O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, desde sua fundação em 1992, esforça-se na promoção de pesquisas, eventos, materiais de estudo e, principalmente, na consolidação de um Estado Democrático de Direito garantidor dos direitos fundamentais do processo penal. Apesar do empenho de todos que fazem ou fizeram parte do IBCCRIM, o que temos visto é a prática do direito penal e do processo penal distante da teoria proposta fundada nos valores Iluministas dos direitos humanos.
Para aqueles que lecionam em cursos de graduação, parece que as aulas de direito penal e direito processual penal servem apenas para preencher a grade do curso. Qual seria a finalidade de gastar tempo ensinando os princípios básicos do processo penal se os mesmos alunos testemunham, por meio da mídia, suas violações e, pior, nenhuma medida das autoridades competentes para coibi-las? Apenas para ilustrar, diariamente diversas pessoas presas sob a acusação da prática de um delito são expostas ao público sem ao menos uma denúncia formal do Ministério Público. Os responsáveis pela prisão permitem – e, às vezes, estimulam – a tomada de imagens dos presos e a exposição em rede nacional de seus nomes e de seus rostos. Os alunos de direito que presenciam essas barbáries esperam, no mínimo, algum tipo de punição aos agentes públicos que realizam a prática, pois isso é clara violação aos princípios da presunção de inocência e da dignidade humana. Não obstante, nada é feito.
Os mesmos estudantes, que aprendem o princípio da isonomia nos bancos escolares, deparam-se com dados estarrecedores. Segundo estatísticas do Ministério da Justiça, em 2009, de todos os presos homens do Brasil, 94 % foram condenados por crimes contra o patrimônio, contra a dignidade sexual ou por tráfico de drogas[1]. Dentro desta parcela quase totalitária, não há condenados por crimes contra a Administração Pública. A verba pública destinada à saúde, à educação, à segurança, enfim, à política do bem-estar social, desaparece dos cofres do Estado e ninguém é criminalmente punido.
Outros dados alarmantes da desigualdade referem-se ao grau de escolaridade dos presos. Dos 473.626 encarcerados em 2009, apenas 1.715 possuíam nível superior. A quase totalidade eram pessoas com, no máximo, ensino fundamental. Isso comprova que a população carcerária brasileira está tomada por pessoas de classes sociais mais baixas e sem escolaridade. Os poderosos, que usam a máquina pública para interesses próprios, que dão continuidade a um sistema caótico de corrupção, não sabem o que é o sistema carcerário, pois, para eles, o direito penal aparentemente não tem efeitos.
Os estudantes de direito refletem sobre o que veem no mundo dos fatos e o que aprendem nos bancos da faculdade e questionam: por que a Constituição Federal afirma que todos são iguais perante a lei? A desigualdade existe na distribuição de riqueza e, infelizmente, também no sistema penal. A pena de um a quatro anos do furto, crime contra o patrimônio individual, na prática, é muito mais grave que a pena de dois a doze anos cominada ao peculato, infração cometida contra a Administração Pública, um bem jurídico difuso, que pertence a todos, indistintamente, e cuja lesão tem reflexos muito maiores na sociedade. A diferença é que geralmente o peculato é praticado por detentores do poder, enquanto o furto é cometido por indivíduos humildes, de menor poder aquisitivo.
O que diriam os estudantes de direito quando, ao assistirem ao telejornal, ouvirem o delegado de polícia, durante investigação, afirmar, categoricamente, que determinado suspeito “é o assassino”? Esses mesmos graduandos lembrar-se-ão das aulas de processo penal e de direito constitucional, nas quais aprenderam que somente a autoridade judicial, após o devido processo legal, pode condenar alguém por fato definido como crime. Recordarão, ainda, de um tal princípio da ampla defesa, tão desrespeitado, quando o titular da ação penal aparecer na mídia condenando antecipadamente o acusado e colocando a sociedade (e, por consequência, os futuros jurados) contra alguém que não tem as mesmas armas para se defender antecipadamente.
Continuando com os estudantes, e incluindo aqueles que estão na pós-graduação, há o problema das prisões cautelares, aquelas decretadas antes da condenação definitiva. Nas aulas se aprende que “a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”. E, de repente, deparam-se com prisões decretas com fundamento na gravidade do crime, hipótese não prevista em lei. Os alunos, assim, perguntam ao professor: o que fazer nos casos de prisão arbitrária? Vem a resposta: recorre-se ao Tribunal. O caso pode chegar ao Tribunal do Estado, ao STJ, ao STF, e, depois de alguns meses, ou mais de um ano, quem sabe, a prisão poderá ser revogada, mesmo sem os requisitos legais.
Outra fonte de desilusão do estudante atento é o tempo que leva a conclusão de um processo. Quando se aprende que a Lei Maior garante a duração razoável do processo, causa estranheza o fato de sua conclusão, em primeira instância, prolongar-se por anos depois do acontecimento do fato. Em grau de recurso, as provas que serão novamente analisadas já se perderam no tempo, tornaram-se inúteis, e a angústia do réu e a da vítima continuam por mais alguns anos, para eventual julgamento do órgão colegiado.
Estes são alguns exemplos da distorção entre teoria e prática do direito penal e do processo penal. Poderíamos citar aqui outras situações que fogem ao ideal de justiça e atingem os níveis da arbitrariedade, sem uma solução aparentemente visível. As desigualdades penais começam muito antes do processo ou do inquérito, surgem no momento em que o cidadão, antes do nascimento, encontra situações precárias de dignidade. Das filas dos hospitais públicos às escolas sem qualidade, da violência do cotidiano ao desemprego, o cidadão, muitas vezes, é refém da falência do Estado, que usa as leis penais de forma errada e injusta para tentar cobrir sua ineficácia.
Talvez estes problemas sejam o combustível para todos os envolvidos no IBCCRIM, que, na esperança de um Estado Democrático de Direito e de uma prática penal semelhante à teoria, continuam o árduo trabalho de levar o que há de melhor em ciências criminais no Brasil e no exterior. A Revista Liberdades é apenas mais uma contribuição ao trabalho desenvolvido desde 1992 e que desejamos perdurar por tempo indeterminado. Na esteira de toda esta reflexão, esperamos que esta edição seja apreciada por todos os interessados, dos estudantes aos profissionais mais experientes.
São Paulo, 15 de setembro de 2010.
João Paulo Orsini Martinelli
Coordenador-adjunto do Departamento de Internet do IBCCRIM
Notas
[1] Dados disponíveis em <http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm>.
“Excelente a entrevista com o Prof. Bernd Schünemann. O ilustre jurista demonstra a importância de um pensamento jus-filosófico para fundamentar o Direito Penal, não ficando este restrito a uma ‘hegemonia da atitude positivo-legalista’. Quanto ao terrorismo, vale ressaltar a exclusão do tema da esfera do Direito Penal.”
Armando Gallo Yahn Filho - Uberlândia/MG
“Parabenizo toda a coordenação da Revista Liberdades por nos brindar, ao longo de mais de um ano, com a melhor doutrina, não fugindo à regra do IBCCRIM. Faz jus ao nome a publicação. Excelente, na última edição, a entrevista feita pelo Prof. João Paulo O. Martinelli, auxiliado pelo Prof. Luis Greco, com o brilhante Prof. Bernd Schünemann.”
Brenno G. Cesca - São Paulo/SP
“A Revista Liberdades é mais um exemplo do arrojo e do espírito fomentador
de debates acerca das ciências penais no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Assim, só poderia parabenizar os idealizadores/realizadores de
projeto tão importante para o direito penal brasileiro.”
Luiz Gustavo Fernandes - São Paulo/SP
ESCREVA PARA NÓS!
revistaliberdades@ibccrim.org.br
É com grande satisfação que a Revista Liberdades publica, nesta edição, entrevista concedida pelo professor Ignacio Berdugo Gómez de la Torre, um dos grandes nomes do Direito Penal espanhol. O professor é Catedrático de Direito Penal da Universidade de Salamanca desde 1986 e foi reitor dessa tradicional Universidade por quase 10 anos. Ignacio Berdugo ostenta o título de “doutor honoris causa” por 10 universidades em todo o mundo, foi corresponsável pela elaboração do Projeto do Código Penal espanhol de 1992 e é autor de obras fundamentais como “Honor y libertad de expresión” e “El delito de lesiones”. A entrevista foi realizada pessoalmente pela Professora Doutora da Faculdade de Direito do Largo São Francisco Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, coordenadora-chefe da Revista Brasileira de Ciências Criminais e Presidente da Comissão Especial de História. A tradução foi feita pela Profª. Ana Elisa Bechara, com a colaboração de Camila Garcia da Silva e Yasmin Oliveira Mercadante Pestana, estagiárias do IBCCRIM.
IBCCRIM (Prof.ª Dr.ª Ana Elisa Bechara): O que levou o senhor ao Direito Penal?
IGNACIO BERDUGO (IB): Acredito que, no início da carreira, eu não era um típico estudante vocacionado de Direito. Escolhi Direito por exclusão. A opção era fazer letras ou história, matérias das quais eu realmente gostava. Direito era para mim desconhecido. Escolhi esse curso por exclusão, porque eu tampouco queria ser um professor de História, pois toda a vida planejei objetivos talvez mais ambiciosos. Também houve a influência familiar, principalmente da minha mãe, que me incentivou a estudar Direito, conforme, aliás, tinha feito meu avô, embora sem nunca ter exercido a profissão.
Comecei a fazer Direito e logo me apaixonei pelo curso. Claro que, como em qualquer outra área, havia matérias mais atrativas do que outras. E as matérias que mais me atraíam eram, sem dúvida, Direito Penal e Direito Comercial. Isto porque, nessas duas matérias, tive professores realmente muito bons, que sabiam transmitir seus conhecimentos e motivar os alunos. Nesse sentido, tive um grande professor de Direito Penal, Marino Barbero Santos, que atuou durante um contexto político complexo, como era a Espanha no final dos anos 70. Ele foi um professor que marcou nossa geração, principalmente a minha turma.
Bom, concluída a universidade, eu não sabia o que fazer. Naquele momento, um amigo de muito tempo, o qual se revelaria depois um companheiro no Direito Penal, Luis Arroyo Zapatero, me procurou, um dia, durante o serviço militar, que naquela época era obrigatório, e me perguntou o que eu iria fazer. Respondi que não tinha ainda nenhuma idéia, e, então, ele me contou que o Professor Marino Barbero estava procurando um bom aluno para trabalhar, e Luis Arroyo sabia que eu o era. Lembro-me, então, que fui conversar com o Professor Marino Barbero vestido de militar. E assim comecei a trabalhar.
O tema que o Professor Marino Barbero me orientou a trabalhar, inicialmente, em meu doutorado era, para mim, terrível naquele momento, pois eu não o entendia então, até porque nunca havia estado na América: o Código Penal Tipo Ibero-americano. No final, acabei desenvolvendo minha tese sobre outro tema, e não tive consciência, naquele momento, de como a referência Ibero-americana iria voltar a surgir, de maneira muito importante, em minha vida. Logo comecei a estudar e, em seguida, a dar aulas. E foi algo espetacular. Confesso que, em minha primeira aula, estava muito nervoso, diante de alunos dentre os quais muitos eram mais velhos do que eu. Lembro-me que, a fim de que eu perdesse a vergonha de falar em público, meu orientador designou como tema da primeira aula os delitos sexuais. Então, tive que falar sobre esse assunto a vários estudantes que olhavam aquele jovem professor assistente, a quem conheciam de fotografias em jornais como jogador de rugby. Isso foi o começo de uma longa história.
2) Para um curso que começou por exclusão, sua carreira cresceu muito rápido...
IB: Só no começo a opção por minha carreira foi por exclusão. Logo as coisas mudaram. Eu vivi em uma época de expansão na Espanha, em que a universidade apresentava oportunidades que agora já não há. Nesse contexto, a fim de aproveitar tais oportunidades, tinha-se que ir mais rápido do que hoje se entende razoável. De fato, fiz minha tese muito rapidamente, três anos depois de terminar a graduação (1976). No ano seguinte, conquistei, por meio de um concurso nacional, o cargo de professor adjunto – fui o professor titular mais jovem da Espanha naquele momento – e optei pela Universidade de Salamanca, a partir do conselho de Marino Barbero. Confesso que, até aquele momento, eu via Salamanca como uma pequena cidade, em razão de minha ignorância. Porém, quando se entra em Salamanca, logo se percebe que seu povo gira em torno da Universidade, e isso tem um valor que existe em poucas cidades e em poucas universidades. Justamente por isso Marino Barbero me dizia que Salamanca era, na verdade, uma Universidade que tinha cidade.
3) O sr. teve dificuldades na carreira, não só pelo contexto político, mas pelo fato de ser filho de um militar?
IB: Não. Nunca. Os conflitos que tinha com meu pai se davam por outras razões. De fato, historicamente na Espanha, ser o filho mais velho, como é meu caso, tem um significado especial. Eu sempre me pareci com meu pai em relação ao caráter, porém não quanto às idéias. Isso marcou uma relação de amor e discrepância. Porém, nunca ninguém de minha família me reprovou, ao contrário, pois todos sabiam e sabem quais são minhas idéias. Pessoalmente acredito que um professor deve expor ideologicamente suas posições diante dos alunos e da comunidade acadêmica. Deve-se ser coerente com suas opiniões. E essa coerência passa pelos trabalhos, escritos, aulas e ideologia. Nesse sentido, um professor deve ser honesto em suas reflexões, permitindo-se, inclusive, revê-las. Nada mais triste do que um aluno simplesmente assumir o que você diz porque foi você, o professor, que disse. O professor deve ensinar os alunos a pensar, a refletir criticamente, no âmbito jurídico, sobre suas idéias acerca do mundo, da sociedade e da ideologia política.
O fundamento da universidade está na força da razão, isto é, em saber expor suas idéias com argumentos. Política é o oposto da violência. A violência é a antítese do debate, da discussão política, da razão. Quando o único argumento existente é o “sim, porque sim”, a força das pistolas ou dos punhos, não vale a pena seguir, porque tais idéias não têm nenhuma força realmente, não têm nenhuma razão. Isto é o que o Direito deve ensinar. Claro que, em qualquer âmbito, essa reflexão também deve estar presente, mas no Direito ainda mais.
4) O sr. foi reitor de Salamanca por quase uma década. O que essa experiência acrescentou em sua carreira?
IB: Posso tratar dessa sob dois aspectos distintos. No âmbito pessoal, creio que o cargo mais alto que um acadêmico pode ambicionar na Espanha é ser reitor de Salamanca, em razão do significado dessa Universidade, que é a mãe das universidades espanholas e de muitas universidades ibero-americanas. Salamanca é uma referência histórica. Nesse sentido, é emocionante pensar que o cargo de reitor de Salamanca foi ocupado por pessoas e personagens que marcaram a história acadêmica e política da Espanha.
No âmbito profissional, de outro lado, qualquer reitor passa a projetar-se para outras áreas e matérias. Inegavelmente, é uma experiência única poder compartilhar, dialogar e conhecer as experiências de outras áreas, de outras faculdades, conhecer outras pessoas. Isso me enriqueceu muito e me fez ver algo que já sabia no plano teórico: a vida não acaba no Direito. Na experiência como reitor, tendo tanto contado com diferentes saberes, tomei consciência da limitação do nosso próprio saber. O saber do Direito é limitado. Quando você estuda somente Direito Penal, não consegue ser bom jurista. Apesar de um bom penalista, somente se tem conhecimento da parte de um todo maior. O mundo é constituído de mais coisas.
Por isso, tanto pelo aspecto acadêmico quanto pelo aspecto humano, a experiência como reitor da Universidade de Salamanca marcou minha vida.
5) E o retorno ao Direito Penal, após a experiência de reitor, como foi?
IB: Essa questão é complicada para qualquer reitor, em qualquer universidade, pois o cargo exige uma intensa dedicação. E o mundo acadêmico é bastante cruel nesse sentido. A volta é complexa porque, como reitor, você acaba substituindo a vida acadêmica pelo trabalho de gestão, com uma visão mais geral. Nesse período, acumula-se um capital de projetos, influências e conhecimento. Possui-se uma agenda atribulada. Tornamo-nos conhecidos em outras universidades e outros lugares. Enfim, começamos a participar de uma rede de influências. Quando acaba a gestão, é difícil se desvincular de todo esse capital pessoalmente acumulado. Tradicionalmente, volta-se a ser um professor, que ministra suas aulas e tem suas atividades acadêmicas normais. Todo o capital que se construiu, as relações e a projeção internacional são esquecidos ou se perdem. A vida é assim. Por isso, meu retorno ao Direito Penal foi humanamente duro. Honestamente, podemos afirmar que o poder embriaga. Isto me recorda o que se dizia aos generais romanos que chegavam à cidade de Roma, vitoriosos após as guerras: “a gloria é efêmera”.
Por outro lado, posso dizer que se sacrifica boa parte da vida acadêmica sendo reitor. Assim, não sei dizer se era melhor ou pior em Direito Penal antes de ser reitor. Mas, sem dúvida, poderia ter sido um melhor penalista se continuasse me dedicando somente à vida acadêmica. De outro lado, sei que ganhei outra experiência, outra bagagem, claro que muito positivas. De todo modo, posso afirmar que voltar ao Direito Penal, após quase uma década, foi muito atrativo. Várias pessoas me incentivaram a esse retorno, não no sentido de ser apenas um professor que repete suas anotações amareladas, mas sim de prestar novas contribuições.
6) O sr. formou um grupo de discípulos composto por grandes penalistas. O que pode dizer sobre isso?
IB: Posso dizer que dei muita sorte com os discípulos que tive. De outro lado, fiz, também, uma boa seleção. Sempre recordo de meus primeiros discípulos e como os selecionava. Fazia primeiro uma entrevista na qual sempre perguntava duas coisas: “Por que você gosta da Universidade? E o que está disposto a fazer pela Universidade?” Eu fazia, ainda, outra pergunta pessoal, que alguns podem me reprovar ou considerar inadequada: questionava a eles se estavam dispostos a ir para o exterior ou a mudar de cidade. Essa me parece uma pergunta fundamental, porque nunca se pode pensar o lugar em que se está como um destino final. Sempre e em tudo na vida há que se estabelecer desafios e objetivos. Caso contrário, não vale a pena viver. Sempre há que se melhorar. Eu mesmo me formei em Valladolid, fui depois para Madrid, em seguida estive em Colônia, na Alemanha, e, finalmente, cheguei a Salamanca.
É verdade que nem sempre os discípulos chegam aonde queremos, até porque há uma crueldade na vida acadêmica, que independe do professor e de seus discípulos. Aliás, os discípulos herdam não só os amigos, mas também os inimigos acadêmicos de seu mestre. Isso não é cientificamente defensável, mas é muito humano e, por vezes, gera dificuldades. Mas a vida é insistir, e insistir, a fim de que algo permaneça. Tive sorte de ter bons discípulos que chegaram a bons lugares. Porém, busquei, sobretudo, transmitir a todos eles o compromisso que eu mesmo sempre tive com a universidade e com a educação.
7) O sr. foi um dos redatores do Projeto do Código Penal em 1992. Como observa hoje a legislação penal espanhola?
IB: Há um debate importante. A primeira pergunta nesse sentido é quem elabora os códigos, os professores ou os políticos? A resposta é muito óbvia: quem está legitimado para fazê-lo são os políticos. É, porém, razoável que estes peçam conselhos a professores e profissionais do Direito para saber o que é mais adequado e correto. Esse é o contexto.
Pediram-me tais conselhos e para mim foi uma honra participar desse momento histórico. Trabalhei com total dedicação. Mas há um momento posterior, o dos retoques no Código, não no sentido político-criminal, já que todo código apresenta aspectos de política criminal, mas sim no sentido político mais negativo, correspondente a posições equivocadas a curto prazo, fundadas em pesquisas de opinião pública ou campanhas televisivas.
Sobre o Código Penal espanhol de 1995, posso dizer que politicamente é um código duro, severo. É também um código que já foi excessivamente reformado.
Sei que a vida neste final do século XX, início do século XXI, correu mais depressa do que o razoável em comparação ao que havia passado em décadas ou em séculos anteriores. Esse processo também se reflete no Direito e no Código Penal por meio de eventos políticos que marcaram a História, como a queda do Muro de Berlim, que pôs fim ao século XX de alguma maneira. Nesse sentido, tivemos também o atentado às Torres Gêmeas, nos Estados Unidos, e os próprios eventos ocorridos na Espanha. Isso repercutiu nos retoques ao Código Penal de 1995, muitos dos quais, em minha opinião, não são politicamente aceitáveis e indicam uma severidade gratuita. Tecnicamente, diria que isso é uma violação ao Direito Penal. Isso porque ainda creio nas bases do Direito Penal liberal, que garante o homem e seus direitos em um Estado de Direito. A partir da leitura que tenho, o Direito Penal deve compilar as garantias dos cidadãos delinquentes, mas que ainda assim devem ser considerados cidadãos.
Sobre esse tema, gosto muito de recordar uma menção que se atribui a Bertold Brecht, mas que, na verdade, é de Hartman, um pastor protestante que acabou preso em um campo de concentração, acerca dos nazistas e da ideia equivocada de que as normas severas não são para todos, mas apenas para um grupo de cidadãos. Ele dizia: “Vieram buscar os comunistas, e como eu não era comunista, não me importei. Vieram buscar os católicos, mas como não era católico, não me importei. Vieram buscar os sindicalistas, mas como não era sindicalista, não me importei. Finalmente vieram me buscar e eu já não tinha mais a quem pedir ajuda”.
Não é que seja assim hoje, mas esse é um caminho ou dinâmica muito perigosa em minha opinião, pois, uma vez suprimidas as garantias individuais, é muito difícil recuperá-las. De fato, o poder que aparentemente se fortalece dessa forma, ganhando mais competências e liberando-se da própria idéia da lei, é difícil de ser contido, no sentido de retorno à legalidade e à democracia.
8) Isso é uma crítica ao Direito Penal atual como um todo? Porque, de um lado, vemos, na Espanha, um Direito Penal muito ligado à Constituição, e, de outro, não só na Espanha, mas pelo mundo afora, tem-se hoje uma marcada preocupação com a eficiência, com o combate aos inimigos sociais, ao terrorismo e ao crime organizado. Isso tem levado também a construções normativistas bastante discutíveis.
IB: Sim, mas o grande problema do Direito Penal atual não é novo. Ele sempre existiu. O que muda são as repostas dadas. E a história demonstra que respostas excessivas inserem-se em momentos de crises brutais no Estado. Quando se criaram diferentes respostas pelos penalistas para os cidadãos perigosos, na verdade, se consideraram perigosos todos aqueles que discordavam do poder. E a história, às vezes, se repete dramaticamente. Isso é muito preocupante. Por isso, vários penalistas de minha geração têm uma grande preocupação voltada à consideração da Constituição como marco infranqueável do direito penal. Como estabelecia a Declaração dos Homens e dos Cidadãos (1789) em seu artigo 16, a existência de Constituição vincula-se à existência da separação de poderes e de direitos garantidos pelo Estado. Nesse sentido, a grande questão a ser respondida na atualidade é se devemos dar liberdade aos inimigos da liberdade. Ou, em outras palavras, se deve ter uma sociedade com riscos, mas com liberdade, ou se prefere a tranquilidade de uma sociedade sem riscos, mas sem liberdade. E parece-me que esse seja o verdadeiro risco: a perda da liberdade.
9) Hoje se percebe seu interesse especial pela América Latina de um modo geral. Por que esse interesse?
IB: Em nossas vidas há decisões importantes que são difíceis de explicar, tanto no âmbito profissional como no pessoal, nas quais se mesclam os motivos da razão e os do coração. Eu estive na América pela primeira vez em 1986, por motivos da razão e do coração. O motivo de minha viagem foi assessorar a defesa a presos políticos no Chile. Foi uma viagem muito complicada, porque se vivia a ditadura de Pinochet. Essa viagem me marcou profundamente, até em razão do compromisso que assumi, e em relação ao qual nunca tive dúvida, isto é, da necessidade ir ao Chile, de ver a realidade latino-americana e de transmitir as idéias e os valores que normalmente manifestava em minhas aulas. Desde então, volto todos os anos à América.
10) O que o sr. julga que foi sua maior contribuição ou realização no Direito Penal?
IB: Escrevi dois livros que, para mim, são especialmente importantes. O primeiro foi um estudo intitulado Delito de lesiones, que fiz durante minha estada na Universidade de Colônia, na Alemanha, e que traz minhas posições sobre várias questões fundamentais do Direito Penal, como a própria ideia do bem jurídico. O outro trabalho intitula-se Honor y libertad de expresión, com o qual conquistei a cátedra. Esse tema traz dificuldades políticas e dogmáticas, porque trabalha com dois níveis: constitucional e legislação ordinária. E uma das preocupações desse estudo foi justamente responder à questão de como os direitos constitucionais se projetam sobre o Código Penal e a legislação ordinária.
De outro lado, sou um apaixonado pela História. Isso porque, para entender os problemas, sempre penso que eles viajam em um túnel do tempo, e, ao ver suas raízes, é mais fácil encontrar as respectivas soluções. Muitos dos posicionamentos e ideias políticas atuais são, na verdade, repetição ou atualização de velhas ideias, que se originaram em questões e determinações políticas, éticas. Nesse sentido, há um artigo que publiquei há anos atrás, e que me agrada particularmente, sobre o bicentenário da Revolução Francesa, em que estudei Beccaria e um momento histórico apaixonante.
11) Quais são suas ambições hoje no Direito Penal? Depois de tanta coisa, o que ainda falta fazer?
IB: Tenho uma ambição muito concreta e estou trabalhando nesse momento sobre ela. Não sei quanto tempo levará para atingi-la, mas, tentar buscá-la já é, para mim, um prêmio. Estou escrevendo um livro dirigido a estudantes que pela primeira vez tomam contato com o Direito Penal. Não é um manual, até porque já escrevi livros com esse tipo de conteúdo. Na verdade, esse livro representa um desafio, porque nós, juristas, costumamos a nos proteger por meio de uma linguagem complexa, só para iniciados, e, às vezes, pensamos que quanto mais obscuro escrevemos, melhores penalistas somos. Isso é, para mim, um equívoco. O fundamental é ter clareza e simplicidade na transmissão das idéias. Esse é o meu desafio. Se conseguir concretizá-lo, isso será para mim um prêmio importante.
12) Além do Direito Penal, quais são seus objetos de interesse, seus hobbies?
IB: Sempre gostei muito de ler. Sou um leitor compulsivo, leio tudo. Gosto de ler romances, inclusive os policiais, muito interessantes para a formação profissional vinculada ao Direito Penal.
Por exemplo, agora que venho bastante ao Brasil, gosto de ler a História deste país, justamente para que eu saiba onde estou e com quem estou. Mas digamos que esse é um hobby de uma pessoa já madura.
Na época em que estudava Direito em Valladolid, eu era o capitão da equipe de rugby da Universidade, e também joguei na equipe nacional. Há esportes que nos ensinam valores importantes para toda a vida, não apenas em relação a nossos companheiros de equipe, mas também em relação aos rivais, com quem sempre convivemos bem depois das partidas. Essa experiência cria algo importante: saber ganhar e perder. E claro que perder é também uma experiência importante – mesmo que eu nunca tenha gostado de perder. Apesar de uma derrota, a vida segue. Esse é meu modo de ver a vida, a partir de seus desafios e de seus próprios objetivos, e isso me levou a enfrentar dificuldades e a conquistar muitas coisas em minha carreira.
13) Como o senhor avaliaria o desenvolvimento do Direito Penal no Brasil e que mensagem o sr. deixaria a um estudante de Direito Penal?
IB: Eu não tenho elementos suficientes para saber detalhadamente sobre o conteúdo do Direito Penal no Brasil e sobre os próprios problemas brasileiros.
Em primeiro lugar, poderia dizer que o Brasil tem uma grande vantagem. Os brasileiros são conscientes de que vivem em um grande país. E o Brasil não é só um país do futuro, como algum escritor apontava nos anos 40. O Brasil é o presente, de forma muito potente, e tem um futuro muito desafiador. Isso é bastante positivo.
De outro lado, a grande dimensão do país logicamente o afeta. O Brasil é um país continental e pode ser hoje considerado a locomotiva da América Latina. Além das dificuldades advindas da falta de homogeneidade social, política e cultural, há um grande desafio, no âmbito da universidade, que é a internacionalização, que se deve assumir.
Também poderia ressaltar, não só em relação ao Brasil, mas na América Latina em geral, as diferenças entre as leis e sua aplicação prática. E isso não decorre da falta de bons códigos. Aliás, sempre me recordo que o Código Penal Espanhol de 1848 foi diretamente influenciado pelo Código Criminal do Império brasileiro, de 1830, justamente em razão de seu alto nível técnico. Nesse sentido, destaco também a importância das universidades brasileiras como a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, e a Faculdade de Direito de Olinda, com seus quase 200 anos, que são mais antigas que várias faculdades espanholas. Isso é, sem dúvida, uma carta de apresentação. No Brasil, sempre houve uma boa produção jurídico-penal.
Porém, há problemas práticos relacionados à aplicação das leis, como, por exemplo, a situação do sistema penitenciário brasileiro em geral, com graves violações de direitos fundamentais. E, sobre isso, posso dizer que sempre houve no mundo jurídico um descompasso entre as normas e sua aplicação. Tratando especificamente da realidade colombiana, lembro-me de uma frase de Victor Hugo, sobre a necessidade de se respeitar países latino-americanos: “a Constituição Colombiana, [nos anos em que ele viveu] parecia escrita para os anjos e que, por isso, não se aplicava aos homens.” Isso é, de fato, um problema, não só no Brasil, claro.
Enfim, apesar das desigualdades que marcam o Brasil, sei que no país há bons juristas e boas faculdades de Direito. Aliás, há a melhor universidade da América Latina: a Universidade de São Paulo, melhor, conforme o ranking internacional, que qualquer universidade espanhola. Portanto, acredito que tenhamos que seguir no enfrentamento dessas questões com paixão, e isso sempre me motiva a voltar ao Brasil e a colaborar com os colegas e universidades brasileiros.
* * *
Sumário:
I. Introdução; II. Fundamentos jurídicos da Medida de Internação; III. Medida de Internação e Ideologia; IV. Labelling Approach; V. Criminologia Crítica; VI. Teoria Clínica; VII. Considerações Psicológicas sobre a Adolescência; VIII. Considerações Críticas sobre a Medida de Internação; IX. Proposta; Bibliografia
Resumo:
Pretende-se, a partir do estudo do fundamento jurídico e das teorias das penas, entender as motivações explícitas e implícitas da aplicação de medida sócio-educativa de internação a adolescentes acusados de praticar ato infracional, ao incluir a questão da ideologia em sua análise. Para isso buscam-se elementos na Teoria do Labelling Approach, na Teoria Crítica e no Conceito Crítico de Criminologia Clínica, somados aos elementos da Psicanálise, da Psicologia desenvolvimentista e da Psicologia sócio-histórica, para que possam auxiliar na reflexão do que ocorre antes da aplicação da medida de internação e verificar quais os efeitos de sua aplicação nos adolescentes que a elas são submetidos. Por se tratar de um tema complexo, que não encontra unanimidade em suas análises, recorre-se, no presente, a diferentes visões da problemática.
Palavras-chave:
Direito Penal Juvenil; Medida sócioeducativa; Internação; Criminologia; Adolescente em conflito com a lei; Fundação Casa.
