqueles cuja existência está vinculada à ocorrência do resultado (típico) que tem o sujeito, na condição de garante, o dever de evitar"[12-13].
O critério do tipo legal, também denominado de formal, foi elaborado por Kaufmann. Neste, a classificação entre crime omissivo próprio e impróprio depende do tipo penal. Assim, os crimes omissivos próprios estariam todos tipificados, ou seja, haveria um tipo penal específico o prevendo, o que, de certa forma, não traria maiores problemas. Os delitos omissivos impróprios, por sua vez, não teriam um tipo específico, pois seriam resultado da combinação de uma cláusula geral com o tipo penal de um crime comissivo.
Dessa forma, a omissão imprópria é equiparada à ação, ou, ainda, quando a equiparação não é resolvida pelo Legislador, seria, então, resolvida pela doutrina e jurisprudência, o que não refletiria nos crimes omissivos próprios, haja vista sua previsão legal. Este critério conta com importantes adeptos, como o italiano Giovanni Findaca[14], cuja lição se transcreve:
A nostro avviso é, dunque, preferibile operare la distinzione tra reati omissivi propri e impropri in funzione della diversa "tecnica di tipizzazione" adottata dal legislatore. In base a questo criterio, sono da definire "propri" i reati omissivi direttamente configurati come tali dal legislatore penale (sia o no presente un evento naturalistico nella loro strutura); "impropi" gli illeciti omissivi carenti di previsione legislativa espressa e ricavati dalla conversione di fattispecie create, in origine, per incriminare comportameti positivi.
Esta é, também, a compreensão do português Figueiredo Dias[15]:
Crimes puros ou próprios de omissão seriam aqueles em que a PE referencia (expressamente) a omissão como forma de integração típica, descrevendo os pressupostos fácticos donde deriva o dever jurídico de actuar ou, em todo o caso, referindo aquele dever e tornando o agente garante do seu cumprimento. Diversamente, delitos impuros ou impróprios de omissão seriam os não especificamente descritos na lei como tais, mas em que a tipicidade resultaria de uma cláusula geral de equiparação da omissão à ação, como tal legalmente prevista e punível na PG [...]
Este parece ser o melhor critério para estudar a distinção entre crimes omissivos próprios e impróprios, pois "a classificação de Kaufmann não apenas apresenta-se como a mais simples e clara entre todas as demais, como não se compromete com o conteúdo material do objeto classificado." Pelo contrário, como observa Fábio D’Avila, "confere abertura e flexibilidade no desenvolvimento dos elementos constituintes do ilícito-típico omissivo próprio e impróprios, o que, ‘in casu’, em razão do seu estágio ainda incipiente de desenvolvimento, é especialmente benéfico"[16].
III. Dever de garantia. História dogmática do instituto. Considerações sobre os critérios formal, material e material-formal
Garante é aquele sobre o qual recai um dever de, pessoalmente[17], evitar um resultado; é aquele que – podendo impedir o resultado e não o fazendo – deve responder como se tivesse gerado-o. Nas palavras de Faria Costa, é no dever de garantia que se encontra a razão de ser para que um "non facere" possa merecer o mesmo desvalor, quer de omissão, quer de resultado, que o próprio "facere"[18].
A idéia do dever de garantia não é, como observa Faria Costa, terra de ninguém: "pelo contrário, há uma forte tradição jurídica a dar-lhe conteúdo útil[19]." O instituto pressupõe uma relação de responsabilização primitiva e tem por fundamento as relações locutivas, vinculadas a uma certa expectativa juridicamente vinculante[20].
A história dogmática do dever de garantia, da posição de garante, conta com diversas teorias. Inicialmente, Feuerbach identificou que o especial fundamento jurídico do dever de garantia advém da lei ou do contrato. Stübel acrescentou um terceiro elemento, qual seja, a situação de perigo anterior criada pelo omitente. Lei, contrato e ingerência constituem, assim, as três fontes do dever de garantia daquela que ficou conhecida como a "teoria formal do dever de garantia"[21].
Esta teoria é fruto do pensamento naturalista e positivista, dominante até princípio do século XX. Sobre ela, Figueiredo Dias[22] aborda:
E compreende-se facilmente o que motivou a aceitação de um catálogo tão estrito e rigoroso – mas ao mesmo tempo, assim se acreditava, tão claro -, que nomeadamente, a devida obediência, que desta maneira se pensava levar a cabo pelo melhor, aos mandamentos de certeza e segurança do direito, de garantia dos cidadãos e de paz jurídica comunitária ínsitos no ‘nullum crimen sine lege’.
Entende-se que este foi o critério adotado pelo Ordenamento Jurídico Brasileiro[23]. Isso porque o art. 13, §2°, do Código Penal prevê que o "dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de evitar o resultado; c) com seu comportamento anterior criou o risco da ocorrência do resultado."
Contudo, esta teoria não traz o fundamento material, o sentido social, do vínculo de garantia. Segundo Figueiredo Dias, acaba por renunciar à consideração dos "conteúdos" dos deveres que assim se criavam; revelando-se incapaz de proporcionar um critério material de ilicitude da inobervância do dever de atuar[24-25].
Reconhecidas as fraquezas da teoria formal, doutrina e jurisprudência voltaram-se a uma concepção material. A palavra decisiva aqui pertenceu a Armin Kaufmann, através da concepção que ficou conhecida por teoria das funções. ~
Segundo esta teoria, os deveres de garantia fundam-se numa função de guarda a um bem jurídico concreto (deveres de "proteção" e "assistência") ou numa função de vigilância de uma fonte de perigos (deveres de segurança e de controle). Naquela situação, o bem jurídico deve ser protegido de todos os perigos, enquanto nesta, o garante tem deveres vinculados a fontes de perigo determinadas[26-27].
De acordo com Jescheck, a concepção material "señala un camino para resolver la problemática del garante sobre la base del sentido social de los diferentes deveres"[28]. Nesse sentido (utilizando-se de referencias teóricos originais à discussão), é pertinente a observação de Faria Costa no sentido de que é nas omissões impuras que de forma mais patente se revela a relação de cuidado-de-perigo, originada de um dever jurídico de evitar a produção do resultado jurídico. E esta relação se dá em uma realidade construída, portanto, meramente normativa.
Assim, se o resultado ocorre devido à conexão entre o resultado proibido e a violação do dever pessoal de garante – porque, em outro nível, se violou o dever de cuidado que, no caso concreto, seria o de ver reforçada a própria relação de cuidado – então, o não agir tem, em princípio, a mesma densidade axiológica de um "facere" violador da relação de cuidado-de-perigo conducente à proteção do mesmo bem jurídico[29-30].
Jescheck observa que não se pode prescindir da origem dos deveres de garantia pelo perigo de uma ampliação sem limites, devendo-se, por isso, buscar um critério material-formal[31]. Idêntica posição é adotada por André Leite, para quem não se pode abrir mão dos desenvolvimentos teoréticos da teoria formal e nem promover excessivo alargamento da posição de garante que colocariam em causa outros valores constitucionais. Diante disso, o autor português opta, expressamente, pela teoria material-formal:
Atentos os pressupostos materiais de que parte, esta orientação não despreza a imagem que a sociedade no seu todo tem de uma dada posição de garante, ou seja, é-lhe importante estabelecer como planos do respectivo dever hipóteses de vida social juridicamente reguladas que mereçam, por parte da comunidade, uma percepção directa ou indirecta de que, sobre um indivíduo colocado perante uma dada situação, impende uma obrigação jurídica de evitar um resultado lesivo de bens jurídicos alheios[32].
No mesmo sentido, posiciona-se Figueiredo Dias, para quem é indispensável a busca de uma "determinação rigorosa dos deveres de garantia" e de um "catálogo mais estrito e determinado possível". Deve-se recusar que aí reentrem cláusulas gerais, mais ou menos indeterminadas, e, ainda, uma exagerada funcionalização do catálogo, que o faça perder o conteúdo material[33]. E o autor descreve aquela que seria a verdadeira fonte dos deveres e das posições de garantia:
A verdadeira fonte dos deveres e das posições de garantia reside em algo muito mais profundo, a saber, na valoração autónoma da ilicitude material, completadora do tipo penal, através da qual a comissão por omissão vem a equiparar-se à ação na situação concreta, por força das existências de solidariedade do homem para com os outros homens dentro da comunidade[34].
As limitações aos deveres de garantidor não encontram consenso entre os defensores da teoria material-formal. Pelo contrário: cada autor apóia-se em determinados elementos, encontrando-se consistentes e interessantes construções na doutrina portuguesa[35].
Especificamente no Ordenamento Jurídico Brasileiro, o estudo do dever de garantia deve partir do art. 13, § 2°, do Código Penal, sob pena de agressão ao princípio da legalidade. Deve-se, contudo, ter sempre presente que não é suficiente a invocação deste dispositivo legal: é necessário buscar a relação comunicacional-base, que seja capaz de ancorar, em cada situação, legitimamente, o chamado dever jurídico de garante[36].
Bibliografia:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. vol.1. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
CARVALHO, Edward Rocha de. Estudo Sistemático dos Crimes Omissivos. Dissertação de Mestrado. Curitiba, 2007.
D’AVILA, Fábio. Ofensividade e crimes omissivos próprios: contributo à compreensão do crime como ofensa a bens jurídicos. Stvdia Ivridica nº 85. Coimbra: Coimbra Ed., 2005.
FARIA COSTA, José de. Omissão (reflexões em redor da omissão imprópria). Boletim da Faculdade de Direito. v. LXXII, 1996, p. 391-402.
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral. 2. ed. v. 1: questões fundamentais: a doutrina geral do crime. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
FINDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto Penale: parte generale. 3.ed.Bologna: Zanichelli, 2000.
GOMES, Luiz Flavio. Direito penal: parte geral. Vol.2. São Paulo: RT, 2007.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2002.
JAKOBS, Gunther. A imputação penal da ação e da omissão. Trad: Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri, São Paulo: Manole, 2003.
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. parte genereal.Traducción José Luis Manzanares Samaniego. 4. ed. Granada: Comares, 1993.
KAUFMANN, Armin. Dogmática de los delitos de omisión. Trad. da 2ª edição alemã por Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo.Madrid: Marcial Pons, 2006.
SANTOS, Juarez Cirino. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
Guilherme Rodrigues Abrão
Advogado, Mestrando em Ciências Criminais (PUC/RS), especialista
em Direito Penal Empresarial (PUC/RS) e em Ciências Criminais
(Rede LFG) e Professor de Direito Penal da Ulbra.
Renata Jardim da Cunha Rieger
Advogada, Mestranda em Ciências Criminais (PUC/RS) e
especialista em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade IDC).
Notas:
[1] Como observa Fábio D’Avila, durante algum tempo, o ilícito-típico esteve estruturado a partir de um conceito natural de ação e voltado ao desvalor do resultado. Neste período, surgiram teorias em prol de uma concepção naturalística da omissão, cujos principais expoentes foram Luden e Beling. Aquele propõe que se identifique a causa de hipóteses omissivas em uma ação positiva. Isso porque, enquanto omite, o destinatário da norma realiza uma outra conduta que é, sempre, uma conduta positiva, quer seja um simples observar, quer seja um distanciar-se do local. Já em Beling, a omissão era compreendida enquanto um processo físico do agente, configurando-se na "contenção dos nervos motores": D’AVILA, Fábio. Ofensividade e crimes omissivos próprios: contributo à compreensão do crime como ofensa a bens jurídicos. Stvdia Ivridica nº 85. Coimbra: Coimbra Ed., 2005, p. 184 e ss.
[2] D’AVILA, 2005, p. 186 e ss.
[3] FRAGOSO. Heleno Cláudio. Crimes omissivos no direito brasileiro. Revista de Direito Penal e Criminologia, v. 33, p. 44.
[4] FARIA COSTA, José de. Omissão (reflexões em redor da omissão imprópria). Boletim da Faculdade de Direito. v. LXXII, 1996, p. 392.
[5] D’AVILA, Fábio. 2005, p. 189.
[6] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2007. v. 1: questões fundamentais: a doutrina geral do crime, p. 925.
[7] "1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei. 2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado. 3 - No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada." No Direito Penal brasileiro, não há cláusula expressa consagrando a atenuação. Parece, contudo, possível a incidência da atenuante inominada prevista no art. 66 do Código Penal: "Art. 66 - A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei."
[8] Nas palavras de Faria Costa: "Ninguém duvida, ou melhor, para uma quase totalidade da comunidade afigura-se líquido que, por exemplo, o homicídio levado a cabo por acção, se comparado com o perpetrado por omissão, deve ser mais fortemente punido. há no ‘facere’, um potencial, um transporte de energia e uma realização que se cristalizam em alterações do real verdadeiro e que determinam que o valor ou o desvalor que geram ganhem uma densidade que o ‘omittere’ não pode beneficiar ou sequer reinvindicar.": FARIA COSTA, 1996, p. 392.
[9] A atenuação não incide nos delitos omissivos próprios, "aí a moldura aplicável é expressamente prevista pelo tipo legal de crime, tudo se passando como se de um crime de acção se tratasse". FIGUEIREDO DIAS, 2007, p. 926.
[10] Insta referir que a primeira diferenciação foi realizada por Luden. O autor trabalhou com as categorias de crimes omissivos em sentido próprio (que consistiriam na violação de um dever mandamental previsto em lei, independentemente de lesar direito subjetivo alheio) e crimes cometidos através de uma ação omissiva (nos quais o fundamento da omissão reside no resultado, ou seja, "em um determinado resultado que, por sua vez, conferiria à omissão as características de uma conduta comissiva", ocorrendo a violação de um direito subjetivo de outrem). Note-se que a distinção de Luden, de acordo com sua época, não menciona a questão de bem jurídico, ou seja, não parte da premissa de lesão ao bem jurídico, pois tais idéias eram, ainda, incipientes. Assim, não se falava em bem jurídico, mas em lesão a um direito subjetivo de outra pessoa. Evidente que isso fez com que o trabalho de Luden fosse perdendo força ao longo do evolução da dogmática penal, embora não esteja em total dissonância com o que se estuda hoje acerca do tema, tendo servido de importante ponto de partida. D’AVILA, 2005, p. 216 e ss.
[11] Fábio D’Avila elenca e distingue outros quatro critérios classificatórios. O primeiro deles é o critério
normológico, que se vale da norma violada. Sendo esta preceptiva, haveria delito omissivo próprio; sendo proibitiva, ter-se-ia um delito omissivo impróprio. O segundo é o critério de Herzeberg, segundo o qual os crimes omissivos próprios são aqueles cujo tipo admite sua realização apenas na forma omissiva; enquanto que, por crimes omissivos impróprios, se entendem aqueles cuja realização admite tanto na forma omissiva quanto comissiva. O terceiro critério apontado por Fábio D’Avila é do garante: o elemento distintivo seria o "dever de garante", fundamental nos delitos omissivos impróprios e ausente nos omissivos próprios. O quarto critério é o lógico objetivo de Schünemann, o qual trabalha com a equiparação aos delitos comissivos: impróprias são as omissões equiparáveis às ações, e próprias são aquelas não equiparáveis. D’AVILA, 2005, p. 217 e ss.
[12] D’AVILA, 2005, p. 220.
[13] É nessa linha que Bitencourt aponta que os crimes omissivos próprios "são crimes de mera conduta, como, por exemplo, a omissão de socorro, aos quais não se atribui resultado algum", enquanto os crimes omissivos impróprios "são crimes de resultado". BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. vol.1. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 172. É o que também coloca Gomes ao afirmar que os crimes omissivos próprios "são os que não descrevem e, por conseguinte, não exigem nenhum resultado naturalístico para a consumação formal, isto é, a simples transgressão da norma mandamental já é suficiente para a sua configuração (formal ou fática)", sendo que os crimes omissivos impróprios "são crimes que exigem resultado naturalístico e que se caracterizam pela não execução (omissão) pelo agente da conduta esperada para evitar esse resultado": GOMES, Luiz Flavio. Direito penal: parte geral. Vol.2. São
Paulo: RT, 2007, p. 428.
[14] FINDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto Penale: parte generale. 3.ed. Bologna: Zanichelli, 2000, p. 528 e ss.
[15] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2007. v. 1: questões fundamentais: a doutrina geral do crime, p. 913 e ss.
[16] Ainda, o autor coloca que "ademais, é também muito claro que a distinção feita por Kaufmann é a que melhor agrupa os problemas jurídico-dogmáticos dos crimes omissivos". D’AVILA, Fábio. Ofensividade e crimes omissivos próprios: contributo à compreensão do crime como ofensa a bens jurídicos. Stvdia Ivridica nº 85. Coimbra: Coimbra Ed., 2005. p. 228 e ss.
[17] Não se trata, portanto, de qualquer dever geral, mas de concretos deverem que ligam o garante à proteção de bens jurídicos determinados ou à fiscalização de fontes de perigo igualmente determinadas:
FIGUEIREDO DIAS, 2007, p. 934.
[18] FARIA COSTA, 1996, p. 391.
[19] FARIA COSTA, 1996, p. 397.
[20] FARIA COSTA, 1996, p. 397.
[21] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2007. v. 1: questões fundamentais: a doutrina geral do crime, p. 934.
[22] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2007. v. 1: questões fundamentais: a doutrina geral do crime, p. 935.
[23] GRECO, Rogério. Curso de direito penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2002. p. 221, e SANTOS, Juarez Cirino. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 120.
[24] FIGUEIREDO DIAS, 2007, p. 935.
[25] Mostrou-se, assim, ilusória a certeza da teoria formal. A lei e o contrato nem sempre fundamentam a posição de garante. Nem, inversamente, a invalidade de um contrato furta, necessariamente, a responsabilidade do omitente. No que tange à ingerência, a situação é ainda mais complexa, não se podendo falar em um dever jurídico formal que exista para a generalidade dos casos: é imprescindível saber os requisitos que deve assumir o fato anterior perigoso para que possa desencadear a responsabilidade do agente a título de comissão por omissão. Sobre o assunto, conferir: FIGUEIREDO DIAS, 2007, p. 934 e ss. Faria Costa compreende que propugnar que qualquer das realidades normativas – e muito particularmente o contrato e a situação de ingerência – poderia, "ex abrupto", criar o dever jurídico de garante determinaria uma violação da legalidade (tipicidade) e do princípio da reserva de lei. FARIA COSTA, 1996, p. 397.
[26] Nas palavras de Kaufmann, "la tarea de defensa del garante puede orientarse en dos direcciones: por una parte, el sujeto del mandato puede tener que estar ‘vigilante’ para proteger determinado bien jurídico contra todos los ataques, vengan de donde vengan; aquí la función de protección consiste en la ‘defensa en todos los flancos’ del concreto bien jurídico contra peligros de todo género."[...] "Por otra parte, la posición de garate puede consistir en la supervisión de determinada ‘fuente de peligros’, no importando a qué bienes jurídicos amenazan peligros desde esta fuente. La misión de protección del garante tiene por contenido el ‘poner coto a la concreta fuente de peligros; solo secundariamente, como efecto reflejo, se deriva la garantia de aquellos bienes jurídicos amenazados por esta fuente de peligros. Desde la perspectiva del bien jurídico concreto, la función protectora del garante se reduce a uma sola dirección de ataque: a aquella que amenaza al bien jurídico desde la fuente a la que hay que controlar.": KAUFMANN, Armin. Dogmática de los delitos de omisión. Trad. da 2ª edição alemã por Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2006, p. 289 e ss.
[27] A teoria de Kaufmann encontrou algumas variantes. Jakobs, por exemplo, fala em "deveres por força de uma competência institucional" e "deveres por força da competência de uma organização": CARVALHO, Edward Rocha de. Estudo Sistemático dos Crimes Omissivos. Dissertação de Mestrado. Curitiba, 2007. p. 43 e s. e JAKOBS, Gunther. A imputação penal da ação e da omissão. Trad: Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri, São Paulo: Manole, 2003, p. 8 e ss.
[28] JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. parte general. Traducción José Luis Manzanares Samaniego. 4. ed. Granada: Comares, 1993, p. 565.
[29] FARIA COSTA, José de. O perigo no direito penal: contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmáticas). Coimbra: Coimbra, 1992, p. 422. nota 131.
[30] Importante referir que a relação de cuidado-de-perigo, por si só, não gera a garantia. Aquela é relação onto-antropológica fundante, matricial, que pode gerar em outros níveis de modo-de-ser individual e comunitário, relações outras em que, por certo, podem configurar a relação de garante. Esta, a relação de garante, é relação construída, "norma de norma": FARIA COSTA, José de. O perigo no direito penal: contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmáticas). Coimbra: Coimbra, 1992, p. 446.
[31] JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. parte genereal. Traducción José Luis Manzanares Samaniego. 4. ed. Granada: Comares, 1993, p. 565.
[32] LEITE, André Lamas. As posições de garantia na omissão impura. Em especial a questão da determinibilidade penal. Coimbra: Editora Coimbra, 2007, p. 192/193.
[33] FIGUEIREDO DIAS, 2007, p. 924.
[34] FIGUEIREDO DIAS, 2007, p. 938.
[35] Figueiredo Dias, por exemplo, parte dos dois elementos da "teoria das funções" (bem jurídico e fonte de perigo). No que tange aos deveres de proteção e assistência a um bem jurídico carecido de amparo, identifica três situações de garantia, a saber, as relações de proteção familiares ou análogas, de estreitas relações de comunidade (nomeadamente, dentro de uma estrutura organizada) ou, ainda, da assunção voluntária de proteção ou de guarda a determinados bens jurídicos. Em qualquer situação, considera imprescindível a existência de relações fáticas (no sentido de proximidade sócio-existencial) entre aquele que tem um dever e o bem jurídico, nomeadamente uma situação real de dependência entre este e aquele. No que tange à fonte de perigo, Figueiredo Dias observa, acertadamente, que os deveres são mais estreitos, porque não se fala na proteção de um dado bem jurídico de todas as formas de perigo: o dever de garantia está vinculado ao controle e à vigilância apenas da fonte de perigo. Também aqui, o autor identifica três subgrupos, quais sejam, a "ingerência", o âmbito do domínio próprio e a atuação de terceiros. Por fim, Figueiredo identifica outra causa de dever de garantia, consistente no domínio fático absoluto da fonte de perigo (posições de "monopólio"). Aqui, é necessário observar alguns requisitos, quais sejam: 1) o agente estar efetivamente investido, mesmo que só por circunstâncias ocasionais, em uma posição de domínio fático absoluto e próximo da situação; 2) o perigo ser agudo e iminente e 3) o senhor da situação possa levar a cabo uma ação esperada, sem incorrer em situação perigosa para si mesmo: FIGUEIREDO DIAS, 2007, p. 939 e ss.
[36] FARIA COSTA, 1996, p. 397 e ss.
Resumo*:
O artigo discute uma decisão prolatada pelo 4º Senado do Bundesgerichtshof [Tribunal Federal] em um caso de roubo qualificado no qual uma das testemunhas passou a ser imputada e os funcionários da justiça alemã deixaram de informá-la acerca da impossibilidade de valoração do primeiro depoimento prestado. Assim, o artigo trata do dever de informação simples, pois a autoridade policial deve informar o indiciado a respeito do seu direito de permanecer em silêncio. Também destaca o dever de informação qualificada.
Palavras-chave:
Processo Penal – Prova – Valoração – Dever de informação– Direito ao silêncio.
I.
A decisão em análise deve ser louvada em razão de, nos casos em que ocorre a omissão do dever de informar ao indiciado sobre seu direito de permanecer em silêncio durante o interrogatório (§ 136 I, 2 Strafprozessordnung, StPO[2]), não exigir apenas que no novo interrogatório seja realizado tão-somente esse esclarecimento. Além disso, nesse segundo interrogatório, deve ser adicionalmente informado que o depoimento realizado sem o cumprimento do dever de informação simples não poderá ser valorado (o chamado dever de informação qualificada). Dessa forma, busca-se evitar "que o indiciado renuncie ao seu direito de permanecer em silêncio (no segundo interrogatório) por pensar que, possivelmente, a auto-incriminação resultante de depoimento anterior ocorrido com violação do dever de informação simples não possa mais ser de alguma forma apagada"[3-4].
Igualmente louvável é o fato de o julgado reconhecer uma tese que cada vez mais vem se impondo na nova jurisprudência[5]. Trata-se da tese segundo a qual os órgãos da justiça penal não podem retirar qualquer utilidade das violações conscientes de dispositivos jurídicos (no nosso caso se referiu o 4º Senado ao fato de as autoridades "terem se esquivado conscientemente de cumprir o dever de informação"), senão que nesses casos vige uma proibição de valorar a prova. O significado fundamental que esse reconhecimento possui para a teoria da proibição de valoração da prova não é de nenhuma forma reduzido pelo fato de o Senado avaliar que, no caso em questão, não há "nada" que faça imaginar uma "esquiva consciente". Isso porque o Tribunal também supôs, ainda que sem qualquer fundamentação, que o funcionário da polícia desconhecia o dever deinformação qualificada.
Com essas duas teses, o Tribunal acabou por seguir uma decisão do 1º Senado[6], à qual se remete quase que de forma textual. Além disso, é digno de aplauso a indicação ao § 136a StPO[7] como caso análogo. Embora o Tribunal tenha evitado uma tomada de posição expressa, não deve ser posto em dúvida que também diante de uma violação desse dispositivo deva ocorrer um dever de informação qualificada no novo interrogatório a ser realizado (ao menos foi o que o 4º Senado deu a entender).
Menos louvável, no entanto, – e aqui reside minha crítica – é o fato de a decisão em análise também seguir a suposição do 1º Senado de que diante de uma omissão do dever de informação qualificada causado por esquecimento ou erro de direito por parte dos funcionários da justiça, apenas se pode afirmar uma proibição de valorar a prova após uma "uma ponderação no caso concreto".
II.
O principal argumento para uma ponderação desses moldes – que, seguindo a argumentação das duas decisões citadas, conduzirá quase sempre a não aplicação da proibição de valorar a prova – está na tese segundo a qual "a violação do dever de informação qualificada não possui o mesmo peso que a violação do dever de informação simples do § 136, I, 2 StPO"[8]. Contra essa tese contida no argumento que recorre à ponderação surgem dois argumentos decisivos[9].
O primeiro argumento contrário reside no fato de que o dever de informação se justifica para evitar a ocorrência de uma auto-incriminação causada por desconhecimento do Direito. Esse desconhecimento do Direito ocorre não apenas quando ao indiciado não é informado sobre seu direito ao silêncio e, em razão disso, supõe estar obrigado a prestar o depoimento, mas também quando o indiciado pensa que, se o depoimento anterior prestado sem o esclarecimento pode ser valorado em seu desfavor, de nada mais adianta fazer uso do silêncio no segundo interrogatório.
Poder-se-ia mesmo dizer que a omissão do dever de informação qualificada possui maior peso do que o simples não esclarecimento no primeiro interrogatório. Afinal, enquanto nesse segundo caso o indiciado que crê erroneamente estar obrigado a prestar o depoimento ainda possui a possibilidade de negar o fato ou descrevê-lo falsamente de modo a beneficiar-se, o indiciado diante do qual não é realizado o dever de informação qualificada pensa que o depoimento prestado anteriormente irá incriminá-lo, de forma que o silêncio ou a exposição de outra versão dos fatos já não fazem mais sentido, já que agora "nada mais pode ser feito, é tarde demais". Seria então desejável que o BGH oferecesse alguma razão capaz de responder por que a violação do dever de informação qualificada possui menor peso do que a omissão da informação simples.
O segundo argumento contrário apóia-se no fato de que uma ponderação tal como é adotada pelo BGH apenas pode ser adequada para violações processuais de menor gravidade, e não para situações nas quais o que estáem jogo é o direito ao silêncio do indiciado. Isso porque o direito ao silêncio é garantido não apenas pelo "mandamento de respeito à dignidade humana"[10],pelos direitos da personalidade que possui o indiciado e pelo art. 14, parágrafo3º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos[11], como tambémé "parte nuclear do devido processo legal garantido pelo art. 6, parágrafo 1ºConvenção Européia de Direito Humanos"[12]. É indiscutível que o direito aosilêncio não é garantido em toda sua extensão quando o indiciado avalia deforma equivocada as conseqüências jurídicas de seu silêncio em razão de terocorrido um esclarecimento incompleto por parte dos órgãos encarregados dainvestigação (Ermittlungsbehörden). No que se refere à violação do direito doindiciado de não se auto-incriminar[13], que se segue dos já citados fundamentoslegais, constitucionais e de direito internacional, nada se altera pelo fato de aomissão do dever de informação qualificada por parte do funcionário encarregadopelo interrogatório ter ocorrido por esquecimento ou erro de direito. Princípiosjurídico-constitucionais e internacionais elementares devem ser garantidos pormeio de uma proibição de valorar a prova e permanecer livre de ponderações,além de também não poderem ter uma existência dependente das "opiniõesjurídicas" dos órgãos de persecução. Afinal, não há nenhuma razão que, mesmoao realizar-se uma ponderação, pudesse se sobrepor às considerações acimarealizadas.