I. Introdução
Esse artigo tem por objetivo principal analisar, de um modo interdisciplinar e crítico, as medidas de internação enquanto norma jurídica e realidade concreta.
A norma escrita (letra da lei) e sua aplicação, a vontade e a ideologia do legislador e, a atuação no mundo do ser dessa mesma legislação são momentos diferentes, porém inseparáveis. O Direito tem que ser considerado como um todo que engloba desde o instante da criação das normas (legislativo) até o ponto em que produz alterações realmente no mundo fático (aplicação), quando deixa de ser uma norma geral e abstrata para influir diretamente, e definitivamente, na vida dos indivíduos. “Por isso, a análise do sistema penal e da marginalização social a ele ligada não pode ser feita, sob o aspecto jurídico, se o trabalho do jurista se limita ao universo da norma, excluindo-se o conhecimento da eficácia e da aplicação concreta da norma”[2].
A intenção deste trabalho é a compreensão das medidas de internação sob dois ângulos: antes de sua aplicação e durante sua execução. Ou seja, busca-se discutir, sob um enfoque crítico, incluindo concepções jurídicas, criminológicas e psicológicas, as motivações das medidas de internação e seus efeitos reais na vida dos adolescentes.
II. Fundamentos jurídicos da Medida de Internação
A medida de internação é uma das medidas sócio-educativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA inaugurou a etapa chamada garantista, sendo regido pelo princípio da proteção integral. Os antigos Códigos de Menores correspondem à etapa anterior, denominada de etapa tutelar, que encontrava respaldo na doutrina da situação irregular.
A modificação na forma de enfrentar as questões da infância e juventude resultou na formulação da Lei 8.069/1990, elaborada em perfeita consonância com a orientação jurídica internacional, que positivou determinados valores na Convenção dos Direitos das Crianças.
A principal diferença entre a visão garantista e a visão tutelar é a posição que os adolescentes ocupam nas relações com os demais sujeitos sociais, tanto com a família, com o Estado e com a própria sociedade. Isso significa dizer que passam a poder exigir o cumprimento de seus direitos, não mais se subordinando a todos. Transformam-se em sujeitos de direitos e deixam de ser considerados objetos de tutela. Não é diferente na relação com o Poder Judiciário. Anteriormente, o juiz era tido como um pai, que era incumbido de dizer o que era o melhor para o jovem, sem a concretização dos princípios constitucionais processuais, como o contraditório e o devido processo legal.
A atual etapa é tida como garantista exatamente por assegurar a existência das garantias processuais que os adultos gozam. Assim, o adolescente passa a atuar de fato, a ter voz ativa e não mais ser objeto de uma relação paternalista com o Estado. Passa a ser considerado sujeito propriamente dito, ou seja, passa a contar com um rol de direitos e obrigações.
Além disso, a expressão “situação irregular”, que era o conceito fundamental para a compreensão do regime anterior, passa a não fazer mais sentido na atual concepção, tendo deixado, inclusive, de constar da Lei. Jovens em situação irregular eram aqueles marginalizados pela sociedade, pobres, abandonados, delinquentes etc. Ao adotar expressamente a terminologia “crianças e adolescentes”, ao invés de “menores em situação irregular” o ECA pretende se distanciar destes preconceitos que estavam arraigados na mentalidade social, e de fato, teoricamente, é bem sucedido. Todavia, concluímos, ao final deste trabalho, que o estereótipo fático da “situação irregular”, trazido pelos Códigos de Menores, não deixou de existir na prática.
O foco, na legislação de menores, era a periculosidade e por essa razão havia a previsão da aplicação de medidas pré-delituais e pós-delituais. A mera probabilidade de ocorrência do delito já era, por si só, suficiente para a imposição de medidas ao adolescente. Tudo isso era justificado pela necessidade social e até mesmo moral de se proteger o menor-delinquente-abandonado.
Na vigência do Código de Menores e, portanto sob o manto da situação irregular, pode-se dizer que as medidas pré-delituais pouco se diferenciavam das pós-delituais, uma vez que o critério para sua definição era a investigação biopsicossocial da criança ou do adolescente. Funcionavam ainda como uma premonição: uma criança institucionalizada tinha grandes chances de tornar-se um adolescente infrator, e, posteriormente, um adulto criminoso[3].
O Estatuto da Criança e do Adolescente mantém certa semelhança com a antiga legislação nesse ponto. Também prevê atuações anteriores à prática delitiva, porém, de maneira diferente. Pretende atuar preventivamente ao cometimento do ato infracional, contudo, não por meio da exclusão desses adolescentes, mas por meio de políticas públicas gerais que, por meio da promoção e garantia de seus direitos, buscam evitar que delitos venham a ser cometidos: são as chamadas prevenções primárias e secundárias.
Encontramos as políticas básicas como prevenção primária e as políticas de proteção especial como prevenção secundária. As medidas de internação são a última alternativa do Poder Público para coibir determinadas práticas – ações ou omissões típicas, antijurídicas e culpáveis – praticadas por pessoas com idade entre 12 e 18 anos.
Nesse sentido, pode-se falar em três tipos de prevenção: primária, secundária e terciária. A prevenção primária é aquela que se dirige a toda comunidade, independentemente se seus membros estão em uma faixa de risco maior ou menor de delinquir. A intenção é evitar o cometimento de delitos em geral e de promover o bem-estar de toda população. Um exemplo seria a construção de escolas em áreas carentes nesse setor[4]. Não se faz distinção entre aqueles que tenham cometido delitos e os que não tenham, e sim busca-se desmantelar ambientes favoráveis ao aparecimento de condutas delitivas.
A prevenção secundária destina-se a grupos que tenham maior risco de delinquir, que apresentem atitudes desviantes. Pode-se citar, como exemplo, o projeto que levou crianças que já haviam cometido delitos, porém que não tinham se envolvido com a justiça criminal, para visitar penitenciárias e conversar com presos[5].
Já a prevenção terciária, na realidade, busca prevenir a reincidência daqueles que já delinquiram. Essa espécie de prevenção está presente no campo das execuções penais, e inclui, entre outras medidas socioeducativas, a medida de internação. As atuações nessa área são geralmente mais caras e também menos eficientes do que as demais formas de prevenção[6].
A medida de internação é espécie da qual a medida sócio-educativa é gênero. As demais espécies descritas no ECA são: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional[7]. Essas medidas integram a chamada prevenção terciária.
Os outros mandamentos legais existentes no ECA se prestam a evitar que seja necessária a imposição da medida de internação. Compete ao juiz da Vara da Infância e da Juventude a aplicação das medidas sócio-educativas, mas o Promotor de Justiça pode aplicar diretamente as medidas de advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, ou qualquer medida protetiva descrita no art. 101 do Estatuto[8].
Nota-se uma gradação na restrição da liberdade imposta. A semiliberdade é a medida intermediária entre o meio aberto e a privação total de liberdade, é uma forma de privação de liberdade, mas que permite a realização de algumas atividades externas à instituição responsável pelo cumprimento da medida.
O adolescente fica privado do convívio familiar e de sua comunidade, mas realiza atividades pedagógicas e/ou profissionalizantes em meio aberto, de forma a conviver com outras pessoas que não estão cumprindo medida sócio-educativa. O que é benéfico ao adolescente por não restringir por completo seu direito de ir e vir e por não privá-lo do contato com a sociedade de forma a dilacerar seus vínculos com esta. Dessa forma, o caráter pedagógico se faz mais intenso.
Contudo, não é demais afirmar que a aplicação de medida sócio-educativa é uma questão de política criminal, uma vez que as condutas nas quais se pode aplicar tal medida sócio-educativa são as mesmas tipificadas no Código Penal, mas a escolha pela aplicação de medida sócio-educativa em vez de pena de reclusão ou detenção é uma escolha que se fundamenta na condição de desenvolvimento psicológico em razão da idade dos autores. Não ocorre, de forma alguma, a opção pela não penalização, mas pela penalização de maneira diferenciada, o que não significa dizer mais branda.
É válido destacar que é necessária a ocorrência de todos os requisitos exigidos pela lei para a penalização do adulto para o adolescente ser responsabilizado. O adolescente não pode ser punido naquilo em que o adulto não seria. Decorre daí a presença do princípio da legalidade também existente no Direito Penal Juvenil[9], pois o adolescente só poderá ser responsabilizado por uma conduta tipificada antes da prática delitiva.
Além disso, o nexo de causalidade entre a ação ou omissão praticada pelo adolescente e o resultado reprovável obtido devem estar comprovados para ensejar a aplicação de qualquer medida sócio-educativa. O bem jurídico necessariamente tem que ter sido lesado – ou ter sido exposto a perigo de lesão – dolosamente pelo autor do fato ou, em casos excepcionais previstos em lei, ao menos culposamente.
Mas, para a medida de internação ser aplicada, não é suficiente que o ato infracional tenha sido praticado: é fundamental que não exista medida sócio-educativa mais apropriada para o caso concreto, para alcançar a reeducação e a ressocialização do adolescente, levando sempre em consideração suas características individuais. O art. 100, caput, do ECA dispõe explicitamente sobre esse ponto, in verbis: “Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários”.
Vê-se daí que a intenção do legislador, ao prever medidas de internação, é que estas sejam aplicadas em ultima ratio, por reconhecer que a privação de liberdade, em especial na fase de desenvolvimento intensa que vive um adolescente, pode provocar cicatrizes, até mesmo irreparáveis, na formação da identidade e nas relações sociais que o jovem estabelece. Pode, inclusive, gerar exatamente o oposto do almejado, ou seja, a perda de vínculos com a família e com a comunidade ou até mesmo com a escola. E isso, certamente, não está de acordo com os interesses da sociedade. A sócio-educação é também uma forma de defesa social, ou seja, é um meio de prevenir a reincidência e de alcançar o caráter de prevenção especial.
O art. 122 do ECA estabelece condições que devem estar presentes para a medida de internação ser aplicada. Contudo, não basta que alguma das condições esteja presente no caso concreto, é necessário que se faça a análise de qual medida é a mais adequada à singularidade daquele jovem.
A medida de internação só poderá ser aplicada se o ato for praticado mediante grave ameaça, em caso de reincidência em crimes graves ou em caso de descumprimento de medida imposta anteriormente[10]. “Relaciona-se a medida diretamente com a dignidade do bem jurídico penalmente tutelado na primeira hipótese, e com a defesa da convivência social pacífica na segunda”[11]. Sendo assim, a aplicação da medida de internação não está vinculada diretamente ao delito praticado, e sim às circunstâncias acima expostas.
O parágrafo 2º desse mesmo artigo expressamente determina que a medida de internação seja a última medida a ser aplicada, não podendo ser aplicada nos casos em que outra se fizer adequada. Dessa forma, mesmo nos casos em que estiverem presentes alguma das condições descritas nos incisos I, II ou III para a aplicação de medida de internação, esta aplicação não se dará de modo automático, ao contrário, deverá ser aplicada apenas em último caso.
A medida de internação está disciplinada no art. 121, caput, do ECA[12] e é condicionada a três princípios fundamentais, quais sejam: brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
O princípio da excepcionalidade se verifica no momento da imposição da medida, pelo juiz competente, ao escolher a medida mais adequada ao caso concreto e considerar, sempre, a internação como última opção, por ser a mais gravosa. A brevidade se verifica na fase da execução da medida propriamente dita: o interesse é que a medida de internação seja cumprida durante o menor tempo necessário ao alcance de seus objetivos. O respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento deve ser observado em todos os momentos, desde a audiência em que se procede a oitiva informal pelo Ministério Público – o qual pode, nesse momento, propor a remissão – até o momento da individualização da medida, de modo que as condições subjetivas de cada jovem sejam levadas em consideração no desenrolar do cumprimento desta.
O art. 121 do ECA, em seus parágrafos, dispõe, ainda, sobre as condições e características das medidas de internação. Em seu parágrafo 2º está previsto que não há prazo determinado para o cumprimento da medida e que a sua necessidade deve ser avaliada periodicamente. Essa é uma característica que diferencia a pena aplicada aos adultos em relação à medida aplicada aos adolescentes, pois, quando da sentença condenatória para um adulto, o juiz, obrigatoriamente, determina a duração da pena privativa de liberdade de acordo com os patamares mínimo e máximo previstos em Lei. No caso de adolescentes em conflito com a lei, contudo, a situação é diversa.
O conteúdo punitivo está claramente presente nos dois institutos: pena e medida sócio-educativa. Todavia, a razão de não se ter determinado em sentença a duração da medida de internação torna evidente a intenção de que a prevenção especial se concretize a partir do alcance de condições subjetivas que podem ser atingidas a partir das atividades pedagógicas e de lazer desenvolvidas na instituição, o que vale dizer que o processo sócio-educativo deve ser capaz de auxiliar o adolescente a alcançar essas condições objetivas.
E, considerando que cada adolescente é sujeito único e distinto, cada um terá desenvolvimento próprio e também único, avaliável periodicamente pelos técnicos responsáveis e, sobretudo, pela autoridade judiciária, que deverá decidir sobre a necessidade ou não de manutenção da medida de internação[13].
Nesse ponto, fica destacado o fato de que, no Direito Penal Juvenil, a principal finalidade da aplicação da medida de internação é a preventiva especial, ou seja, a tentativa de evitar a reincidência, a vulnerabilidade do adolescente e a marginalização secundária. E, isso se justifica exatamente no já comentado parágrafo 2° do art. 121 do ECA, que não fixa prazo para o cumprimento da medida, de modo a vinculá-la não à gravidade da infração, e sim ao desenvolvimento do adolescente durante o cumprimento da medida sócio-educativa. “A própria verificação das necessidades pedagógicas do adolescente (arts. 100/113 do ECA) como uma das diretrizes mestras de definição do regime adequado prestigia o entendimento de que o foco é mais no autor do que no crime propriamente dito”[14]. Para que isso seja efetivo, deve-se seguir um plano individualizado de medida. Deve-se, no entanto, tomar cuidado para que o Direito Penal do autor não passe a vigorar no Direito Penal Juvenil.
III. Medida de Internação e Ideologia
A ideologia, de acordo com a concepção marxista, tem a função de ocultar diferenças e mostrar que a sociedade é homogênea, indivisa, na qual o bem de um é, também, o bem de todos. Porém, a sociedade moderna é heterogênea e a ideologia, portanto, acaba por escamotear a realidade, criando uma imagem que não corresponde a realidade, escondendo os reais problemas e contradições sociais[15].
Para tal, trabalha com conceitos gerais, genéricos, tais como nação, família etc., não tratando as pessoas individualmente. A primeira manifestação clara da ideologia é o próprio conceito de Estado, que, na verdade, foi criado e é mantido pelas classes dominantes para servi-las, mas aparece, por força da ideologia, como representação da sociedade como um todo.
A função principal da ideologia é fazer com que pareça natural aos indivíduos que cada um exerça determinado papel na sociedade, justificando, assim, as diferenças sociais como algo natural e próprio daquela sociedade, algo que não deve ser discutido e que não pode ser mudado. Contudo, a realidade que está por detrás da ideologia é outra: é aquela em que uma classe dominante se esforça em manter-se dominante, mesmo que para isso tenha que usar de ferramentas capazes de gerar atrocidades, como é o caso da marginalização.
Nesse contexto, o Estado é uma organização política que atende aos interesses da classe dominante, que se utiliza da ideologia com o objetivo de manter o status quo e a sociedade coesa e de regulamentar e organizar o uso da força. “Esta força está alicerçada, por sua vez, em uma ordem coercitiva, tipificada pela incidência jurídica”[16]. Paradoxalmente, a legitimação do uso da força se dá por meio da validade que o direito lhe confere e é o próprio Estado responsável por estruturar o modelo jurídico e ser a fonte criadora do Direito[17].
O Direito, em sua acepção dogmática, também é uma forma de ideologia, pois também se presta à ocultação. Isso porque é a expressão da vontade de uma minoria, ou seja, da classe dominante, que se sobrepõe às demais vontades daquela sociedade. Mas isso se dá de uma forma muito sutil, de modo que o direito recebe uma roupagem de ser um sistema justo, universal e inquestionável. Contudo, ignora as diferenças nas relações sociais.
O Direito Penal é o ramo do Direito que pretende proteger bens jurídicos gerais e de segurança pública, na medida em que se propõe a reduzir a criminalidade, por meio das funções da pena. Exatamente por lidar com questões pungentes da sociedade, como a criminalidade, o criminoso, o bem, o mal, o medo, a insegurança, o Direito Penal ganha um espaço muito grande e uma capa protetora legitimadora, já que justifica sua existência pela necessidade de se alcançar a segurança social.
Dessa maneira pode ocultar suas reais intenções, pois é como se a sociedade tivesse entregado ao Sistema de Justiça Criminal um cheque em branco em nome de sua segurança. “Neste aspecto, o primado está no princípio da neutralidade estatal e na sua função histórica do agente de bem comum e de distribuidor da justiça”[18]. Como já vimos, a própria neutralidade estatal é uma construção ideológica.
A medida sócio-educativa de internação não está fora dessa lógica. Ela faz parte do aparato estatal, do Direito Penal, e, por essa razão, também atua ideologicamente para ocultar as reais intenções do Sistema de Justiça Criminal. Com o compromisso de buscar a segurança social e de, inclusive, proteger os adolescentes em conflito com a lei, acaba por ter legitimidade, mas, na realidade, sua intenção verdadeira não é essa.
De acordo com o raciocínio apresentado acima, a intenção escondida é de selecionar quais dos adolescentes que estão em conflito com a lei serão segregados e excluídos da sociedade por determinado período de tempo. Com a camuflagem de se considerar a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, opta-se por privar esses jovens de liberdade, perpetuando a lógica perversa capitalista da exclusão social. Antes de serem submetidos a alguma medida de internação, os adolescentes passam por um filtro. A maioria dos delitos não chega ao conhecimento da justiça, outros, por sua vez, são considerados aptos a receberem remissão. Essa duas situações impedem que os adolescentes sejam submetidos a qualquer medida sócio-educativa.
Sendo assim, pode-se perceber o papel da ideologia nesse processo de seleção daqueles que serão internados e daqueles que serão submetidos a outras medidas, como prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida ou advertência. Porém, não é apenas o instituto jurídico da medida de internação que está a serviço da ideologia, mas também as próprias instituições destinadas ao cumprimento dessas sanções. “A instituição reproduz as relações de poder na organização em todas as suas instâncias, desde o nível funcional até as relações pessoais. É esse, basicamente, o caso da Febem [hoje, Fundação Casa], determinando as relações com o adolescente e, portanto, influindo em seu processo de identificação”[19].
IV.Labelling Approach
Esta teoria criminológica surgiu na década de 1960, nos Estados Unidos, em meio a um ambiente extremamente contestador dos valores do american way of life.
Parte da premissa de que o crime é uma categoria mutável e que o fenômeno da criminalidade é natural. Esta teoria se preocupa em compreender as reações das instâncias oficiais de controle, considerando que tais instâncias desempenham um papel constitutivo da criminalidade. Segundo Alessandro Baratta, a teoria do Labelling Approach entende que
o status social de delinqüente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinqüência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias[20].
Nesse sentido prossegue o autor: “Em determinado sentido, o comportamento é indiferente em relação às reações possíveis, na medida em que é a interpretação que decide o que é qualificado desviante e o que não o é”[21]. Por não existir uma definição natural e imutável do que é um comportamento criminoso, as discussões a respeito das causas da criminalidade se transformam em indagações sobre as causas da criminalização, tanto no que diz respeito à criação de normas quanto no que se refere à aplicação destas.
Segundo essa teoria, para que uma pessoa seja rotulada como criminosa basta que tenha tido contato com a justiça penal uma única vez. Todo o estigma que essa pessoa carregará girará em torno deste fato. Isso porque, entre outros fatores, as instituições em que as penas são cumpridas acabam por estimular essa estigmatização e a incutir no indivíduo apenado os valores de um verdadeiro criminoso, criando assim, o fenômeno chamado de “prisionização”. O que ocorre com muito mais intensidade nas “instituições totais” de que nos fala Goffman[22].
Conclui-se, portanto, que as instituições que, pretensamente, objetivam alterar o comportamento desviante, na realidade, operam de forma diretamente inversa, perpetuando-o. Nesse ponto se insere a discussão acerca da chamada desviação primária e desviação secundária.
Shecaira muito bem sintetiza essa noção dizendo que a desviação primária é aquela que diz respeito diretamente à estrutura psíquica das pessoas, tendo como fatores de influência as questões sociais, culturais, econômicas e raciais. Já a desviação secundária diz respeito a uma classe de pessoas que passam a ter problemas em função da reação que a sociedade tem contra a própria desviação, em função do rótulo que recebem, e por essa razão passam a agir e a incorporar aquela identidade desviada[23].
É exatamente nesse ponto que reside a grande questão: como quebrar esse ciclo? Uma das propostas trazidas por essa teoria, e posteriormente mais elaborada, é a chamada diversion, que consiste em, basicamente, diversificar as instâncias de controle, tentando solucionar os conflitos longe da justiça criminal tal qual conhecemos hoje, como é a sugestão da justiça restaurativa, que começa a ser aplicada no Brasil.
Outra solução proposta é a eliminação dos registros criminais daquele que já cumpriu sua pena, para assim, facilitar sua reinserção social. Além dessas, propõe-se uma abertura do cárcere para a sociedade livre, de modo a estabelecer um diálogo efetivo entre esses indivíduos, para que se possa, então, pensar em reintegração. Em suma, trata-se da “política dos quatro Ds”: Descriminalização, Diversion, Devido Processo Legal e Desinstitucionalização.
V. Criminologia Crítica
Esta teoria surgiu, na década de 1970, concomitantemente nos Estados Unidos e na Inglaterra. Com o desenrolar do tempo e com o amadurecimento dessas ideias, passaram a ser identificadas três vertentes distintas: neo-realismo de esquerda, minimalismo penal e abolicionismo penal. Contudo, essas três correntes têm em comum uma visão, grosso modo, marxista da história e, consequentemente, do problema da criminalidade[24].
De acordo com essa teoria, a tensão originada pela luta de classes é a gênese da criminalidade e da dupla seletividade do sistema penal, o qual, em primeiro lugar, busca criminalizar aqueles de classes sociais inferiores tipificando
as suas condutas cotidianas, e em segundo lugar, a seleção daqueles que serão estigmatizados, dentre todos aqueles que praticaram uma ação criminalizada.
O neo-realismo de esquerda se contrapõe ao movimento conhecido como Lei e Ordem (Law and Order Moviment), que, nos anos 1980, foi muito forte tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, defendendo o aumento da repressão contra a criminalidade e contra as minorias étnicas. Para os neo-realistas de esquerda, tanto as causas dos delitos quanto as vítimas devem ser o centro
dos estudos.
Shecaira entende que dentro da visão socialista, os neo-realistas de esquerda compreendem o fenômeno da criminalidade não tendo só a pobreza como principal fator, mas considerando as demais características incentivadas pelo sistema capitalista como causas importantes, tais como o individualismo, o consumismo, a competição e os preconceitos[25].
E, no que diz respeito às vítimas, entendem que o medo de ser vítima sentido por aquelas pessoas das classes mais baixas, os operários, gera uma desorganização de classe muito maior do que nas classes mais abastadas. Por essa razão, acaba por levar a uma divisão dentro da própria classe baixa, o que acarreta uma falsa imagem do problema, pois passam a brigar entre si e acabam desviando o foco da luta contra o sistema capitalista.
O minimalismo penal surge na Europa meridional e tem como principal expoente Luigi Ferrajoli. Seu objetivo principal é a redução do Direito Penal o quanto antes. Na realidade, essa teoria é um aprofundamento de uma questão já defendida pela Teoria do Labelling Approach, que visava à prudente não intervenção, tendo como argumento base o fato de que a aplicação de penas privativas de liberdade e todas as consequências originadas por essas são mais gravosas dos que os benefícios trazidos, além de, muitas vezes, não solucionarem verdadeiramente o conflito, apenas disfarçando-o.
O abolicionismo penal passa a existir como pensamento acadêmico no Congresso Mundial de Criminologia, de 1973, em Viena. Tal teoria possui correntes distintas, mas que concordam em seus pressupostos básicos de que o sistema penal serve como uma forma de controle das classes dominantes com o objetivo de impor um modo de vida, legitimando e reproduzindo as desigualdades sociais, perpetuando, em última instância, suas injustiças.
Propõe a solução das situações-problema[26] de forma mais imediata, incluindo no processo os agentes envolvidos no evento, de maneira mais singular, sem excluir a atuação dos juízes, promotores, policiais etc., apenas alterando a forma de atuação, não hierarquizando as relações e prevendo diversas soluções-percurso para cada situação-problema, de modo que o resultado surja dos diálogos.
Ademais, consideram a pena de prisão ilegítima, pois na realidade é uma violência, uma coação brutal, que não prevê qualquer diálogo ou acordo entre as partes, e que, ainda por cima, não atinge seus objetivos, ao não evitar a reincidência e não intimidar o agente, visto que as causas da criminalidade estão muito mais associadas a problemas sócio-econômicos do que à falta de intimidação imposta pelo sistema penal aos cidadãos, sendo ilógico que o mal deva ser recompensado com um mal de igual ou maior proporção.
Nesse sentido, Edson Passetti afirma que “a abolição do castigo é a valoração de novos costumes, como resposta-percurso para situações-problema. Não é apenas um efeito ou derivação do Direito Penal. Sua existência é o reconhecimento que nossa cultura se funda numa sociabilidade autoritária (...)”[27].
Por esses motivos, as alternativas às penas impostas pelo Direito Penal são as principais propostas desses estudiosos, que não pregam o fim do sistema de retribuição ou reparação dos danos causados. Ao contrário, os abolicionistas propõem modelos mais efetivos, que realmente possam alcançar esses objetivos, sem, inclusive, aplicar a pena de prisão que, em última instância, acaba por manter-se na lógica da violência, sem alterar o paradigma atual, legitimando a submissão e a exclusão.
as chamadas penas alternativas – penas outras que não a prisão, restritivas e não privativas da liberdade [surgem], não como reais substitutivos da prisão, no sentido de uma amenização de seus sofrimentos, de uma humanização da pena, mas sim como um meio paralelo de ampliação do poder do Estado de punir[28].
De acordo com a autora, as propostas ao modelo atual de repressão que se convencionou chamar de penas alternativas apenas ampliam o alcance do Estado e não alteram a lógica ilegítima de coerção penal existente. Deve-se, então, pensar em soluções desvinculadas desta.
Contudo, os autores que defendem esta teoria entendem que a abolição penal não é possível de ser implementada hoje e muito menos de uma maneira abrupta e imposta de modo coercitivo. Ao contrário, deve ser algo construído pela sociedade, de acordo com sua mentalidade e seus valores, para serem aceitas socialmente outras formas de resolução dos problemas da criminalidade, sem a imposição de mais violência. Acreditam que a mídia pode auxiliar a acelerar esse processo de transformação social.
VI. Teoria Clínica
Tal teoria, que tem como data de nascimento o 1º Congresso Internacional de Criminologia Clínica no início dos anos 1950, engloba, na realidade, três modelos: clínico tradicional (médico-psicológico), clínico moderno (psicossociológico) e clínico crítico.
A Criminologia clínica inclui, em sua compreensão sobre o crime, as questões individuais que motivaram a pessoa a cometer aquele delito específico. Os conceitos tradicional e moderno dão especial atenção ao indivíduo e suas peculiaridades.
Em linhas gerais, podemos dizer que o conceito tradicional de Criminologia Clínica adota uma postura médico-psicológica, na qual o foco está no indivíduo, no seu corpo e na sua personalidade, se preocupando, especialmente, em fazer diagnósticos e prognósticos em busca do tratamento adequado. Já o conceito moderno adota a postura psicossociológica, ao incluir os fatores sociais na compreensão do fenômeno do crime, com uma importância igual a assumida pelos fatores individuais, deslocando assim, o foco para o indivíduo inserido em seu contexto social, com o intuito de alcançar a sua ressocialização[29].
O conceito crítico, diferentemente do tradicional e do moderno, se preocupa com o processo de deteriorização social e psíquica do indivíduo, utilizando-se de noções das escolas criminológicas abordadas anteriormente, Teoria Crítica e Labelling Approach, no que tange, essencialmente, às noções de estigmatização e de seletividade do sistema penal.
Embora esta teoria guarde semelhanças com as demais teorias explanadas acima, seu foco principal encontra-se na pessoa do encarcerado, na sua história pessoal, nos motivos que o levaram àquela situação, no futuro e no presente dessa pessoa. Não se preocupa em fazer uma teoria que busque compreender o fenômeno da criminalidade genericamente considerado. Ao contrário, aceita dialogar com diversas teorias explicativas desse fenômeno para buscar conhecer aquele indivíduo de maneira específica.
Essa teoria analisa três questões fundamentais: a conduta tida pelo Direito Penal como criminosa; a ação daquele indivíduo que foi selecionado pelo sistema penal por tê-la praticado, indagando por que, dentre todos aqueles que praticaram aquela mesma ação delitiva, este foi selecionado; e, por fim, analisa a própria prisão e as questões que ela coloca ao interagir com essa pessoa.
A partir de todos esses elementos, propõe-se a criar estratégias de intervenções que objetivam a reintegração social do condenado.
O campo de trabalho do criminólogo clínico (ou psicólogo criminal), via de regra, é o presídio, o sistema penitenciário. É ali que vai procurar entender os indivíduos ou grupos que se envolveram com a delinqüência, e estudar a instituição prisional, suas regras, seus profissionais, seus hábitos etc[30].
VII. Considerações psicológicas sobre a adolescência
A noção de adolescência, tal qual entendida hoje, é uma construção social que começou a ser criada historicamente no século XIX[31]. É um consenso entre os estudiosos do assunto, pelo menos substancialmente, que o início dessa fase, conhecida como adolescência, se dá com a puberdade, mas seu final é uma incógnita[32]. Essa dúvida quanto ao final da adolescência, e início da fase adulta, interfere diretamente na maneira como as pessoas passam por esse período, uma vez que não sabem quando e nem como vão sair dessa fase “pré-adulta”, na qual já não se é mais criança, mas também não se é visto pelos adultos como tal.
A adolescência é certamente uma fase muito complexa e marcante na vida das pessoas. É um período de experimentações, de novidades, de descobertas, de conflitos, de sofrimento, de crescimento, de amadurecimento, de crises, de construções... O adolescente passa por desequilíbrios e instabilidades extremas, que são perturbadas e perturbadoras para o mundo adulto, mas necessárias para o estabelecimento de sua personalidade e de seu caráter[33], sendo esse o objetivo principal do seu momento de vida. Deve desprender-se de seu mundo infantil, no qual a relação de dependência predominava, e enfrentar o mundo dos adultos. Maurício Knobel considera que este é um período de vivências de contradições, confusão e ambivalência, doloroso de se viver e caracterizado por tensões com o meio familiar e social[34].
Essa fase é constantemente permeada de grande insegurança egóica[35], o que conduz às dificuldades de relacionamentos tão comuns nessa fase[36]. “Entre a criança que se foi e o adulto que ainda não chega, o espelho do adolescente é freqüentemente vazio”[37]. Sendo assim, as atitudes dos adolescentes tendem a ser norteadas por essa insegurança, o que pode resultar em timidez ou em ações desinibidas para chamar atenção. É uma constante, portanto, dessa fase, a confusão de identidade[38].