Um terceiro argumento contrário, de caráter mais pragmático, pode ainda ser acrescentado. É de se presumir – e assim parecem proceder as duas decisões mencionadas – que, em regra, o dever de informação qualificada é desconhecido pela polícia. Mas ele continuará indefinidamente desconhecido ou então a responsabilidade continuará a ser colocada sobre os ombros dos mais fracos se a violação desse dever não trouxer consigo nenhuma conseqüência jurídica. Mantidas as coisas como estão, o afã de investigar o indiciado sempre prevalecerá. Isso soa compreensível desde o ponto de vista da polícia. Ocorre que um Estado de Direito não tolera uma condenação a qualquer preço. Apenas, portanto, uma proibição de valorar a prova conseguirá impor com efetividade napráxis o dever de informação qualificada.
III.
Tampouco convencem as considerações sobre a necessidade de ponderação avançadas pela decisão em análise. De pronto, isso vale para o mencionado "interesse no esclarecimento dos fatos", que na decisão aparece apoiado em uma série de citações de outras decisões. Um interesse dessa ordem sempre existirá. Se o referido "interesse no esclarecimento dos fatos" sempre se sobrepuser à garantia da ausência de obrigação de se auto-incriminar, então a omissão do dever de informação nunca conduzirá a uma proibição de valorar a prova. Tampouco se pode dizer que nos delitos graves o interesse no esclarecimento dos fatos se sobrepõe ao dever de informação sobre o direito ao silêncio e sobre as conseqüências desse silêncio. Isso porque o § 136 StPO não contém qualquer limitação ou gradação de acordo com a gravidade do delito sub judice.
A situação é diversa no que se refere à seguinte questão, considerada de relevância pelo tribunal: "deve-se avaliar diante das circunstâncias do caso se o interrogado, ao prestar seu segundo interrogatório, partiu ou não do pressuposto de que não poderia mais se afastar das declarações prestadas no interrogatório que ocorreu sem que lhe tivesse sido informado seu direito ao silêncio". Afinal, se o indiciado souber que as declarações prestadas no primeiro interrogatório não poderão mais ser valoradas, não há no caso de omissão do dever de informação qualificada limitação alguma em sua liberdade de não se auto-incriminar. Também o BGH (decisão BGHSt 38, 214) se pronunciou nesse sentido, em decisão fundamental sobre a proibição de valorar a prova no caso de omissão do dever de informação qualificada, ao afirmar que a proibição de valorar a prova não valeria "quando estiver claro que o indiciado já conhecia seu direito ao silêncio, e isso independentemente do esclarecimento e informação a respeito".
Ocorre que o Tribunal tampouco comprovou a existência dessa situação. Além disso, o BGH tampouco ordenou o uso do Freibeweisverfahren[14], senão que foram utilizadas presunções. A decisão se limitou à consideração de que "parece muito improvável", "muito remoto" que o acusado C não estivesse consciente de sua liberdade de escolha, e fundamentou essa presunção no fato de que, no segundo interrogatório, "o acusado, pela primeira vez, prestou declarações que o auto-incriminavam consideravelmente". Ora, ocorre que isso podeigualmente ser produto da crença do acusado de que diante da valoração de seu primeiro depoimento apenas uma completa confissão (Geständnis) poderiamelhorar sua situação! Como prova de que o acusado possuía conhecimentoda impossibilidade de valoração de seu primeiro depoimento, nada disso basta.Se nada disso é suficiente, tampouco isso pode ser presumido introduzindo-seargumentos de ponderação. Afinal, assim as necessidades probatórias exigidaspelo próprio BGH iriam por água abaixo.
Em razão das considerações expostas, deveria o BGH novamente refletir se não é mais correto equipar a omissão do dever de informação qualificada fundamentalmente com uma proibição de valorar a prova. Vários tribunais deinstâncias inferiores já estão percorrendo esse caminho[15].
Claus Roxin
Professor Emérito da Universidade de Munique e Doutor
honoris causa por diversas universidades do mundo.
Notas
* Resumo e palavras-chave elaborados pelo Conselho Editorial da Revista Liberdades
[1] Trad. Alaor Leite, autorizada pelo autor, do original "Für ein Beweisverwertungsverbot bei unterlassener qualifizierter Belehrung – Anmerkung zu BGH 4 StR 455/08", publicado em HRRS, Maio/2009, p. 186-188. O original está disponível na internet: http://www.hrr-strafrecht.de/hrr/archiv/09-05/index.php?sz=6. O Bundesgerichtshof é o tribunal que corresponde ao nosso Superior Tribunal de Justiça, e é divido em Senados que proferem as decisões. As notas de tradutor estão identificadas por N.T., e são deresponsabilidade deste tradutor.
[2] (N.T) Esse dispositivo prevê os direitos do indiciado no interrogatório. Entre eles está o direito aosilêncio. StPO é a abreviação de Strafprozessordnung, que é o código de processo penal alemão.
[3] Assim se manifestou o 4º Senado no julgamento em questão, em quase que literal aceitação deminhas considerações expostas em JR 2008, p. 18.
[4] (N.T.) Devem ser avançados alguns comentários sobre a terminologia, em parte referenteapenas ao direito processual penal alemão, e sobre a decisão em análise. Primeiro quanto à terminologia.Utilizei o termo dever de informação simples para referir ao dever da autoridade policial de informar oindiciado sobre seu direito ao silêncio. O termo dever de informação qualificada – que surge já no título- se refere à informação adicional, que deve ocorrer no segundo depoimento, sobre a impossibilidade devaloração do primeiro interrogatório ocorrido sem a informação simples. A proibição de valoração da prova (Beweisverwertungsverbot) não é termo muito difundido na doutrina processual brasileira, e optei por seguira tradução que já nos ofereceu Costa Andrade, em Portugal (Cf. Costa Andrade, Sobre as Proibições deProva em Processo Penal, Coimbra, 2006, p. 90 e ss.), igualmente consagrada no art. 355 do código deprocesso penal português. O processo penal alemão não trabalha, em matéria de prova, com as nossascategorias da nulidade ou invalidade, e sim com a noção da possibilidade de valorar uma prova, isso é,de que o juiz se reporte a ela para fundamentar o seu convencimento. O ato cognitivo de valoração daprova realizado pelo julgador pode ser definido como a utilização do conhecimento trazido pela prova paraa configuração jurídica do caso concreto em análise. Negativamente, se extrai que a proibição de valorara prova é a proibição de utilização daquele conhecimento obtido pela análise da prova na configuração edelineamento jurídicos do caso concreto (Cf. Löffelmann, Die normativen Grenzen der Wahrheitsforschungim Strafverfahren, 2007, p. 165-166).
Sobre a decisão, um breve resumo e, após, alguns comentários. Trata-se de decisão na qual C, T e Schforam condenados por tentativa de roubo qualificado. Sch foi também condenado por lesões corporaisgraves. Ocorre que, a despeito de haver fortes e graves suspeitas da participação de C no acontecimentocriminoso, este foi ouvido pela polícia primeiramente apenas na qualidade de testemunha, e não deindiciado. Somente em um segundo momento C foi ouvido como indiciado, qualidade que lhe confere umasérie de direitos, especialmente o de permanecer em silêncio. No segundo depoimento, C foi devidamenteinformado de seu direito ao silêncio, mas não foi cumprido o dever adicional exigido pela jurisprudência edoutrina alemãs de informar ao sujeito, nessas situações, que o primeiro depoimento era impassível de servalorado (dever de informação qualificada). O BGH considerou válida a utilização do segundo depoimento,fundamentando sua decisão, especialmente, em um argumento de ponderação.
Está fora de discussão que aquele primeiro depoimento não pode ser valorado, diante da alteraçãona qualidade de sujeito processual de C: de testemunha a indiciado. Afinal, tanto lá como cá, não épermitido ser testemunha e indiciado no mesmo procedimento investigativo (Cf. Roxin/Schünemann,Strafverfahrensrecht, 26ª ed., 2009, § 24 nm 4, p. 184). No segundo depoimento, como já foi dito, não foicumprido o dever de informação qualificada. Esse dever adicional se justifica pelo fato de que o indiciadopode, no segundo interrogatório, ainda crer erroneamente estar vinculado ao primeiro interrogatório, que jánão pode ser mais valorado. Aqui está o coração do problema: diante dessa nova violação, é o segundodepoimento de C válido? Ou essa violação do dever adicional é menos grave do que a não informação dodireito de permanecer em silêncio? Esse fato se converte em verdadeiro problema jurídico por duas razões.Fundamental para o deslinde da questão é saber – e isso é bastante controvertido - em que exato momentoo sujeito se transforma de testemunha em indiciado (detalhadamente sobre essa problemática Roxin, Sobreo status de indiciado no Processo Penal, trad. Alaor Leite, RBCCrim, no prelo). Aqui é possível optar porum conceito formal de indiciado (o ato oficial de indiciamento é que determina a condição de indiciado dosujeito) ou por um conceito material (existindo suspeitas graves o sujeito é indiciado a partir do momentoem que começa a ser tratado como tal), Cf. Roxin, JR, 2008, p. 18. A segunda razão, logicamente derivada dessa primeira, é questionar se, mesmo diante de todos os elementos que fundamentariam uma condiçãode indiciado, pode a polícia, assim mesmo, ouvir o sujeito como testemunha. Evidentemente, não. E issoporque essa atitude representa uma "esquiva consciente" (bewusste Umgehung) por parte dos órgãosinvestigadores, uma forma de drible das garantias que possui o sujeito como indiciado (o outro lado dessamoeda falsa é o aproveitamento do compromisso com a verdade que possui a testemunha, cf. Roxin/ Schünemann, Strafverfahrensrecht, 26ª ed., 2009, § 26 nm. 12, p. 186), facilitando assim a colheita deinformações interessantes para a investigação. Entre outros motivos, é para evitar essa violação do fair-playprocessual que se institui, em favor do acusado, o dever dos policiais de informação quanto à possibilidadedo silêncio e, adicionalmente, quanto à impossibilidade de valoração do primeiro interrogatório. Só assimé possível um segundo depoimento que garanta em toda a extensão os direitos e garantias do indiciado,já que um indiciado que crê ainda estar vinculado ao depoimento anterior, já impassível de valoração, nãoestá em condição de fazer uso de todos os seus direitos no segundo depoimento. Só assim, igualmente,é possível reagir juridicamente ao expediente ardiloso utilizado pela polícia quando ouve um sujeito quedeveria ser indiciado – e o será, em breve - como testemunha. A decisão, no caso em análise, contornou oproblema recorrendo a um argumento de ponderação que autorizaria a valoração do segundo depoimento.Esse argumento da ponderação é intensamente criticado por Roxin que, no presente texto, propõe que sejainserida essa questão na teoria da proibição de valoração da prova, fazendo valer uma proibição de valorara prova livre de ponderações nesses casos (no mesmo sentido de Roxin, comentando a mesma decisão,ver Kasiske, Beweisverwertungsverbot bei Unterbleiben einer "qualifizierten" Belehrung, ZIS, 06/2009, p.322 e ss., que ainda acrescenta que nos bastidores do raciocínio da ponderação se esconde uma inversãodo ônus da prova em desfavor do indiciado).
[5] A respeito, ver Roxin, NStZ 2007, p. 616 e ss. (617), com ulteriores considerações.
[6] 1 StR 3/07, 450, 452. A respeito, ver meu artigo na JR 2008, p. 16 e ss.
[7] (N.T.) O dispositivo prevê os métodos proibidos de colheita da prova, como tortura, hipnose, oufraude.
[8] Da mesma forma já a decisão BGH StV 2007, 457: "não possui o peso que corresponde à violaçãoao § 136, I, 2 StPO".
[9] Comparar a respeito Roxin JR 2008. O Senado indicou a existência de crítica ("crítico a respeito,Roxin"), mas se negou, contudo, a estabelecer uma discussão com os argumentos por mim avançados.
[10] BGHSt 38, 220.
[11] BGHSt 38, 202.
[12] Assim também o presente julgado, em adesão a diversas decisões do EGMR.
[13] (N.T.) O termo original (Selbstbelastungsfreiheit) é de tradução complicada. A tradução mais literalseria liberdade de se auto-incriminar. O termo significa que o sujeito está livre da obrigação de se autoincriminar– embora ainda possa fazê-lo –, e que pode optar por silenciar e mesmo por descrever o fato deoutra forma. Ele não precisa contribuir com a sua auto-incriminação, não precisa produzir prova contra simesmo.
[14] (N.T.) Freibeweisverfahren é o contrário de Strengbeweisverfahren. O procedimento doStrengbeweis é o que vale na audiência pública, que segue os princípios da imediatidade e da oralidade.Esse procedimento é estritamente formalizado e limitado aos meios legais de prova, justamente por sereferir, em princípio, à prova dos pressupostos de direito material (por ex., prova da culpabilidade do autor);já o Freibeweis é o procedimento menos rígido, que vale para outras questões, especialmente as de caráterprocessual (Cf. Roxin/Schünemann, Strafverfahrensrecht, 26ª ed., 2009, § 24 nm. 2 e ss., p. 150 e ss.).
[15] O próprio tribunal de instância inferior do caso em tela assim procedeu; anteriormente já LGKreuznach StV 1994, 293; LG Dortmund NStZ 1997, 356.
O professor catedrático espanhol Luis Arroyo Zapatero, da Universidade de Castilla-La Mancha (de onde foi Reitor de 1988 a 2003), é um dos principais interlocutores do Direito Penal contemporâneo. Presidente da Société Internationale de Défense Sociale (desde 2002), membro honorário da Associação Alexander von Humboldt e partícipe de diversas outras relevantes entidades, é ainda Doutor Honoris Causa pela Universidade de San Cristóbal de las Casas, Chiapas, México; Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Universidad Argentina Kennedy de Buenos Aires. Atualmente, dentre inúmeras outras atividades, o ilustre docente da Espanha dirige o Portal Iberoamericano de las Ciencias Penales (www.cienciaspenales.net), importante veículo de divulgação do pensamento penal na Europa. O professor Arroyo Zapatero é, ademais, destacado parceiro colaborador do IBCCRIM, sendo que neste ano de 2010 participará uma vez mais de nosso Seminário Internacional (entre 24 e 27 de agosto, em São Paulo). Em gentil e descontraída entrevista concedida a Luciano Anderson de Souza, Coordenador-chefe do Departamento de Internet do IBCCRIM, o eminente professor contou um pouco de seu pensamento e de sua vida. A entrevista foi traduzida ao português por Renato Ribeiro de Almeida.
Professor, em que momento de sua vida o sr. se interessou pelo DireitoPenal? Como isso se deu?
LUÍS ARROYO ZAPATERO – Começou em momentos sucessivos. Impactou-me muito a primeira aula de Direito Penal ministradaem Valladolid, em 1969, pelo professor Marino Barbero, que nos explicou, entre muitas outras coisas, que no cárcere não havia somente pessoas socialmente danosas que haviam cometido delitos, como também perseguidos políticos. Como exemplo, apresentou-nos Julián Besteiro, catedrático de Filosofia, socialista e presidente do Parlamento em 1939, que foi encarcerado após a vitória de Franco e morreu de febre na prisão. E durante a febre ele repetia a palavra alemã "freiheit", cujo significado coincide com o título desta Revista.
Anos mais tarde, eu mesmo estava preso como estudante antifranquista e ali, com meus conhecimentos de terceiroanista, pude assessorar e libertar um preso comum, processado por escândalo público, um magnífico caso para Miguel Reale Júnior, com seus dotes literários. Ali tomei a decisão pelo Direito Penal.
Vai bem o Direito Penal atual? Estamos no caminho certo ou errado na construção desse ramo jurídico?
LAZ – A sociedade tem mudado muito, juntamente com sua criminalidade, nos últimos 20 anos. Mas a nossa essência como juristas segue sendo a dogmática jurídica, a racionalização e a sistematização do Direito Penal para a defesa da sociedade, para a garantia dos direitos dos cidadãos, ressocialização do delinqüente, sempre visando uma sociedade melhor, que produza menos crime. O moderno é a integração da dogmática jurídica com as ciências sociais, como assim sinalizou von Liszt há mais de cem anos. O progresso científico em nível e número de criminalistas no Brasil é espetacular. Há toda uma nova e amplageração, muito preparada.
Qual seu diagnóstico das ciências penais hoje? Os estudos são suficientemente profundos?
LAZ – Na parte científica sobre o controle racional da legislação e da jurisprudência criminal – a dogmática jurídica – estamos melhor do que no passado. Entretanto, necessitamos compreender e assimilar os novos fatos da criminalidade e suas formas mais agressivas. Por sua vez, os modernos meios e modos de informação provocam reações sociais inéditas e uma tendência à legislação irracional, hiper-recessiva dos telejornais, que produz muito mais presos do que podemos administrar. Ao tempo que há pessoas qualificadas e com experiência que ingenuamente crêem que o crime organizado mais colossal, que se dedica à produção e tráfico de drogas, pode ser combatido com tal legislação. O México é hoje, desgraçadamente, um campo de testes. Por sua vez, não se vê que a melhor forma de combater o crime organizado é com o controle transparente dos mercados financeiros, a governança global. Os maiores problemas nas ciências penais estão na política criminal.
Por que há tanto interesse pela doutrina jurídico-penal alemã?
LAZ – Os alemães, por sua acumulação de saber filosófico e por sua preocupação com a identificação do científico, desenvolveram uma dogmática jurídica racionalista além do mero positivismo e fundaram uma "nova e verdadeira" Ciência do Direito, bem como fizeram em outros campos científicos, como, por exemplo, na medicina, na economia, etc. No Direito, chegaram trabalhando como uma gigantesca fábrica de conhecimento desde von Listz. Recordemos que foi traduzido no Brasil em 1898 por José Higinio Duarte Pereira. Essas idéias frutificaram, na Espanha, a partir de 1930 com a conhecida aula inaugural do primeiro curso da República por Luis Jiménes de Asúa. E nossa guerra civil debilitou seus trabalhos na Espanha, mas obteve sucesso, na Argentina e em toda a América. Espanha e Brasil assumiram fortemente o pensamento alemão, talvez de forma até exagerada, mas segue, de qualquer forma, a Alemanha sendo a principal fábrica de ciências penais.
Professor, qual de suas obras trouxe maior satisfação? Por quê?
LAZ – Creio que meu trabalho sobre aborto e Constituição, publicado em 1980. Foi a primeira vez que se abordava na Espanha um problema penal a partir do Direito Constitucional com uma tecnologia própria da ponderação e do controle do Tribunal Constitucional e, ademais, em relação à matéria que para mim é a segunda razão de preocupação política: a igualdade da mulher, assim como o progresso dos trabalhadores, os quais abordei na minha tese de doutorado. Vinte anos depois eu me ocupei, muito satisfatoriamente, do problema da violência de gênero que é algo além da violência doméstica, como se sabe muito bem no Brasil.
Quais assuntos jurídicos despertam mais seu interesse atualmente, Professor?
LAZ – Eu passei uma longa temporada vinculado à construção do Direito Penal da União Européia e os processos de amortização internacional do Direito Penal, tal qual está apresentado no livro, juntamente com Mirelle Delmas-Marty, Ulrich Sieber e Marc Pieth, e na minha conferência no IBCCRIM, ano passado, a qual será publicada na próxima edição da Revista do IBCCRIM [Revista Brasileira de Ciências Criminais - RBCCRIM]. Há alguns meses, tenho me dedicado à problemática da abolição universal da pena capital, especialmente contribuir com os debates das Nações Unidas para a abolição ou moratória durante o tempo de revisão dos objetivos do milênio, em 2015. É um assunto muito apaixonante, e se adverte que a idéia dos direitos humanos é um programa em construção e que aparecem problemas teóricos fundamentais, como a idéia da dignidade humana. Em termos penais, a luta contra a pena de morte é a ação teórica e prática contra o punitivismo contemporâneo. Ademais, interessa-me muito minha responsabilidade como Presidente da Société Internationale de Denfénse Sociale.
Como o sr. se aproximou do Brasil e, especificamente, do IBCCRIM? Tem sido uma profícua convivência?
LAZ – Chamados de "descobrir" o conhecer, de um dia para outro, o que, até o momento, ignorávamos. Descobri o Brasil há dez anos, com o motivo da reunião em Pernambuco dos reitores do "Grupo Tordesillas", o qual integra 30 universidades do Brasil, Portugal e Espanha, ou seja, eu conheci a potência espetacular do Brasil ao conhecer suas universidades e, como conseqüência destas, seu mundo empresarial. Entendi muito bem, então, Stefan Zweis quando qualificou o Brasil como o país do futuro. Logo, tenho ótimas relações pessoais com Juarez Tavares, Luiz Regis Prado, René Ariel Dotti, Alberto Silva Franco, Sérgio Salomão Shecaira, Adriano Japiassu, Renato de Mello Jorge Silveira. Conheci, em seu tempo, Heleno Cláudio Fragoso, por meio do meu professor Marino Barbero, assim como João Marcelo de Araújo Júnior. Em definitivo, os penalistas brasileiros se expressam no mundo exterior tanto com o Grupo AIDP [Associação Internacional de Direito Penal] como mediante o IBCCRIM. E creio que no Direito Penal o Brasil é hoje também um país do futuro.
Quais seus conselhos ao jovem penalista brasileiro?
LAZ – Os jovens penalistas estão em um bom caminho, devem estudar tudo o que possam, pois o mundo e a política criminal mundial necessitam do Brasil e seus numerosos jovens juristas formados com grande profissionalismo.
Querido Professor, em termos pessoais, quais são seus interesses fora do Direito? Quais seus hobbies?
LAZ – A leitura de novela histórica é minha grande paixão, textos sobre a caçada de javalis e veados, uma atividade tradicional na minha região da Mancha, nos bosques em que se escondia Dom Quixote. Entre as minhas últimas leituras, em português, li de uma só vez a biografia de Olga Benário, de Fernando Morais, e comecei com as leituras de Machado de Assis.
Qual seu envolvimento com a música? É verdade que já fez parte de uma banda?
LAZ – Seus serviços secretos funcionam. Participei, com 15 e 16 anos, de um grupo de música moderna como os Beatlles e Rolling Stones. Porém, quando apareceu um garoto que além de ter guitarra elétrica sabia tocar bem, fui expulso vergonhosamente. A capacidade musical do meu pai foi herdada somente pelo meu irmão Javier, que é pianista de Jazz (Lusitania jazz machine).
O sr. poderia compartilhar conosco qual a maior alegria de sua vida?
LAZ – No nível profissional, a maior foi o período de 16 anos que fui Reitor fundador da Universidad de Castilla-La Mancha, com seus campi modernos na Ciudad Real e Albacete e seus clássicos em Toledo e Cuenda, cidades patrimônio da humanidade. A segunda grande satisfação foi que, depois desse tempo, meus colegas ainda me reconheciam como penalista e chego a presidir a Société Internationale de Défense Sociale e formar parte do Conselho Científico do Max Planck de Friburgo.
O sr. tem um sonho ainda por realizar? Qual seria?
LAZ – Seguir participando do impulso de internacionalização e do incremento do peso dos jovens penalistas iberoamericanos.
* * *
É inqüestionável que a produção de obras na área jurídica, representadas mormente pela publicação de teses e dissertações, registrou um aumento exponencial nas últimas décadas, resultado, sobretudo, da expansão de programas de pós-graduação e do amadurecimento institucional de várias comunidades acadêmicas. No entanto, denota-se que diversos temas ainda seguem razoavelmente inexplorados, particularmente em se tratando da dimensão histórica da política brasileira.
A análise histórica e jurídica das medidas implantadas no Brasil na vigência dos regimes autoritários enquadra-se nessa categoria, exceto por alguns trabalhos relevantes que, sem dúvida, contribuirão para aventar a precisão e a necessária abordagem dessa temática.
Isso posto, a coletânea de artigos reunidas na obra intitulada em epígrafe, e devidamente fundamentada por méritos intrínsecos, constitui-se em uma destas boas aquisições para o campo acadêmico. A correlação dos tópicos abordados com maestria pelos ilustres autores, juntamente com a diversidade das fontes coletadas, conferem profundidade ao estudo[1].
Em suma, considerando o vasto conteúdo trazido pelo escol grupo de articulistas, centrados em questionar a incidência do instituto penal da prescrição e da anistia nos crimes de tortura, sequestro e homicídio praticados durante a ditadura militar instaurada no país em 1964, diante dos paradigmas internacionais e constitucionais,merecem destaque as ponderações descritas a seguir.
A terminologia jurídica de crimes contra a humanidade ganhou força, de fato, com o julgamento pelo Tribunal de Nuremberg, da prática da tortura, das detenções arbitrárias, dos desaparecimentos forçados e das execuções sumárias ao longo do nazismo. A partir daí, reconheceu-se que todos os indivíduos, não somente possuem, mas devem ter seus direitos fundamentais protegidos pelo Direito Internacional e pelo direito interno de cada país. E a proteção, ou mais precisamente, o respeito a esses direitos fundamentais inclui a responsabilização dos responsáveis na esfera penal.
Pode-se afirmar que a Lei da Anistia, promulgada em 28 de agosto de 1979, através da Lei nº 6.683/79, marcou definitivamente para os familiares dos mortos e dos desaparecidos políticos a perda de seus parentes. Malgrado a anistia, propriamente dita, destinava-se a trazer de volta ao país, e ao convívio social, político e familiar, todos os opositores políticos, verifica-se, lamentavelmente, que uma grande parte deles não voltou sequer na forma de um atestado de óbito.
Os desaparecidos políticos são as pessoas que apesar de terem sido seqüestradas, torturadas e mortas pelos órgãos de repressão, são até hoje consideradas como foragidas pelos órgãos oficiais. Isto porque as autoridades responsáveis jamais assumiram suas prisões e mortes. Nesse passo, até hoje, muitas famílias ainda buscam o esclarecimento dos fatos e a localização dos seus corpos. Os mortos, por sua vez, são aquelas pessoas que tiveram suasmortes oficialmente reconhecidas pelo Estado.
No entanto, tal fato não dispensa a investigação cabível em relação aos fatos, tampouco os trabalhos de identificação das ossadas. Ao contrário, as investigações são imprescindíveis, uma vez que os restos mortais dessas pessoas , em sua maioria, foram enterrados pelos agentes ou como indigentes ou com nomes falsos. Sem contar a falsa versão da causa mortis, fornecidas pelos órgãos de repressão à imprensa, aos familiares e aos órgãos notariais competentes, na época dos fatos, configurando-se em uma extrema violação ao direito à verdade e à informação, conferida não somente aos familiares das vítimas, mas a toda a coletividade.
Forçoso reconhecer que os efeitos do considerável instituto da anistia, previstos na legislação penal pátria, e representados pelo perdão, estenderam-se justamente para os envolvidos diretamente nas ações repressivas. Ou melhor, data venia, talvez o mais correto, seria dizer que os benefícios estenderam-se aos terroristas, aos torturadores e aos grupos de extermínio brasileiros e estatais que vingaram nos governos autoritários, não é verdade?
Contudo, eles não foram anistiados pelo império da lei, mas por uma falsa interpretação de que os crimes de homicídio, seqüestro e tortura seriam conexos aos crimes políticos, em tese, praticados pelos opositores políticos. Causa espanto que esse sofisma tenha permanecido por tantos anos juridicamente e ainda há quem o defenda e o sustente publicamente.
Sem contar que a concessão de anistia a crimes de tão extrema gravidade, significa favorecer não somente a impunidade e a prática da violência policial, mas principalmente expressar a concordância e a conivência com os regimes autoritários que vigoraram e que fizeram tão mal ao nosso país. Nessa vereda, a incidência desse instituto jurídico, efetivamente transforma o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana em letra morta, além de denegrir totalmente o sentido real do Estado Democrático de Direito.
A inclusão do princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição Federal de 1988 foi conseqüência do processo de democratização política, iniciado em 1985. Esse processo possibilitou a imersão do Brasil no sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Daí que os direitos humanos surgiram como o tema global da atual Carta Política, consagrando-se o primado aos respeitos fundamentais.
O texto constitucional vigente estabeleceu um regime jurídico diferenciado aplicável aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. À luz desse regime, todos os tratados de direitos humanos são incorporados automaticamente no ordenamento jurídico brasileiro com hierarquia de norma constitucional. E ainda abre espaço para a utilização da jurisprudência internacional na punição aos crimes cometidos durante a ditadura militar, previstos no Código Penal e na legislação extravagante.
Portanto, a atual redação da Constituição Federal de 1988 enfatiza a existência do direito interno corroborado pelo direito internacional, demonstrando a prevalência de um sistema constitucional cooperativo. E o entendimento majoritário da jurisprudência das cortes internacionais é que deverão serabsolutamente afastadas a concessão da anistia e a incidência da prescrição penal nesses crimes. Desta feita, pode-se afirmar que a argüição desses doisinstitutos a favor dos agentes públicos que cometeram tais atrocidades encontra-seeivada de inconstitucionalidade.
Também é patente a inconstitucionalidade formal e material na política nacional de arquivos públicos e no sigilo de documentos, devidamente representada nos termos das Leis nºs 8.159/91 e 11.111/05, incluindo-se ainda todos os decretos correlatos, violando-se não somente o princípio da dignidade da pessoa humana, mas o direito constitucional à informação. Considerando-se a existência de Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas em face dessas leis, e que já estão sendo apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal, deve-se salutar que tais medidas não são suficientes.