Segundo Calligaris, os adolescentes chegam ao extremo de acreditar que expressar essa rebeldia por meio de atos ilegais só reforçará o amor que os adultos sentem por eles, isso porque estariam agindo de acordo com os sonhos recalcados destes. Cria-se, então, uma situação extremamente complicada, porque, de um lado o adolescente transgride para receber um olhar de igual, ou de admiração, ou, ainda, de amor do adulto, e acaba recebendo, como consequência, repressão.
Essa repressão pode dar-se de modo preventivo ou punitivo. Quando a atuação do adulto se dá preventivamente é pela imposição de regras ao comportamento adolescente, o que, por sua vez, acaba por resultar na afirmação de que o adolescente ainda não é maduro o suficiente para ser um adulto. De outro lado, quando se dá de modo punitivo, o adolescente interpreta essa reprimenda como se sua ação não tivesse sido compreendida pelos adultos.
Além disso, Levisky[39] traz à tona a discussão a respeito da percepção temporal, que é algo relevante nessa fase da vida, na qual o jovem tem apenas o agora como perspectiva, vive apenas o presente, negando o passado, ou seja, a infância, querendo se distanciar cada vez mais dela, e, ao mesmo tempo, tem medo do futuro por representar o desconhecido, apesar de desejá-lo.
Aos poucos, o jovem adquire a capacidade de atuar da maneira que é esperada de um adulto. Seu comportamento se altera conforme experimenta e toma consciência de questões sociais, culturais, ideológicas, políticas e econômicas, passando a considerá-las importantes, desenvolvendo, assim, “um raciocínio pautado em hipóteses e na reversibilidade dialética das proposições”[40], admitindo a possibilidade de pensar sem necessariamente se apoiar em elementos da vida concreta.
Nesse ponto específico, as carências socioeconômicas e culturais influenciam negativamente o desenvolvimento cognitivo, simbólico, e a construção de um espaço lúdico e imaginativo pelo indivíduo. É muito comum que aqueles que sofrem privações emocionais, econômicas e culturais tenham mais dificuldade em desenvolver o raciocínio conceitual, sendo que existem casos em que a pessoa não consegue ter esse tipo de pensamento, o qual também está relacionado com as formas que as relações afetivas serão vivenciadas pelo indivíduo.
Alvino Augusto de Sá[41], de acordo com o pensamento de Winnicott, destaca que o relacionamento entre a criança e a mãe é fundamental para assegurar um desenvolvimento e um amadurecimento do indivíduo. Problemas nessa primeira fase de desenvolvimento emocional podem gerar dificuldades de planejamento, de instabilidade, de assumir responsabilidade pelos seus atos, de ética, um forte imediatismo etc., o que são características presentes em muitos adolescentes, sendo observadas, também, naqueles que praticam infrações. Uma das formas que a criança ou o adolescente pode encontrar para solucionar as privações emocionais é o caminho da delinquência. “A criança e o adolescente em conflito com a lei (...) na maioria das vezes é vítima de uma história de privações”[42].
Mais do que isso, privações emocionais tão fundamentais podem levar a pessoa a se fixar na fase em que vivenciou essas privações, dificultando seu amadurecimento.
Tanto Winnicott quanto Alvino Augusto de Sá concordam que a confiabilidade do lar e da mãe são fatores essenciais para o desenvolvimento da criança e do adolescente. Quando a criança não encontra essa confiabilidade na escola ou na relação com a mãe, que pode ser substituta, tenta buscá-la em um relacionamento externo, na sua ligação com a sociedade, pois essa estabilidade é essencial para superar esse estágio do seu desenvolvimento emocional. Segundo Winnicott, a maioria dos delinquentes não supriram essa carência no estágio necessário de amadurecimento. Dessa forma, adverte o autor:
Enquanto está sob forte controle, uma criança anti-social pode parecer muito bem; mas, se lhe for dada liberdade, ela não tardará em sentir a ameaça da loucura. Assim, ela transgride contra a sociedade (sem saber o que está fazendo) a fim de restabelecer o controle proveniente do exterior[43].
A psicanálise, ao trazer à tona explicações para a delinquência como as abordadas acima, retira a ideia de que a delinquência seria um fenômeno unicamente da pobreza, ao considerar o ser humano como sujeito de desejos. Enxergar todos os indivíduos como sujeitos de desejos é fundamental para a compreensão do fenômeno social. Essa compreensão da delinquência como resultado da busca por um desejo, coloca a questão no plano do indivíduo, considerando que o que varia entre as pessoas não é o fato de serem seres desejantes, mas sim a maneira como cada um lida com esses desejos, a ética utilizada por cada um para controlá-los ou buscá-los[44].
A Psicologia social[45] traz outros elementos interessantes para a análise da adolescência. Segundo Ana Bock[46] não existe um desenvolvimento natural de todo ser humano que dependa exclusivamente de sua carga genética e de seu ser próprio. Muita influência é exercida pela cultura, pelas produções de todas as ordens da sociedade em que esta pessoa está inserida. Por esse motivo, não é muito difícil chegar à conclusão de que as diferentes formas de acesso a essa cultura interferem na maneira como a pessoa absorverá os valores.
Neste sentido, Ana Bock[47] entende que a adolescência é uma construção sócio-histórica, e não algo natural. Esse período entre a infância e a fase adulta, denominada adolescência, não é algo genético, específico da raça humana. Na realidade, é fruto dos valores e da cultura da sociedade moderna. Ao se considerar a adolescência como universal e natural, fica oculto todo o processo social que existe e existiu para que essa etapa da vida tivesse as características que tem hoje.
Outro ponto extremamente interessante trazido por Ana Bock é a questão de que a adolescência estudada, geralmente, é a das classes média e alta, sem que isso seja explicitado. Não se cogita focalizar como esse processo se dá em outras classes sociais, até mesmo porque a adolescência é vista como algo natural a todas as pessoas, independentemente do papel social que desempenham. Esses estudos são somente aplicados aos jovens de outras classes sociais como sendo a atitude esperada deles, expectativa esta que é costumeiramente frustrada.
A concepção sócio-histórica apresentada por Bock vira de cabeça para baixo a outra apresentada acima. Nesse período de tempo chamado adolescência, o jovem é obrigado a esperar para entrar no mundo adulto, mas não por uma questão natural, biológica, genética, mas sim por uma questão cultural, uma imposição do mundo capitalista adulto, para que os próprios adultos possam ficar mais tempo no mercado de trabalho. Contudo, os jovens das classes pobres não podem aguardar, ao mesmo tempo em que se especializam, para entrar no mercado de trabalho, ao contrário, precisam começar a trabalhar o quanto antes para seu sustento e o de sua família.
De acordo com Winnicott[48], a criança normal, ajudada nos estágios iniciais pelo seu próprio lar, desenvolve o que é chamado de “ambiente interno”, propício a um bom desenvolvimento. Já a antissocial não teve a oportunidade de criar um bom “ambiente interno” e por isso necessita de um controle externo feito por pessoas extremosas a fim de obter a oportunidade de vir a ser feliz, capaz de brincar ou trabalhar. Nesse sentido, “o comportamento anti-social nada mais é do que um S.O.S., pedindo o controle de pessoas fortes, amorosas e confiantes”[49]. Assim poderá a criança recuperar seus impulsos primitivos de amor, seu sentimento de culpa e seu desejo de corrigir-se. Cabe aqui destacar que essa observação se aplica a todas as crianças e adolescentes, independentemente de sua classe social.
Além disso, deve-se considerar que, ao ser inserida em uma instituição que se destina a acolher jovens que foram afastados de seus vínculos afetivos por força de uma decisão judicial (como um abrigo, por exemplo), ocorre um rompimento, geralmente brusco, com as relações anteriores, as quais serviam de referencial para essa pessoa. Nesse novo meio, terá que estabelecer novos vínculos e referenciais a partir de novas interações. Isso pode resultar em diversas sequelas sociais e emocionais[50].
Cabe a nós discutir aqui o que isso significa e como esse processo se dá. Contudo, como já explicitado acima, é arriscado tentar aplicar uma teoria baseada em valores a pessoas que não compartilham dessas condições. Porém, por outro lado, Kahn Marin[51] destaca que a própria instituição compartilha desses valores e tenta encaixar os jovens nestes. Isso está diretamente relacionado com a questão da ideologia, discutida no item III, quando destacamos que esta desconsidera as diferenças e, por meio de lacunas, tenta justificar porque cada um ocupa o papel que exerce na sociedade, de forma com que isso pareça natural.
As instituições onde as medidas de internação são cumpridas também seguem esses princípios. Tentam adotar a lógica do modelo familiar, entendido como a fórmula do desenvolvimento sadio.
Propõe-se a ser um substituto materno e discute todas as dificuldades em função da impossibilidade de repetir a fórmula triangular típica: pai-mãe-filho. Faltam, em geral, figuras masculinas para ocupar o papel paterno e as mulheres acabam se sentindo “mães frustradas”, já que os filhos não são delas, eles vão embora e são muitos para serem atendidos[52].
O resultado desse processo não pode ser o esperado, visto que opera de acordo com uma lógica que na realidade é ilógica para seus receptores.
Se pensarmos na relação que Winnicott estabelece entre privação emocional e delinqüência, podemos entender que a internação de adolescentes, cuja história de vida é permeada de privações emocionais, não pode trazer resultados positivos, pois a instituição não tem características ambientais propícias a um bom desenvolvimento emocional, prejudicando “ainda mais a habilidade do adolescente em realizar trocas com o meio e ampliar um sentimento de envolvimento amoroso com a coletividade, com a vida e consigo mesmo”[53].
O que é mais importante é a possibilidade de simbolização e de superação dos conflitos via significação. Estes processos é que devem ser incentivados na atuação da Fundação Casa na relação com esses jovens. O olhar assistencialista, com o significado de que esses adolescentes são pobres coitados, a visão de que é melhor não explicitar as faltas para não relembrá-los do já sofrido, isso sim pode gerar problemas sérios na formação desses futuros adultos.
Trabalhar com as questões reais, sem esconder os problemas, é a única saída para a construção de algo positivo. Deve-se tomar cuidado para não perpetuar o estereótipo atribuído a esses jovens: carente, logo, marginal. Quando o indivíduo é tratado dessa forma, visto assim por todos – o tempo todo –, a possibilidade de ele incorporar para si esta visão, introjetando os estigmas, e começar a desempenhar esse papel é grande.
VIII. Considerações Críticas sobre a Medida de Internação
A medida sócio-educativa de internação é um instituto jurídico de grande relevância social. Como já visto, é aplicada por uma instituição e envolve a atuação de diversos profissionais e operadores do Direito. Ademais, o fato de que, segundo dados da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, em 2006 aproximadamente 11.873 adolescentes cumpriam medida sócio-educativa em meio fechado no Brasil[54], o que corresponde a 30% dos adolescentes aos quais foi imposta alguma medida sócio-educativa, é um número bastante significativo. Soma-se a isso, ainda, a quantidade de jovens que já cumpriram medida de internação e os familiares de todas essas pessoas, tanto dos internos, ex-internos e profissionais do sistema de justiça juvenil.
No presente trabalho, adotamos como foco de análise o Estado de São Paulo, o qual conta com 50% de todos os adolescentes internados do país, sendo que não possui 50% dos jovens deste e nem um índice de criminalidade desproporcionalmente maior[55]. Contudo, sua maior relevância encontra-se no fato de que esse instituto jurídico repercute em toda a sociedade, pois as pessoas envolvidas nesse processo de internação reagem a ele de forma a impactar as relações sociais.
Para a compreensão do fenômeno da criminalidade é indispensável a contribuição de diversos saberes. Por essa razão, este artigo considera questões de Criminologia, Psicologia, Sociologia e Direito, buscando analisar criticamente as medidas de internação.
A seletividade do sistema punitivo é considerada uma realidade por todas as teorias criminológicas apresentadas neste trabalho, de forma que todas elas incorporam as ideias nascidas com o Labelling Approach no que se refere à rotulação social. O Direito Penal Juvenil, por adotar normas e princípios do Direito Penal, também apresenta essas características.
De acordo com os teóricos do Labelling Approach, o contato com as instâncias formais de controle estigmatiza o indivíduo. Isso ocorre não só pelo registro em sua folha de antecedentes – o que, certamente, dificultará seu ingresso e/ou desenvolvimento no mercado de trabalho – mas, principalmente, por ter passado um grande tempo encarcerado, submetido a condições humilhantes, sendo tratado como delinquente, o que constitui forte indução no sentido de se comportar como tal. É, portanto, rotulado e tende a continuar exercendo esse papel social mesmo após a sua saída da cadeia. Isso não é diferente nas medidas de internação, pois também são penas privativas de liberdade que são cumpridas em uma instituição total[56].
Nesse sentido Shecaira afirma que,
o ato infracional, tal qual o crime, é uma realidade construída socialmente, dentro dos interesses ínsitos a uma sociedade discriminadora. Nessa linha de argumentação, a construção da criminalidade não é somente a prática de atos contra lei, mas também a reação aos mesmos atos. Maior será a criminalidade tanto quanto maior for a reação
aos atos de transgressão[57].
Dessa forma, as medidas de internação nada mais são do que a efetiva restrição de liberdade em estabelecimento próprio destinado a isso, onde convivem somente adolescentes que praticaram atos infracionais. Apesar das diferenças existentes entre as cadeias e as instituições destinadas à internação de adolescentes, a semelhança em sua essência é muito grande, pois não fogem de suas características de instituições totais.
A relevância dessa discussão é realçada pelo fato de que o discurso mais presente nos meios de comunicação, que, a um só tempo, formam e expressam a opinião pública, é de que as medidas de internação não são penas e de que os adolescentes infratores não são punidos pela Justiça, como se houvesse uma espécie de complacência com estes.
Contudo, segundo Ervin Goffman,
o novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo (...). Ao entrar, é imediatamente despido do apoio dado por tais disposições. Na linguagem exata de nossas mais antigas instituições totais, começa uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações, profanações do eu. O seu eu é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado[58].
Sendo assim, busca-se a normalização destes indivíduos e sua submissão total à rotina e às regras impostas, docilizando seus corpos e enfraquecendo seu ego. Neste sentido, Foucault conclui que
o que se procura reconstruir nessa técnica de correção não é tanto o sujeito de Direito, que se encontra preso nos interesses fundamentais do pacto social: é o sujeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos, regras, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele e em torno dele, e que ele deve deixar funcionar automaticamente nele[59].
O sistema penal incentiva que os apenados, sejam eles adultos ou adolescentes, aprendam a ser submissos e a obedecer às regras,não importando quão violentas sejam. Ocorre que essas características não são qualidades na vida em sociedade, pois a vida livre é diametralmente oposta à vida intramuros, sendo baseada em regras de convivência muito diferentes. Nota-se, nesse ponto, um paradoxo, pois “se o preso demonstra um comportamento adequado aos padrões da prisão, automaticamente merece ser considerado como readaptado à vida livre”[60], recebendo benefícios, tais como, redução de pena e parecer psicológico favorável à sua descarcerização ou desinternação.
Portanto, a pessoa acaba introjetando as regras violentas e se sujeitando a elas para, assim, sair da prisão mais cedo, mas, ao mesmo tempo, acaba, nesse processo, adotando características que contribuem para a perpetuação do estereótipo de criminoso: violento, desadaptado ao convívio social, desconhecedor das regras básicas da convivência pacífica. Isso também ocorre com os adolescentes submetidos à medida de internação.
A questão do controle do tempo, abordada por Goffman, também se faz presente na Fundação Casa. Apesar da existência de diversos cursos e aulas, não há a possibilidade de escolha por parte dos internos, pois é a própria direção da instituição quem decide quem frequentará quais cursos e oficinas e em quais horários[61]. Isso corrobora o argumento de que essas instituições funcionam como instituições totais, estabelecem o controle sobre os apenados por meio da vigilância e das regras estritas, em que não há qualquer espaço para diálogo ou construção conjunta. Dessa forma, a tendência é que o jovem adote uma postura passiva perante sua vida, tanto porque qualquer discordância resulta em punições violentas.
Ocorre que, durante a fase processual, o adolescente desempenha, ao menos em tese, um papel ativo, ao falar e ser ouvido. Porém, isso não é valorizado dentro da instituição, ao contrário, é considerado como algo negativo. Nos dizeres de Alvino Augusto de Sá,
se, no julgamento perante o juiz, o jovem é “ouvido”, tem (ou deveria ter) valorizada a sua “fala”, se ele é respeitado como um sujeito que participa (ou deveria participar) ativamente do processo das decisões a seu respeito, todo esse enfoque muda posteriormente, sobretudo ao ser encaminhado a uma instituição fechada[62].
E é dessa forma que os adolescentes percebem as relações de hierarquia na instituição, notam que devem adotar uma postura passiva diante das situações e que sua opinião não é valorizada. Podemos inferir isso do fato de que 66% dos adolescentes entrevistados – levantamento realizado pela própria Febem (atual Fundação Casa), em 2006 – responderam que “entrar em debate com funcionário atrasa a caminhada. Gera a maior situação, mesmo quando ele está errado” tem “tudo/muito a ver comigo”[63]. Nesse sentido, Flávio Frasseto assegura que “eventual resistência é encarada como subversão, prova cabal do desvio, confirmação da perigosidade”[64].
Em assim sendo, podemos compreender porque 64% dos internos que responderam a pesquisa, em 2006, disseram que tem “tudo/muito a ver comigo” o fato de que “aqui, se você não faz algum curso, você acaba se atrasando. Então, para você não aumentar sua caminhada aqui você acaba fazendo”[65]. Esse dado revela que os adolescentes não percebem os cursos que lhe são oferecidos como uma possibilidade de futuro, mas sim como uma forma de minimizar seu tempo de internação.
a evidência derivada da análise do comportamento nos diz que mesmo quando a coerção[66] atinge seu objetivo imediato ela está, a longo prazo, fadada ao fracasso (...) plantamos as sementes do desengajamento pessoal, do isolamento da sociedade, da neurose, da rigidez intelectual, da hostilidade e da rebelião[67].
A Teoria do Labelling Approach, se aplicada a esses adolescentes, revela-nos uma realidade perversa, na qual o jovem receberá o rótulo de criminosos e o assimilará, passando a agir como tal, o que provoca uma espiral de reincidência[68]. Ao escrever sobre a relação entre essa teoria e o Direito Penal Juvenil, Karyna Sposato diz que “os efeitos são ainda mais incisivos em se tratando de pessoas em desenvolvimento. Parece inegável que a rotulação de delinqüente para um jovem pode constituir-se como identidade numa fase em que a personalidade está em formação”[69].
Nesse sentido, a Defensoria Pública de Ribeirão Preto ingressou com uma ação no Judiciário para que fosse proibida a raspagem dos cabelos dos jovens internos na Fundação Casa.
O juiz acolheu o pedido liminarmente, no dia 26 de agosto de 2008, por entender que tal prática fere a dignidade desses jovens, ao violar a integridade física, psíquica e moral. Ademais, tal corte de cabelo cria uma marca nesses jovens, de modo que, mesmo depois de deixarem a instituição, continuam a ser reconhecidos na rua como ex-internos. De acordo com notícia veiculada na Folha da Região de Riberão Preto, em 28 de agosto de 2008, a mãe de um ex-interno, que não quis se identificar, prestou o seguinte depoimento:
É um choque, é muito assustador ver o filho que nunca raspou a cabeça com ela desse modo. Acredito que o mesmo acontece quando o menino sai na rua. Todo mundo olha e sabe que aquele já teve passagem. Acho que no máximo poderiam cortar bem baixinho, mas não raspar[70].
Por outro lado, as escolas criminológicas abordadas anteriormente – Labelling Approach, Teoria Crítica e Teoria Clínica – não trabalham apenas com a noção de etiquetamento resultante do processo de prisionização, do estigma gerado e que passa a ser vivido pela pessoa apenada. Tratam, também, da fundamental questão da seletividade do sistema Penal. Essas teorias se utilizam do conceito de vulnerabilidade, defendendo que o sistema está predisposto a punir determinada camada social, em razão da marginalização.
Sendo assim, tem-se que determinado grupo social é eleito cliente preferencial do aparato repressor e o contato com este tem o efeito de fortalecer essa condição de marginalizado, aumentando sua vulnerabilidade perante o sistema e enfraquecendo o ser humano no que tange às características que lhe conferem dignidade.
Dessa forma, vemos que aqueles selecionados o serão novamente e desempenharão o papel de criminosos cada vez com mais verdade e intensidade. Isso ocorre também no Direito Penal Juvenil, não sendo uma exclusividade do Direito Penal aplicado aos adultos, o que é extremamente cruel, pois desde muito cedo esses adolescentes iniciarão seu ciclo nesse processo.
Ocorre que o objetivo declarado no ECA é exatamente oposto a esse: é de educar esses jovens e proporcionar-lhes melhores condições para serem incluídos na sociedade quando saírem da medida de internação. Nesse sentido, diversos cursos profissionalizantes são oferecidos na Fundação Casa: caso eles retornem a ela, será compreendido que não aproveitaram a chance que o Estado lhes deu, como se esses cursos profissionalizantes fossem suficientes para assegurar um emprego digno a alguém.
Apesar de todas essas atividades pedagógicas oferecidas na instituição, tem-se uma porcentagem alta de reincidência ainda na fase tutelada pelo ECA. Dentre os adolescentes internados que responderam a pesquisa em 2006, 29% disseram-se reincidentes[71]. Esse número não inclui aqueles que já haviam sido submetidos a outra medida sócio-educativa que não a internação e nem aqueles que cometeram novos delitos após completarem 18 anos.
Podemos notar a preocupação do legislador com esse ponto, uma vez que o Estatuto proíbe a divulgação do contato que jovens experimentaram com a justiça criminal juvenil, não podendo ser considerado como circunstância agravante da reincidência e dos maus antecedentes na fase adulta. Ademais, esse é o principal motivo pelo qual a regra é a do segredo de justiça nas Varas da Infância e da Juventude, tudo isso em um claro esforço para tentar minimizar a rotulação que daí adviria. Porém, essa rotulação não existe apenas em decorrência da folha de antecedentes criminais, mas também pela posição social ocupada por essas pessoas.
Murray Sidman explica que a ameaça de retornar à situação de encarcerado não é suficiente para que atos ilegais não se repitam, sendo que a reincidência é esperada, pois
o controle coercitivo não deixa alternativa para o infrator que carece de certas habilidades socialmente desejáveis. As privações impostas dentro dos muros das prisões dificilmente são mais severas do que os conhecidos rigores de fora. Jogados de volta ao mesmo e antigo cenário, sem um novo modelo de comportamento e desta vez rotulados como criminosos, sujeitos a restrições ainda maiores, por que, então, dever-se-ia esperar que eles agissem de modo diferente do que agiram antes?[72]
Se analisarmos os dados divulgados pela própria Fundação Casa, em pesquisa realizada em 2006, notamos que a grande maioria dos jovens entrevistados responderam que “isso de mão para trás, cabeça baixa, de dizer sim senhor, sim senhora é muito humilhante”[73] (72% responderam que essa afirmação “tem tudo/muito a ver comigo”). Podemos considerar que esse sentimento de humilhação corrobora a posição de Sidman acima explicitada.
Andar com as mãos sempre para trás e ser obrigado a concordar com tudo que lhes é dito é um ato violento, uma grande privação. Nesta mesma pesquisa, constatou-se que 54% responderam que “tem tudo/muito a ver comigo” o fato de “a gente aqui dentro parecer um animal que está sendo domado”[74]. A partir disso, pode-se, com mais facilidade, visualizar os danos irreparáveis que essa violência contínua gera, em especial se considerarmos a posição de Knobel quando afirma que “o adolescente não pode manter uma linha de conduta rígida, permanente e absoluta, ainda que muitas vezes o pretenda e o procure”[75].
Além de notar que as teorias criminológicas abordadas acima podem ser aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei, almejamos deixar clara a relação entre essas ideias e a formação de identidade desses jovens. Esta questão foi analisada sob duas perspectivas principais: a fase vivida por eles antes da internação e a influência da internação na sua formação. Abordamos a questão da relação existente entre privação emocional e delinquência, muito comum em famílias pobres, além da questão de que essa fase é marcada por transgressões e conflitos de valores. E como resposta a esses atos, o que recebem é a punição com pena privativa de liberdade. Tal internação tem um impacto muito especial nessa fase da vida. Erickson assevera que,
se o “resto de nós” diagnosticar esses jovens como psicóticos ou criminosos, de modo a desfazer-se deles eficientemente, isso poderá constituir o passo final na formação de uma identidade negativa. A uma elevada proporção de jovens, a sociedade está oferecendo unicamente essa “confirmação” convincente. Os bandos e quadrilhas, naturalmente, convertem-se em sub-sociedades para aqueles que assim foram confirmados[76].
Os elementos trazidos pela visão sócio-histórica da Psicologia nos possibilitam a compreensão desse fenômeno de outra forma. Ana Bock[77] discute que a análise da adolescência realizada por grande parte dos psicólogos de referência nessa área tem como objeto de estudo a adolescência da classe burguesa, sem considerar as diferenças de valores existentes entre a família burguesa e a família pobre. Tenta-se, segundo a autora, aplicar tais concepções a pessoas que não compartilham delas, ao contrário, que têm histórias de vida muito distintas.
A pesquisa desenvolvida por Kahn Marin[78] aborda essa visão, relacionando-a à questão da seletividade do sistema Penal na aplicação das medidas de internação. Segundo a autora, a instituição que aplica as medidas de internação opera em uma lógica burguesa de bem e de futuro: algo que não dialoga com os receptores da comunicação, não possibilitando a simbolização e a superação dos conflitos que culminaram com a internação. Não faz sentido para essas pessoas a imposição de disciplina, cursos e regras. Não se identificam com o que tentam ensinar-lhes e por essa razão não aprendem. O que é natural e perfeitamente compreensível, como se cada polo falasse uma língua e viesse de uma cultura completamente diferente.
Podemos fundamentar ainda mais esse raciocínio baseando-nos na concepção de que as práticas criminosas são formas de solucionar conflitos de ordem interindividual e intraindividual. Contudo, tais soluções não levam à pacificação interna, ou seja, à simbolização. Exatamente por essa razão, Baratta as considera irracionais[79].
Os atendimentos realizados por psicólogos na Fundação Casa, segundo Kahn Marin e Sirlei Alves, não estabelecem efetivamente um canal de comunicação com os internos. Estes querem demonstrar que internalizaram as regras que lhes são impostas para poderem receber um parecer favorável à desinternação, como se respondessem o que os funcionários quisessem ouvir, mas não o que realmente estão pensando ou sentindo. Isso é muito problemático, porque vive-se um “faz de conta”. Esses jovens, em razão de que manterão sua vulnerabilidade e em razão dos rótulos que lhes são atribuídos, provavelmente, voltarão a ser privados de liberdade.
a reclusão é uma marca simbólica que “pune” o sujeito, por um crime contra a sociedade, mas, paradoxalmente, acaba por incentivar e reforçar as causas que impulsionaram o ato, ou seja, é uma medida que contribui para o aumento do nível de pressão e revolta interna, tornando insuportáveis os níveis de violência[80].
Cabe aqui considerarmos a teoria de Winnicott no que se refere ao desenvolvimento psíquico sadio. Segundo ele, a terapêutica para o tratamento da tendência antissocial não pode se dar apenas pela psicoterapia, mas é necessário também que o jovem esteja inserido em um ambiente capaz de proporcionar a recuperação daquilo que a falha ambiental anterior acarretou[81]. Salienta, ainda, o efeito negativo que condenações em tribunais podem gerar nesse processo, afirmando que a possibilidade de que se encontre o caminho para um bom desenvolvimento fica muito dificultada, mesmo nos casos em que a instituição realizar um trabalho profilático adequado[82]. Deve-se fazer a ressalva de que nem todos adolescentes que são submetidos à medida de internação têm tendência antissocial, no sentido técnico apresentado por Winnicott.
Nesse ponto, a Criminologia Clínica Crítica ganha especial relevância, pois essa teoria entende que a condição de vulnerabilidade dessas pessoas selecionadas pelo sistema Penal deve ser reduzida enquanto cumprem a pena restritiva de liberdade, por meio de medidas que as fortaleçam psiquicamente. Tudo isso é ainda mais urgente quando se trata de “pessoas em desenvolvimento”.
Sirlei Alves destaca três motivos que estão diretamente relacionados aos apresentados até aqui, que explicam por que essa capacidade de simbolização, logo, de fortalecimento psíquico, é tão complicada na Fundação Casa:
Primeiro, a “recusa” do sujeito perante um ambiente que é percebido como persecutório, ameaçador e aniquilador. Segundo, a ausência de uma escuta que os considere como sujeito. Terceiro esse tipo de ambiente de caráter prisional que institui algo da ordem da subjugação do outro, da “lei do silêncio” semelhante a um mandato para “calar-se”, em que o adolescente não pode mais dizer e saber de si senão pelo desejo do outro[83].
A ideologia comparece como pano de fundo de toda essa estrutura. Existem os objetivos declarados – a letra da lei que pretende que a medida de internação sirva para reeducar esses adolescentes, de forma a propiciar instrução, por intermédio das aulas ali disponíveis, e inserção no mercado de trabalho, por meio da qualificação que lhes é oferecida – que são progressistas e tentam, a todo custo, se desvincular da lógica vigente anterior à edição do ECA. E, também, os objetivos ocultos, escamoteados – o espírito da lei ou, para ser mais precisa, do ordenamento jurídico como um todo – que são aqueles protegidos e propagados pela ideologia e por sua capacidade de fazer parecer que as coisas são assim porque devem ser assim e que tudo é lógico e justo. As teorias criminológicas de fundo marxista que abordamos entendem que a intenção do Direito Penal é perpetuar a lógica cruel e capitalista da exclusão.
Como consequência, a partir desse entendimento, pode-se concluir que o Direito Penal Juvenil também é seletivo e perverso, ao determinar a internação de jovens em uma instituição que acarretará efeitos negativos e por vezes irreversíveis na formação psíquica e na perspectiva de inserção social. O ciclo que trata da desviação primária e da desviação secundária se inicia já nessa fase, sendo que isso influenciará diretamente a construção da identidade desses sujeitos.
Ao se referir à questão da formação da identidade e dos diferentes “tratamentos” possíveis para adolescentes “desadaptados”, Kahn Marin traz para o centro da discussão o papel da ideologia nesse processo:
Manter um sistema coeso, pessoas integradas em nome de algum objetivo é função da ideologia (...) É uma representação ilusória que se faz de um indivíduo ou de um grupo, com a intenção de relacioná-lo com suas condições de existência, negando, ou melhor, escondendo as reais condições – indivíduo oprimido respondendo a uma ordem geral distante de suas necessidades, a serviço de um poder dominante[84].
Todos esses pontos realçados acima corroboram a tese abolicionista de ilegitimidade do sistema penal, por se basear em uma sociedade inexistente, ignorando as reais condições desta e propondo ações brutais que não pressupõem qualquer diálogo com a parte que arcará com a aflitividade dessas penas.
Outro ponto extremamente complicado de se enfrentar é a questão da ambiguidade em que a situação desses adolescentes é encarada pela própria instituição e seus funcionários. Segundo Thompson[85], ao analisar, na década de 1970, a situação da Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor no Rio de Janeiro), essa ambiguidade reside em três aspectos fundamentais: o primeiro deles é a diferença de tratamento da equipe técnica – formada basicamente por psicólogos e assistentes sociais, que intenta “melhorar” os jovens – e da equipe de segurança, a qual tem como objetivo a ordem, a disciplina, para que não ocorram fugas ou rebeliões. Por existir essa diferença de ideias e ideais, o adolescente é visto e tratado de maneiras muito distintas por essas duas categorias de funcionários.
O segundo aspecto se refere aos conflitos vividos pelos próprios funcionários, que, ao terem internalizada a ideologia dominante, se contradizem, muitas vezes de modo inconsciente, ao atenderem esses jovens. Ao mesmo tempo em que se esforçam para que eles mudem de postura ao serem reeducados, compreendem que eles não agiram de modo reprovável ao cometer aquele delito que culminou com a sua internação, tendo em vista sua classe social, seus desejos e todo o complexo contexto em que estava inserido. E, por mais que se esforcem para esconder essa opinião, muitas vezes, acabam transparecendo, o que leva esses meninos à conclusão de que os funcionários não agem como eles porque provêm de uma classe social que não necessita disso para saciar seus desejos consumistas ou porque não têm as qualidades necessárias para o cometimento de delitos.
Já o terceiro aspecto diz respeito à ideologia e aos verdadeiros objetivos da Fundação Casa. A versão oficial é a de buscar apenas o bem dos adolescentes que estão sendo internados para crescerem, se educarem e se inserirem socialmente após a desinternação. De outro lado, a versão que também está presente, porém, de uma forma camuflada, é a de que o adolescente em conflito com a lei deve ser castigado, punido e, por isso, deve ser excluído e deve sofrer.
Diante dessa ambiguidade, afirma o autor que,
não é de admirar, frente a tal conjuntura, que os estabelecimentos observem uma atividade marcadamente ambígua – quando não assumem, o que é pior, uma postura burocratizada, ora cínica, ora hipócrita – haja vista ser impossível operacionalizar a incoerência[86].
Fica claro, então, que as medidas de internação não se prestam a alcançar os objetivos declarados e, por outro lado, as teorias apresentadas ao longo deste trabalho são verificáveis na realidade fática desse instituto jurídico.
Isso quer dizer que, apesar das louváveis alterações legislativas, na prática o que ocorre é uma reprodução do sistema de exclusão e marginalização social, que não só seleciona sua clientela cruelmente, como também a estigmatiza. O que se vê é que isso ocorre desde a adolescência das pessoas nessas condições de vulnerabilidade, tornando-as ainda mais enfraquecidas psicologicamente.
Ademais, concluímos que muitos delitos cometidos nessa fase da vida são apenas uma tentativa de se autoafirmar, se autoconhecer e de testar os limites, algo saudável na concepção desses estudiosos. A punição que recebem em troca é muito gravosa e dolorosa, deixando marcas indeléveis na personalidade dessas pessoas.
IX. Proposta
Diante da análise realizada e da conclusão de que os efeitos negativos da reclusão nessa fase da vida, considerando-se seus antecedentes e seus consequentes, são gravíssimos, sentimo-nos na obrigação de apresentar alguma proposta.
Já que concluímos, após termos transitados por diversas áreas, que a falta de diálogo, a precária comunicação, as dificuldades existentes para a real simbolização das faltas e carências, a própria privação de liberdade, a violência que isso representa e as marcas que deixa são os principais problemas do modelo atual e, por entender que a questão da criminalidade não se resolve com Direito Penal, mas com a implantação de políticas públicas, acreditamos ser uma proposta interessante a Justiça Restaurativa.
A Justiça Restaurativa segue a lógica de fortalecimento de diálogo, de efetiva comunicação que possibilite a simbolização e a elaboração da culpa, por parte do agressor, e a possibilidade do perdão e da compreensão, por parte da vítima a qual deixa de ter a vontade de vingança tão presente. Ademais, coloca esse agressor no centro da comunicação, como um sujeito ativo, e não apenas passivo que finge ter absorvido as regras, valores e ideais que lhe são impostos na Fundação Casa. Isso possibilita um fortalecimento psíquico do seu “eu”, propiciando que deixe de ser vulnerável perante o sistema Penal, o qual não mais o rotulará como delinquente.
É pautada pela mediação, na resolução horizontal de conflitos, sendo que fazem parte desse processo o agressor, a vítima e a sociedade, ou seja, todos os envolvidos no processo de agressão causado pelo delito cometido. Ocorre que a proposta restaurativa não se enquadraria nas chamadas penas alternativas e seria, ao contrário, uma alternativa às penas, pois regida por princípios e valores diversos do modelo retributivo vigente[87].
Nesse processo restaurativo, o ofensor deve ser responsabilizado pelos seus atos, porém, não de uma maneira passiva, e, sim, ativa. Deve compreender a dimensão do mal que provocou tanto para a vítima quanto para a sociedade. E cabe à sociedade ajudar as vítimas a sanarem suas necessidades e ajudar o ofensor também, atendendo suas carências. Dessa forma, não se alcançaria apenas a restauração, mas, sobretudo, a transformação. Segundo Howard Zehr “a responsabilização é multidimensional e transformadora”[88], devendo ser sempre incentivada.
Leonardo Sica apresenta esse quadro sinótico[89], o qual explicita as diferenças entre o modelo atual de justiça penal e o modelo restaurativo.
Exatamente por falarem e serem ouvidos, esses jovens têm a possibilidade de compreender as dimensões de seu ato e de tentarem mitigar as consequências deste. Passam a estar no centro, e não apenas a receber uma punição do Estado, entram em contato com os conflitos da vítima e, por esse motivo, têm a possibilidade de simbolizá-los e superá-los, de modo a saírem fortalecidos da experiência.
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Acesso em 28.07.2008.
Vivian Calderoni
Mestranda em Criminologia pela USP.
Advogada.
[1] Este artigo é a síntese da Tese de Láurea apresentada à Faculdade de Direito da USP, realizada sob a orientação do Prof. Dr. Alvino Augusto de Sá, intitulada “Justiça Juvenil: uma análise crítica da medida de internação” apresentada no final de 2008. Compôs, também, a banca examinadora a Profa. Dra. Ana Elisa Bechara.
[2] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução a sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: 2002. (Instituto Carioca de Criminologia), p. 187-8.
[3] SPOSATO, Karyna B. O direito penal juvenil. São Paulo: RT, 2006. p. 76-7.
[4] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Sistema de garantias e o direito penal juvenil. São Paulo: RT, 2008. p. 133-4.
[5] Idem. Ibidem, p. 135.
[6] Idem. Ibidem, p. 134.
[7] Art.112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
advertência;
obrigação de reparar o dano;
prestação de serviços à comunidade;
liberdade assistida;
inserção em regime de semiliberdade;
internação em estabelecimento educacional;
qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.
[8] JESUS, Maurício Neves. Adolescente em conflito com a lei: prevenção e proteção integral. Campinas: Servanda, 2006. p. 75.
[9] Direito Penal Juvenil é uma construção de parte da doutrina que o considera como um ramo autônomo do Direito, apesar de não ser essa a posição ainda consagrada em razão do silêncio da Lei nesse sentido. Consideram ser um ramo autônomo por ser regido por regras e princípios próprios e, portanto, seguir regras de interpretações diferentes em relação ao Direito Penal e ao Direito da Criança e do Adolescente. Nesse sentido Shecaira, Sérgio Salomão. Sistema de garantias e o direito penal juvenil. Op.cit.; Sposato, Karina B. O direito penal juvenil. Op.cit.
[10] Art.122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando:
I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;
II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;
III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
§1.º O prazo de internação na hipótese do inciso III deste artigo não poderá ser superior a 3 (três) meses.
§2.º Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada.
[11] JESUS, Maurício Neves. Op.cit., p. 154-5.
[12] Art.121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
[13] SPOSATO, Karyna Batista. O direito penal juvenil, cit., p.129-30.
[14] FRASSETO, Flávio. Execução da medida sócioeducativa de internação: primeiras linhas de uma crítica garantista. Justiça, adolescente e ato infracional: socioeducação e responsabilização. São Paulo: ILANUD, 2006, p. 329.
[15] CHAUÍ, Marilena. Crítica e Ideologia. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Moderna.
[16] WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, estado e direito. 4. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 74.
[17] NADER, Paulo. Filosofia do direito. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 229.
[18] WOLKMER, Antonio Carlos. Op. cit., p. 176.
[19] MARIN, Isabel da Silva Kahn. Febem, família e identidade: o lugar do outro. 2. ed. São Paulo: Escuta, 1999, p. 49.
[20] BARATTA, Alessandro. Op. cit, p. 86.
[21] Idem. Ibidem, p. 95.
[22] GOFFMAN, Ervin. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2005.
[23] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: RT, 2004, p. 297-8.
[24] Idem. Ibidem, cit. p. 327, 330, 335.
[25] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia, cit., p. 339.
[26] As situações conflitivas que estão presentes quando do cometimento de um delito não são
ignoradas por essa Escola, ao contrário, são valorizadas. Ademais, o delito em si não é analisado isoladamente como um momento único, e sim é compreendido como uma somatória de momentos, como um ato inserido em um contexto complexo. Porém, por serem atos impulsionados por situações conflitivas e por resultarem em mais novos conflitos são denominados situação-problema. Tal
expressão deixa clara a intenção de não considerar o ato isoladamente e sim de contextualizá-lo ao considerá-lo uma situação.
[27] PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: PASSETTI, Edson (coord.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro, Renavan, 2004, p. 33.
[28] KARAN, Maria Lucia. Pela abolição do sistema penal. In: PASSETTI, Edson (coord.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro, Renavan, 2004, p. 88
[29] SÁ, Alvino Augusto. Criminologia clínica. Palestra proferida em 31 de maio de 2004, no Laboratório de Ciências Criminais no Auditório do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo.
[30] SÁ, Alvino Augusto. Criminologia clínica e psicologia criminal. São Paulo: RT, 2007, p. 18.
[31] CALLIGARIS, Contardo. A adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000 (Série Folha Explica). p. 19-21; BOCK, Ana Mercês Bahia. A perspectiva sócio-histórica de Leontiev e a crítica à naturalização da formação do ser humano: a adolescência em questão. Caderno CEDES, Campinas, v. 24, n. 62, 2004, p. 32.
[32] Idem, p-21. PAPALIA, Diane E., OLDS, Sally Wendkos. Desenvolvimento humano. 7. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000, p. 310; SHECAIRA, Sérgio Salomão. Sistema de garantias e o direito penal juvenil, p. 9.
[33] “O termo ‘personalidade’ deriva de persona, que significa máscara. Está em relação estreita com as noções de pessoa e personagem, ao passo que caráter origina-se do grego kharasséin ou kharakter significando, respectivamente gravação e marca. A primeira destas noções, a de personalidade, é usada na teoria psicanalítica, no sentido de compreender os interesses gerais da pessoa e o jogo conflitivo destes interesses enquanto se acordam ou se opõem. Personalidade é, tomada, então, como sinônimo de aparelho psíquico ou aparelho mental. Já o termo caráter é mais específico. Implica na aquisição e estruturação de um certo número de traços ou marcas, deixadas no sujeito ao longo de seu processo de desenvolvimento, e que determinam, no interior da personalidade, uma postura típica face aos diferentes acontecimentos e situações da vida”. REIS, Alberto O. Advincula. Personalidade e caráter. In. Rappaport, Clara Regina (coord.). Teorias da personalidade em Freud, Reich e Jung. São Paulo: EPU, 1984. Temas Básicos de Psicologia, v. 7, p. 24.
[34] ABERASTURY, Arminda e KNOBEL, Mauricio. Adolescência normal: um enfoque psicanalítico. Porto Alegre: Artmed, 1981, p. 9-10.
[35] “O Ego, enquanto sistema, encontra-se voltado principalmente para o meio externo, sendo o instrumento perceptível básico daquilo que surge de fora. Constituindo-se como órgão sensorial de toda personalidade, o Ego é, entretanto, receptivo também às excitações provenientes do interior do sujeito. É, portanto, durante seu funcionamento que surge o fenômeno da consciência.” Reis, Alberto O. Advincula, cit., p. 49.
[36] ALVES, Sirlei Fátima Tavares. Efeitos da internação sobre a psicodinâmica de adolescentes autores de ato infracional. São Paulo: Método, 2005. Monografia IBCCrim n. 36, p. 205.
[37] CALLIGARIS, Contardo. Op. cit., p. 25.
[38] ERIKSON, Erik. Identidade: juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 132.
[39] LEVISKY. David Léo. Adolescência: reflexões psicanalíticas. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
[40] Idem. Ibidem, p. 49.
[41] SÁ, Alvino Augusto. Op. cit, p. 79-82.
[42] Idem. Ibidem, p. 100.
[43] WINNICOTT, D. W. Privação e delinqüência. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 122.
[44] ALVES, Sirlei Fátima Tavares. Op. cit, p. 51.
[45] Como exemplo de autores da linha sócio-histórica, citamos: Aroldo Rodrigues, Silvia Lane, Bader Sawaia, Wanderley Codo, Alex Sandro C. Sant’Ana, Carlos Eduardo Ferraço, Hiran Pinel, entre outros.
[46] BOCK, Ana Mercês Bahia. Op. cit.
[47] Idem. Ibidem.
[48] Idem. Ibidem, p. 122-3.
[49] Idem. Ibidem, p. 122.
[50] CAMPOS, Ângela Valadares Dutra de Souza. O menor institucionalizado: um desafio para a sociedade. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 70-4 e 82-9.
[51] MARIN, Isabel da Silva Kahn. Febem, família e identidade: o lugar do outro. 2. ed. São Paulo: Escuta, 1999, p. 49.
[52] Idem. Ibidem, p. 28.
[53] ALVES, Sirlei Fátima Tavares. Op.cit., p. 59.
[54] SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), Brasília, realizada pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos – Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), jun. 2006, p. 17.
[55] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Sistema de garantias e o direito penal juvenil, cit., p. 110.
[56] Para Goffman o fato de que “todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade (...) Cada fase da atividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto (...) todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários (...) a seqüencia de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um grupo de funcionários. (...) As várias atividades obrigatórias são reunidas num plano racional único, supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição” fazem de qualquer instituição, uma instituição total. GOFFMAN, Erving. Op. cit., p. 17-8.
[57] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Sistema de garantias e o direito penal juvenil, cit., p. 109.
[58] GOFFMAN, Erving. Op. cit., p. 24.
[59] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 33. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 106.
[60] THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 11.
[61] FRASSETO, Flávio. Op. cit.
[62] SÁ, Alvino Augusto. Criminologia clínica e psicologia criminal, cit., p. 102.
[63] Disponível em <www.casa.sp.gov.br>. Acesso em 28.07.2008. p. 103.
[64] FRASSETO, Flavio. Op.cit., p. 317.
[65] Disponível em <www.casa.sp.gov.br>. Acesso em 28.07.2008. p. 97.
[66] O autor compreende coerção como o uso da punição e da ameaça de punição para conseguir que os outros ajam como gostaríamos que agissem e à prática de recompensar pessoas, deixando-as escapar das nossas punições e ameaças. SIDMAN, Murray. Coerção e suas implicações. Campinas: Livro Pleno, 2003. p. 17.
[67] SIDMAN, Murray. Op. cit., p. 18.
[68] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Sistema de garantias e direito penal juvenil, cit., p. 132.
[69] SPOSATO, Karyna. Princípios e garantias para um direito penal juvenil mínimo. Justiça, adolescente e ato infracional: socioeducação e responsabilização. São Paulo: ILANUD, 2006. p. 259.
[70] Liminar proíbe ex-Febem de raspar cabeça de menor infrator. Clipping da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Recebido por e-mail: imprensa@dpesp.sp.gov.br, em 28.08.2008.
[71] Disponível em <www.casa.sp.gov.br>. Acesso em 28.07.2008. p. 7.
[72] SIDMAN, Murray. Op. cit., p. 262.
[73] Disponível em <www.casa.sp.gov.br>. Acesso em 28.07.2008. p. 103.
[74] Idem. ibidem.
[75] ABERASTURY, Arminda e KNOBEL, Mauricio. Op. cit., p. 55.
[76] ERIKSON, Erik. Op. cit., p. 256.
[77] BOCK, Ana Mercês Bahia. Op. cit.
[78] MARIN, Isabel da Silva Kahn. Op. cit.
[79] BARATTA, Alessandro. Op. cit.
[80] ALVES, Sirlei Fátima Tavares. Op. cit., p. 203.
[81] WINNICOTT, D. Op. cit., p. 137.
[82] Idem, Ibidem, p. 123.
[83] ALVES, Sirlei Fátima Tavares. Op. cit., p. 208-9.
[84] MARIN, Isabel da Silva Kahn. Op. cit., p. 21.
[85] THOMPSON, Augusto. Op. cit., p. 113-131.
[86] Idem, Ibidem, p. 120.
[87] SICA, Leonardo. Bases para o modelo brasileiro de justiça restaurativa. Novas direções na governança da justiça e da segurança. Brasília: Ministério da Justiça, 2006. p. 455.
[88] ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008, p. 190. [89] SICA, Leonardo. Direito de emergência e alternativas à prisão. São Paulo: RT, 2002. p. 17.
[89] SICA, Leonardo. Direito de emergência e alternativas à prisão. São Paulo: RT, 2002. p. 17.
Sumário:
1. Considerações Iniciais; 2. Bem Jurídico de um Sistema Teleológico-Racional Humano-Constitucional; 3. Bem Jurídico “Meio Ambiente”; 4. Princípio da Exclusiva Proteção de Bem Jurídico e Tutela Penal do Ambiente; 5. Considerações Finais; Bibliografia.
Resumo:
O presente artigo versa sobre os pontos centrais da problemática que gira em torno do bem jurídico ambiental. Os debates a respeito dos Princípios da Exclusiva Proteção de Bem Jurídico e da Lesividade são enfrentados a partir das criminalizações mais tormentosas da Lei de Crimes Ambientais. O texto reveste-se de caráter panorâmico ao investigar o Meio Ambiente como bem jurídico de cunho material no Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave:
Bem Jurídico – Tutela Penal do Meio Ambiente – Princípio da Exclusiva Proteção de Bem Jurídico – Princípio da Lesividade.
1. Considerações Iniciais
Parte-se da necessidade de se construir um Estado Democrático (Substancial) de Direito capaz de reduzir as incompatibilidades existentes entre o direito de liberdade do cidadão, a tutela ambiental, o desenvolvimento econômico-social sustentável e o direito à qualidade de vida digna. O reconhecimento do sistema de valores e princípios do Estado Democrático de Direito preenche, materialmente, o sistema penal teleológico-racional, isto porque, apenas a partir do desenvolvimento de um fundamento valorativo, será possível racionalizar e justificar a – eventual e sempre em último caso – responsabilização penal dos infratores pelos danos ambientais causados.
2. Bem Jurídico de um Sistema Teleológico-Racional Humano-Constitucional
Como bem afirma Miranda Rodrigues, a criminalização, nos Estados democráticos contemporâneos, só se legitima se estiver relacionada com o bem jurídico tutelado e a ordem axiológica da Constituição[1]. Independente de toda crítica doutrinária, as forças políticas têm mostrado uma tendência quase irreversível de ligar a tutela do ambiente ao Direito Penal. Dessa forma, como o Direito Penal é uma realidade na tutela do Meio Ambiente, deve-se buscar um modelo mais consentâneo com os valores constitucionais para a sua inevitável aplicação. Por tal razão defende-se o emprego de um sistema penal teleologicamente-racional de linha roxiniana[2]. Apesar da diversidade de modelos teleológico-racionais existentes, parte-se do modelo defendido por Roxin, para que, quando o instrumental jurídico-penal seja inafastável, pelo menos, esteja materializado em um Direito Penal que só permita a imposição de pena se esta servir à proteção de bens jurídicos relevantes, atuar em prol do livre desenvolvimento do indivíduo e, também, da manutenção de uma ordem social fundada na dignidade humana[3].
No Brasil, já ao início do novo sistema constitucional, Juarez Tavares afirmava que o regime democrático tinha a proteção à dignidade como condição para a concretização da cidadania[4]. Uma década depois, Juarez Tavares acrescentava que o bem jurídico, enquanto valor, possuia o papel de proteção da pessoa humana, ou seja, a validade do bem jurídico estava condicionada à sua conversão em “objeto referencial de proteção da pessoa”[5]. Portanto, há de se considerar correto o caminho apresentado, na década de 70, por Roxin, já que, por esta via, introduzem-se decisões valorativas político-criminais no sistema penal, de forma que tanto a submissão ao direito quanto a adequação aos fins político-criminais devem estar unidas e jamais poderão ser contraditórias[6]. O Estado de Direito e o Estado Social devem compor uma unidade dialética, pois uma ordem jurídica sem justiça social não representa um Estado de Direito material[7]. Por outro lado, deve-se recusar a utilização do termo Estado Social para um Estado planejador e providencialista que não acolhe as garantias de liberdade do Estado de Direito[8].
Em outros termos, Roxin afirma que os Direitos Humanos e os princípios do Estado de Direito e do Estado Social de Direito integram as valorações político-criminais[9], por conseguinte, não há uma razão fundamental que justifique a permanência da utilização, pela nossa dogmática, de um modelo penal crente em um (pseudo)puro ontologismo – sistema fiel ao ser e metodologicamente indiferente aos valores mais caros do Estado Democrático de Direito, isto é, ao dever ser.
O mais importante para atingir este objetivo é a adoção de uma mudança metodológica de análise. Este novo paradigma metodológico, em primeiro lugar, depende de que toda análise das incriminações penais tenha como ponto de partida o bem jurídico como limite e condicionante do poder de punir, jamais como justificação. Nesta linha, Souza Mendes, que não deixa dúvidas de que, independentemente da importância conferida ao bem jurídico, ainda que ele esteja no topo da axiologia constitucional, por si só, tal fator jamais poderá fundamentar a criminalização de qualquer conduta, o que, por óbvio, não impede a imposição de sanções de caráter extrapenal[10].
No pensamento de Hassemer, verifica-se claramente que a proteção do bem jurídico é um princípio negativo, que limita o Direito Penal, de forma que, em seu conteúdo, nunca houve qualquer exigência de criminalizar condutas lesivas a bens jurídicos, mas sim a proibição de se tipificar condutas que não lesem e nem ponham em perigo um bem jurídico[11]. Em verdade, para o bem jurídico ser digno de tutela penal, deve ele ser “elemento da própria condição do sujeito e de sua projeção social”, uma vez que é a pessoa humana “o objeto final de proteção da norma jurídica”[12]. De tais lições, logicamente, extrai-se que um bem, por mais relevante que o seja, somente poderá ser tutelado pelo Direito Penal, isto é, ter dignidade penal, se tiver referibilidade na proteção da pessoa humana.
Para a mudança metodológica proposta, é necessário haver o atendimento de uma segunda condição. Não se pode embarcar em um devaneio normativista de que o legislador tem poder de determinar o que é e o que não é bem jurídico. Navarrete, com muita precisão, expõe que o bem jurídico deve ser entendido a partir de um substrato substancial preexistente ao legislador[13]. Assim, apenas a configuração valorativa deste bem jurídico pode ser normativamente estipulada pela lei penal[14], mas sem que isto implique em criação do bem jurídico, limitando-se ao reconhecimento do bem digno de tutela que preexiste à sua norma protetiva. A necessidade de observância desta segunda condição justifica-se como forma de evitar o expansionismo do Direito Penal, mormente daquele de caráter simbólico, em que toda e qualquer conduta pode ser criminalizada, com independência de sua efetividade e legitimidade, bastando, para tal proceder, a vontade do legislador preocupado com os anseios políticos imediatos e com os baixos custos de se ministrar o placebo social das leis penais simbólicas.
Dessa forma, observando o jurista esta questão metodológica, deixará ele de atuar como um pesquisador – ou melhor, inventor – de fundamentos ou argumentos etéreos e exógenos para justificar leis penais simbólicas ilegítimas e inconstitucionais que não tutelam qualquer bem jurídico. A título de exemplo, cite-se o comentário de Milaré e Paulo José da Costa Júnior sobre – a começar pela violação do princípio da legalidade penal – o ilegítimo e inconstitucional crime previsto no artigo 68 da Lei 9.605/98[15], que não chega sequer a determinar o dever, criando um tipo omissivo indeterminado. De maneira acrítica e ingênua estes autores se limitam a dizer que o bem jurídico é o Meio Ambiente em razão de não se admitir que todo e qualquer cidadão se omita em seu dever de preservá-lo[16].
Em realidade, no tocante ao citado tipo penal, o legislador brasileiro pouco divergiu do legislador nacional-socialista que, como recordam Hassemer e Kargl, com o direito de ocupação, proclamou a punição conforme a analogia e o são sentimento do povo[17]. A sociedade brasileira, pelo contrário, talvez em função dos novos tempos e de uma renovada comoção social punitiva, sanciona criminalmente aqueles que violam “obrigação de relevante interesse ambiental”. Curioso que, mesmo autores críticos à expansão do Direito Penal simbólico, ao comentarem o citado artigo procuram encontrar um bem jurídico que legitime a norma incriminadora. Prado, por exemplo, reforça que o bem jurídico é a Administração Pública e o seu correto funcionamento administrativo, além do ambiente, como ele ao final expõe em poucas palavras, mas que, em seu texto, termina por ser relegado ao segundo plano[18]. No raciocínio de Prado, é, no mínimo, curioso, para não se afirmar contraditório, o fato de alguém poder ser sujeito ativo deste crime por meio de um contrato celebrado entre particulares em uma relação privada, quando o bem jurídico tutelado é insuperavelmente a Administração Pública[19]. Ou seja, impõe-se uma mudança de atitude metodológico-científica, pois normas penais simbólicas estão sendo “justificadas” quando nem se sabe o que se efetivamente protege.
3. Bem Jurídico “Meio Ambiente”
Ultrapassadas as considerações de base, passa-se, por consequência, a minudenciar o modo de análise e desenvolvimento das questões específicas que envolvem o se e o quando do emprego do Direito Penal na tutela do Meio Ambiente. Como uma primeira problemática, cabe indagar a respeito do que, propriamente, será protegido. Deve-se desvelar o que seja o bem jurídico ambiental, pois o Meio Ambiente, enquanto bem juridicamente protegido, não pode ser confundido “com pedaços desgarrados da natureza”, isto é, como expõe Souza Mendes, não há sentido em erigir todas as criaturas em “repositórios autônomos de valores transcendentes”[20].
Nesse diapasão, é possível a defesa de que o bem jurídico ambiental é a idealização de uma necessidade social que se reporta ao conjunto das condições da vida humana. O bem jurídico, que deve ser entendido como uma entidade abstrata e axiológica, não se confunde com o objeto da ação, pois o último é aquele substrato empírico que sofre a ação do sujeito ativo. É válida a ressalva de Prado no sentido de que nem todo tipo penal possui um objeto da ação, vide os delitos de mera atividade, ao contrário do bem jurídico, visto que, somente através dele, ao fundamentar a ilicitude material da conduta reprovada, confere-se legitimidade à intervenção penal editada pelo legislador[21].
Deve-se destacar que a concepção de Meio Ambiente, em sentido natural, é uma conceituação reduzida, pois exclui as questões urbanísticas em sentido estrito e as do patrimônio histórico-cultural, que se encontram inseridas no Meio Ambiente artificial[22]-[23]. O conceito amplo de Meio Ambiente se subdivide em três espécies: Meio Ambiente natural; Meio Ambiente artificial ou urbano, que compreende o espaço urbano construído, como o conjunto de edificações e dos equipamentos públicos; e o Meio Ambiente cultural, formado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico, sendo que o legislador brasileiro criminalizou na Lei 9.605/98, de forma constitucionalmente duvidosa, condutas que atentam contra as três espécies ambientais[24].
Há duas visões divergentes na verificação conceitual do bem jurídico Meio Ambiente, são elas: antropocêntrica e ecocêntrica. Como explica Siracusa, na perspectiva antropocêntrica, o ambiente é percebido como um conjunto de condições naturais, cuja existência serve apenas para assegurar a sobrevivência do ser humano[25]. Sob o ponto de vista político-criminal, este posicionamento é bem interessante, pois reduz de forma radical o plantel de intervenções penais legitimáveis. No entanto, a radicalização da visão antropocêntrica, ao vincular as ações atentatórias ao Meio Ambiente à afetação direta de bens jurídicos individuais, traz um problema metodológico insolúvel, mesmo na tutela do ambiente contra lesões ou ameaças com dignidade penal, isto, porque, na maioria das agressões ambientais, não há um ataque direto a um bem jurídico individual, vide, por exemplo, um derramamento contínuo de resíduos industriais em mananciais que não abastecem o consumo humano, mas que sirvam à atividade industrial de base. Tal evento não acarretará, de forma direta e necessária, lesão aos bens jurídicos vida, integridade física e saúde das pessoas. Todavia, no mínimo, irá degradar a qualidade da água ou até impedir o seu futuro consumo, atingindo a qualidade de vida de toda uma população. Nessa hipótese, pode-se perceber que a proteção dos mananciais, ainda que entendida como um bem jurídico autônomo supraindividual, atua em favor da manutenção da vida humana, mesmo que potencial, através da conservação da pureza das águas. É de inegável coerência e acerto a defesa de que os bens jurídicos coletivos coexistem ao lado de bens jurídicos individuais. A vantagem do bem jurídico coletivo é sua autonomia metodológica. Entretanto, o bem jurídico coletivo não pode perder sua referência ao indivíduo[26] e nem ser a soma de bens jurídicos individuais. Não se deve concordar com as posições rígidas, tanto em favor do antropocentrismo quanto do ecocentrismo, posto que as mesmas baseiam-se em pontos de partida equivocados. A questão a ser resolvida não é decidir se o Meio Ambiente será percebido, a partir de uma linha antropocêntrica, como patrimônio da humanidade a ser gozado em seu favor e, por tal razão, plenamente disponível e consumível, ou a partir de uma visão ecocentrista, seja radical[27] ou moderada[28], que lhe confere diversos graus de intangibilidade.
O importante é impedir que o Homem seja instrumentalizado na tutela penal do ambiente. Em realidade, o Meio Ambiente deve ser trabalhado como um instrumento em favor do Homem (antropocentrismo), apenas não se pode criar na tutela penal do ambiente uma vinculação direta e imediata entre o bem jurídico ambiental coletivo e os bens jurídicos individuais clássicos. Há de se garantir, ao primeiro, autonomia metodológico-científica, posto que se defende o Meio Ambiente como um bem jurídico supraindividual, que está necessariamente a serviço da própria humanidade.
Apesar desta preocupação exposta com a referência à pessoa humana, contestações existirão a este posicionamento. Nesse sentido, Pardo critica os chamados bens jurídicos macrossociais. Segundo seu entendimento, uma forte tensão se origina com a extensão do conceito de bem jurídico a realidades com horizontes amplos e difusos, tais como o Meio Ambiente[29]. Entretanto, a resposta a esta crítica encontra-se na construção de um conceito que somente reconheça a qualidade de bem jurídico penalmente tutelado a condições ambientais que realizem o princípio da dignidade da pessoa humana. Ou seja, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser trabalhado com o escopo de cercar e corporificar as realidades ambientais tão amplas e difusas, que legitimamente podem ser consideradas como um bem jurídico penalmente tutelável. O referido axioma, enquanto princípio que o é, deve ser adequado à configuração de todos os outros, logo, seguindo a lição de Ávila, os princípios são normas que possuem as seguintes características: imediatidade finalística, primariedade prospectiva e pretensão de complementaridade e de parcialidade, sendo que, para sua aplicação, demanda-se uma avaliação correlativa entre o estado de coisas a ser promovido e as consequências que se originam da conduta tida como necessária à sua promoção[30].