A correta classificação desses documentos, o estabelecimento de um prazo para sua entrega, bem como a aplicação de sanções ao descumprimento das solicitações e um índice nacional de todos os arquivos sigilosos pertinentes às atividades desenvolvidas pelos órgãos repressivos estatais e que se encontram em poder dos Estados Federativos e da União, são necessidades essenciais que devem ser regradas urgentemente pelo legislador ordinário.
Neste contexto, afigura-se louvável os termos auferidos no Projeto de Lei auto-intitulado Memórias Reveladas, enviado ao Congresso Nacional em 13 de maio de 2009, e direcionado a propiciar o acesso ao conteúdo de todos os documentos relacionados ao períodos autoritários que vingaram em nosso país.
No tocante ao rigor da indisponibilidade da persecução criminal a ser deflagrada em face dos responsáveis, deve-se ressaltar que a Constituição Federal não transformou o Direito Penal em assistência social. E o princípio da dignidade da pessoa humana não é sinônimo de impunidade, de desrespeito às vítimas violadas e aos seus familiares ou de perdão a crimes tão horrendos.
Isto quer dizer que a Constituição manteve e manterá na pena, a sua essência – que é o castigo –, respeitando-se a ética do Direito Penal, centrada no ser humano, admitindo-se, evidentemente, ao acusado usufruir de direitos que possibilitem exercitar sua defesa em Juízo e, se condenado, eventualmente beneficiar-se de certos institutos previstos na legislação, como o livramento condicional, por exemplo, além de recuperar-se socialmente.
Todavia, é certo que o grande lapso temporal já decorrido em relação aos fatos e o descaso estatal em relação à criação de um órgão autônomo especializado em antropologia forense, são fatores que prejudicam a elucidação desses crimes e a colheita das provas. Isto porque a Constituiçãorequer prova segura, certa e incontestável sobre a culpa do acusado, cabendo ao Ministério Público confirmar a existência de provas contundentesda autoria e da materialidade, para a inauguração da ação penal no JuízoFederal competente.
No entanto, merecem aplausos os importantes trabalhos em relação a tão importante temática que já estão sendo desenvolvidos pelo Ministério Público Federal, e que se encontram, inclusive, aventadas no conteúdo da obra em comento. De fato, denota-se que tal órgão vem cumprindo o seu relevante papel na sociedade em busca da ética e da imparcialidade, observando as cautelas constitucionais e colaborando, por conseguinte, para a firmação das medidas pertinentes à justiça de transição e para a efetiva consolidação do Estado Democrático de Direito.
Com efeito, a qualidade do material coligido na presente obra convidam à leitura e reflexão, não somente pela amplitude de informações, mas principalmente, para uma real e apurada compreensão dos elementos que norteiam a justiça de transição, lamentavelmente ainda não cumprida em nosso país.
Joceli Scremin da Rocha
Bacharel em Direito pela Universidade Metodista de
São Paulo e servidora do Ministério Público Federal.
Notas
[1] As divulgações doutrinárias contaram com as participação dos seguintes autores: GlendaMezarobba, Marco Antônio Rodrigues Barbosa, Paulo Vannuchi, André Ramos Tavares, Walber de MouraAgra, Marcos Zilli, Edson Luís de Almeida Teles, Celso Antônio Bandeira de Mello, Marcus Orione Gonçalves Correia, Marlon Alberto Weichert, Lúcia Elena Arantes Ferreira Bastos, Flávia Piovesan, Eugênia AugustaGonzaga Fávero, Luci Buff, José Adércio Leite Sampaio, Alex Luciano Valadares de Almeida, Sandra AkemiShimada Kishi, José Roberto Pimenta Oliveira, Inés Vírginia Prado Soares, Aline Vieira de Carvalho e PedroPaulo A. Furnari.
Este ensaio aborda as linhas escritas por Roberto DaMatta no livro O que faz o Brasil, Brasil?, trazendo as verdades que acompanham esse questionamento. Afinal, o que faz de você brasileiro? O que faz desse país Brasil? De fato, trata-se de uma questão de identidade, ou melhor, de uma construção de identidade permeada pela história desde o descobrimento do Brasil até os dias de hoje, com nossas particularidades e características ímpares.
Em uma pesquisa da identidade nacional, DaMatta revela o Brasil, os brasileiros e sua cultura através de suas festas populares, manifestações religiosas, literatura e arte, desfiles carnavalescos e paradas militares, leis e regras (quando respeitadas e quando desobedecidas), costumes e esportes.
De acordo com Roberto DaMatta, o "Brasil" maiúsculo do título significa muito mais que só o nome do país, por trás desse significado, encontra-se a expressão do país, da cultura, do local geográfico, da fronteira e do território reconhecidos internacionalmente, e também da casa, pedaço de chão calçado com o calor de nossos corpos, o lar, a memória e a consciência de um lugar com o qual se tem uma ligação especial, única, totalmente sagrada. É igualmente um tempo singular cujos eventos são exclusivamente seus, e que pode ser trazida de volta na boa recordação da saudade. Sociedade onde pessoas seguem certos valores e julgam as ações humanas dentro de um padrão somente seu.
Afinal, de fato, o que faz do Brasil uma nação vai muito além dos registros políticos e jurídicos que o inserem no patamar de país. O Brasil é mais que isso, é a construção da miscigenação cultural, é o mix de culturas e religiões, é a cor da pele misturada. É o jeito de nunca ter dinheiro para nada, mas estar sempre tomando uma cervejinha no domingo do futebol.
Por outro lado, DaMatta fala de um Brasil morto, utilizando o "brasil" com "b" minúsculo no título. Ele explica que o título mostra uma distinção entre o "brasil" com o "b" minúsculo, que na verdade representa uma alusão a um tipo de madeira de lei, a algo sem vida que não pode se reproduzir como sistema (feitorias, colônias) e o "Brasil" com o "b" maiúsculo, que designa um povo, umanação, um conjunto de valores.
Para essa perspectiva, da dualidade da realidade dessa nação, o Brasil deve ser procurado nos rituais nobres dos palácios de justiça, dos fóruns, das câmaras, onde a letra clara da lei define suas instituições mais importantes, mas também deve ser visitado do jeitinho malandro que soma a lei com a pessoa na sua vontade escusa de ganhar.
O título é um questionamento com várias respostas, na verdade o que se quer é saber como é que os dois "Brasis" se ligam entre si e como os dois formam uma realidade única que existe concretamente naquilo que chamamos de "pátria".
Trata-se, sempre, da questão da identidade. De saber quem somos e como somos; de saber por que somos. A construção de uma identidade social, então, como a construção de uma sociedade, é feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões. Tudo isso nos leva a descobrir que existem dois modos básicos de construir a identidade brasileira: o de fazer o "brasil", Brasil.
O Brasil é o país da alegria e do povo que finge que não vê. É o país do rico que viaja para o exterior e do pobre que nunca saiu da favela. Nesse "brasil", utilizamos dados precisos, estatísticas demográficas e econômicas, dados e números da renda per capita e da inflação. Falamos também do sistema político e educacional do país, apenas para constatar que o Brasil não é aquele país que gostaríamos que fosse. Essa classificação permite construir uma identidade social moderna, de acordo com os critérios estabelecidos pelo Ocidente europeu a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Aqui nos referimos ao Brasil que deixa a desejar.
Por outro lado, temos o Brasil que vale a pena, aqui o que importa não é mais a vergonha do regime ou a inflação galopante e "sem vergonha", mas a comida deliciosa, a música envolvente, a saudade que humaniza o tempo e a morte, e os amigos que permitem resistir a tudo.
Aqui temos uma contraposição paradoxal. Somos um país emergente, cheio de problemas sociais, econômicos e políticos, mas que exerce sua alegria carnavalesca no dia-a-dia, vencendo todas as possibilidades com o jeitinho "malandro" carioca, ou "metido" do sulista, "preguiçoso" do baiano, enfim, do jeitinho brasileiro.
Na mesma direção seguida por DaMatta, pensemos na cultura como característica predominante de um povo, e como ele mesmo indica "a palavra cultura exprime precisamente um estilo, um modo e um jeito, repito, de fazer coisas" [1]. Decerto, que essa coisa tem haver com costumes, condutas, hábitos, família, política, festas, etc.
Essa nação então é uma moeda de duas faces, onde temos uma jogadapequena (brasil), e uma jogada do autoritarismo político e econômico (Brasil).
Ainda na mesma direção que DaMatta, podemos discutir os conceitos de casa, lar, rua e trabalho. Na casa estão presentes as mais íntimas relações familiares. Não importa como a família seja: rica ou pobre. É dentro dela que está o verdadeiro "eu" de cada um. A nossa casa é o nosso lar. Quando vamos para o trabalho, nos distanciamos da "segurança" do nosso lar, e no fim da jornada fica a ansiedade de chegar nele e nele adentrar e tomar aquele banho e ficar a vontade, "pois essa é minha casa". Pensando por esse ponto de vista, a casa e rua são mais do que meros espaços geográficos, são modos de ler, explicar e falar do mundo, porque ali encontramos histórias e construções de vida.
Para DaMatta a idéia de residência é um fato social totalizante, na casa há tranqüilidade, calma, harmonia. Na rua há luta, batalha, perigo. No trabalho há concorrência, reclamação, chefe, batente. No entanto, essas três idéias se correlacionam, pois fazem parte da vida do indivíduo. Na rua se vê o povo. Na casa, o "amigo". No trabalho, o "colega".
Tudo isso nos conduz a discussões acerca da sociedade que encontramos na rua, onde existem os preconceitos e as regras que não podem ser quebradas. Onde ser "você mesmo" pode ser perigoso. Na rua é que estão as verdades sociais, os flagelos da sociedade. Na rua nos deparamos com o "racismo à brasileira" e o nosso famoso triângulo racial. Aqui falamos de um Brasil pequeno, com "b" minúsculo, que ainda não se viu como sistema altamente hierarquizado, onde a posição de negros, índios e brancos está ainda, tragicamente, de acordo com a hierarquia das raças. A idéia impregnada ainda é a "eurocentrista" da nossa colonização. Por que em um Brasil de maioria negra, não temos sequer um herói negro? Em uma sociedade onde não há igualdade entre as pessoas, o preconceito velado é uma forma muito eficiente de discriminar pessoas "de cor", desde que elas fiquem no seu lugar e "saibam" qual é ele. Finalmente, temos um "triângulo racial" que impede uma visão histórica e social da nossa formação como sociedade. O fato contundente de nossa história é que somos um país feito por portugueses brancos e aristocráticos, uma sociedade hierarquizada e que foi formada dentro de um quadro rígido de valores discriminatórios.
Assim, baseando-se nos valores discriminatórios impostos desde a colonização do país, é mais fácil dizer que o Brasil foi formado por um triângulo de raças, o que nos conduz ao mito da democracia racial, do que assumir que somos uma sociedade hierarquizada, que opera por meio de gradações e que, por isso mesmo, pode admitir, entre o branco superior e o negro pobre e inferior, uma série de critérios de classificação.
É claro que podemos ter uma democracia racial no Brasil. Mas ela, conforme sabemos, terá que estar fundada, primeiro, numa positividade jurídica que assegure a todos os brasileiros o direito básico de toda a igualdade: o direito de ser igual perante a lei. Na nossa ideologia nacional, temos um mito de três raças formadoras. Não se pode negar o mito. Mas o que se pode indicar é que o mito é precisamente isso: uma forma sutil de esconder uma sociedade que ainda não se sabe hierarquizada e dividida entre múltiplas possibilidades de classificação.
DaMatta, persegue a idéia de Sérgio Buarque de Holanda, para quem a mistura de raças era um modo de esconder as injustiças sociais contra o negro, índio e mulato, e a idéia de democracia racial não passava de um mito.
Ainda no "descobrimento" do Brasil, DaMatta indica que a sociedade manifestase por meio de muitos espelhos e vários idiomas. Um dos mais importantes no caso do Brasil é, sem dúvida, o código da comida, em seus desdobramentos morais que acabam ajudando a situar também a mulher e o feminino no seu sentido, talvez, mais tradicional. Comidas e mulheres, assim, exprimem teoricamente a sociedade, tanto quanto a política, a economia, a família, o espaço e o tempo, em suas preocupações e, certamente, em suas contradições.
Sobre Comida e Mulheres DaMatta distingue o que é "cru e cozido". Enquanto o cozido permite a relação e a mistura de coisas do mundo que estavam separadas, o cru é o oposto do mundo da casa, é como uma área cruel e dura do mundo social. Continuando a discernir comida de alimento, é válido dizer que o primeiro (comida), é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva, algo universal e geral. A comida é tudo aquilo que foi valorizado e escolhido dentre os alimentos.
O antropólogo francês Lévi-Strauss foi quem chamou a atenção para os dois processos naturais – o cru e o cozido –, não somente como dois estados pelos quais passam todos os alimentos, mas como modalidades pelas quais se pode falar de transformações sociais importantíssimas. Num plano mais filosófico e universal, sabemos que cru se liga a um estado de selvageria (estado de natureza), ao passo que o cozido relaciona-se ao universo socialmente elaborado que toda a sociedade humana define como sendo o de sua cultura e ideologia. Mas é básico continuar enfatizando que a comida permite realizar uma importante mediação entre cabeça e barriga, entrecorpo e alma, permitindo operar simultaneamente com uma série de códigos culturais que normalmente estão separados, como o gustativo, o código de odores, o código visual e, ainda, um código digestivo, posto que no Brasil também classificamos os alimentos por sua capacidade depermitir ou não uma digestão fácil e agradável.
Para nós, o cru e o cozido podem significar com muito mais facilidade um universo complexo, uma área do nosso sistema onde podemos nos enxergar como formidáveis e nos levar finalmente, muito a sério. Nesse sentido, o cru seria tudo que está fora da área da casa onde somos vistos e tratados com amor, carinho e consideração, podendo – consequentemente – escolher a comida. Ou seja: o cru é tudo aquilo que está fora do controle da casa. Já o cozido é algo social por definição. Não é somente o nome de um processo físico – o cozimento das coisas pelo fogo –, mas, sobretudo, o nome de um prato sagrado dentro da nossa culinária.
Para nós, brasileiros, nem tudo que alimenta é sempre bom ou socialmente aceitável. Do mesmo modo, nem tudo que é alimento é comida. Em outras palavras, o alimento é como uma grande moldura, mas a comida é o quadro, aquilo que foi valorizado e escolhido dentre os alimentos; aquilo que deve ser visto e saboreado com os olhos e depois com a boca, o nariz, a boa companhia e, finalmente, a barriga.
Para DaMatta a comida define as pessoas: "dize-me o que comes e dir te-ei quem és"! [2]. O fato é que as comidas para o Brasil pequeno se associam à sexualidade, de tal modo que o ato sexual pode ser traduzido como um ato de "comer", abarcar, englobar, ingerir ou circunscrever totalmente aquilo que é (ou foi) comido. A comida, como a mulher desaparece dentro do "comedor" – ou do "comilão". Assim a relação sexual, na concepção brasileira coloca a diferença, e a radical heterogeneidade, para logo em seguida hierarquizá-la no englobamento de um "comedor" e um "comido". E se se é aquilo que se come, cuidado com o quê ou quem for comer.
Ainda na perspectiva do livro, DaMatta procura respostas sobre de que forma o carnaval serve de teatro e prazer para o mundo, afirmando que no caso do Brasil, a maior e mais importante, mais livre e mais criativa, mais irreverente e mais popular de todas as festas é, sem duvida, o carnaval. De fato, todas as sociedades alternam suas vidas entre rotinas e mitos, trabalho e festa, corpo e alma, coisas dos homens e assunto dos deuses, períodos ordinários – onde a vida transcorre sem problemas – e as festas, os rituais, as comemorações, os milagres e as ocasiões extraordinárias, onde tudo pode ser iluminado e visto por novo prisma, posição, perspectiva e ângulo. Ou seja, o carnaval cria certas situações onde várias coisas são possíveis e outras tantas devem ser evitadas. Ele é definido como "liberdade" e como possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria, trabalho, obrigações, pecado e deveres. É a distribuição teórica do prazer sensual para todos. Trocamos a noite pelo dia, não se fala em máscaras, mas em fantasias, e esta permite passar-se de ninguém a alguém. As pessoas mudam de posição social. É uma ocasião em que a vida diária deixa de ser operativa e, por causa disso, um momento extraordinário é inventado. Numa palavra, trata-se de um momento onde se pode deixar de viver a vida como fardo e castigo. O carnaval é percebido como algo que vem de fora, com uma onda irresistível que nos domina, controla e, melhor ainda, seduz inapelavelmente. É também descobrir que todos são iguais ou podem ser iguaisperante o carnaval. O carnaval é basicamente uma inversão do mundo.
As festas permitem descobrir oscilações entre uma visão alegre e uma leitura soturna da vida. Todas as festas recriam e resgatam o tempo, o espaço e as relações sociais. Assim, é na festa que tomamos consciência de coisas gratificantes e dolorosas. Que não podemos comparecer porque não somos da mesma classe social, ou mesmo porque não somos bons dançarinos, etc. No caso brasileiro, todas as solenidades permitem ligar a casa, a rua e o outro mundo. O carnaval liga casa, rua e outro mundo querendo e propondo a abertura de todas as portas e de todas as muralhas e paredes. Os ritos cívicos e religiosos fazem o mesmo, mas com propostas diferentes.
Os rituais religiosos partem de locais sagrados, pretendendo ordenar o mundo de acordo com os valores que são ali articulados como os mais básicos. Nos ritos de ordem em geral, e nos rituais religiosos em particular, o comportamento é marcado pela contrição e pela solenidade que se concretizam nas contenções corporais e verbais. Tudo isso é salientado com precisão em todos os ritos da ordem onde a idéia de sacrificar o corpo pela pátria, por Deus ou por um partido político acaba se exprimindo pela noção de dever, de devoção e de ordem. O que contrasta com os rituais carnavalescos.
Entre a desordem carnavalesca, que permite e estimula o excesso, e a ordem, que requer a continência e a disciplina pela obediência estrita às leis, como é que nós, brasileiros, ficamos? No meio dos dois, a malandragem, o "jeitinho" e o famoso e antipático "sabe com quem está falando?" seriam modos de enfrentar essas contradições e paradoxos de modo tipicamente brasileiro.
O "jeito brasileiro" é um modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver tais problemas, provocando essa junção inteiramente casuística de lei com a pessoa que a está utilizando. Jeito esse que se configura no "- você sabe com quem você está falando?". A malandragem faz parte desse jeitinho, é uma onda decinismo e gosto pelo grosseiro e pelo desonesto, o despachante, que só pode ser vista quando nos damos conta da dificuldade de juntar a lei com realidadesocial diária.
A malandragem assim, não é simplesmente uma singularidade inconseqüente de todos nós, brasileiros. De fato, trata-se mesmo de um modo profundamente original e brasileiro de viver, e às vezes sobreviver, num sistema em que a casa nem sempre fala com a rua e as leis formais da vida pública nada têm a ver com as boas regras da moralidade costumeira que governam a nossa honra, o respeito, e a lealdade que devemos aos amigos, aos parentes e aos compadres. Antes de ser um acidente ou um mero aspecto da vida social brasileira, coisa sem conseqüência, a malandragem é um modo possível de ser. Algo muito sério, contendo suas regras, espaços e paradoxos.
Nós brasileiros, marcamos certos espaços como referências especiais da nossa sociedade. A casa onde moramos, comemos e dormimos; a rua onde trabalhamos e ganhamos a luta pela vida. A cada um desses podemos somar umoutro espaço: a igreja e os caminhos para se chegar à Deus.
A religião, segundo DaMatta "... é um modo de ordenar o mundo, facultando nossa compreensão para coisas muito complexas, como a idéia de tempo, a idéia de eterno e a idéia de perda e desaparecimento, esses mistérios parentes da experiência humana..." [3]. Assim, a religião marca e ajuda a fixar momentos importantes na vida de todos nós. Desse modo, nascimentos, batizados, crismas, comunhões, casamentos e funerais são marcados pela presença da religião, que legitima com o aval divino ou sobrenatural uma passagem que se deseja necessária. Nós brasileiros, temos intimidade com certos santos que são nossos protetores e padroeiros, nossos santos patrões, do mesmo modo que temos como guias certos orixás ou espíritos do além, que são nossos protetores.
Enfim, toda essa complexidade existente, por vezes, paradoxalmente, nesse Brasil de tantas caras, demonstra a peculiaridade da construção da identidadebrasileira, um Brasil de política falha, e de carnaval o ano inteiro. Um Brasil de casa, da rua, e do trabalho. Um Brasil de tantas cores e de tanto racismo. UmBrasil onde comer pode significar muito mais do que se alimentar... Um Brasilde católicos fervorosos e candomblé latente. Um Brasil de Deus, dos deuses, domundo. Um Brasil dos brasileiros.
Bibliografia:
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Editora Rocco.
Alianna Caroline Sousa Cardoso
Acadêmica do curso de Direito na Universidade do Estado
de Mato Grosso (UNEMAT) e Pesquisadora Voluntária
no grupo de Teoria do Direito, Educação Popular e
EconomiaSolidária vinculado à Universidade.
Notas
[1] DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Editora Rocco, p. 17.
[2] Idem, p. 58.
[3] Idem, p. 113.
"É verdade que o contar histórias revela o sentido sem
cometer o erro de defini-lo, realiza o acordo e a reconciliação
com as coisas tais como realmente são".
Hannah Arendt[2]
1. O julgamento
O documentário "O Especialista" foi elaborado a partir do material obtido durante o julgamento, em 1961, de Otto Adolf Eichmann em Jerusalém, consistente em 350 horas de gravação realizada por Leo Hurwitz. Com esse material em mãos, os produtores utilizaram, como parâmetro de edição, o livro de autoria de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal[3]; trazendo, portanto, em forma de documentário uma perspectivaarendtiana do julgamento de Eichmann[4].
A mando do então primeiro-ministro de Israel, David Ben-Gurion, Eichmann foi raptado na Argentina onde vivia exilado[5], pela Mossad (polícia secreta de Israel), a fim de ser levado à Corte Distrital de Jerusalém para ser julgado pelos crimes cometidos durante o Terceiro Reich.
O julgamento, realizado na Beth Hamishpath (Casa da Justiça), foi presidido pelo juiz Mosche Landau, que tentou, a todo momento, enfocar o julgamento nos atos de Eichmann, procurando evitar o aspecto teatral que se acentuou a cada fala dos promotores e, principalmente, daquele que deveria ser o advogado de defesa de Eichmann, mas que pouco participou do processo, o doutor Servatius. Não obstante, salienta Hannah Arendt, que logo esse aspecto teatral "desmoronou sob o peso horripilante das atrocidades"[6].
Desde o início do julgamento, tornou-se conspícua a tentativa de conferir ao mesmo um caráter ritualístico de expurgação de todo anti-semitismo presente na história pelas mãos do povo judeu, sendo este o principal traço diferencial em relação àqueles ocorridos em Nuremberg. Durante o julgamento de Eichmann ficou claro, conforme a assertiva de Hannah Arendt, de que a acusação teve por base o que os judeus sofreram durante o regime nazista e não os atos executados por Eichmann[7]. O próprio primeiro-ministro israelense não tentou ocultar tal fato, como se infere de sua declaração: "Não é um indivíduo que está no banco dos réus neste processo histórico, não é apenas o regime nazista, mas o anti-semitismo ao longo de toda sua história"[8].
Na intenção de expurgar todo sofrimento e horror do povo judeu no holocausto, o escolhido bode expiatório não podia ter um veredicto diferente do que se era esperado: a pena de morte. E esta foi declarada com a seguinte fundamentação: "E, assim como você apoiou e executou uma política de não partilhar a Terra com o povo judeu e com o povo de diversas outras nações – como se você e seus superiores tivessem o direito de determinar quem devia e quem não devia habitar o mundo –, consideramos que ninguém, isto é, nenhum membro da raça humana, haverá de querer partilhar a Terra com você. Esta é a razão, e a única razão, pela qual você deve morrer na forca"[9].
2. O acusado
Assim como qualquer espetáculo, o roteiro possui um protagonista: Otto Adolf Eichmann. Sua personalidade, assim definida no julgamento, foi relatada por Hannah Arendt: "apesar de todos os esforços da promotoria, todo mundo percebia que esse homem não era um ‘monstro’, mas era difícil não desconfiarque fosse um palhaço"[10].
Adolf Eichmann possuía uma vida comum, até que em 1932, decidiu entrar para o partido Nacional-Socialista, desconhecendo o programa partidário e nunca tendo lido o livro Mein Kampf.
Em 1934, Eichmann solicitou um emprego, foi atendido, e tornou-se empregado da SD, órgão criado para funcionar como Serviço de Inteligência do Partido, no âmbito de atuação da SS (Schutzstafeln). Após inúmeras promoções que o levaram para diversos países, Eichmann retornou para a Alemanha como chefe da Seção de Assuntos Judaicos, sendo considerado, naquele momento, um especialista na questão de logística na deportação da comunidade judaica para os campos de concentração. Sua precípua incumbência consistia na concentração e evacuação de judeus da Alemanha,Áustria e Tchecoslováquia, o Anschluss[11], pelos trens que os conduziam aos campos de concentração.
Quando a política de Hitler adquiriu finalmente o caráter de aniquilação do povo judeu, Eichmann passou a ter grande importância devido a sua expertise. No entanto, ele próprio não teve consciência dessa intenção genocida tão cedo, já que "Eichmann não estava absolutamente entre os primeiros a serem informados da intenção de Hitler [de exterminar fisicamente os judeus]"[12].
Em seu julgamento, Eichmann demonstrou seu orgulho de ter realizado um trabalho bem feito e ter observado estritamente as ordens por ele recebidas. No entanto, não deixou de transparecer também certo arrependimento pelo vício da obediência cega adotada por ele. Declara, a esse respeito, que como fiel cumpridor de todas as ordens que recebia, cumpriu com aquilo que concebia como deveres de um cidadão respeitador das leis, considerando estar sempre acobertado (moralmente) pelas leis da época. Apesar disso, como anota Hannah Arendt, Eichmann não conseguiu esconder, ao final, uma confusão e inquietação moral ao frisar "alternativamente as virtudes e osvícios da obediência cega, ou a ‘obediência cadavérica’ (kadaverrgehorsam),como ele próprio a chamou"[13].
O acusado considerava-se um respeitador das leis, argumentando que suas condutas só poderiam ser entendidas como crimes dentro de uma análise retrospectiva. Em seu julgamento demonstrou conhecimento da filosofia kantiana, ao afirmar que tinha no imperativo categórico o norte de suas condutas e declarar que "o princípio de minha vontade deve ser sempre tal que possa se transformarno princípio de leis gerais"[14].
É nesse contexto que se situa a tão criticada expressão "banalidade do mal" de Hannah Arendt, que de maneira alguma remete à trivialização do ocorrido, mas sim, ao problema da "normalidade" de Eichmann, ao fato de que ele não apresentava, ao contrário da expectativa de Hannah Arendt, nenhum traço de perversão ou sadismo. Assim, a ideia de que toda aquela engrenagem perversa de eliminação de pessoas era composta por seres humanos os quais se poderia reputar de "normais"
era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que – como foi dito insistentemente em Nuremberg pelos acusados e seus advogados – esse era um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado[15].
Essa alienação moral dos oficiais nazistas, devido "à aura de sistemática hipocrisia que constituía a atmosfera geral, aceita por todos, do Terceiro Reich"[16], em relação aos crimes ali perpetrados, torna compreensível a capacidade moral de Eichmann em descrever com tantas minúcias e com tamanha sinceridade o trabalho realizado por ele enquanto chefe da Seção de Assuntos Judaicos.
3. O legado do julgamento
A despeito de todas as irregularidades jurídico-formais que a própria HannahArendt cita no seu livro[17], a herança positiva deixada à humanidade no trato das violações a direitos humanos consiste na reflexão sobre tais atos que seconsolidam numa corte, internacional ou não.
Nesse diapasão, Karl Jaspers demonstrou a necessidade do julgamento de Eichmann, ainda que defendesse a incompetência da corte para julgar os crimes de Eichmann por estes constituírem "crimes contra a humanidade". Jaspers declarou numa entrevista radiofônica, antes do inicio do julgamento, que "o crime contra os judeus era também um crime contra a humanidade", e que "consequentemente o veredicto só pode ser pronunciado por uma corte de justiça que represente a humanidade". Ele propôs, então, que a corte de Jerusalém, após ouvir a provas produzidas contra Eichmann deveria "renunciar ao direito de sentenciar", pois a natureza do crime ainda não era pacificada[18].
Apesar da possível crítica do ponto de vista da técnica jurídica a esta proposição – por necessidade de demonstração de todas as cortes de justiça demonstrarem sua competência antes do inicio do julgamento – tal assertiva demonstra a noção que Karl Jaspers possuía do fenômeno do julgamento como meio de reflexão de um conflito materializado, nesse caso, no anti-semitismo levado a bases outrora inimagináveis.