A dignidade da pessoa humana possui, além da dimensão ontológica, uma face prestacional. Concorda-se com Sarlet que, ao analisar o princípio da dignidade da pessoa humana, afirma que dele decorre um complexo de direitos e deveres fundamentais que não se limita a assegurar à pessoa proteção contra atos desumanos e degradantes, mas que, inclusive, visa a garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável e para a participação ativa e corresponsável nos caminhos a serem trilhados pela própria humanidade[31]. Em outros termos, as garantias finalísticas do axioma da dignidade da pessoa humana elencadas por Sarlet somadas às características dos princípios apontadas por Ávila são aptas a conferir carga normativa finalístico-funcional e um parâmetro conteudístico mínimo que permitirão à dogmática inserir o princípio da dignidade da pessoa humana na construção do bem jurídico ambiental. Desse modo, podem ser resolvidos os problemas metodológicos originários da tentativa antropocêntrica, a partir de presunções inverificáveis, de conectar os bens jurídicos coletivos aos individuais no momento de aplicar as normas penais de proteção do Meio Ambiente. Juarez Tavares explica que o Meio Ambiente, enquanto bem jurídico tutelado pelo Direito Penal, precisa ser “bem essencial da pessoa humana e sua relação com outras pessoas e com a natureza”, e não “bem protegido em si mesmo” ou como “interesse exclusivo do Estado e de seu poder de controle”[32].
Por outro lado, há de ser reconhecida a índole supraindividual do conceito de bem jurídico, tal como bem defende Navarrete[33], principalmente, por sua vantagem metodológica. Entende-se, então, que a descrença de Stratenwerth nos bens jurídicos coletivos ou universais não mais se justifica[34]. É insuficiente a argumentação de que os interesses individuais “mais ou menos consolidados de uma pluralidade de sujeitos” já estão protegidos pela Lei[35]. O equívoco desta ideia está na crença de que a defesa de bens jurídicos supraindividuais representa sua criação[36] e não seu reconhecimento[37]. Figueiredo Dias acusa de ilegítima a restrição do conceito de bem jurídico penal aos interesses individuais, já que tal proceder recusa a plena e legítima existência dos bens jurídicos transpessoais e sociais[38]. A última ressalva a ser feita consiste no fato de que os bens jurídicos coletivos não representam a união de bens jurídicos individuais, mas sim bens jurídicos que têm caráter supraindividual e que podem ser gozados por toda e qualquer pessoa em sua integralidade. Em conclusão, quando se trata de bem jurídico ambiental, deve-se entender que a tutela penal versa sobre as condições dignas de habitabilidade e qualidade de vida das pessoas humanas no planeta. Recusa-se, portanto, tratar da tutela do Meio Ambiente cultural como tutela do Meio Ambiente propriamente dito, pois seus fundamentos e sua lógica são diversos, em verdade, mais próximos dos tipos penais de dano ao patrimônio. Nesta linha, veja-se o crime do artigo 65 da Lei de Crimes Ambientais – crime que envolve a conspurcação de edificação ou monumento urbano –, de forma que toda e qualquer crítica aos crimes contra o Meio Ambiente cultural, a partir da perspectiva do bem jurídico, não se enquadra no âmbito do que, neste estudo, denominam-se crimes ambientais, o que justifica sua não inclusão nesta análise, sob pena de se causar imprecisão e confusão de suas premissas, de forma a parecer que se tenta reinventar a roda nos crimes contra o patrimônio.
Por fim, traz-se a elucidativa conclusão de Ribeiro de Faria de que, na problemática da tutela penal do ambiente, há um direito fundamental da pessoa humana – direito ao Meio Ambiente –, o qual exige proteção e está constitucionalmente consagrado[39] e que visa à promoção de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado para a vida humana, mas que, por outro lado, não obstante o peso do referido direito, há também de se considerar que, ao legislador penal, inexiste permissão, valendo-se do Direito Penal, para exorbitar de sua tarefa de proteção de bens jurídicos essenciais.[40]
4. Princípio da Exclusiva Proteção de Bem Jurídico e Tutela Penal do Ambiente
Apesar de, no plano político-criminal, fazer-se fortes críticas ao Direito Penal do Ambiente, há de se reconhecer que tal modelo não deixará de existir e de ser pugnado. Inclusive, pode-se até vislumbrar que, contra algumas e pontuais agressões e ameaças de cunho ambiental, ele poderá ter real valia. Hassemer, no entanto, escreve que a verdadeira contribuição do Direito Penal do Ambiente consiste na sua utilização com fins de exclusiva jactância pelos políticos que procuram demonstrar aos eleitores a sua “preocupação” com os problemas do mundo moderno e se valem da criação de leis simbólicas em razão de seu baixo custo, se comparado com os de uma efetiva política de proteção do ambiente[41]. Para Juarez Tavares, o “simbólico sempre foi o lugar comum das construções jurídicas”[42]. Ainda que se abstraiam as discussões sobre o simbolismo das leis penais, o próprio Hassemer, que defende o desenvolvimento de um ramo próprio do Direito (“Interventionsrecht”)[43] para a tutela ambiental, concorda que existem fatos que devam permanecer com relevância penal. Nessa linha, Hassemer cita os fatos cuja antijuridicidade seja independente de configurações extrapenais, como os atentados contra bens jurídicos clássicos (vida, integridade física e etc.) através das agressões contra o Meio Ambiente e os relacionados aos crimes de perigo[44].
É válido repetir que, mesmo que se advogue o fim do Direito Penal Ambiental, esse tende a sobreviver no sistema jurídico, ainda que de forma assistemática, posto que não há quaisquer sinais de uma mudança do rumo dos ventos políticos. Portanto, o bem jurídico Meio Ambiente deve ser sempre um tema tão caro para os penalistas, pois, do contrário, os abusos e as deturpações do sistema penal só tenderão a aumentar. A relevância e a imprescindibilidade da existência do bem jurídico nos tipos penais ambientais são óbvias, isto, porque, só se servirem à proteção de bens jurídicos, as incriminações penais no Estado Democrático de Direito estarão legitimadas. Do contrário, corre-se o risco de se ter um terror de Estado, como bem adverte Hassemer[45]. Nesse mesmo sentido, Jescheck e Weigend, que expõem, no debate a respeito dos limites da justificação da pena, que o conceito de bem jurídico serve como uma restrição ao Direito Penal, visto que vincula a sanção penal à prática de comportamentos prejudiciais[46]. Contudo, para a pena restar justificada, Jescheck e Weigend reconhecem que o mero conceito de bem jurídico é insuficiente, pois o mesmo não responde às questões político-criminais postas, vide a conservação ambiental, de forma que acabam por reconhecer que o decisivo é a decisão político-jurídica prevista na Constituição[47]. Foi com o intuito de superar a deficiência apontada que se defende a adoção de um conceito autônomo e supraindividual de bem jurídico ambiental fundado em um Estado de Direito (Substancial) constituído em bases constitucionais e principiológicas, dotado de carga normativa teleológico-racional e de conteúdo mínimo moldado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, de maneira que jamais se perca o Homem como fim último do sistema normativo.
Assim, é imperioso questionar a respeito da necessidade, ou não, do princípio – constitucional implícito – da exclusiva proteção de bens jurídicos ser sempre observado, inclusive, na tutela ambiental. De um lado, pode-se dizer que o pensamento jurídico-penal moderno incorporou a ideia de que o fim do Direito Penal está na proteção de bens jurídicos fundamentais ao indivíduo e à sociedade, isso, a partir de um parâmetro valorativo constitucional que decorre do Estado Democrático de Direito[48]. Prado complementa e pondera que só existirá legitimidade no exercício da tutela penal quando sua imposição for socialmente necessária e imprescindível para garantir as condições vitais, o desenvolvimento e a pacificação social, desde que não se descure dos valores maiores da dignidade e da liberdade humana[49]. Em sentido oposto, Jakobs afirma que o pensamento defensor de que a finalidade da lei penal é a proteção de bens jurídicos não se ajusta às normas que, sem estarem relacionadas à garantia de bens jurídicos, visam a proteger a paz social, como, por exemplo, o crime de maus-tratos a animais[50]-[51]. Ou seja, apesar de ter havido, no pensamento majoritário da doutrina penal, a incorporação do dogma de que o Direito Penal destina-se a proteger bens jurídicos, este não é unanimidade[52], sendo que, inclusive, há aqueles que lhe põem fé, mas trazem-lhe exceções[53].
Convém analisar de forma detida o crime de maus-tratos a animais, uma vez que esta espécie típica é a prova de fogo do princípio de Direito Penal da exclusiva proteção de bens jurídicos. A indignidade da conduta de maltratar e sacrificar animais é uma questão ético-moral aceita pelo senso comum dos países de cultura ocidental. Somente pessoas que não compartilham deste senso ético-moral poderiam achar valiosa ou ser indiferentes à prática de agressões injustificáveis aos animais, como a mutilação de um animal em perfeito estado de saúde para fins de entretenimento. Todavia, apesar desta reprovação natural aos maus-tratos a animais, há um difícil problema a ser resolvido pelos penalistas. A problemática consiste em determinar qual o bem jurídico tutelado nesta ignóbil conduta, posto que se argumenta que os animais não representam um fator para a realização humana e nem para a manutenção do sistema social[54].
Roxin reconhecia, na segunda edição de seu tratado, que o tipo penal do crime de maus-tratos a animais é, correntemente, apontado como prova de que se deve admitir punição penal sem lesão a bens jurídicos[55]. No entanto, nesta edição, Roxin respondia a esta problemática, afirmando que, na vedação penal aos maus-tratos a animais, não existe uma proteção a uma mera concepção moral, mas sim a uma espécie de solidariedade entre as criaturas, uma vez que os animais inferiores poderiam ser vistos como “irmãos distintos” e o seu sofrimento equiparado ao do Homem[56]. Porém, na quarta e última edição de seu tratado, Roxin reformula sua abordagem sobre a temática e sustenta a superação da concepção que restringe a proteção penal à de bens jurídicos; pelo menos, em três hipóteses: proteção da flora e da fauna, dos embriões e dos interesses das futuras gerações[57].
Uma ressalva há de ser feita. Roxin apenas menciona esta superação e abre as portas para a excepcionalidade de tutelas penais legítimas sem bens jurídcos, pois esta foi a solução encontrada para manter a coerência sistemática de um modelo conceitual muito restritivo da essência de bem jurídico. Roxin define os bens jurídicos como “circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o livre desenvolvimento do indivíduo, a realização de seus direitos fundamentais e para o funcionamento do próprio sistema”[58].
Entretanto, como o próprio Roxin reconhece, não há consenso doutrinário sobre seu conteúdo e, frequentemente, sua operabilidade é por demais vaga, de modo que a teoria do bem jurídico é, ainda hoje, um dos problemas de base-penal menos clarificados[59]. No entanto, neste ponto, pode-se fazer reparos ao pensamento de Roxin. É importante que se defenda a atualidade e a imprescindibilidade de haver bem jurídico para a tutela penal ser legítima. Criticamente ao posicionamento de Roxin, Stratenwerth pondera que a restrição conceitual do bem jurídico às eventuais condições de existência e de desenvolvimento humano, enquanto ser social, ignora o fato de que cada grupamento humano conhece e precisa de diversas normas de condutas culturalmente desenhadas, normas estas que não tratam de bens com uma solidez consistente[60]. O que se deve exigir e considerar imprescindível é a referibilidade do conceito de bem jurídico à pessoa humana, vista, sob o ponto de vista normativo, a partir do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Para Stratenwerth, é insustentável o dogma da ilegitimidade das normas penais que não protegem bens jurídicos determinados, visto que estes podem ter um caráter indeterminado, tal como o Meio Ambiente[61]. A distinção entre bens jurídicos determinados e indeterminados não é a melhor, uma vez que o mais correto está em distinguir os bens jurídicos em determinados de plano e bens jurídicos determináveis, isso conforme a demanda de esforço exigida do intérprete para constatar – ou refutar – a existência de um bem jurídico prévio à edição da norma penal. Stratenwerth afirma que não se pode negar proteção penal ao Meio Ambiente, primeiro, porque dogmaticamente é insustentável a restrição da tutela penal a apenas bens jurídicos determinados e, segundo, porque a Constituição[62] foi expressa ao assinalar o dever estatal de proteção ao Meio Ambiente[63]. Concorda-se que o critério, ora defendido, de bem jurídico é mais aberto do que o conceito de bem jurídico determinado, tal como classificado por Stratenwerth, e que por tal razão será objeto de contestação, posto que poderia haver uma dilatação de tal ordem no conceito de bem jurídico que seria impossível encontrar um tipo penal ilegítimo por falta de bem jurídico, já que toda incriminação justificar-se-ia, vide uma hipotética criminalização de todo e qualquer movimento em favor da retirada do Colégio Pedro II do âmbito do governo federal[64]. Ocorre, entretanto, que o conceito defendido encontra-se imune a esta distorção. A imunidade do conceito de bem jurídico defendido advém da necessária referência do injusto penal – esta entendida em sentido protetivo e não contradizente – com a dignidade da pessoa humana. Logo, incriminações, tais como a citada por Greco, são ilegítimas e inconstitucionais, uma vez que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos foi dilacerado no instante em que foi desconsiderado o princípio da dignidade da pessoa humana e, por consequência, o princípio da proporcionalidade. Ao ponderar as vantagens e desvantagens do tipo penal, o princípio da proporcionalidade se configura como “parâmetro crítico” e exigência de “uma legislação racional”[65].
A opção legislativa de incriminar lesões e ameaças ao Meio Ambiente necessita de uma avaliação em concreto; não sendo possível uma definição prévia e abstrata no sentido de que toda incriminação de condutas lesivas ao Meio Ambiente é legítima em razão de a Constituição ter determinado a sua proteção. Há incriminações legítimas, por exemplo, o crime de maus-tratos a animais e o de poluição – este último por afetar diretamente as condições de habitabilidade do planeta – tanto quanto há outras na seara ambiental cuja ilegitimidade é patente, como a do crime do artigo 49 da Lei 9.605/98, em sua forma culposa[66] e a do artigo 68 da citada lei[67]. Com base em Zaffaroni, é possível que se diga que se o Direito Penal não for “antropologicamente fundado”, ele não será efetivo e se traduzirá em inevitáveis frustrações[68].
Incorporando o problema à realidade urbana da cidade do Rio de Janeiro, pergunta-se: em uma mortandade pontual de peixes na Lagoa Rodrigo de Freitas provocada pelo derramamento doloso do resto de combustível do tanque de um posto de gasolina quando da limpeza do mesmo para futuro reparo, o proprietário do posto, que optou por poluir a lagoa, matando os peixes, como forma de esvaziar o tanque, deve sofrer as penas do artigo 33 da lei 9.605/98, que concretamente é uma espécie de maus-tratos, tanto quanto a conduta prevista no artigo 32 com base em que fundamento material? Ou seja, qual foi o bem jurídico violado em questão, se é que existe?
Em primeiro lugar, há de se afirmar a existência de bem jurídico tutelado preexistente à criminalização do crime de maus-tratos a animais, aqui entendido em sentido amplo, abarcando não apenas o tipo penal do artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais. Corretamente, exclama Schünemann que o desprezo do princípio da proteção de bens jurídicos e o emprego politicamente deturpado do Direito Penal no Terceiro Reich evidenciaram a imprescindibilidade de se restringir o uso do Direito Penal[69]. Não obstante reconheça-se a dignidade penal do crime de maus-tratos a animais, sabe-se da dificuldade de se perceber, à primeira vista, o bem jurídico tutelado. A dignidade penal desta conduta reside no fato de haver uma projeção do espectro da vida humana na vida animal[70].
A existência animal espelha a humana, afinal todos são animais, apenas com a diferença de que eles são irracionais, enquanto que o homem é um ser racional.
Como defende Schünemann, para o reconhecimento dos bens jurídicos coletivos, devem eles compreender “as condições transindividuais de uma convivência próspera”[71]. Por óbvio não se está defendendo a convivência próspera entre seres humanos e animais irracionais, mas sim entre as próprias pessoas. A conduta de mutilar, com finalidade puramente recreativa, um animal, por exemplo, um cachorro, deve ser punida porque este ser vivo reflete a vida e a integridade físico-psíquica humanas e, por tal razão, a mutilação animal atinge a própria dignidade humana. É por esta razão que se sente raiva, asco, dentre outros sentimentos, quando se vislumbra o atuar de alguém que maltrata os animais. Sentimentos estes que surgem, da mesma forma, ainda que em maior intensidade – pelo menos em regra, mas não necessariamente –, quando o maltrato é cometido contra uma pessoa. Não se defende a tutela do sentimento humano frente a estas condutas ignóbeis e nem o sentimento de solidariedade entre Homens e animais. Defende-se, sim, a tutela da vida e da integridade física dos animais enquanto projeções da vida e da integridade humanas, pois suas violações atingem a própria dignidade humana. Este espelho valorativo importa ao Homem na medida em que ele contribui para a formação de sua personalidade e do modo de agir para com seus semelhantes, tendo em vista a referida convivência próspera. A vedação dos maus-tratos a animais tutela valores básicos da pessoa humana e da convivência humana e não dos animais em si próprios ou de eventual relação fraternal ou solidária que se tenha com estes. Assim, a partir da concretização do bem jurídico tutelado no crime de maus-tratos a animais, pode-se eliminar eventuais dúvidas quanto à imprescindibilidade do bem jurídico para haver legitimidade na tutela penal.
Juarez Tavares faz uma distinção entre bem jurídico e função, em que o bem jurídico representa um valor humano universal real material ou ideal[72] e independente de qualquer relação funcional para existir e conformar sua essência, pois é tomado como valor em si mesmo[73]. A função, em contrapartida, explica Juarez Tavares, já não existe por si mesma e forma-se a partir da dependência existente entre uma relação e suas variáveis[74]. A função somente possibilita “cálculos de predicados” que jamais se confundem com valores[75]. Para o Meio Ambiente ser um bem jurídico penalmente tutelável, e não uma função, deve ele ser configurado como um “bem essencial da pessoa humana e sua relação com outras pessoas e com a natureza”[76].
Neste sentido, já se encontra respondida a pergunta anteriormente formulada. A fauna aquática penalmente protegida, pelo citado artigo 33, contra a mortandade indiscriminada de peixes, o é enquanto reflexo do valor esculpido na vida e dignidade humanas. Assim, não se deve ter dúvidas de que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos permanece presente em todos os tipos penais legítimos e constitucionais, funcionando como um critério exclusivamente negativo, não podendo jamais trabalhar como motivador do expansinismo penal. Em termos práticos, o crime de maus-tratos a animais é legítimo, pois visa a proteger um bem jurídico constitucionalmente reconhecido.
No entanto, é de bom tom ressaltar que este valor concretizado na figura do bem jurídico não impõe necessariamente a tutela penal, inclusive na seara ambiental. A tutela do bem jurídico pode ser de cunho administrativo, pois não há imposição constitucional em favor da tutela penal em detrimento da tutela administrativa, nem mesmo em sede ambiental. A escolha de qual instrumental a ser utilizado, em cada caso, tem caráter político, mas este ato político encontra-se condicionado pelos princípios penais liberais, que têm fundamento constitucional e formam um dos pilares do Estado Democrático de Direito, princípios estes que se relacionam com os princípios constitucionais de cunho mais amplo, tais como o da proporcionalidade e o da dignidade da pessoa humana. Verifique-se, então, que não são corretas as defesas de que o parágrafo 3º do artigo 225 da Constituição impõe a aplicação incondicional e indiscriminada do Direito Penal para toda e qualquer hipótese de lesão ou ameaça ao bem jurídico ambiental.
4.1 Princípio da Lesividade e Tutela Penal do Ambiente
Ultrapassada a problemática envolvendo o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, é chegada a hora de se analisar a questão subsequente. Há, ou não, a necessidade de se atender ao princípio – constitucional implícito – da lesividade na tutela penal do ambiente? De antemão, responde-se que sim. Seguindo a lição de Ferrajoli, como forma de controle da legislação penal, pode-se fundamentar este “sim” na necessidade de se introduzir uma dimensão substancial nas condições de validade das normas e na natureza da Democracia, posto que a subordinação da lei aos princípios constitucionais representa um dos requisitos do constitucionalismo rígido, que é um dos nortes para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito em sentido material[77].
O axioma da lesividade também é conhecido por princípio da ofensividade. Sua existência e a sua necessidade de observância encontram considerável consenso na dogmática jurídico-penal brasileira[78]. Uma importante ressalva há de ser feita antes de se prosseguir na análise do princípio da lesividade. Não se confunda o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos com o da lesividade, pois o primeiro representa uma restrição à escolha política dos elementos valorativos a serem penalmente tutelados, enquanto que o segundo significa que a infração penal somente estará configurada quando o elemento valorativo já selecionado sofrer um ataque efetivo ou periclitar, logo, não há porque confundi-los, uma vez que os mesmos têm uma funcionalidade diversa dentro do sistema penal[79]. De forma mais objetiva, segundo Zaffaroni e Batista, o princípio da lesividade pode ser entendido como a negativa de legitimidade à “intervenção punitiva quando não medeie, pelo menos, um conflito jurídico, entendido como a afetação de um bem jurídico total ou parcialmente alheio, individual ou coletivo”[80]. Um sistema penal que não respeita o princípio da lesividade é um sistema inconstitucional por não corresponder ao mínimo que se espera de um Estado – efetivamente – Democrático de Direito.
Como escreve Juarez Tavares, a eleição do elemento valorativo enquanto bem jurídico só será válida, se sua lesão significar um dano ou sua ameaça às pessoas e às suas condições sociais[81]. A exigência, descrita por Juarez Tavares, para legitimar a incriminação penal, de que os bens eleitos venham a sofrer uma lesão ou ameaça – circunstâncias estas que devem ser aferidas na realidade e não no mundo simbólico – constitui um obstáculo fundamentalà aceitação de políticas criminais que visam a proteger funções[82]. Como exemplo maior de tipo penal que, por inteiro, não protege o bem jurídico ambiente, mas a função de controle do Estado e, por estas e outras razões, representa uma incriminação ilegítima e inconstitucional, há o artigo 68 da Lei 9.605/98. No entanto, existem outros artigos em situação similar. Veja-se, por exemplo, a conduta daquele que apenas executa pesquisa em desacordo ou sem a permissão da autoridade competente. Resta clara a inconstitucionalidade do artigo 55 da Lei 9.605/98[83], uma vez que não há qualquer bem jurídico lesionado nesta hipótese. Por esta conduta, apenas a função de controle do Estado foi violada, mas ela não é bem jurídico penalmente tutelável, como já exposto nas linhas anteriores.
A problemática envolvendo os fundamentos da responsabilidade penal por danos ambientais traz grandes desafios para a Teoria do Delito. Mesmo se o legislador, ao contrário do legislador pátrio, apenas tentasse tutelar bens jurídicos, deixando as funções e outros interesses para a via administrativa, já se depararia com grandes dificuldades, uma vez que, de um lado, permaneceria o embate entre o valor representado na garantia e na preservação das condições mínimas de habitabilidade do planeta pelo Homem, e, pelo outro, o direito fundamental de liberdade, que estaria sofrendo restrições por meio do emprego do Direito Penal. O encontro do ponto de equilíbrio na ponderação destes valores seria a virtude, em uma visão platônica, a ser almejada pelo Poder Legislativo. Ainda que se vivesse nesta situação ideal, os problemas não estariam solucionados, pois se teria sempre que encontrar uma decisão salomônica para cada embate valorativo. Como se permanece em um estágio anterior de desenvolvimento do Direito, há de se reconhecer que, em muitas hipóteses, a legislação penal pátria, em especial, a Lei de Crimes Ambientais, é um meio de violação dos princípios mais caros ao Estado Democrático de Direito. Por exemplo, pense-se quando um cidadão, sob o prisma do parágrafo único do artigo 49 da Lei 9.605/98, for penalmente responsabilizado, tendo seu direito constitucional de liberdade violado, por ter, em sua caminhada matinal, imprudentemente, isto é, sem intenção, pisado em algumas plantas de ornamentação do logradouro público onde se exercitava.
A referida mácula ao direito fundamental de liberdade e outras similares ocorrem quando, segundo Zaffaroni e Batista, a criminalização alcança um limite de irracionalidade intolerável a partir da tipificação de conflitos de lesividade ínfima ou, ainda que haja uma certa lesividade, a afetação de direitos envolvidos é grosseiramente desproporcional à magnitude da lesão causada por meio da responsabilização penal[84]. Em outras palavras, existe um conflito entre os valores e princípios de cunho ambiental e os de um Direito Penal Humanístico, como, o princípio da lesividade e o da proporcionalidade mínima. Cabe ao hermeneuta proceder a uma ponderação axiológica[85] tendo, sempre, como marco a Constituição. Há o embate entre princípios, recordando-se que estes são normas, que devem ser otimizadas. Assim, é necessário que se recorra à proporcionalidade[86] para lograr a compatibilização valorativo-constitucional dos interesses em conflito na responsabilidade penal por danos ambientais. Como, precisamente, conclui Juarez Tavares, a pena “deve guardar relação proporcional com o dano social produzido pelo delito”[87].
Os princípios humanizadores do Direito Penal são classificáveis, por Zaffaroni e Batista, como princípios limitadores que excluem violações ou disfuncionalidades grosseiras com os Direitos Humanos ou como princípios limitadores da criminalização que emergem diretamente do Estado de Direito[88] e que, sob a visão neoconstitucionalista, apresentam eficácia vinculante, ainda que possam, em alguns casos, sofrer uma ponderação. Isto significa que a tutela penal do ambiente, se, e talvez, quando necessária for, deverá ser realizada em adequação aos valores que emergem do Estado Democrático de Direito. Por tal razão, o princípio da lesividade deve obrigatoriamente ser observado.
4.2 Princípio da Lesividade e Estrutura Típica do Delito
Após ter sido demonstrada a necessidade de observância do princípio da lesividade na configuração do injusto penal, posto que o injusto somente surge com a lesão ou ameaça ao bem jurídico tutelado, cumpre, agora, verificar as modalidades possíveis da estrutura típica delitiva. Primeiramente, deve-se perquirir se na tutela penal do ambiente, o legislador tipificou os delitos considerando-os como crimes de lesão, perigo concreto, perigo abstrato ou se empregou todas estas técnicas legislativas para, em um segundo momento, poder avaliar o atendimento do princípio da ofensividade no Direito Penal do Ambiente pátrio.
Em Maurach, verifica-se que o grau de intensidade do ataque ao bem jurídico, exigido pelo legislador, para a configuração do injusto penal, é que determina a distinção entre delitos de perigo e de lesão[89]. Certo que, para realizar esta escolha, o legislador se vale da redação do tipo penal, uma vez que o tipo é o único meio disponível no Estado Democrático de Direito para se definir as condutas penalmente proibidas, enquanto concretização do princípio da legalidade. Para a sua consumação, os delitos de lesão exigem a efetiva afetação do bem tutelado, enquanto que os delitos de perigo se contentam com a probabilidade de dano. Nos crimes de perigo são verificadas algumas subespécies. A doutrina paulista[90], por exemplo, costuma distinguir os crimes de perigo em delitos de perigo individual, quando a probabilidade de dano está referida à pessoa ou a um grupo determinado de pessoas, e em delitos de perigo coletivo ou comum, na hipótese em que o dano provável refere-se a um indeterminado grupamento humano. No entanto, tal classificação é de pouco ou de nenhuma valia[91], salvo se for ser considerado o caráter puramente didático da explicação do perigo, pois não traz qualquer efeito dogmático ou prático, tanto que Prado e Cirino[92] não chegam sequer a fazer menção a esta classificação ao discorrerem sobre os crimes de perigo. A classificação dos crimes de perigo que realmente importa para a dogmática jurídico-penal, em razão de suas importantes consequências, é aquela que separa os delitos de perigo em perigo abstrato e perigo concreto. Maurach expõe que a diferenciação existente entre os crimes de perigo abstrato e os de perigo concreto é a maior ou menor probabilidade de que o resultado lesivo se produza[93]. Seguindo a definição de Mezger, que em nada diverge do conceito utilizado no Brasil, os crimes de perigo concreto exigem, para a realização do tipo, que, no caso real e individual, haja a demonstração de que o risco de dano ou lesão efetivamente se produziu, diferentemente, dos crimes de perigo abstrato, os quais não requerem tal comprovação[94]. Explica Maurach, que, com base na experiência, se com a comissão da ação já houver perigo, o legislador poderá tipificar esta conduta transformando-a em crime de perigo abstrato, isto é, o legislador presume o perigo, face à forte probabilidade de dano que a prática da conduta acarreta, isto sem levar em conta se no caso concreto este perigo realmente se efetiva[95]. Este entendimento é recorrente no Brasil, tanto que gerou o surgimento de uma posição radical de que todos os crimes de perigo abstrato seriam inconstitucionais[96]. No entanto, este posicionamento radical é equivocado.
Como demonstra Greco, a radicalidade deste entendimento é apenas aparente, já que os autores que a defendem trabalham com um conceito confuso e muito extenso de perigo concreto, de forma que inserem, no conceito de perigo concreto, muitas condutas configuradoras de perigo abstrato[97]. Inclusive, estes autores recorrem a falsos bens jurídicos coletivos – como aqueles formados pela soma de vários bens jurídicos individuais –, o que termina por legitimar incriminações e punições francamente abusivas[98], fato este que pode ser evitado se se deixar de demonizar os crimes de perigo abstrato e se perceber seu potencial democrático, desde que trabalhado a partir das premissas corretas. D’Avila clarifica a questão ao pontuar que os crimes de perigo abstrato são legítimos quando expressam ofensividade, ainda que presentes em uma categoria limite desta noção[99].
Os bens jurídicos coletivos devem ter referência na pessoa, mas tal referência não os leva a serem uma soma de diversos bens jurídicos individuais. Em sentido contrário, Muñoz Conde e García Arán, que, ao analisarem as hipóteses em que o perigo não se refere diretamente a bens jurídicos individuais, mas sim a coletivos imateriais, como a saúde pública e o equilíbrio dos sistemas naturais[100], defendem que, em tais hipóteses, o legislador busca, primariamente, proteção contra o perigo geral que afeta à segurança coletiva e secundária e indiretamente bens jurídicos individuais, cujo perigo não representa elementar do tipo penal[101].
Não obstante, deve-se recusar o posicionamento de Muñoz Conde e García Arán. Esta recusa fundamenta-se no fato de que os verdadeiros bens jurídicos coletivos são possuídos e gozados por todos em seu todo, isto é, cada pessoa não tem direito a uma parcela deste bem jurídico coletivo, mas todos têm direito a tudo em sua integralidade, diferentemente, por exemplo, de bens jurídicos individuais como a vida e a saúde, que cada um goza a sua. Por tal razão é um erro tratar a incolumidade ou a saúde públicas como bens jurídicos coletivos, posto que elas não passam da soma de bens jurídicos individuais e, como tal, devem ser metodologicamente tuteladas de forma individual e isolada, sob pena de se legitimar – como recorrentemente faz nossa doutrina – a aplicação de sanções extremamente elevadas para a prática de condutas perigosas a bens jurídicos individuais, mas que, pela construção do aparente bem jurídico coletivo, se tornam, in legis, lesivas a esta ficção, quando, em realidade, as condutas realmente lesivas aos bens jurídicos individuais são tratadas sem tanta energia por nossos legisladores. Nestas situações, a postura correta está em abandonar esta equivocada construção do bem jurídico (pseudo)coletivo, enquanto soma de inúmeros bens individuais, e tratar a conduta como perigosa aos bens jurídicos individuais.
A figura do crime de perigo abstrato surge como uma possível estrutura delitiva a ser utilizada para superar as ficções na construção do bem jurídico coletivo. A razão desta possibilidade de superação pode ser verificada sem dificuldades. Assim Greco, ao destacar que os crimes de perigo abstrato têm “a virtude de não ocultar o fato de que o Direito Penal está realmente se antecipando”[102]. O potencial metodológico crítico da estrutura típica dos crimes de perigo abstrato não é de se desperdiçar, isto em razão deste tipo de crime deixar escancarado o fato de que a incriminação penal ocorre pela prática de uma conduta perigosa que não criou dano a qualquer bem jurídico. Bottini, por exemplo, percebeu este potencial ao trabalhar os crimes de perigo abstrato a partir do princípio da precaução[103], que tem a sua origem no Direito Ambiental. A partir da via proposta, o intérprete adquire condições de se livrar de equivocadas amarras metodológicas e de adquirir a aptidão de verificar a ilegitimidade e a inconstitucionalidade, pela falta de proporcionalidade, de certas normas incriminadoras, em especial, das que formam o Direito Penal simbólico do Ambiente. Assim, é necessário que se apresente a estrutura dos crimes de perigo abstrato adequada capaz de permitir ao intérprete realizar o juízo de (des)proporcionalidade das normas penais incriminadoras. Nos crimes de perigo abstrato, a lei presume ex ante, isto é, antes da prática da conduta, a probabilidade de dano, caso a ação proscrita venha a ser realizada. No entanto, o problema dos crimes de perigo abstrato não reside nesta presunção prévia de periculosidade, mas sim na qualidade atribuída a esta presunção legal. Há duas espécies de presunção legal: relativa ou juris tantum e absoluta ou juris et de jure, conforme, respectivamente, admita-se ou não, no caso concreto, a realização de prova em sentido contrário. O erro doutrinário maior, que levou a doutrina brasileira a um radicalismo contra os crimes de perigo abstrato, foi justamente entender que a presunção, na hipótese, seria absoluta. Acertamente, Zaffaroni deixa claro que somente é admissível que os crimes de perigo abstrato operem uma presunção juris tantum[104]. Entender de maneira diversa faria com que nos casos concretos pudessem ser apenadas pessoas que praticaram condutas que sequer chegaram a ser perigosas ao bem jurídico tutelado[105].
Recorda Zaffaroni que, a partir do momento em que se permite uma punição criminal por desobediência em virtude desta mera falta de consideração ao preceito normativo, nega-se o bem jurídico enquanto elemento essencial à configuração do injusto penal e, assim, tutela-se, simplesmente, a função de controle estatal[106]. Afirma-se que a punição ocorre em virtude da desobediência considerada em si mesma, porque, se a conduta reprovada não lesionou e nem pôs em perigo qualquer bem jurídico tutelado, há a demonstração da total desconsideração ao princípio da lesividade pela incriminação, o que acarreta a ilegitimidade e a inconstitucionalidade da norma penal, visto que esta reprovação é completamente desproporcional[107]. A solução é refutar os crimes de perigo abstrato com presunção absoluta e aceitar os que tenham presunção relativa. Antes que esta proposta seja criticada por equiparar os crimes de perigo abstrato aos de perigo concreto, impende ressalvar, com base nas lições de Zaffaroni, que tal equiparação não ocorre, uma vez que o ônus da prova de que o perigo efetivamente ocorreu, nos crimes de perigo concreto, caberá ao Ministério Público, enquanto que, nos delitos de perigo abstrato, a acusação não terá o ônus de provar a realidade do perigo, bastando a prova da prática da conduta, mas o acusado terá o ônus[108] de demonstrar que não houve periculosidade alguma ao bem jurídico em sua conduta[109].
Pode-se verificar como a estrutura dos crimes de perigo abstrato funciona na tutela do Meio Ambiente, analisando o crime de poluição[110]. Miranda Rodrigues, comentando o crime de poluição português, expõe que se critica que os crimes ambientais devam ser entendidos como de perigo abstrato, pois haveria um inadmissível alargamento da punibilidade e, também, inexistiria dignidade penal da conduta incriminada[111]. Por outro lado, ela reconhece que a construção dos delitos ambientais como de crimes de perigo concreto traz, às claras, a dificuldade em se fazer prova do nexo de causalidade entre o perigo real da conduta e a segurança do bem jurídico tutelado, dificuldade essa que persiste na defesa da ideia dos crimes ambientais como de perigo abstrato-concreto[112]. Miranda Rodrigues reconhece a inexistência de solução tranquila e assume que, apesar de a concepção favorável aos delitos como crimes de dano resolver a questão do nexo de causalidade, ela falha no desvelamento e clarificação da matéria penalmente proibida[113]. Figueiredo Dias demonstra seu ceticismo, ao afirmar que esta dificuldade não desaparecerá e nem será reduzida pelo fato de se perceber o “delito ecológico” típico-dogmaticamente estruturado e constituído como crime de dano ao invés de crime de perigo, pois a questão central é o “enfraquecimento” da relação entre a conduta e o bem jurídico[114].
A pior das soluções é tratar o crime de poluição como crime de dano, posto que não se consegue configurar o injusto penal e, por consequência, abre-se uma fenda na estrutura típica de outros delitos. A solução mais indicada é considerá-lo como crime de perigo abstrato[115]. Primeiro, porque o Meio Ambiente é tutelado por ser um bem jurídico necessário a manter a habitabilidade e a qualidade mínima de vida humana digna no planeta. Ou seja, a norma penal antecipa a incriminação da conduta face o risco criado de que o Homem fique sem estas condições elementares de vida digna. A conduta daquele que polui as águas, o ar e o solo não é de lesão ou de dano, porque os rios, as terras agricultáveis e o ar ficaram poluídos e contaminados e impróprios para o uso humano, mas sim de perigo, pois as águas, o ar e o solo são apenas os objetos materiais da ação perigosa ao bem jurídico. Bem jurídico este que é o Meio Ambiente natural enquanto elemento essencial à existência de um planeta dignamente habitável. Por exemplo, o fato de as águas e de as margens do Rio Tietê estarem, em grande parte contaminadas, não significa que ninguém mais possa habitar a cidade de São Paulo. A impossibilidade de habitação é o dano, mas como não se pode esperar a chegada deste ponto, o legislador antecipa sua incriminação para o momento em que a habitabilidade começa a ser posta em risco.
Neste diapasão, se alguém causar poluição atmosférica, que provoque a retirada momentânea da população local, este indivíduo será punido pelo crime do artigo 54, §2º, inciso II, da Lei 9.605/98, não porque sua conduta provocou uma lesão ao bem jurídico, mas porque sua ação trouxe perigo, que é presumido, ao Meio Ambiente. Com acerto, Souza Mendes consigna que o ambiente – bem jurídico – não se confunde “com pedaços desgarrados da natureza”, cuja destruição é insignificante, caso considerada isoladamente, e irrelevante se vista em conjunto com a totalidade de ações humanas contra o ambiente, posto que o Meio Ambiente, enquanto bem jurídico, é a “idealização de uma forte necessidade social, reportada a um determinado substrato empírico”[116]. Seguindo esta linha, o princípio da lesivisidade será o controle e o limite das incriminações realizadas pelo Direito Penal do Ambiente, pois ele permitirá que se analise a proporcionalidade da norma penal e, assim, busque-se uma conciliação entre a vontade legislativa de criminalizar e o Estado Democrático – Substancial – de Direito. Ressalva-se, contudo, que esta solução é adequada ao Meio Ambiente, sob a perspectiva da tutela do ambiente em sentido estrito, o que não valeria, por exemplo, no crime de maus-tratos a animais. Nesta hipótese, a estrutura delitiva não é de crime de perigo, mas de dano. Para tanto, basta que se retorne à análise feita sobre a existência de bem jurídico no crime de maus-tratos a animais. O mesmo se diga dos delitos contra o Meio Ambiente cultural, que nada mais são do que crimes de danos contra o patrimônio e, como tal, nada apresentam de novo, salvo a nova roupagem que o Direito Penal do Ambiente lhes conferiu. Neste sentido, fica ressaltado que a solução proposta se dirige apenas à tutela do Meio Ambiente natural, enquanto condição para a habilidade e a vida humana digna no planeta.
5. Considerações Finais
Ao fim das considerações expostas ao longo do texto, pode-se e deve-se consignar que a temática tratada não se encontra exaurida. O exaurimento demandaria outra proposta e abordagem do tema. No entanto, a meta almejada foi alcançada. Pontuar os fundamentos das questões centrais que envolvem o bem jurídico ambiental e fomentar o debate sobre a tutela penal do Meio do Ambiente a partir de novas premissas, ou seja, mais adequadas ao Direito Penal do Estado Democrático (Substancial) de Direito, foram os objetivos da presente reflexão.
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José Danilo Tavares Lobato
Doutor em Direito pela UGF, Mestre em Direito – Ciências Penais pela UCAM e Defensor Público/RJ.
Notas
[1] RODRIGUES, Anabela Miranda. Crimes Contra a Vida em Sociedade – Art. 279o. Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial – Tomo II. Jorge de Figueiredo Dias (Org.). Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 947.
[2] Figueiredo Dias é, também, partidário de uma concepção teleológico funcional e racional de bem jurídico. Para ele, o bem jurídico deve ser transcendente ao sistema normativo jurídico-penal, político-criminalmente orientado, “intra-sistemático relativamente ao sistema social” e à Constituição, além de traduzir um conteúdo material, um “padrão crítico” normativo. DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 65.
[3]ROXIN, Claus. Strafrecht – Allgemeiner Teil. Vol I. 4a.ed. München: Verlag C.H.Beck, 2006, p. 69 e p. 70.
[4]TAVARES, Juarez. Critérios de Seleção de Crimes e Cominação de Penas. Revista Brasileira de Ciências Criminais – Especial de Lançamento. São Paulo, 1992, p. 77.
[5]TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3ª.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003,p. 199.
[6]ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 20.
[7]Idem. Ibidem, p. 20.
[8]Idem. Ibidem, p. 20.
[9]Idem. Claus. Strafrecht – Allgemeiner Teil. Vol I. 4a.ed. München: Verlag C.H.Beck, 2006, p. 222.
[10]MENDES, Paulo de Souza. Vale a Pena o Direito Penal do Ambiente?. 1a.Reimpressão. Lisboa: A.A.F.D.L., 2000.
[11]HASSEMER, Winfried. ¿Puede Haber Delitos que no Afecten a un Bien Jurídico Penal?. La Teoría del Bien Jurídico -¿Fundamento de Legitimación del Derecho Penal o Juego de abalorios dogmático?. Hefendehl (Org). Madrid: Marcial Pons, 2007, p.98.
[12]TAVARES, Juarez. Op. cit, p.198 e p.199.
[13]NAVARRETE, Miguel Polaino. El Injusto Típico en la Teoria del Delito. Mave Editor: Buenos Aires: 2000, p.335.
[14]Idem. Ibidem, p.335.
[15]Art. 68. Deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental: Pena - detenção, de um a três anos, e multa
[16]MILARÉ, Edis; COSTA JR., Paulo José da. Direito Penal Ambiental – Comentários à Leiº 9.605/98. Campinas: Millennium, 2002, p.194.
[17]HASSEMER, Winfried; KARGL, Walter. NomosKommentar - Strafgesetzbuch. Tomo I. 2ª.ed. Kindhäuser, Neumann e Paeffgen (Orgs). Nomos: Baden-Baden, 2005, p.156.
[18]PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. São Paulo: RT, 2005, p.538.
[19]Idem. Ibidem, p.538 e p.539.
[20]MENDES, Paulo de Souza. Op. cit., p.99.
[21]PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. 3ª.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.52 e p.53.
[22]A Carta Constitucional portuguesa reconhece o conceito extensivo de Meio Ambiente. Constituição da República Portuguesa – Art. 66.º(Ambiente e qualidade de vida) (...) 2. Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos: a) Prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão; b) Ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correcta localização das actividades, um equilibrado desenvolvimento sócio-económico e a valorização da paisagem; c) Criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico; d) Promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações; e) Promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas.
[23]FARIA, Paula Ribeiro de. Danos Contra a Natureza – Art. 278o. In: FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. (Org.) Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial – Tomo II. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p.954.
[24]DELMANTO, Roberto; DELMANTO Jr, Roberto; DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Leis Penais Especiais Comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.429. Como noticia Martos Nuñez, a doutrina encontra-se dividida quanto ao que se entende por Meio Ambiente. Há autores, tais como Bacigalupo, que adotam o conceito restritivo de Meio Ambiente natural. NUÑEZ, Juan Antonio Martos. Introducción al Derecho Penal Ambiental. Derecho Penal Ambiental. Juan Antonio Martos Nuñez (Org.). Madrid: Exlibris Ediciones, 2005, p.26
[25]SIRACUSA, Licia. La Tutela Penale Dell’Ambiente – Bene Giuridico e Tecniche di Incriminazione. Milano: Giuffrè Editore, 2007, p.32.
[26]PEREZUTTI, Gustavo Cassola. Medio Ambiente y Derecho Penal – Un Acercamiento. Buenos Aires: Editorial B de F, 2005, p. 15. Juarez Tavares descarta a noção de bens jurídicos individuais e coletivos e trabalha com a ideia de bem jurídico pessoal. TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3ª.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003,p. 216. Apesar desta divergência, pensa-se que a mesma seja apenas aparente ou classificatória, pois a substância do conceito de bem jurídico coletivo defendido pouco diverge de seu conceito de bem jurídico pessoal, uma vez que se considera imprescindível a realização do processo de redução individual do bem jurídico, como se verá adiante.
[27]Nuñez considera que a natureza merece proteção por si mesma, não podendo depender dos reprováveis e mesquinhos interesses do Homem. NUÑEZ, Juan Antonio Martos. Op. cit., p.30.
[28]Siracusa defende um ecocentrismo moderado em que o ambiente pode sofrer interferências materiais da ação humana, desde que não se produzam graves prejuízos. SIRACUSA, Licia. Op. cit., p.37.
[29]PARDO, José Esteve. Derecho del Medio Ambiente. Madrid: Marcial Pons, 2005, p.122.
[30]ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – Da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 5a.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p.167.
[31]SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4a.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, p.60.
[32]TAVARES, Juarez. Op. cit., p.217.
[33]NAVARRETE, Miguel Polaino. Op. cit., p.513.
[34]STRATENWERTH, GÜNTER. La Criminalización en los Delitos contra Bienes Jurídicos Colectivos. La Teoría del Bien Jurídico -¿Fundamento de Legitimación del Derecho Penal o Juego de abalorios dogmático?. Hefendehl (Org). Madrid: Marcial Pons, 2007, p.371.
[35]Idem. Ibidem, p.371.
[36]Idem. Ibidem, p.372.
[37]Em sentido contrário Tiedmann, para quem os bens jurídicos ambientais não podem ser entendidos como dimensões previamente dadas, pois eles já estão deteriorados antes mesmo da prática da conduta, sendo que o status quo deles não representa a dimensão desejada e mais valiosa do bem jurídico. TIEDEMANN, Klaus. Derecho Penal y Nuevas Formas de Criminalidad. 2ª.ed. Trad: Manuel Abanto Vasquez. Lima: Editora Jurídica Grijley, 2007, p.289. Rejeita-se esta tese, pois ela confunde os conceitos de bem jurídico e objeto da ação.
[38]DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p.74.
[39]Constituição da República Portuguesa – Art. 66.º (Ambiente e qualidade de vida) 1. Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender. Não obstante Ribeiro de Faria realizar tal ponderação tendo como base o sistema jurídico português, a mesma é válida frente o sistema jurídico pátrio, vide o artigo 225 da CRFB/1988.
[40]FARIA, Paula Ribeiro de. Op. cit., p.932 e p.933.
[41]HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n.22, 1998, p.33.
[42]TAVARES, Juarez. A Globalização e os Problemas de Segurança Pública. Ciênciais Penais – Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. São Paulo, 2004, p.127.
[43]Direito de Intervenção. Para aprofundar o debate a respeito dos meios jurídicos alternativos à tutela penal do ambiente, ver: LOBATO, José Danilo Tavares. Da (Des)Legitimação da Tutela Penal do Ambiente – Uma Defesa em Favor da Adoção do Direito de Contra-Ordenações no Brasil. Tese. Original. Rio de Janeiro: UGF, 2009.
[44]HASSEMER, Winfried. Op.cit., p.33.
[45]Idem. ¿Puede Haber Delitos que no Afecten a un Bien Jurídico Penal?. La Teoría del Bien Jurídico -¿Fundamento de Legitimación del Derecho Penal o Juego de abalorios dogmático?. Hefendehl (Org). Madrid: Marcial Pons, 2007, p.103.
[46]JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal – Parte General. Trad. Miguel Olmedo Cardenete. 5a.ed. Granada: Editorial Comares, 2002, p.276.
[47]Idem. Ibidem, p.276.
[48]PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, Volume 1 – Parte Geral. 4a.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.139.
[49]Idem. Ibidem, p.139.
[50]JAKOBS, Günther. Derecho Penal – Parte General – Fundamentos y Teoría de la imputación. 2ª.ed. Trad: Joaquin Cuello Contreras y Jose Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 54.
[51]Quanto ao ordenamento jurídico alemão, veja-se a Lei de Proteção Animal. § 17- Com a perda da liberdade até 3 anos ou com a pena de multa será castigado aquele que: 1. matar um animal vertebrado sem motivo racional ou; 2. infligir a um animal vertebrado: a) com crueldade, um considerável sofrimento ou dores ou: b) longas e contínuas ou reiteradas e graves dores ou sofrimento. No que concerne ao sistema jurídico pátrio, há a seguinte norma: Lei 9.605/1.998 - Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
[52]Na visão de Jakobs, a garantia da vigência da norma posta em prática é a própria defesa do (único) bem jurídico penal. Os bens que se podem definir como vida, saúde, propriedade e etc., não obstante serem bens, pois são situações valoradas positivamente e por tanto boas para aquele que os valora, não são objetos de preocupação do Direito Penal, mas sim e tão somente, certas formas de ataques a tais bens que são os focos de atuação do Direito Penal. JAKOBS, Günther. Op. cit., p. 45. Em sentido oposto, Schünemann, que entende ser impossível a renúncia à categoria do bem jurídico, critica esta doutrina trazendo um velho ditado: “los muertos que vos matáis gozan de buena salud”. SCHÜNEMANN, Bernd. El Principio de Protección de Bienes Jurídicos como Punto de Fuga de los Límites Constitucionales de los Tipos Penales y de su Interpretación. La Teoría del Bien Jurídico -¿Fundamento de Legitimación del Derecho Penal o Juego de abalorios dogmático?. Hefendehl (Org). Madrid: Marcial Pons, 2007, p.197. Refuta-se o posicionamento de Jakobs pela falta de referência da norma penal incriminadora – o único bem jurídico – à proteção da pessoa humana.
[53]Neste sentido, Luís Greco que entende haver tutela penal legítima, apesar da inexistência de bem jurídico tutelado, em casos excepcionais e específicos, como no crime de maus-tratos a animais. GRECO, Luís. “Princípio da Ofensividade” e Crimes de Perigo Abstrato – Uma Introdução ao Debate sobre o Bem Jurídico e as Estruturas do Delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 12. Nº. 49 São Paulo: RT, 2004, p. 116 e p.117.
[54]GRECO, Luís. Op. cit., p. 111.
[55]ROXIN, Claus. Derecho Penal – Parte General – Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. Trad: Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Tomo I . 2ª.ed. Madrid: Thomson-Civitas, 2003, p. 59.
[56]Idem. Ibidem,p. 59.
[57]Idem. Strafrecht – Allgemeiner Teil. Vol I. 4a.ed. München: Verlag C.H.Beck, 2006. p. 29-31.
[58]Idem. Ibidem, p. 16.
[59]Idem. Ibidem, p. 17.
[60]STRATENWERTH, Günter. Derecho Penal - Parte General I – El Hecho Punible. Trad. Manuel Cancio Meliá; Marcelo A. Sancinetti. Cizur Menor: Editorial Aranzadi – Thomson Civitas, 2005, p.56.
[61]Idem. Ibidem, p.56.
[62]Lei Fundamental de Bonn. Art. 20a - O Estado protegerá, também em responsabilidade às gerações futuras, os fundamentos naturais da vida e os animais, dentro do marco constitucional, por meio da legislação e dos Poderes Executivo e Judiciário conforme a lei e o direito. No caso brasileiro, art. 225, caput, da CRFB/1988 -Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações; Art. 225, §3º da CRFB/1988 - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
[63]STRATENWERTH, Günter. Op. cit., p. 61.
[64]GRECO, Luís. Op. cit., p. 110.
[65]STRATENWERTH, Günter. Op. cit., p. 61; Sternberg-Lieben, de forma mais cética, face o conservadorismo do Tribunal Constitucional alemão em declarar a inconstitucionalidade de leis, afirma que se for levada em conta a liberdade de conformação política do Poder Legislativo e a dificuldade de se elaborar um marco valorativo dos diferentes componentes do aberto conjunto de critérios de ponderação, a declaração de inconstitucionalidade da lei penal, por falta de proporcionalidade, será uma via quase que teórica. STERNBERG-LIEBEN, Detlev. Bien Jurídico, Proporcionalidad y Libertad del Legislador Penal. La Teoría del Bien Jurídico -¿Fundamento de Legitimación del Derecho Penal o Juego de abalorios dogmático?. Hefendehl (Org). Madrid: Marcial Pons, 2007,p. 124 e p. 125. Abertamente favorável à adoção do princípio da proporcionalidade: BUNZEL, Michael. La Fuerza del Principio Constitucional de Proporcionalidad como Límite de la Protección de Bienes Jurídicos en la Sociedad de la Información. La Teoría del Bien Jurídico -¿Fundamento de Legitimación del Derecho Penal o Juego de abalorios dogmático?. Hefendehl (Org). Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 176. No Brasil não há razões para abonar o ceticismo de Sternberg-Lieben, para tanto basta recordar do recente e contínuo ativismo do Supremo Tribunal Federal.
[66]Art. 49. Destruir, danificar, lesar ou maltratar, por qualquer modo ou meio, plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em propriedade privada alheia: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente. Parágrafo único. No crime culposo, a pena é de um a seis meses, ou multa.
[67]Art. 68. Deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental: Pena - detenção, de um a três anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de três meses a um ano, sem prejuízo da multa.
[68]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal – Parte General. Tomo II. Buenos Aires: Ediar, 2005. p.427.
[69]SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a Ultima Ratio da Proteção de Bens Jurídicos! Sobre os Limites Invioláveis do Direito Penal em um Estado de Direito Liberal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 53, 2005, p.15.
[70]Necessário que haja uma similitude em ambas existências, por tal razão é correto o entendimento de que a limitação instituída no Código Penal alemão de que os animais objeto do crime de maus-tratos são apenas os vertebrados.
[71]SCHÜNEMANN, Bernd. Op. cit., p.14.
[72]“Não desnatura essa característica do bem jurídico o fato de que muitos bens sejam concebidos como um conjunto de relações, como é o caso do patrimônio, porque se trata de relações reais e não meramente simbólicas (...) a relação funcional, neste caso, se estabelece entre o patrimônio, como condição da pessoa e variável independente, por um lado, e a capacidade de sua aquisição, por outro. (...) o patrimônio, como tal, não se desconstrói em função, continua sendo um valor da pessoa, a qual se vê, inclusive, engrandecida pela ampliação das possibilidades de ser dele titular.” TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3ª.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 214.
[73]TAVARES, Juarez. Op. cit., p. 213. e p. 214.
[74]Idem. Ibidem, p. 212.
[75]Idem. Ibidem, p. 212.
[76]Idem. Ibidem, p. 217.
[77]FERRAJOLI, Luigi. Pasado y Futuro del Estado de Derecho. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta., 2003, p. 19.
[78]ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; et al. Direito Penal Brasileiro – I. 1a.ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 225 e ss.; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral 1. 10a.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 27 e ss.; GALVÃO, Fernando. Direito Penal – Parte Geral. Niterói: Editora Impetus, 2004, p. 92 e ss.; GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Vol I. 6a.ed. Niterói: Editora Impetus, 2006, p. 57 e ss.
[79]BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 30.
[80]ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; et al. Op. cit., p.226.
[81]TAVARES, Juarez. Op.cit., p.203.
[82]Idem. Ibidem, p. 221.
[83]Art. 55. Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.
[84]ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; et al. Direito Penal Brasileiro – I. 1a.ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 230.
[85]A referida ponderação deve ser realizada a partir dos três subprincípios do princípio da proporcionalidade, ou seja, idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
[86]CRUZ, M. Luis. La Constitución como Orden de Valores – Problemas Jurídicos y Políticos. Granada: Editorial Comares, 2005, p. 115.
[87]TAVARES, Juarez. Critérios de Seleção de Crimes e Cominação de Penas. Revista Brasileira de Ciências Criminais – Especial de Lançamento. São Paulo, 1992, p. 84.
[88]ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; et al. Op. cit., p. 225. e p. 239.
[89]MAURACH, Reinhart. Tratado de Derecho Penal. Trad. Juan Córdoba Roda. Barcelona: Ediciones Ariel, 1962. p.277.
[90]A título meramente ilustrativo: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal – Parte Geral – Parte Especial. 2a.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p.170; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral – Arts 1º. a 120 do CP. São Paulo: Editora Atlas, 1999, p. 134; JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – 1º. Volume – Parte Geral. São Paulo: Editora Saraiva, 1999, p. 189.
[91]No mesmo sentido Zaffaroni, que profere fortes críticas à inutilidade desta classificação: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal – Parte General. Tomo III. Buenos Aires: Ediar, 2004, p. 260.
[92]PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, Volume 1 – Parte Geral. 4a.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 240 e p. 241; CIRINO, Juarez. A Moderna Teoria do Fato Punível. 2ª.ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002, p. 35 e p. 36.
[93]MAURACH, Reinhart. Op. cit., p. 278.
[94]MEZGER, Edmund. Strafrecht. 2ª.ed. München/Leipzig: Verlag von Duncker &Humblot, 1933. p. 193.
[95]MAURACH, Reinhart. Op. cit., p. 278.
[96]A título ilustrativo: GOMES, Luiz Flávio. A Contravenção do Artigo 32 da Lei das Contravenções Penais é de Perigo Abstrato ou Concreto? A Questão da Inconstitucionalidade do Perigo Abstrato ou Presumido. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, nº 8, 1994, p. 69; JESUS, Damásio E. de. Crimes de Trânsito. 5ª.ed. São Paulo: Saraiva, 2002.; BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 67. Em sentido oposto: BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo Abstrato e Princípio da Precaução na Sociedade de Risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 170
[97]GRECO, Luís. Op. cit., p. 135
[98]Idem. Ibidem, p. 135.
[99]D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e Crimes Omissivos Próprios – Contributo à Compreensão do Crime como Ofensa ao Bem
Jurídico. Stvdia Ivridica. Nº.85. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 403.
[100]Código Penal Español. Art. 325 - Será castigado con las penas de prisión de seis meses a cuatro años, multa de ocho a veinticuatro meses e inhabilitación especial para profesión u oficio por tiempo de uno a tres años el que, contraviniendo las Leyes u otras disposiciones de carácter general protectoras del medio ambiente, provoque o realice directa o indirectamente emisiones, vertidos, radiaciones, extracciones o excavaciones, aterramientos, ruidos, vibraciones, inyecciones o depósitos, en la atmósfera, el suelo, el subsuelo, o las aguas terrestres, marítimas o subterráneas, con incidencia, incluso, en los espacios transfronterizos, así como las captaciones de aguas que puedan perjudicar gravemente el equilibrio de los sistemas naturales. Si el riesgo de grave perjuicio fuese para la salud de las personas, la pena de prisión se impondrá en su mitad superior.
[101]MUÑOZ CONDE, Francisco; ARÁN, Mercedes García. Derecho Penal – Parte General. 6ª.ed. Valencia: Tirant lo Blanch. 2004, p. 303.
[102]GRECO, Luís. Op. cit., p. 113.
[103]BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op. cit., p. 294.
[104]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit., p. 259.
[105]Idem. Ibidem, p. 259.
[106]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit., p. 269.
[107]D’Avila defende uma posição intermediária, consistente na realização ex ante de um juízo objetivo da real possibilidade de dano ao bem jurídico, somado a um juízo negativo da significação desta possibilidade, que se expressa na fórmula “possibilidade não-insignificante de dano ao bem jurídico”. D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit., p. 172.
[108]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit., p. 260.
[109]Defendendo posição diversa, Bottini, para quem deve haver uma análise ex ante da periculosidade da atividade frente aos bens protegidos, levando-se em conta os conhecimentos especiais do autor e os conhecimentos científicos postos à disposição. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op. cit., p. 297.
[110]No Brasil, o crime de poluição encontra-se previsto no artigo 54 da Lei 9.605/98. Em Portugal, Código Penal Português - Artigo 279.º - Poluição - 1 - Quem, em medida inadmissível: a) Poluir águas ou solos ou, por qualquer forma, degradar as suas qualidades; b) Poluir o ar mediante utilização de aparelhos técnicos ou de instalações; ou c) Provocar poluição sonora mediante utilização de aparelhos técnicos ou de instalações, em especial de máquinas ou de veículos terrestres, fluviais, marítimos ou aéreos de qualquer natureza; é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 600 dias. 2 - Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa. 3 - A poluição ocorre em medida inadmissível sempre que a natureza ou os valores da emissão ou da imissão de poluentes contrariarem prescrições ou limitações impostas pela autoridade competente em conformidade com disposições legais ou regulamentares e sob cominação de aplicação das penas previstas neste artigo.
[111]RODRIGUES, Anabela Miranda. Op. cit., p. 960.
[112]RODRIGUES, Anabela Miranda. Op. Cit.p.960 e p.961.
[113]Idem. Ibidem, p.961.
[114]DIAS, Jorge de Figueiredo. Sobre a Tutela Jurídico-Penal do Ambiente: Um Ponto de Vista Português. A Tutela Jurídica do Meio Ambiente: Presente e Futuro – Stvdia Ivridica Nº.81, Colloquia, Nº.13. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p.197.
[115]Figueiredo Dias consigna que a problemática não é a relação naturalística entre ação e objeto, mas a relação normativa entre conduta e bem jurídico e, por tal razão, em seu entender, seria mais correto ver o “delito ecológico” enquanto delito de desobediência às proibições ou limitações impostas, logo um crime de mera conduta. DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. Cit. p.198.; Defendendo o crime de poluição como crime material ou de perigo concreto: RIBEIRO, Viviane Martins. Principais Aspectos Penais da Poluição Atmosférica no Direito Brasileiro. Direito Penal Contemporâneo – Estudos em Homenagem ao Professor José Cerezo Mir. Luiz Regis Prado (Org.) São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p.413.