Não se trata de defender uma pretensa função retributiva, pelo mal praticado, ou preventiva geral negativa da pena, a fim de aplicar penas exemplares, mas sim na compreensão do ocorrido mediante um exercício de diálogo com o passado. É nesse sentido o pensamento de Hannah Arendt, quando afirma que nenhum castigo possui – e jamais possuirá – o poder para impedir a perpetração de novos crimes análogos[19].
Assim sendo, a preocupação não deve ser a estrita punição daquele a quem se acusa de culpado, mas a revisão de um passado que deve ser compreendido. Compreensão que, para Hannah Arendt, "não significa negar o ultrajante, subtrair o inaudito do que tem precedentes, ou explicar fenômenos por meio de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência. Significa antes examinar e suportar conscientemente o fardo que os acontecimentos colocaram sobre nós (...) Compreender significa, em suma, encarar a realidade, espontânea e atentamente, e resistir a ela – qualquer que seja, venha a ser ou possa ter sido"[20].
A importância de se levar a julgamento os responsáveis por grandes violações de direitos humanos em épocas de regimes totalitários remete à possibilidade de reativação da lembrança para possibilitar o diálogo com o passado, vez que, de acordo com Norbert Elias, "antes do julgamento de Eichmann, a enorme capacidade humana para esquecer coisas dolorosas, sobretudo se aconteceram a outraspessoas relativamente impotentes, já tinha começado a fazer o seu trabalho"[21].
Também na Alemanha, a reativação dessa lembrança pelo julgamento de Eichmann, "ergueu momentaneamente o véu que encobre o lado mais sombrio de seres humanos civilizados"[22], possibilitando a busca de uma compreensão do ocorrido na época nazista, o que também não se confunde, necessariamente, com uma tentativa de (des)culpar os responsáveis. Assim, deve-se distinguir a necessidade de se responsabilizar àqueles que infligiram danos e sofrimentos aos judeus, da tentativa de compreender as causas sociológicas e psicológicas do como e por qual motivo os sofrimentos e danos aconteceram. Nesse sentido, na opinião de Norbert Elias,"a segunda necessidade não extingue a primeira.Ambas têm seu lugar no curso dos acontecimentos humanos"[23].
Nesse âmbito da tentativa de compreensão, para Norbert Elias, o regime nacional-socialista deixou nos alemães uma chaga aberta que produzia o "problema do estigma e dos sentimentos de culpa legados pelo nazismo às gerações subseqüentes"[24], que, até aquele momento, nâo tinha deixado de pesar na consciência alemã. Essa ferida aberta, esse sentimento de culpa dos alemães, resultou no abandono de Eichmann pela Alemanha, que em nenhum momento tentou impedir o julgamento ou a execução de Eichmann, permanecendo silente durante todo o processo[25]. Tal ato demonstrou a necessidade de se enfrentar esse sentimento de culpa que ainda atormentava os alemães. Esse fenômento de enfrentamento dessa questão representa para Elias o despertar da consciência ou da "nós-consciência" (Wir-Bewusstseins)[26] que, além da catarse, possibilita o rompimento com os rígidos padrões de comportamentosocial culturalmente impostos, através da compreensão de suas causas.
Romper com tais modelos de comportamento é necessário para prevenira repetição do passado. No que diz respeito à Eichmann, não se tratava de condená-lo como bode expiatório de um regime que vitimou milhares (ou milhões)de seres humanos, mas de tentar compreender os fatores que possibilitaramsuas ações e procurar inviabilizar seu reaparecimento no futuro.
A férrea obediência de Eichmann ao regime totalitário – que no julgamento se transformou na rechaçada exculpação pela obediência devida –, carente de uma reflexão mais profunda de seus atos, o impossibilitou de dizer a si próprio: não posso mais (obedecer cegamente, ou "cadavericamente", como ele próprio alcunhou). Essa falta de pensamento crítico sobre suas ações o impossibilitou de ser um protagonista de sua vida para se tornar um mero dente de engrenagemdo maquinário nazista[27].
A compreensão dessa falta de reflexão de Eichmann, como uma característica genérica no Terceiro Reich, que propiciou o cometimento de todo esse "mal banal" possui a capacidade de possibilitar a ruptura de tais ações para o futuro e, outrossim, de promover a "reconciliação com a realidade"[28] através da explicitação do que ocorreu, permitindo que os homens se sintam novamente "em casa no mundo"[29].
A ruptura com o passado consubstancia-se através do permanente diálogo do passado com os seres humanos, numa relação de "simbolização" – no sentido de ressignificação de determinado(s) ato(s) do ser humano no âmbito da consciência coletiva, através da compreensão da complexidade da natureza humana, a fim de dotá-lo(s) de novo significado para o futuro –, afastando-se, assim, de um maniqueísmo ingênuo. A partir do momento que se compreende os motivos pelo qual determinado fato traumatizante aconteceu, deixa-se de imputá-los a uma suposta falta de humanidade de seus executores ou qualquer outro fator que os distingam ontologicamente de si próprio, ou seja, há um aprendizado da natureza humana em toda sua complexidade inerente e agravada pela existênciade determinados "tempos sombrios".
É nesse processo de compreensão e simbolização que se revela a importância do julgamento de Eichmann. Esse processo de grande complexidade exige uma suficiente reiteração de procedimentos que estabeleçam o diálogo com o passado e seus erros. Dessa forma, o julgamento de crimes contra a humanidade adquire, outrossim, um sentido mais profundo do que a mera punição de um indivíduo: a compreensão do passado para, finalmente, aceitar o presente e realizar uma ruptura de suas premissas para o futuro.
Como enfatizou Norbert Elias, a ocorrência do julgamento de Eichmann possibilitou a revisitação de uma história que apesar de praticamente esquecida na esfera pública, ainda produzia grandes efeitos na psique dos indivíduos. Dessarte, revisitar traumas coletivos passados permite muito mais do que a materialização e dimensionamento da dor, representa, na verdade, a construção de uma história, uma vez que, como afirma Hannah Arendt: "todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história. A história revela o sentido daquilo que, do contrário, permaneceria como uma seqüência intolerável de puros acontecimentos"[30]. A partir do momento em que se compreende uma história composta de atos cruéis consistentes em crimes contra a humanidade abre-se uma oportunidade para realizar uma verdadeira catarse, ao se trazer à consciência os sentimentos recalcados produzidos no período nazista e permitir, consequentemente, a superação dessa angústia, fruto de um sentimento de culpa ou de ódio. Essa é a opinião de Elias a respeito da proibição tácita, na Alemanha do final da década de 80 – mais de 40 anos após o fim do regimenazista –, da discussão pública a respeito do tema:
Parece-me ser uma política equivocada, sobretudo no sentido do futuro da própria sociedade da República Federal Alemã, impor um tabu secreto à discussão pública do nacional-socialismo e suas raízes. As pessoas têm, hoje em dia, uma compreensão maior do que antes de que uma violenta experiência traumática na vida de um indivíduo causa graves danos, se não for alcançada a nível da consciência através de sua verbalização e discussão, dando assim uma chance ao processo de cura. Estou convencido há muito tempo de que também na vida das nações e, de fato, de muitos outros agrupamentos sociais existem experiências traumáticas coletivas que penetram muito fundo na economia psíquica dos membros dessas nações e causam aí grave dano – dano, sobretudo, ao comportamento na vida social da comunidade – se lhes for negada a possibilidade de uma eliminação catártica e o alívio da libertação que lhe estão associadas[31].
O valor do julgamento de Eichmann, assim, não se refere à necessidade vindicativa pelos judeus de sua condenação ou a expiação da culpa do povo alemão. Conforme ensinou Elias, sua responsabilização pelos danos e sofrimentos causados aos judeus (e a outros povos) – ainda que se questione a pena a ele aplicada – era, de fato, forçosa. Mas de maneira alguma o valor do julgamento se resume a isso. O que torna tão singular o julgamento ocorrido em Jerusalém foi a compreensão (para Arendt) ou a tomada de consciência (para Elias) da experiência traumática, que criou um ambiente favorável a catarse em relação ao passado, promovendo a reconciliação com a realidade, para todos.
Bibliografia:
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1987
_____________. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1988.
_____________. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
_____________. Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
_____________. Responsabilidade e julgamento. Tradução de Rosaura Eichenerg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
ELIAS, Norbert. Os Alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nosséculos XIX e XX. Tradução de. Álvaro Cabral. Jorge Zahar, 1997.
Gabriel Vieira Berla
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP,
Coordenador-adjunto do Laboratório de Ciências
Criminais do IBCCRIM.
Notas
[1] Esta resenha foi elaborada no âmbito da disciplina Direito Penal Internacional e DireitoInternacional Penal do Programa de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade deSão Paulo do segundo semestre de 2008, ministrada pela professora Cláudia Perrone-Moisés.Agradeço a Camila Akemi Perruso pelas considerações tecidas e encorajamento à publicação.
[2] ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 95.
[3] Un Spécialiste / The Specialist, França/Alemanha/Áustria/Bélgica/Israel 1998, P&B, 123 min.Direção de Eyal Sivan e produção de Armelle Laboire e Eyal Sivan.
[4] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal. Tradução deJosé Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[5] Eichmann havia fugido da Alemanha, após o início dos julgamentos dos criminosos de guerra emNuremberg, quando percebeu que seu nome "começou a aparecer com incômoda regularidade" (Idem, p.257).
[6] Idem, p.19.
[7] Idem, p. 16.
[8] Idem, p. 30.
[9] Idem, p. 302.
[10] Idem, p. 67.
[11] Expressão utilizada na referência à anexação político-militar da Áustria por parte da Alemanha,considerado pelos nazistas o espaço onde deveria se desenvolver a raça ariana.
[12] Idem, p. 99.
[13] Idem, p. 152.
[14] Idem, p. 153.
[15] Idem, p. 299.
[16] Idem, p. 65.
[17] "As irregularidades e anormalidades do julgamento de Jerusalém foram tantas, tão variadas ede tal complexidade legal que, no decorrer dos trabalhos e depois na quantidade surpreendentementepequena de literatura sobre o julgamento, chegaram a obscurecer os grandes problemas morais, políticos emesmo legais que o julgamento inevitavelmente propunha. (...) As objeções levantadas contra o julgamentode Eichmann eram de três tipos. Primeiro, as objeções levantadas contra os julgamentos de Nuremberg,que agora se repetiam: Eichmann estava sendo julgado por uma lei retroativa e era trazido à corte dosvitoriosos. Segundo, as objeções que se aplicavam apenas à corte de Jerusalém, na medida em quequestionavam sua competência enquanto tal ou sua incapacidade de levar em conta o ato do rapto. E,finalmente, e mais importante, objeções à própria acusação, que afirmava que Eichmann cometeu crimes"contra o povo judeu", em vez de dizer "contra a humanidade", e portanto à lei sob a qual estava sendojulgado; e essa objeção levou a conclusão lógica de que a única corte adequada para julgar esses crimesseria um tribunal internacional". Idem, pp. 275-276.
[18] Idem, p. 292.
[19] Idem, p. 298.
[20] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhiadas Letras, 1989, p. 21.
[21] ELIAS, Norbert. Os Alemães. Jorge Zahar, 1997, p. 269.
[22] Idem, p. 271.
[23] Idem, ibidem.
[24] Idem, p. 379.
[25] O próprio Eichmann tinha a completa noção do papel de bode expiatório que estava desempenhandoem seu julgamento.
[26] Idem, pp. 379-382.
[27] ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Tradução de Rosaura Eichenerg São Paulo:Companhia das Letras, 2004, p. 94.
[28] ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida. SãoPaulo: Perspectiva, 1988, p. 74-75.
[29] Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, p. 52.
[30] Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, p. 95.
[31] Norbert Elias, op. cit., p. 380.
Em 1937 teve início um dos casos mais célebres de injustiça e erro judiciário de nosso país, o caso dos irmãos Naves. Dois irmãos simples da cidade de Araguari em Minas Gerais são os protagonistas desta triste história. Sebastião José Naves contava com trinta e dois anos, enquanto seu irmão, Joaquim Rosa Naves, vinte e cinco. Ambos trabalhavam na lavoura e comercialização de cereais. Joaquim também era sócio de seu primo, Benedito Pereira Caetano, outra figura notável nesse episódio, em um caminhão Ford V-8, que transportava as mercadorias.
Benedito compra muitas sacas de arroz, gasta 136:000$000 (cento e trinta e seis contos de réis), esperando revendê-las e lucrar consideravelmente. Contudo, o preço do arroz cai, e recebe apenas um cheque no valor 90:048$500 por toda mercadoria. Não haveria lucro, aliás, a soma não cobriria todas as suas dívidas. Logo após receber o cheque Benedito resolve sacá-lo e, dois diasdepois, desaparece.
Os irmãos procuram o primo que estava hospedado na casa de Joaquim, visitam sua amante, Floriza, o fornecedor e o comprador das sacas de arroz. Com o passar do tempo, a preocupação aumenta e eles procuram a polícia, relatando, ao delegado Ismael do Nascimento, os últimos fatos. A polícia realiza buscas, porém Benedito não estava na fazenda dos pais, nem em parte alguma.
O inquérito é instaurado, os irmãos Naves, bem como Floriza, José Lemos (comprador das sacas de café) e outros dois amigos do desaparecido são testemunhas. Eles recontam os últimos momentos com Benedito, na festa de inauguração de uma ponte, entre Araguari e Goiás. Joaquim explica que depois da comemoração, jantaram em casa e o primo resolveu sair para passear no parque de diversões, levando toda a importância de que era portador. Floriza conta que, na verdade, dançou com o desaparecido no cabaré naquela madrugada, mas não haviam passado a noite juntos.
Estava difícil resolver o sumiço de Benedito, a polícia não tinha pistas e a pressão popular aumentava.
Nada. Tudo sem rumo. O povo inquieto. O delegado malvisto. Mole. Mole. Mas não era. Honesto, sensato. Não via, não atirava no escuro. Podia acertar noutro. Não queria ser perigoso, nem injusto[1].
Na busca por uma solução do caso, um delegado militar é convocado para conduzir as investigações, Francisco Vieira dos Santos, figura central para a transformação do episódio. No mesmo dia em que assume o posto, intima novas testemunhas. Dentre elas, José Prontidão, que trabalha no mesmo ramo dos irmãos Naves e afirma ter visto e trabalhado com Benedito em Uberlândia, pouco tempo após seu desaparecimento.
Dona Ana Rosa Naves, mãe dos irmãos e de mais outros 12 filhos, viúva, contava com sessenta e seis anos, foi ouvida pelo delegado e confirmou a versão de Prontidão. Em seguida, o delegado tomou os depoimentos da esposa de Sebastião, Salvina e a de Joaquim, Antônia. Ambas sabiam que na noite anterior ao sumiço do primo, os irmãos estavam nas respectivas casas. Um amigo de Benedito, Orcalino da Costa, em seu testemunho sugeriu que os responsáveis pelo desaparecimento de Benedito eram os irmãos Naves. O delegado preferiu seguiresta última "pista".