[116]MENDES, Paulo de Souza. Op. Cit. p.99, p.103 e p.117.
Sumário:
Introdução; 1. A sociedade mundial do risco; 2. O Direito Penal da sociedade do risco e a emergência de figuras dogmáticas diferenciadas; 3. A conflituosidade entre o Direito Penal da sociedade do risco e o paradigma penal clássico; 4. Conclusão; Bibliografia.
Resumo:
Este trabalho oferece, partindo do referencial teórico assentado em Ulrich Beck, uma visão contextualizada do paradigma da sociedade mundial do risco, pelo qual se procederá a uma análise, de índole ilustrativa, de figuras dogmáticas diferenciadas que evidenciam o fenômeno da expansão da tutela penal, regida por uma nova racionalidade incriminadora, a exemplo das categorias do bem jurídico supraindividual, dos crimes de perigo abstrato e dos delitos cumulativos. A partir daí, identificar-se-ão pontos de conflituosidade entre o modus operandi de tais figuras e os princípios e garantias penais clássico-liberais.
Palavras-chave:
Sociedade mundial do risco – Direito penal da sociedade do risco – Figuras dogmáticas diferenciadas – Bem jurídico supraindividual – Crimes de perigo abstrato – Delitos cumulativos – Expansão da tutela penal – Tensão – Paradigma penal clássico.
Introdução:
A revolução constante da produção, a perturbação ininterrupta de todas as relações sociais, a incerteza e agitação permanentes distinguem a era burguesa de todas as anteriores. Todos os relacionamentos estabelecidos e fixados, com sua série de idéias e pontos de vista veneráveis, estão sendo destruídos; todos os novos tornam-se obsoletos antes de poderem se fixar. Tudo o que é sólido dissolve-se no ar.
MARX E ENGELS,
Manifesto Comunista.
O presente trabalho situa-se no âmbito das palpitantes discussões acerca das perspectivas político-criminais que se divisam como resposta ao enfrentamento dos desafios suscitados pelo despontar da sociedade mundial do risco.
É importante registrar que a discussão concernente a tais perspectivas ostenta grande relevância, haja vista que a ampliação da tutela penal guarda relação com a liberdade, mormente em países como o Brasil, cujo sistema punitivo é flagrantemente injusto, atuando como selecionador de condutas praticadas pelos excluídos socialmente.
No presente trabalho, tem-se por desiderato analisar o movimento jurídico de expansão do direito penal a partir da emergência da configuração social do risco, sob um viés ilustrativo de algumas figuras dogmáticas diferenciadas que evidenciam o surgimento de uma racionalidade penal distinta da inscrita sob o modelo penal liberal, bem assim identificar os pontos de tensão entre os dois paradigmas.
Para tanto, no primeiro Capítulo, traçaremos inicialmente uma visão panorâmica da sociedade mundial do risco sob o arcabouço teórico fornecido por Ulrich Beck, desembocando no enfoque concernente à dinâmica do aparecimento e do perfil dos novos riscos.
Posteriormente, no Capítulo 2, adentraremos propriamente na análise, de índole ilustrativa, das referidas figuras dogmáticas que evidenciam o alargamento da tutela penal regida por uma nova ratio, quais sejam, a categoria de bem jurídico supraindividual e a proteção penal a esferas anteriores ao dano e ao próprio perigo, especialmente pela crescente utilização dos crimes de perigo abstrato e pela formulação dos delitos cumulativos.
Em seguida, abordar-se-á, no terceiro e último Capítulo, a problemática atinente ao choque de reflexividade entre o modus operandi das precitadas figuras e os princípios e garantias penais clássicos – v.g, estrita legalidade, culpabilidade, proporcionalidade, causalidade, subsidiariedade, intervenção mínima, fragmentariedade, lesividade – cujo choque verificado está inserido, ademais, nos conflitos de distribuição de malefícios que perpassam a sociedade do risco.
Demais isso, verifica-se a insuficiência ou a inadequação do direito penal liberal, dotado de meios limitadores, para atender à atual e à crescente demanda preventiva, ante as características dos novos riscos tecnológicos.
Ao final do trabalho, esperamos ter delineado o modo pelo qual o direito penal tem reagido aos fenômenos da sociedade do risco e o referenciado choque de reflexividade que se instaurou em seu interior, a fim de contribuir, modestamente, para o debate sobre o futuro dessa instituição.
1. A sociedade mundial do risco
1.1 Entre a sociedade industrial e a sociedade do risco
O sociólogo alemão Ulrich Beck identifica uma clivagem dentro da modernidade que separou a chamada modernização simples, ocorrida durante o período industrial, da modernização reflexiva que vem dissolvendo os contornos da sociedade industrial e, na continuidade, fazendo surgir a sociedade mundial do risco.
Considerando o dinamismo extremamente veloz que solapa as bases e fundações da sociedade moderna, a modernização reflexiva corresponde, para o autor, a um novo estágio – cujo processo é conduzido pelos resultados da vitória da modernização ocidental[1] – em que as formas contínuas de progresso técnico-econômico podem se transformar em autodestruição da era industrial, em que um tipo de modernização destrói o outro e o modifica.
Nessa esteira, tal estágio envolve a desincorporação das formas sociais industriais e a reincorporação de outra modernidade que instaura uma nova forma social.
Ao contrário da passagem do mundo tradicional para as formas industriais, enfatiza Beck que os vetores dessa destruição criativa não se expressam pela luta de classe, pela revolução nem pela a crise, mas sim pelas vitórias do capitalismo cujo dinamismo industrial propicia, ultrapassando, diversamente do esperado, os espaços de discussão e decisões políticas, a emergência de uma nova configuração social.
Com isso, ele afirma que a modernização reflexiva da sociedade industrial ocorre silenciosamente sob o véu de pequenas medidas com grandes efeitos cumulativos, da familiaridade e do desejo de mudanças, implicando, paradoxalmente, inseguranças na sociedade difíceis de delimitar, a exemplo de crises ecológicas e estados de emergência por grandes catástrofes, entre inúmeros outros.
Na visão de Beck, o reverso da obsolescência da sociedade industrial consiste na emergência da sociedade do risco, cujo conceito remete a uma fase do desenvolvimento em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem a escapar das instituições voltadas ao controle e à proteção da sociedade industrial. Afirma:
De onde surge esta mobilização política, esta – quem sabe – ‘democratização forçada’ pelo risco do conflito? Sociedade do risco significa: o passado perdeu o seu poder de determinação sobre o presente. Entra em seu lugar o futuro – ou seja, algo que não existe, algo fictício e construído – como a causa da vida e da ação no presente. Quando falamos de riscos, discutimos algo que não ocorre mas que pode surgir se não for imediatamente alterada a direção do barco. Os riscos imaginários são chicote que fazem andar o tempo presente. Quanto mais ameaçadoras as sombras que pairarem sobre o presente anunciando um futuro tenebroso, mais fortes serão os abalos, hoje solucionados pela dramaturgia do risco[2].
O relacionamento entre os efeitos da modernização e as estruturas da sociedade industrial desenvolve-se, para o autor, em dois estágios distintos, quais sejam: primeiramente, os efeitos e as autoameaças são sistematicamente produzidos pela industrialização e pelo desenvolvimento técnico-econômico, e não se tornam questões públicas ou centro de conflitos políticos. Aqui o autoconceito da sociedade industrial ainda predomina, tanto multiplicando quanto legitimando as ameaças produzidas por tomadas de decisão.
Em seguida, os riscos da sociedade industrial abandonam o seu estado de latência. De certa forma, o excesso de confiança impulsionou a postergação de seu reconhecimento e começam a dominar os debates e conflitos públicos, sendo as instituições de controle e proteção da sociedade industrial amplamente questionadas, tanto por terem compactuado com a liberação desses riscos como por não conseguirem controlar essas novas ameaças.
Segundo Beck, o conceito de modernização reflexiva não implica, como poderia sugerir, reflexão, mas antes a ideia de autoconfrontação das bases da modernização com as suas próprias consequências. No entanto, longe de significar uma opção que se pudesse escolher ou rejeitar no decorrer de disputas políticas, tal confronto/transição ocorreu de forma autônoma, indesejada e despercebida, seguindo o padrão dos efeitos colaterais que, de modo cumulativo e latente, ensejam os riscos e as ameaças aptos a questionar e, finalmente, destruir, na ótica do autor, as bases da sociedade industrial.
Nesse sentido, quanto mais avança a modernização, mais ainda as sociedades ficam dissolvidas, consumidas, modificadas e ameaçadas em suas bases, o que pode muito bem ocorrer sem reflexão, ultrapassando o conhecimento e a consciência – eis a tese fundamental da teoria da reflexividade da modernidade, ainda que enunciada de forma simplificada.
Na continuidade deste processo, acentua o autor que o fato de a constelação de tais fenômenos ser, mais tarde, percebida e tornar-se objeto de reflexão pública, política e científica distingue-se da reflexividade enquanto fase de transição não refletida e não intencional – aliás, para ele, é exatamente a abstração de tais fenômenos que conduz à nova configuração social.
Com isso, quanto mais as sociedades são modernizadas, mais os agentes adquirem a capacidade de refletir sobre as condições sociais da sua existência e, assim, modificá-las – o que expressa, em apertada síntese, a premissa clássica da teoria da reflexão.
Noutro turno, diferentemente dos conflitos básicos de distribuição de bens na sociedade industrial, no emergente contexto preponderam os conflitos de distribuição dos malefícios, que se traduzem na forma pela qual os riscos tecnológicos que acompanham a produção dos bens – megatecnologia nuclear e química, pesquisa genética, catástrofes ecológicas, supermilitarização, entre outros – podem ser distribuídos, evitados, controlados e, inclusive, legitimados.
Sob o viés de uma teoria social, Beck concebe a sociedade do risco como um estágio em que as ameaças fabricadas no período industrial tornam-se mais nítidas e passam a suscitar questões de autolimitação do modelo de desenvolvimento e de uma redeterminação dos padrões de responsabilidade, segurança, controle, limitação do dano. Referindo-se também ao sistema jurídico, adverte:
Seria preciso, por fim, criar ou inventar um novo sistema de regras que redefina e refundantemente as questões a respeito do que é uma ‘prova’, e o que significam ‘adequação’, ‘verdade’ e ‘justiça’ perante todos os riscos prováveis (e que atingem a todos) na ciência e no Direito. Seria preciso nada menos do que uma Segunda Ilustração, por intermédio da qual nosso entendimento, nossos olhos e nossas instituições pudessem reconhecer a menoridade da primeira civilização industrial – da qual ela mesma é responsável e dos danos que ela causou a si mesma[3].
Apesar disso, para ele, o problema que se coloca reside, sobretudo, no fato de as ameaças potenciais não somente escaparem à percepção sensorial – inclusive excedendo à nossa imaginação – como também não poderem ser inteiramente determinadas pela ciência[4].
Neste particular, constata-se que a teoria da reflexividade afasta-se de uma certa fé inocente na modernização simples quanto à possibilidade de controle antecipado dos eventos, diante das características que emergem dos novos riscos tecnológicos.
1.2 A dinâmica do aparecimento e do perfil dos novos riscos
A vitória da modernização ocidental conduz, segundo Ulrich Beck, à constatação de que a expansão técnico-econômica havida durante o processo de desenvolvimento da modernidade simples não se apartou da criação de riscos que emergiram na condição de efeitos colaterais. Dito de outra forma, a produção social de riqueza implicou, sistematicamente, a produção social dos riscos suscetíveis de comprometer as condições básicas de vida alcançada sob tal modelo de desenvolvimento.
Igualmente exsurge a constatação de que tanto a emergência da sociedade do risco deu-se sob a benção das instituições de controle e de proteção da sociedade industrial quanto a evidência de os riscos tecnológicos surgidos desafiarem hoje essas mesmas instituições[5], como ciência, administração estatal, política e direito, que, inclusive, legitimaram a criação desses riscos.
Neste particular, o conhecimento científico e tecnológico viu-se, enquanto pressuposto para o crescimento econômico e para o bem-estar material, desencantado pelo surgimento de riscos de grandes dimensões, cujo potencial de perigo não se pode medir, quantificar ou antever – contrapondo-se, desse modo, ao pensamento iluminista de que a crescente informação sobre os mundos social e natural traria um controle cada vez maior sobre eles.
Se, por um lado, o desenvolvimento do saber técnico-científico permitiu que o homem controlasse e se protegesse dos fenômenos da natureza que antes se mostravam perigosos para a sua existência, por outro, o processo de socialização da natureza e os recentes desenvolvimentos no campo das tecnologias acabaram redundando em outros tipos de ameaças: os riscos tecnológicos, significando um novo e poderoso fator de indeterminação do futuro, pois sua característica primordial está no fato de terem emergido na qualidade de consequências secundárias e, destarte, indesejadas, não previstas e mesmo insuscetíveis de previsão.
Neste cenário, a teoria da sociedade mundial do risco concebe o problema da destruição do meio ambiente como revelador seja da crise institucional que atravessa a sociedade industrial, seja do seu modus de reagir e lidar com as próprias incertezas fabricadas, afastando-se, pois, daquela postura que apreende a questão ambiental como um mero problema ecológico ou da natureza per se. Aliás, neste particular, afirma Beck que o “discurso sobre a sociedade mundial do risco pode nos fazer sobrevalorizar a relativa autonomia da crise ecológica e transformá-la numa perspectiva unidimensional da sociedade global[6]”.
Na teorização sobre os novos riscos, distinguem-se os riscos que podem ser controlados daqueles que escaparam ou mesmo neutralizaram os mecanismos de controle da sociedade industrial.
Quanto aos últimos, tem-se que a modernidade deu causa, a despeito de ter criado mecanismos para dominar a natureza e controlar perigos e riscos, ao surgimento de riscos incontroláveis que escaparam do controle das suas instituições, o que aponta para a possibilidade de falhas no funcionamento das normas e das instituições atuantes no período industrial, v.g., mecanismos de segurança, dos cálculos dos riscos e da cultura do seguro, que se vê diante da impossibilidade de enfrentar os riscos produzidos, de forma irônica, sob seu pálio.
Sob a lógica da eliminação segundo a qual os riscos devem ser evitados, negados ou reinterpretados, os conflitos de distribuição dos malefícios[7] ensejam o manejo das consequências negativas do próprio desenvolvimento técnico e das incertezas fabricadas pela própria modernização, surgindo, nesta senda, a questão social atinente à gestão política e científica dos riscos tecnológicos.
Noutro turno, a percepção de que a sociedade moderna viveu e vive em um ambiente mais arriscado do que as sociedades precedentes encontra explicação nas origens e nas peculiaridades dos novos riscos, distintas tanto dos perigos pré-industriais quanto dos riscos visíveis da era industrial.
Assim, analisando o perfil da dinâmica sociopolítica dos riscos, Machado identifica, com suporte em Beck e em outros autores, sete características, a saber[8]:
A primeira delas é a de que os riscos, enquanto expressão de um fenômeno social estruturante da nova configuração social, têm suas causas e origens em decisões e comportamentos humanos, tomados e produzidos no manejo dos avanços tecnológicos, a exemplo da energia nuclear, dos produtos químicos, da tecnologia genética, das catástrofes ecológicas etc.
Desse modo, instaura-se como diferença essencial entre os novos riscos e as catástrofes naturais o fato de os aludidos riscos derivarem necessariamente de decisões de âmbito industrial ou técnico-econômico de pessoas ou organizações, ao passo que as catástrofes naturais eram concebidas como algo apenas imputável ao destino. De forma correlata, remetendo aos significados da palavra “destino”, assevera Beck:
Quem tiver a curiosidade de saber qual experiência política está associada à consciência da crise ecológica acabará se deparando com uma infinidade de afirmações, entre estas a de que se trata de uma autopunição da civilização, algo que não deve ser atribuído a Deus, deuses ou à natureza, a decisões humanas e progressos da indústria que emergem das exigências de controle e direcionamento desta mesma civilização. A outra face desta mesma experiência é o desmantelamento desta mesma civilização que, aplicado à política, pode dar luz à experiência de um destino comum. ‘Destino’ é a palavra correta, pois todos podem estar expostos (em casos-limite) às decisões científico-industriais; ‘destino’ é a palavra incorreta, pois estes riscos ameaçadores são o resultado de decisões humanas[9].
Já a segunda característica contrapõe-se ao conceito de ação racional direcionada a um fim positivamente valorado, na medida em que os riscos em comento surgem na condição de efeitos colaterais oriundos do progresso tecnológico e industrial, cujas consequências secundárias constituem efeitos indesejados, não previstos e não suscetíveis de previsão, enfim, não perseguidos intencionalmente.
Outra peculiaridade é a de que, aliada à recorrente circunstância de tais riscos subtraírem-se à percepção e ao conhecimento comuns, eles demandam a constatação objetiva pela pesquisa científica, fundando-se, pois, em interpretações causais que se estabelecem, primeiramente, no campo do saber científico, no qual podem ser transformados, ampliados ou reduzidos, dramatizados ou minimizados.
Associados ao fenômeno da globalização, os novos riscos assumem, como quarta característica, alcance espacial e temporal indeterminado e apresentam, frequentemente, dimensões e potencial destrutivo avassaladores, encerrando, com isso, ameaças a um número indeterminado e potencialmente enorme de pessoas. De forma ilustrativa e marcante, cabe mencionar a crise ecológica mundial e o caso da BSE crisis (também conhecida por “doença da vaca louca”).
Imbricando-se mais diretamente com o tópico anterior, tem-se como nota diferenciadora a de que, diversamente dos riscos da era industrial, os novos refogem à incidência das regras securitárias do cálculo, da estatística e da monetarização, haja vista a indeterminação de suas causas e consequências.
Daí que o traço de os aludidos riscos não serem delimitáveis no espaço e no tempo inviabiliza tratamento segundo as regras estabelecidas da causalidade e da culpa, afora dificilmente poderem ser compensados ou indenizados.
Sob tal ótica, assevera Beck:
(...) os chamados riscos globais abalam as sólidas colunas dos cálculos de segurança: os danos já não têm limitação no espaço e no tempo – eles são globais e duradouros; não podem mais ser atribuídos a certas autoridades – o princípio da causação perdeu a sua eficácia; não podem mais ser compensados financeiramente – é inútil querer se garantir contra os efeitos de um worst case da ameaça em espiral[10].
Por sua vez, a sexta característica consiste na existência de uma força de atração sistemática entre as situações de pobreza e as de risco extremo.
Neste dramático cenário, a classe trabalhadora e os excluídos sofrem, sobretudo, os de países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, com maior intensidade os efeitos perversos do desenvolvimento industrial, a despeito de os riscos também atingirem, a longo prazo, aqueles que os produzem e deles se beneficiam, seja pela fluidez e efeito global das possíveis consequências danosas, seja pelo advento de questionamentos sobre a legitimidade do processo de desenvolvimento – ensejando, pois, a denominação aludida por Beck como “efeito bumerangue”.
Com isso, expressando a tendência pobreza/riscos, tem-se a proposital alocação de tecnologias arriscadas em países subdesenvolvidos ou mesmo em desenvolvimento, combinada ao déficit de desenvolvimento e de utilização de mecanismos de segurança organizacional e de controle da poluição, além do problema do desmatamento de florestas tropicais.
Nessa esteira, é de se destacar o emblemático caso do acidente industrial do Bhopal, em 1984, no qual aproximadamente 500 mil pessoas foram expostas à liberação de gás tóxico e, ainda, a criminalidade ecológica, referida por Winfried Hassemer, consistente no transporte de detritos radioativos, sobretudo para fora da Comunidade Européia. A propósito, ele aponta no sentido da existência de problemas semelhantes no Brasil, advindos de cargas poluidoras provenientes da Europa[11].
Por peculiaridade derradeira, os riscos tecnológicos reconhecidos socialmente têm um conteúdo político explosivo, encerrando disputas no processo da definição social dos efeitos secundários sociais, econômicos e políticos de tais fenômenos, não apenas das suas consequências à saúde da natureza e do ser humano, suscetíveis de comprometer a rentabilidade de mercados e setores produtivos inteiros, haja vista a forte influência da percepção pública dos riscos oriundos de certas atividades e produtos.
Ante o panorama traçado, Beck distingue três espécies de riscos[12], quais sejam:
1) riscos de perigos globais ou destruição ecológica condicionada pela riqueza e pelo desenvolvimento técnico-industrial, a exemplo da destruição da camada de ozônio, do efeito estufa, dos efeitos da manipulação genética, da energia nuclear etc.
No particular, cabe ressaltar que, remetendo às sociedades altamente industrializadas, tais riscos decorrem, em grande parte, da socialização dos impactos da sociedade industrial e geram consequências globais.
2) riscos oriundos da pobreza ou destruição ecológica condicionada pela pobreza e pelo desenvolvimento técnico-industrial incompleto. Tais riscos manifestam-se in loco, ou seja, em uma mesma e única região e apresentam consequências globais somente a médio prazo.
De forma exemplificativa, tem-se o uso de tecnologias ultrapassadas que liberam elevado índice de poluentes, acidentes em usinas atômicas e químicas em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, desmatamento de florestas tropicais, problemas causados por lixo e resíduos tóxicos, entre inúmeros outros.
3) riscos das armas de alto poder destrutivo vinculam-se às armas químicas, biológicas e nucleares que escaparam das antigas estruturas de controle das superpotências e à ameaça destrutiva que representam no tenebroso quadro de riscos advindos de conflito militar entre Estados ou provenientes do terrorismo fundamentalista ou privado.
A respeito das interações de complementação e de intensificação entre as espécies de riscos oriundas da destruição ecológica, das consequências da modernização incompleta e dos conflitos armados, antevê Beck:
De qualquer maneira as destruições ecológicas propiciam guerras – seja o irrompimento de um conflito armado pela disputa de fontes vitais (água, por exemplo) ou a convocação de forças militares por fundamentalistas ecológicos do Ocidente com a intenção de impedir a destruição ambiental (como ocorreu quando da solicitação para o fim do desmantelamento das florestas tropicais).
Não é difícil imaginar que um país vivendo numa pobreza crescente venha a explorar o meio ambiente até os seus últimos recursos. No desespero (ou no acobertamento político do desespero) ele pode se utilizar da força armada para tomar posse de fontes estrangeiras de sobrevivência. Destruições ecológicas (como o alagamento de Bangladesh, por exemplo) podem levar a movimentos de fuga em massa, que por sua vez desembocam em conflitos de guerra. Ou então, Estados envolvidos na guerra e ameaçados de entrar em colapso podem, numa medida extrema, fazer uso de armas atômicas e químicas ameaçando destruir regiões e cidades circunvizinhas. Não há limites para a construção imaginária de cenários de horror que reúnam essas fontes de perigo[13].
Enfim, analisada a dinâmica do aparecimento e do perfil dos novos riscos tecnológicos e das transformações operadas na sociedade, importa examinar, no capítulo seguinte, os acontecimentos havidos no interior do aparato penal, ligados às vias de adequação do paradigma penal atual aos problemas suscitados pela sociedade do risco.
2. O Direito Penal da sociedade do risco e a emergência de figuras dogmáticas diferenciadas
2.1 O movimento político-criminal sob o paradigma da sociedade do risco
Comparativamente aos conflitos de distribuição de bens da sociedade industrial, na sociedade do risco preponderam, como assinalado, os conflitos de distribuição dos malefícios que se traduzem em uma expectativa social de eliminação e de controle dos riscos, bem assim na imputação de responsabilidades aos causadores das situações de perigo.
Na dinâmica sociopolítica dos novos riscos, destaca-se a questão de o risco tecnológico assumir, sob um enfoque político e social, uma dimensão ainda mais explosiva, ensejando, na continuidade, uma sensação de incerteza e de incontrolabilidade produzida pela industrialização e pelo desenvolvimento técnico-econômico.
Sob este dramático cenário, a percepção pública dos riscos facilmente convola-se em uma crescente demanda social por segurança, especialmente pelo viés normativo-penal, com o direcionamento de tais pressões à burocracia institucional. Assim, a aversão ao risco e a aspiração à segurança figuram como os responsáveis pela reivindicação da sociedade para que o Estado ofereça tanto a almejada proteção quanto a sensação de confiança nessa proteção.
Neste último caso, verifica-se o manejo de soluções simbólicas de controle dos riscos – referidas, em Beck, como a “cosmética do risco” – a exemplo da adoção de medidas meramente paliativas, como a diminuição pontual da emissão de substâncias contaminantes que se acumulam no ar, na água e no solo.
Igualmente destaca Winfried Hassemer, aferindo a adequação da resposta do direito penal em face da chamada criminalidade moderna:
(...) há uma tendência do legislador em termos de política criminal moderna em utilizar uma reação simbólica, em adotar um Direito Penal simbólico. (...) que, em razão de sua ineficácia, com o tempo a população percebe que se trata de uma política desonesta, de uma ‘reação puramente simbólica’, que acaba se refletindo no próprio Direito Penal como meio de controle social[14].
A propósito, para Zaffaroni, a resposta (des)esperada dos legisladores, sustentada por uma lógica que decorre da invocação de emergências, revela-se, em verdade, uma constante na história punitiva. Com isso, afirma:
“(...) a história do poder punitivo é a das emergências invocadas em seu curso, que sempre são sérios problemas sociais. (...) o poder punitivo pretendeu resolver o problema do mal cósmico (bruxaria), da heresia, da prostituição, do alcoolismo, da sífilis, do aborto, da rebelião, do anarquismo, do comunismo, da dependência de tóxicos, da destruição ecológica, da economia informal, da especulação, da ameaça nuclear etc. Cada um desses conflitivos problemas dissolveu-se, foi resolvido por outros meios ou não foi resolvido por ninguém, mas nenhum deles foi solucionado pelo poder punitivo. Entretanto, todos suscitaram emergências em que nasceram ou ressuscitaram as mesmas instituições repressoras para as quais em cada onda emergente se apelara, e que não variam desde o século XII até a presente data”[15].
Noutro turno, analisando as mudanças jurídico-penais da sociedade industrial, Baratta vincula tais transformações à emergência do modelo do Estado da prevenção ou da segurança, enquanto estrutura política cuja produção normativa e mecanismos decisórios também tendem a reorganizar-se permanentemente como resposta a uma situação de emergência estrutural[16].
Ao lado da percepção dos fenômenos da sociedade do risco e do Estado preventivo e, de conseguinte, da pressão que exercem sobre o sistema penal, surge a tendência de o discurso do direito penal não se limitar à dogmática, interessando-se, pois, por suas consequências e pela realidade dos problemas sociais.
A esse respeito, afirmou Hassemer, em conferência realizada no Brasil, que a reflexão sobrerespeito as novidades em termos de criminalidade pressupõe uma ligação entre política criminal e direito penal[17].
Decerto, é no âmbito da política criminal que se encontra a abertura para que os influxos sociais ligados aos riscos sejam absorvidos e, na sequência, seja concebido um conjunto de respostas preventivas aptas a influenciar o sistema jurídico-penal.
Como proposta apresentada pelo movimento político-criminal de absorção da sociedade mundial do risco, exsurge, de modo geral, a chamada expansão do direito penal regida, com base na ideia de risco, por uma racionalidade distinta daquela inscrita sob o modelo de direito penal liberal e cujos desdobramentos podem traduzir-se, a título ilustrativo, pelos conceitos de bem jurídico supraindividual e de proteção penal a esferas anteriores ao dano e ao próprio perigo, mediante a utilização dos crimes de perigo abstrato e dos delitos cumulativos.
De forma correlata, como explicação ao fato de a crescente demanda social por segurança voltar-se em especial ao sistema jurídico-penal, identifica Machado, por um lado, a invocação da gravidade e da dimensão dos novos riscos e, por outro, a relação de desconfiança estabelecida quanto à ciência, considerada como responsável pelo surgimento dos novos riscos, afora a percepção de os riscos tecnológicos poderem sempre ser remetidos a decisões humanas[18].
Percebe-se, com isso, que tais fatores ensejam uma atuação deveras ampliada do mais grave instrumento de tutela jurídica sob a égide de uma confluência de expectativas, a saber, seja sob a função promocional de bens e valores norteadores da ação humana, seja de garantidor das gerações futuras, conjugada a um direito penal regulamentador de inúmeros temas, principalmente os ligados ao meio ambiente, à sanidade dos produtos distribuídos à população, à manipulação genética etc.
Desse modo, diferentemente da perspectiva da utilização do direito penal como ultima ratio, a distribuição dos malefícios na sociedade do risco aponta, em contrapartida, no sentido da expansão ad absurdum do mais atroz ramo jurídico, que é o direito penal, máxime sob a inspiração funcionalista-sistêmica adiante abordada.
A despeito disso, os fenômenos do paradigma da sociedade do risco suscitam, ao constituírem alvo de conformação jurídica pela política criminal, pontos de tensão intensamente difíceis de contornar à luz do modus operandi do moderno direito penal de índole liberal, a exemplo das dificuldades impostas pelo caráter global dos riscos em face de um aparato penal marcadamente nacional, da incompatibilidade entre riscos que ameaçam grupos indeterminados e uma tutela penal voltada a bens jurídicos individuais e tangíveis, de riscos com suposta origem em agentes difusos e causas indeterminadas em contraste com uma racionalidade penal clássica, pautada na individualização de responsabilidades e na autoria singular etc.
Desse modo, invoca-se como objeto de análise dos tópicos subsequentes o alargamento e a antecipação da tutela penal, seja por meio dos crimes de perigo abstrato, seja por intermédio da formulação dos delitos cumulativos ou de acumulação, que, conjugados ao conceito de bem jurídico supraindividual, evidenciam, de forma ilustrativa, aspectos do movimento político-criminal de incorporação do paradigma da sociedade mundial do risco.
2.2 A ampliação da proteção penal a bens jurídicos supraindividuais[19]
Ao analisar a estrutura diferenciada da criminalidade moderna em face da chamada criminalidade do dia-a-dia, Winfried Hassemer elenca as seguintes peculiaridades[20]:
– a ausência de vítimas individuais: na verdade, tais vítimas só existem de forma mediata;
– as formas de ação são civis, talvez apenas no final haja um pouco de agressão;
– atuação caracterizada pela internacionalidade, pela profissionalidade e pela divisão do trabalho;
– os danos causados têm, à primeira vista, pouca visibilidade; e
– o fato de a criminalidade moderna atingir bens jurídicos que transcendem interesses ou direitos individuais e em relação aos quais se adiciona a nota de serem extremamente vagos.
Correlatamente à enunciada peculiaridade “ausência de vítimas individuais”, verifica-se que as ameaças ensejadas pelos riscos tecnológicos ultrapassam a ofensa a um bem individual e, de conseguinte, a vítimas definidas.
Desse modo, tal situação tem impulsionado, sem prejuízo da contribuição de outros fatores, o deslocamento de um direito penal voltado à proteção de bem jurídicos individuais e de objetividade natural para outro modelo ligado à tutela jurídico-penal de bens supraindividuais, imateriais e imprecisos.