Os Naves e Prontidão são presos, sofrem muitas agressões, passam fome e sede. O último não agüenta a tortura por muito tempo, modifica seu testemunho, diz que os irmãos mandaram-no dizer aquelas coisas em troca de uma gratificação posterior. Deste modo, o delegado consegue a acusação que tanto desejavapara revelar aquele "crime", mas ainda espera a confissão.
Os irmãos continuam presos no porão da delegacia, nus, ainda sem receber alimentos ou água, apanhando muito, porém nada diziam. Assim sendo, prendem Dona Ana, retiram-lhe as roupas e mandam os filhos baterem na mãe idosa, e eles, obviamente, recusam-se. Todos são torturados, Dona Ana chega a ser estuprada, porém é solta após alguns dias e procura um advogado. Já não era a primeira vez em que ela procurava o Dr. João Alamy Filho, que, por fim, resolve defender os irmãos.
O primeiro habeas corpus data de janeiro de 1938 e relata a prisão ilegal dos irmãos com a finalidade de que "confessem a sua suposta autoria ou responsabilidade pelo desaparecimento de Benedito Pereira da Silva".
Novas testemunhas são ouvidas, como Guilherme Malta Sobrinho, que afirma ter visto o caminhão de Joaquim na madrugada do dia 23 de novembro além de acreditar que os irmãos são os responsáveis pelo desaparecimento de Benedito.Enquanto isso, os irmãos continuam presos, o defensor dos Naves conta:
Dia a dia, levava os presos pro mato. Longe. Onde ninguém visse. Nos ermos cerradões das chapadas de criar emas. Batia. Despia. Amarrava às árvores. Cabeça pra baixo, pés pra cima. Braços abertos. Pernas abertas. Untados de mel. De melaço. Insetos. Formigas. Marimbondos. Mosquitos. Abelhas. O sol tinia de quente. Árvore rala, sem sombra. Esperava. Esperavam. De noite cadeia. Amarrados. Amordaçados. Água? Só nos corpos nus. Frio. Dolorido. Pra danar. Pra doer. Pra dar mais sede. Pra desesperar[2].
Entretanto, a única técnica efetiva de tortura é a separação dos irmãos. Forjam o assassinato de Sebastião, e Joaquim, apavorado, não mais resiste e decide confessar o "crime". Declara, no dia 12 de janeiro de 1938, que ele e seu irmão convidaram Benedito para um passeio a Uberlândia, e no meio do caminho, decidiram tomar água na margem do rio. Neste momento, Sebastião agarrou Benedito pelas costas e ele, Joaquim, introduziu uma corda no pescoço do primo, apertando-o. Deste modo, o primo desfaleceu e os irmãos acharam um pano em sua cintura, contendo a importância de noventa contos de réis, os quais foram postos em uma lata de soda, preparada anteriormente. Em seguida, atiraram o cadáver do primo na cachoeira do Rio das Velhas. No caminho de volta para Araguari, escolheram uma moita de capim-gordura, entre duas árvores, aonde cavaram um buraco e esconderam o dinheiro roubado. A última parte do plano, era procurar Benedito assim que retornassem à cidade, para que não se tornassem suspeitos do delito.
O delegado levou Joaquim para que pudesse reconstituir o crime. Também houve busca e apreensão, que resultou negativa, já que não foram encontrados o pano que envolvia o dinheiro e muito menos a lata com os noventa contos. Não havia o que procurar, era impossível encontrar objetos que nunca foram usados, pois tal crime não havia ocorrido. Também não se achava o cadáver de Benedito. Destarte, ignora-se o exame do corpo de delito direto ou indireto, e baseia-sesomente em uma "confissão".
Joaquim estava tão desesperado para conferir alguma veracidade a sua confissão falsa que chegou a envolver seu cunhado, Inhozinho, que negou ter recebido os noventa contos de réis. Ele explicou que fazia negócios com o cunhado, mas só havia recebido três contos durante aquele período.
As autoridades policiais também tentaram dar outro defensor aos irmãos, que inseguros, recusam a oferta e mantém como advogado João Alamy Filho. Também prendem, novamente, Dona Ana, que se recusou a assinar o depoimento e contou:
Tudo quanto se tem dito contra si é pura mentira, pois está absolutamente inocente (...)que seus filhos e sua nora estão doidos (...) se não estão doidos confessaram-se autores da morte de Benedito de medo de sofrerem espancamentos por parte da polícia[3].
O processo é bastante tumultuado, depois da denúncia do Ministério Público, ingressa o pai de Benedito, como assistente de acusação. É importante ressaltar que Dona Ana também é acusada, como cúmplice do latrocínio. Tanto os irmãos Naves, quanto sua mãe, ficam presos durante a instrução do processo. As esposas são presas e até mesmo os filhos de Sebastião são presos, privados de alimentação e agasalho, chegando a falecer o menor deles. Outro habeas corpus é impetrado, mas apesar de ser concedido, em 5 de março de 1938, a ordem não foi cumprida.
A decisão de pronúncia, de 21 de março de 1938, aponta:
O crime de que se ocupa esse processo é da espécie daqueles que exigem do julgador inteligência aguda, atenção permanente, cuidado extraordinário no exame das provas, pois, no Juízo Penal, onde estão em perigo à honra e liberdade alheias, deve o julgador preocupar-se com a possibilidade de um tremendo erro judiciário.
(...)
No caso em apreço, em que o cadáver da vítima não apareceu, como não apareceu também o dinheiro furtado, a prova gira em quase que exclusivamente em torno das confissões prestadas pelos indiciados à autoridade policial, sendo notar que o patrono dos acusados, nas razões de fls. 143, informa ao juiz que tais confissões foram extorquidas e são produto da truculência, dos maus tratos e da desumanidade de que fez uso eabuso o delegado nas investigações primárias do delito. (grifo nosso)[4]
Apesar da exposição acima, conclui o juiz que é procedente a denúncia em relação aos irmãos Naves, entendendo pela improcedência somente em relação à Dona Ana, pois sua cumplicidade deu-se após o fato. Esquecem de que os noventa contos também não pertenciam integralmente à vítima, aliás, apenas um décimo daquela quantia lhe cabia.
Os réus recorreram da decisão de pronúncia, mas o Tribunal de Apelação de Minas Gerais negou provimento ao recurso, por conseguinte, foram levados ao Tribunal do Júri. Em junho de 1938, o juiz, Merolino Raimundo de Lima Corrêa pergunta a Sebastião o que ele pode alegar em sua defesa e ele lhe responde:
O que assinou e consta do processo o fez por medo e devido aos maus tratos recebidos da polícia; que o fizeram tomar purgante de 15 em 15 minutos, sentado sobre tachinhas; que foi amarrado e surrado até falar mentiras embora resistindo durante 38 dias; que apanhou tanto que ficou com o corpo coberto de sangue, sofrendo injustiças e suplícios; que esses suplícios alcançaram sua própria mãe, a qual nua, foi seviciada na polícia, quejura sua inocência em nome de Deus e de seus filhos[5].
Já quando o juiz indaga o outro réu, ele responde:
Que não deve o crime que lhe é imputado; que se falou à polícia o que consta dos autos, foi a poder de pancadas, que se confirmou o que havia dito à policia no interrogatório feito pelo Juiz do sumário foi devido a insinuação da própria polícia, que lhe fez ameaças extremas caso não confirmasse; que tem sido bastante judiado na polícia e pede intervenção do MMJuiz para que cessem os maus tratos infligidos[6].
O júri negou a autoria dos fatos aos acusados, absolvendo-os por seis votos a um. Contudo, os réus deveriam permanecer presos, para o processamento da apelação. A promotoria interpõe recurso devido a decisão do júri não serunânime, desta forma, os réus vão novamente a julgamento pelo tribunal popular.
Em março de 1939 ocorre o segundo júri, Joaquim foi absolvido por cinco votos a dois e Sebastião, seis a um. Entretanto, cabe novo recurso do Ministério Público, tendo em vista à falta de unanimidade da decisão. Destarte, em julho de1939, a Câmara Criminal do Tribunal de Apelação de Minas Gerais dá provimento ao recurso, cassando a decisão do júri. Os irmãos são condenados a cumprirpena de 25 anos e 6 meses de prisão, além de pagar multa de 16 ¼ sobre o valordo objeto roubado.
A defesa pede revisão criminal, em 1940, que é negada, apesar de a pena ser reduzida para 16 anos e 6 meses. Já em 1942, os réus pedem indulto ao Presidente Getúlio Vargas, que não é atendido. Somente em 1946 conseguem o deferimento do pedido de livramento condicional e voltam para Araguari. Contudo, Joaquim sofre de uma doença grave e morre em 1948 em um asilo da cidade. Cabe a Sebastião provar sua inocência, bem como a do irmão falecido.
E somente em 24 de julho de 1952 o caso teve uma revira-volta, já que Benedito Pereira Caetano reaparece vivo na fazenda de seus pais, em Nova Ponte. Ele é visto por Prontidão, que avisa sobre a "ressurreição de Benedito" a Sebastião, o qual acompanhado de alguns policiais e de um repórter do Diário de Minas, dirigem-se à fazenda para reencontrar o primo, tido como morto por todos aqueles anos.
No momento do reencontro Benedito teme, mas Sebastião o abraça e diz: "– Graças a Deus te encontrei para provar a minha inocência. Ninguém te quer matar, vempara a cidade, pro povo ver que você está vivo e que eu sou inocente"[7].
Assim, Benedito volta a Araguari, onde é quase linchado por conta da ira popular, é preso preventivamente, acusado de apropriação indébita. Fica detido por nove dias, mas já havia decorrido o prazo prescricional da pena do suposto ilícito, e sua prisão é relaxada.
Após o reaparecimento de Benedito, Sebastião e a viúva de Joaquim pleiteiam a revisão criminal cumulada com indenização, a qual é deferida em 1953. Contudo, o valor só é pago em 1962.
É importante ressaltar que na época desse triste caso, o Brasil enfrentava um período ditatorial e os cidadãos tinham seus direitos e garantias limitados. A subversão à ordem democrática e jurídica deu ensejo à realização do que pode ser considerado o maior erro judiciário brasileiro. Ao longo do caso, nota-se inúmeros desrespeitos tanto ao direito material de suas vítimas quanto à ordem processual vigente na época. Outro ponto relevante é a utilização da confissão como a "rainha das provas".
O filme "O Caso dos irmãos Naves"
João Alamy Filho, o advogado de defesa dos Naves, escreveu um livro descrevendo todo o processo envolvendo os irmãos Naves. A história foi adaptada por Jean-Claude Bernardet e Luís Sérgio Person e o filme "O caso dos irmãos Naves" foi lançado em 1967. Sebastião Naves foi interpretado por Raul Cortez eJoaquim, por Juca de Oliveira. A primeira cena já mostra Benedito fugindo da cidade de Araguari e segue contando a busca dos primos. O filme retrata fielmente as torturas sofridas pelas personagens dessa história. Já se nota uma mudança no clima das investigações quando o tenente militar assume o caso. Os interrogatórios são permeados pelas cenas de sofrimento no porão da delegacia, e as pessoas, atordoadas, assentem com aquilo que Francisco Vieira dos Santos dita ao escrivão, Aulete Ferreira. Os inquiridos são figuras amedrontadas, secundárias, títeres nas mãos do militar. Outro ponto interessante é a presença de um quadro de Vargas aofundo da sala do tenente, que também intimida os acusados e as testemunhas.
Uma passagem muito impactante é aquela em que se realiza a busca pela lata de soda que conteria o dinheiro roubado, nela fica nítida a grande subjugação de Joaquim em relação aos soldados, que a todo momento o mandam cavar com as mãos os possíveis locais onde tal lata estaria enterrada.
Quando o advogado dos acusados, João Alamy Filho, interpretado por John Herbert, impetra o primeiro habeas corpus, discute com o juiz e diz que "A justiça não tem que se haver com opiniões, mas com os fatos e com a lei. E a lei está sendo desrespeita e é mais uma violência".
Outra seqüência perturbadora revela a tomada dos depoimentos das mulheres dos Naves, as ameaças de violência sexual são constantes, assim como a tortura empregada que consistia na ameaça de derrubar um dos bebês, que fica no colo de um soldado, em um punhal, que está nas mãos do tenente.
Já na cena em que é retratado o primeiro júri, tem-se o embate entre o advogado de defesa e seu eloqüente discurso a respeito de um homicídio sem cadáver e um roubo sem dinheiro e a figura sombria do delegado militar, tentando coagir as pessoas presentes no tribunal.
Por fim, vemos os irmãos presos, mesmo após as duas absolvições no júri popular e as manchetes de jornal subseqüentes, que retratam o aparecimento do "morto", o processo de revisão e o montante da indenização paga pelo Estado.
Bibliografia:
ALAMY, João Filho. O Caso dos Irmãos Naves – Um erro judiciário. 3ª Edição. Belo Horizonte. Editora Del Rey : 1993.
BARBALHO, Ilza. O caso dos Irmãos Naves. Portal OAB-RJ. Disponível em:<http://ser.oab-rj.org.br/index.jsp?conteudo=605> Acesso em 12.02.2010.
O CASO DOS IRMÃOS NAVES. Jean-Claude Bernardet e Luís Sérgio Person. Elenco: Anselmo Duarte, John Herbert, Juca de Oliveira e Raul Cortez. 1967. 92minutos. Preto e branco. MC Filmes Distribuidora.
DOTTI, René Ariel. Casos Criminais Célebres. 2ª Edição. São Paulo. Editora RT: 1999.
Camila Garcia da Silva
Acadêmica da Faculdade de Direito do Largo
São Francisco (Universidade de São Paulo - USP).
Notas
[1] ALAMY, João Filho. O Caso dos Irmãos Naves – Um erro judiciário. 3ª Edição. Belo Horizonte.Editora Del Rey : 1993.
[2] Ibidem, pág. 58.
[3] BARBALHO, Ilza. O Caso dos Irmãos Naves. Portal OAB-RJ. Trecho do Interrogatório da DenunciadaAna Rosa Naves no inquérito instaurado para resolver o desaparecimento de Benedito Pereira da Silva.
[4] ALAMY, op. cit. Trecho da Decisão de Pronúncia, do Juiz Merolino Raimundo de Lima Corrêa, noCaso dos Irmão Naves.
[5] ALAMY, op. cit. Trecho da fala de Sebastião Naves, durante a realização do 1º Júri.
[6] ALAMY, op. cit. Trecho da fala de Joaquim Naves, durante a realização do 1º Júri.
[7] ALAMY, op. cit., pag. 321-322.