Ademais, paralelamente ao choque com a noção individualista de bem jurídico, destaca-se a perspectiva funcionalista consistente na utilização do aparato penal como mecanismo de controle de condutas danosas a interesses funcionais relevantes, mormente a coesão e a manutenção do ordenamento jurídico. Neste particular, referindo-se às categorias bem jurídico e norma, afirma Jakobs:
Se considerarmos essa primeira conclusão com mais detalhes – uma pessoa, profundamente apegada a seus bens, é protegida das ameaças de outras pessoas a esses bens –, conclui-se que, em vez de afirmar que o direito penal obedece à proteção dos bens jurídicos – pode-se entender que o direito penal também garante a expectativas de que não se produzam novas ameaças a esses bens.
Isso seria uma mera reformulação? À primeira vista, pareceria não haver nada mais do que isso; uma vez que a expectativa é de que os bens não serão ameaçados, pareceria que em última instância, tudo se resumiria à proteção dos bens jurídicos. (...) Em outras palavras, do ponto de vista do direito penal, o bem não deve ser representado como um objeto físico ou algo do gênero, e sim, como norma, como expectativa garantida. Como o direito poderá ser representado enquanto estrutura da relação entre pessoas, ou seja, o direito como espírito normativo, em um objeto físico?[21]
Demais disso, em alusão à teoria funcionalista-sistêmica perfilhada por Jakobs, acentua Bicudo:
A violação da norma (delito) é tida como socialmente disfuncional, não porque lesione ou ponha em risco determinados bens jurídicos, mas porque questione a ‘confiança institucional’ no sistema. Assim, o direito penal não se limita a proteger bens jurídicos, mas funções, como a segurança institucional no sistema e a segurança dos cidadãos[22].
Com efeito, revela-se inegável que tanto o conceito de bem jurídico supraindividual quanto a precitada teoria funcionalista, aplicada à esfera penal, discrepam do pensamento jurídico estruturante do direito penal moderno, segundo o qual a finalidade imediata e primordial do direito penal encontra-se assentada na exclusiva tutela de bens jurídicos determinados ou determináveis[23].
Além do mais, extrai-se desta orientação a ideia de que não há delito sem que haja lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico determinado, motivo pelo qual a tutela penal somente deve intervir quando for socialmente necessária à sobrevivência da comunidade, portanto, nos limites da intervenção mínima ou subsidiária e de ultima ratio.
Partilhando deste viés, enumera Luiz Regis Prado[24], como principais funções desempenhadas pelo bem jurídico no âmbito penal, as seguintes:
– Função de garantia – o bem jurídico é alçado a conceito-limite na dimensão material da norma, o que restringe o jus puniendi estatal e atribui, na construção dos tipos penais, sentido informador. Aliado a isso, a noção de bem jurídico enseja a compreensão dos valores aos quais o ordenamento jurídico concede ou não status jurídico-penal, de acordo com valores e diretrizes consagrados constitucionalmente;
– Função teleológica – como critério de interpretação que condiciona o sentido e o alcance dos tipos penais ao escopo de proteção de determinado bem jurídico;
– Função individualizadora – enquanto pauta de aferição da medida da pena, in concreto, à vista da gravidade da lesão ao bem jurídico; e
– Função sistemática – como elemento classificatório que permeia a formação dos grupos de tipos da parte especial do Código Penal.
Do conjunto de tais funções e, em especial daquela de cunho garantista, pressupõe-se a ideia de que os bens jurídico-penais expressam tanto um objeto de valoração quanto possuem como substrato de proteção um conteúdo concreto, material ou, em outras palavras, onto-antropológico definido e sedimentado[25] – e.g., vida, integridade física, honra, patrimônio etc. – possibilitando, pois, sua função mais significativa, qual seja, a de legitimar e de delimitar a intervenção penal.
Nada obstante, esta noção de bem jurídico vem passando por uma profunda crise, oriunda, sobretudo, da absorção, ao espectro penal, de bens supraindividuais, imateriais e imprecisos, em detrimento de um paradigma direcionado à repressão pontual de lesões concretas a bens jurídicos individuais.
A adaptação do direito penal ao paradigma da sociedade do risco revela, de acordo com Machado, o predomínio de iniciativas político-criminais voltadas à prevenção em grande escala de situações problemáticas e ao estabelecimento de garantias públicas em favor de bens de conteúdo amplo e titularidade abstrata[26].
Além do mais, tais bens demandam, para a sua tutela, um modus operandi diferenciado em relação ao paradigma tradicional, máxime diante das dificuldades que suas características imprecisas e imateriais ensejam na delimitação da causalidade e do dano.
Nessa esteira, desponta o recurso a mecanismos de criminalização formal de condutas, suposta ou hipoteticamente perigosas ou lesivas, independente, pois, de qualquer resultado concreto.
Para tanto, tem-se, de acordo com Hassemer[27], na análise que empreende a respeito da criminalidade moderna, menção ao fato de o direito penal haver exagerado no recurso à categoria do “perigo abstrato”, o qual, embora utilizado pelo direito penal clássico, sempre figurou como exceção ínsita a um modelo pautado pela intervenção mínima e de ultima ratio.
Noutro turno, destacam-se os delitos cumulativos ou de acumulação que se referem à punição de condutas não por sua lesividade ao bem jurídico, mas em razão da finalidade de evitar a hipótese de sua realização massiva e generalizada e cujo montante global resultaria perigoso ao bem jurídico supraindividual.
2.3 O alargamento e a antecipação da tutela penal
2.3.1 Os crimes de perigo abstrato
Significando novo e poderoso fator de indeterminação do futuro, os riscos tecnológicospossuem como características o fato de terem emergido na qualidade de consequências imprevisíveis e incalculáveis, de indeterminação de suas causas, além de apresentarem, frequentemente, dimensões e potencial destrutivo avassaladores.
É a partir da conjugação das precitadas características – e, em especial, com a invocação da gravidade e da dimensão dos novos riscos – que se oferece, ao constituírem objeto de percepção pública, substrato ou matéria a uma demanda social por segurança pela via normativo-penal.
Na sociedade mundial do risco, esta demanda consubstancia-se na ênfase sobre uma segurança antecipatória, cujo lastro de incidência repousa na tentativa de regulação de setores sensíveis aos novos riscos, como o meio ambiente, a técnica atômica, a tecnologia genética, a distribuição de bens de consumo, entre outros.
Sob esta perspectiva, exsurge a tendência à criminalização de esferas ou de zonas prévias pela crescente utilização dos crimes de perigo abstrato, os quais, por natureza, afiguram-se voltados à antecipação da tutela penal.
Se, por um lado, os crimes de perigo apartam-se dos de dano pelo fato de prescindirem, para a sua consumação, da ocorrência de resultado lesivo ao bem jurídico, bastando, portanto, a existência de uma situação de perigo, por outro, dividem-se, segundo fator de discrímen próprio, em delitos de perigo concreto (desvalor do resultado) e de perigo abstrato (desvalor da ação). A esse respeito, Luiz Regis Prado[28] procede a seguinte diferenciação:
– no delito de perigo concreto, a exigência do perigo faz parte do tipo, integrando-se como elemento normativo, de modo que o delito só se consuma com a real ocorrência do perigo para o bem jurídico; e
– no crime de perigo abstrato o perigo inerente à ação constitui unicamente a ratio legis, isto é, o motivo que inspirou o legislador a criar a figura delitiva, não se exigindo, para tanto, que o perigo seja comprovado.
Do exposto, depreende-se que, diferentemente dos delitos de perigo concreto – que, inclusive, tiveram sua adequação e eficiência questionados diante da necessidade de proteção de bens supraindividuais – e, mormente, dos de dano, a tipificação de perigo abstrato implica em evidente adiantamento da zona ou esfera de proteção penal a fases significativamente anteriores à efetiva lesão ao bem jurídico, motivo por que se pune a simples realização de determinada conduta imaginada perigosa, ainda que inexista a configuração de um efetivo perigo ao bem jurídico.
Ademais, o fato de o perigo constituir ratio ou motivo na criação da figura delitiva abstrata fundamenta-se na ideia de probabilidade ou juízo hipotético formulado, pelo legislador, em referência a uma ação reputada como inerentemente perigosa e que, por isso mesmo, se busca a todo custo evitar em um ambiente de riscos de dimensões catastróficas.
Como restou consignado por Hassemer, é justamente no quadro da criminalidade moderna que se insere, segundo ele, o “abuso” no manejo, pelo direito penal, dos delitos de perigo abstrato, os quais encarnam, cumpre frisar, uma tipificação excepcional no âmbito do modelo penal clássico.
Estes delitos de fato constituem exceção em um modelo de direito penal fundado na lesividade de atos ilícitos, bem como se situam no âmago de uma estratégia preventiva jurídico-penal direcionada à proteção de bens jurídicos de conteúdo vago e de titularidade difusa ante os emergentes riscos tecnológicos.
Ainda, nesta articulação preventiva, o aumento do recurso à previsão de crimes da modalidade em comento revela uma certa pertinência com a complexidade e a indeterminação da relação de causalidade entre a conduta e o idealizado efeito de risco, haja vista prescindirem de comprovação do perigo – o que, inegavelmente, facilita a reação jurídico-penal às incertezas e às imprevisões da sociedade mundial do risco, máxime ante o aparecimento de casos difíceis.
Nessa esteira, há quem defenda que, diante dos novos riscos tecnológicos, as incriminações desta espécie consistem em um expediente inarredável no tocante à prevenção da ocorrência de danos em grande escala[29].
Tal linha teórica harmoniza-se com as demandas sociais por segurança e que, no âmbito próprio da sociedade do risco, convolou-se em bem merecedor de proteção. Aliás, segundo Jakobs, a segurança converteu-se em um direito claramente exigível do Estado[30].
2.3.2 Os delitos cumulativos ou kumulationsdelikte
Levando a questão da antecipação e do alargamento da tutela penal às suas últimas consequências, os delitos cumulativos (Kumulationsdelikte) encontram-se fundados, como bem expõe Silva Sánchez, na tese segundo a qual é possível sancionar penalmente uma conduta individual, ainda que ela não se revele per se lesiva ao bem jurídico, se é factível que tal conduta também se realize por outros sujeitos, de modo que o conjunto de comportamentos venha a desembocar na lesão ao correspondente bem jurídico[31].
Assim, de acordo com esta espécie de incriminação, se, de um lado, cada ação praticada de forma isolada seria insignificante ou de pouca monta para colocar em perigo ou lesionar o bem jurídico, de outro, na hipótese de realização massiva e generalizada dessa mesma conduta, ter-se-ia um montante global apto a resultar perigoso ao bem jurídico supraindividual.
Por oportuno, cabe assinalar que a formulação dos kumulationsdelikte – embora seja, como pontua Silva Sánchez, relativamente conhecida em diversas culturas jurídicas – foi desenvolvida por Lothar Kuhlen[32] a partir da constatação, em sua análise do §324 StGN (delito de contaminação de águas), que atos concretos devem se subsumir ao tipo determinado, ainda que, contemplados em si mesmos, não ponham em perigo, nem sequer abstrato, o bem jurídico protegido.
Evidencia Kuhlen que muitos dos resultados lesivos aos bens jurídicos supraindividuais decorrem da acumulação de efeitos resultantes de ações praticadas em massa, daí por que é realmente singular que um bem jurídico de conteúdo vago e de titularidade difusa (v.g., meio ambiente) seja afetado tão somente por um evento individual – ressalvada, por óbvio, a hipótese de ocorrência de acidentes, como o nuclear.
Com esta ratio incriminadora, é inegável que se antecipa e se alarga a resposta penal às fronteiras – que se confundem, inclusive – do direito administrativo sancionador, cuja lógica está pautada na ideia de que, para se reputar uma conduta como ilícito administrativo, basta que o gênero desta represente, em termos estatísticos, um perigo para o modelo setorial de gestão[33].
A propósito, complementando a concepção de Ulrich Beck, é possível constatar que a passagem da sociedade industrial – no processo de modernização reflexiva – para a configuração social do risco ocorre silenciosamente sob o véu de pequenas medidas ou de condutas com grandes efeitos cumulativos[34], implicando, na continuidade, inseguranças difíceis de delimitar, a exemplo de crises ecológicas e de estados de emergência por grandes catástrofes.
Ainda no tocante à elaboração criminalizadora de Kuhlen, Silva Sánchez frisa que os kumulationsdelikte não se adstringem a um simples elemento hipotético, porém identificam-se como um dado real, na medida em que apenas se antevê a sua realização atual ou iminente por uma pluralidade de sujeitos – a despeito de guardarem uma evidente incompatibilidade com os princípios fundamentais do direito penal, como os da culpabilidade, da lesividade ou ofensividade ao bem jurídico, afora o princípio da proporcionalidade.
3 A conflituosidade entre o Direito Penal da sociedade do risco e o paradigma penal clássico
3.1 O direito penal sob a ótica das teorias sociais da reflexividade e da reflexão
Como mencionado em Beck[35], a teoria da reflexividade implica, enquanto fase de transição não refletida e não intencional, a ideia de autoconfrontação oude autoalteração das bases da modernização com as suas próprias consequências e repousa sob a tese de que quanto mais avança a modernização da sociedade industrial, mais ficam dissolvidas, consumidas, modificadas e ameaçadas as suas estruturas.
Em alusão à continuidade deste processo, o autor enuncia a chamada teoria da reflexão, em cujo estágio os fenômenos da sociedade mundial do risco passam a ser percebidos e a constituir objeto de reflexão pública, política e científica. Aqui surge a ideia fundamental de que, quanto mais as sociedades são modernizadas, mais os agentes adquirem a capacidade de refletir sobre as condições sociais da sua existência.
Sob tal horizonte semântico, é possível afirmar que esta conflituosidade também se irradia para a seara do direito penal, na medida em que as perspectivas político-criminais que ora se divisam – de forma exemplificativa, pelo conceito de bem jurídico supraindividual, pelo recurso às incriminações de perigo abstrato e pela formulação dos delitos cumulativos – estão situadas no âmbito do processo de reflexidade, seguido pelo aludido momento de reflexão.
De fato, se na teoria social desenvolvida por Beck o surgimento dos novos riscos tecnológicos provocou abalos em todas as instituições fundamentais da sociedade industrial – e, entre elas, o direito – o modelo penal concebido a partir da ideia de risco igualmente não ficou alheio a esse mesmo processo.
De forma correlata, porém referindo-se mais diretamente ao moderno fenômeno da globalização, Costa formula a hipótese segundo a qual “(...) se todo o comportamento, quer individual, quer coletivo, está inexoravelmente determinado pelo fenômeno da globalização, então, os comportamentos criminais, também eles não podem deixar de ser determinados por essa mesma realidade” .
A movimentação jurídico-penal de absorção do paradigma da sociedade mundial do risco aponta em duas frentes: seja no sentido da expansão e do alargamento de um direito penal inspirado por uma nova racionalidade de incriminação, seja no da sua inequívoca contraposição aos princípios e às garantias penais estruturantes da vertente clássica, ensejando, pois, pontos de tensão sobremaneira difíceis de contornar.
Neste último aspecto, o choque de reflexividade entre o modus operandi das precitadas figuras diferenciadas e os princípios e garantias penais clássicos orientados à contenção da resposta penal, como estrita legalidade, culpabilidade, proporcionalidade, causalidade, subsidiariedade, intervenção mínima, fragmentariedade, lesividade etc., possibilita ou demanda, na fase de reflexão, sua reinterpretação, rearranjo ou adequação às novas necessidades advindas da configuração social do risco. Nessa esteira, há quem pugne por um novo direito penal capaz de enfrentar a criminalidade oriunda da sociedade do risco. Assim, constata Gemaque:
Esse modelo clássico de direito penal serviu durante a fase pré e recém-industrial, perdendo, contudo, eficácia, após a Segunda Guerra Mundial, principalmente depois do advento da revolução tecnológica e da sociedade pós-moderna, após o que se exige uma atuação mais efetiva de um novo direito penal mais preparado para enfrentar a criminalidade organizada e difusa que existe atualmente. É necessário que um novo direito penal seja construído, diferentemente daquele oriundo do positivismo jurídico, ou seja, um direito penal moderno e inerente a um sistema aberto para fazer frente à criminalidade da sociedade do risco[36].
Diversamente da constatação anterior e posicionando-se ao que parece, de modo irredutível, em desfavor da adequação de princípios e garantias penais no quadro dos conflitos de distribuição dos malefícios que perpassam a sociedade do risco, entende Garcia que “(...) nenhuma justificativa se mostra razoável para diminuir, ainda que minimamente, a proteção à dignidade da pessoa humana por meio da relativização dos princípios e direitos norteadores de um sistema criminal democrático”[37](grifos nossos).
Por outro lado, sem prejuízo do reconhecimento da essencialidade de princípios que se encontram radicados no denominado modelo do “contrato social” rousseauniano, propugna Dias uma atuação direta do direito penal em face dos novos riscos:
Não está o direito penal, por outra parte – argumenta-se –, preparado para a tutela dos grandes riscos se teimar em ancorar a sua legitimação substancial no modelo do contrato social rousseauniano, fundamento último de princípios político-criminais até agora tão essenciais como o da função exclusivamente protetora de bens jurídicos, o da secularização, o da intervenção mínima de ultima ratio. Porque se se quiser manter estes princípios, tal significará – assinalou-o Stratenwerth em duas conferências a vários títulos notáveis – a confissão resignada de que ao direito penal não pertence nenhum papel na protecção das gerações futuras; como, entre outros e principalmente, os temas dos atentados ao meio ambiente, da manipulação genética e da desregulação da actividade produtiva se vão encarregando já de demonstrar ou de prenunciar. Não uma função minimalista de tutela de bens jurídicos na acepção moderna, constituintes do padrão crítico de legitimação, mas a atribuição sem rebuços, ao direito penal, de uma função promocional e propulsora de valores orientadores da acção humana na vida comunitária – eis a única via que se revelaria adequada aos desafios formidáveis da ‘sociedade do risco’[38].
Igualmente se verifica a insuficiência ou a inadequação[39] do direito penal liberal, dotado de meios limitadores, para atender à atual e à crescente demanda pela consecução da segurança diante dos riscos tecnológicos.
Desse modo, identificada a existência de um cenário de conflituosidade entre o direito penal da sociedade risco e o paradigma penal clássico, abordar-se-á, no tópico seguinte, o choque de reflexividade entre os mecanismos de atuação das emergentes categorias dogmáticas e os princípios e garantias penais liberais orientados à limitação da resposta penal.
3.2 A tensão entre o direito penal da sociedade do risco e o paradigma penal clássico
Partindo das perspectivas político-criminais em referência pode-se identificar como cerne do problema a tensão entre a adequação do direito penal ao paradigma da sociedade mundial do risco e a ameaça a princípios e garantias penais estruturantes do modelo clássico. De fato, como bem constata Machado, as “(...) vias de configuração de um direito penal do risco não se efetivam sem que haja, de uma forma ou de outra, um certo distanciamento, um abrandamento ou um rearranjo dos princípios do direito penal clássico”[40].
Neste ponto, proceder-se-á a uma breve abordagem – por óbvio, não exaustiva – do conflito enfrentado por esses princípios e garantias a partir da análise, de cunho ilustrativo, de figuras dogmáticas emergentes, voltadas à prevenção em grande escala de situações problemáticas, quais sejam, a ampliação da tutela penal a bens jurídicos supraindividuais e a esferas anteriores ao dano e ao próprio perigo, especialmente com os crimes de perigo abstrato e os delitos cumulativos.
Iniciando o exame da questão suscitada, urge ressaltar o fato de que, movimentando-se sob um enfoque eminentemente preventivo, as aludidas categorias dogmáticas não possuem uma atuação estanque uma das outras. Ao revés, tendo em vista o direito penal abarcar bens jurídicos qualificados como supraindividuais, lança-se mão, como técnica de incriminação, do adiantamento da tutela penal, mediante o emprego dos crimes de perigo abstrato e dos delitos cumulativos.
É evidente que tanto o conceito de bem jurídico supraindividual quanto a teoria funcionalista, aplicada ao âmbito penal, discrepam do pensamento jurídico-penal moderno, segundo o qual a finalidade imediata e primordial do direito penal encontra-se assentada na exclusiva tutela de bens jurídicos individuais.
A apreensão, na esfera penal, desses bens imateriais e imprecisos em detrimento de um paradigma direcionado à repressão pontual de lesões concretas a bens jurídicos individuais, abala tanto a noção clássica de bem jurídico quanto diverge, e frontalmente, de princípios de índole liberal, como os da lesividade ou ofensividade, da intervenção mínima, da fragmentariedade e da subsidiariedade.
No particular, tal forma de atuação discrepa do postulado clássico da necessidade de dano a um bem concretamente representado – expresso na tese nulla poena, nullum crimen, nulla lex poenalis sine iniuria[41] – e, de conseguinte, da orientação segundo a qual a tutela penal somente deve intervir quando se revelar socialmente necessária à sobrevivência da comunidade, portanto, nos limites da intervenção mínima ou subsidiária e de ultima ratio.
Decerto, a estrutura de imputação associada aos novos riscos, baseada em delitos que prescindem de resultado, está evidentemente distante do clássico postulado da necessária danosidade a bens concretamente representados e referidos diretamente a pessoas. Aliás, é frequente que haja condutas incriminadas com espeque em objetivos funcionais, como a perturbação ao funcionamento ou ao desenvolvimento de um sistema, sem implicar, contudo, ofensa a bem jurídico penalmente protegido.
Evidencia-se, assim, uma mudança do eixo de proteção jurídico-penal, nos termos seguintes: de uma vertente voltada à tutela de bens jurídicos de titularidade individualizada e de conteúdo concreto em direção a outro modelo vinculado a uma proteção penal direcionada a bens de titularidade abstrata e de conteúdo amplo.
Ademais, cabe reafirmar que as peculiaridades ínsitas aos bens jurídicos de conteúdo vago e de titularidade difusa demandam, de certa forma, o manejo das técnicas de incriminação em esferas anteriores ao dano e ao próprio perigo – v.g., crimes de perigo abstrato e delitos cumulativos – delineando, nessa esteira, uma inequívoca tendência ao adiantamento da resposta penal. A esse respeito, assevera Machado:
Verifica-se, desde logo, que a combinação entre a tutela penal dos bens jurídicos supra-individuais e o avanço da intervenção estatal a esferas anteriores ao dano agrava as contradições ligadas à necessária ofensividade das condutas típicas. Isso porque a nebulosidade do objeto de proteção e da titularidade de tais bens jurídicos conjuga-se à falta de concreção lesiva dos tipos penais que prescindem de uma consideração posterior do resultado[42].
Nada obstante, os antagonismos agravam-se quando a tipificação de perigo abstrato e dos delitos cumulativos é abordada sob o ângulo dos princípios[43] da mínima intervenção e da proporcionalidade e dos pressupostos de subsidiariedade, fragmentariedade e ultima ratio, que norteiam a racionalidade penal moderna.
Resgatando os conceitos anteriormente expostos, tem-se que, pelos crimes de perigo abstrato, é punida a simples realização de determinada conduta reputada perigosa, ainda que inexista a configuração de um efetivo perigo ao bem jurídico; pela formulação dos delitos cumulativos, as condutas são punidas não por sua lesividade, mas em razão da finalidade de evitar a sua hipotética realização massiva e generalizada, cujo montante global resultaria perigoso ao bem em jogo.
Uma vez que a atuação ampla e indeterminada dessas estruturas incriminadoras prescinde da ocorrência da lesão ou ameaça concreta ao bem jurídico, sobressai-se a dificuldade de delimitar o objeto de proteção ou de estabelecer um patamar de risco penalmente relevante, circunstância que se contrapõe, diretamente, aos já enunciados princípios da intervenção mínima ou subsidiária e de ultima ratio, bem assim ao da proporcionalidade, haja vista a dificuldade de formação de um adequado juízo de equilíbrio entre a importância do bem tutelado, a gravidade da lesão perpetrada e a pena a ser infligida.
Em acréscimo, como consignado em Bottini, é justamente no quadro de enfrentamento dos novos riscos que os tipos de perigo abstrato constituem – diversamente da tipificação excepcional no âmbito do modelo clássico – o núcleo central do direito penal do risco.
No que interessa, referindo-se aos choques de adaptação dos delitos de precaução[44] em relação a princípios e institutos jurídicos consagrados, ele constata:
A adaptação dos delitos de precaução a alguns institutos jurídicos consagrados será árdua e, sob nosso ponto de vista, em muitos aspectos, impossível. Não será tarefa fácil aplicar um tipo que incrimine condutas sem periculosidade por meio dos instrumentos dogmáticos vigentes e, de certa forma, consolidados, que orientam o trabalho do intérprete diante do caso concreto, como a imputação objetiva, ou os princípios da lesividade e da proporcionalidade, dentre outros[45].
Enfim, para além do exposto, as mudanças em epígrafe, de feitio paradigmático, propiciam um forte questionamento sobre a subsistência da função de garantia desempenhada pelo bem jurídico, enquanto matriz legitimadora e limitadora da intervenção penal.
3.3 O direito penal de duas velocidades e o direito de intervenção
Diante das considerações expendidas, localiza-se como âmago da reflexão sobre as perspectivas do direito penal na sociedade do risco o embate entre a estabilização de um direito penal do risco e a violação de princípios e garantias penais de índole liberal. A partir dessa constatação, extraem-se diferentes manifestações: dos que defendem a funcionalização do direito penal àqueles que se apegam aos princípios do direito penal como ultima ratio, afora uma corrente intermediária ou de expansão moderada.
Situando-se no âmbito desta última, Silva Sánchez recusa o apego ao tradicionalismo clássico, ao mesmo tempo em que nega adesão à flexibilização decorrente da modernização do direito penal, propondo, nessa esteira, uma configuração dualista, o chamado direito penal de duas velocidades[46], pelo qual somente seria admissível, em apertada síntese, a absorção de novas áreas de tutela menos garantísticas no caso de as sanções previstas para os ilícitos não incluírem a pena privativa de liberdade.
Para tanto, ele constrói tal formulação com base em duas premissas, quais sejam: a oposição da plena modernização do direito penal, caracterizada pela expansão e pela flexibilização de princípios político-criminais e regras de imputação do direito penal da pena privativa de liberdade; e a negação de uma volta ao direito penal clássico, o qual, em sua ótica, nunca teria existido.
A partir da constatação de que o conjunto de garantias seria muito mais o reverso da pena de prisão do que algo inerente à identidade do modelo, Silva Sánchez estabelece uma relação direta entre as garantias de determinado sistema e a severidade das sanções por ele aplicadas, para concluir que o problema atual não é propriamente a expansão do direito penal em geral, mas, especificamente, a expansão do direito penal da pena privativa de liberdade.
Como se constata, se, de um lado, a resposta à moderna demanda social punitiva deve resolver-se, pelo viés proposto, mediante uma ampliação do direito penal a novos contextos, por outro, o autor abstém-se de questionar substancialmente que, dada a natureza dos objetos de proteção, a expansão em comento resulte mesmo em flexibilização de princípios e regras de imputação, ainda que não baseie sua força comunicativa na imposição de penas de prisão. Por oportuno, como bem preleciona Bottini, a discussão travada não está adstrita à qualidade da pena, mas à própria legitimidade da intervenção penal, afora eventual enfraquecimento da referida força comunicativa devido ao alargamento da atuação punitiva[47].
Noutro turno, a proposta de Hassemer diverge do modelo de Silva Sánchez, pois remete a nova seara de tutela, não a uma área diferenciada dentro do próprio direito penal, nem ficaria, simplesmente, a cargo do direito administrativo, mas a um novo campo jurídico denominado direito de intervenção[48], segundo ele, mais apto para lidar com as situações da sociedade do risco.
Opondo-se às emergentes tendências da configuração penal do risco, o autor defende a redução do direito penal a um direito penal nuclear, formado apenas por delitos de lesão a clássicos bens jurídicos individuais ou a bens jurídicos supraindividuais estritamente vinculados à pessoa, delitos de perigo concreto graves e evidentes e por regras de imputação rígidas e princípios de garantia clássicos. Assim, a proteção aos bens jurídicos supraindividuais em face dos novos riscos tecnológicos seria afastada do âmbito penal.
Localizado entre o direito penal e o direito administrativo, tal campo de regulação, atuaria no combate aos novos focos de insegurança de modo prioritariamente preventivo e, ainda, por ser muito mais flexível em relação às garantias materiais e processuais, disporia de sanções menos intensas que as penais tradicionais, renunciando à imposição de penas privativas de liberdade.
A propósito, referindo-se mais diretamente à polêmica envolvendo a relação entre princípio da precaução e direito penal, Bottini destaca que a proposta de Hassemer não estaria suficientemente desenvolvida nem delimitada, o que poderia implicar o manejo de um novo âmbito regulatório voltado à construção de um sistema autoritário e expansivo, a despeito de dispor de sanções mais brandas[49].
4. Conclusão
Como visto ao longo do presente trabalho, partindo do paradigma perfilhado pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, identificam-se dois conceitos de modernização, quais sejam, o da modernização simples, havida no período industrial, e a denominada modernização reflexiva, que vem dissolvendo os contornos da sociedade industrial e, na continuidade deste processo, fazendo surgir a sociedade mundial do risco.
Sob tal horizonte semântico, a modernização reflexiva corresponde a um novo estágio em que a expansão técnico-econômica havida durante o processo de desenvolvimento da modernidade simples pode se convolar em autodestruição da era industrial e, paralelamente, na sua substituição por uma nova configuração social – exasperadamente tecnológica, massificada e global – que emerge silenciosamente sob pequenas medidas com grandes efeitos cumulativos.
Nesse contexto, a ação humana, na maior parte das vezes anônima, revela-se capaz de ensejar riscos globais, passíveis de ser produzidos em tempo e lugar largamente distanciados da ação que os originou ou que para eles contribuiu, que podem apresentar, inclusive, dimensão e potencial destrutivo avassaladores, a exemplo da crise ecológica mundial.
Na teorização sobre os novos riscos, distinguem-se os riscos controláveis daqueles que escaparam ou mesmo neutralizaram os mecanismos de controle da sociedade industrial. Pelos primeiros, tem-se que, na vigência da sociedade industrial, era possível estabelecer um padrão de regularidade e normalidade, o que permitia construir conexões entre os acontecimentos, imputar causalidades e elaborar descrições que tornam manifesta a cadeia de conexões entre os acontecimentos[50].
Quanto aos últimos, tem-se que, na época da sociedade do risco, os padrões de normalidade não mais se afiguram seguros enquanto condutores da previsibilidade e da calculabilidade, ante a existência de contingências e indeterminações insuscetíveis de controle – o que aponta para a possibilidade de falhas no funcionamento das normas e das instituições de controle e proteção no período industrial.
No quadro da dinâmica sociopolítica, destaca-se a questão de os novos riscos assumirem uma dimensão ainda mais explosiva, ensejando sensações de incerteza e de incontrolabilidade produzidas pelo desenvolvimento técnico-econômico. Sob este dramático cenário, a percepção pública dos riscos convola-se facilmente em uma crescente demanda social por segurança, especialmente pelo viés normativo-penal.
Todavia, se, por um lado, o instrumental do direito penal de viés clássico-liberal mostra-se insuficiente e inadequado ao enfrentamento dos novos riscos, por outro, é no âmbito da política criminal que se encontra a abertura para que os influxos sociais ligados aos riscos sejam absorvidos e, na sequência, seja concebido um conjunto de respostas preventivas aptas a influenciar o sistema jurídico-penal.
Nesse sentido, como proposta apresentada pelo movimento jurídico-penal de absorção da sociedade mundial do risco, exsurge, de modo geral, a chamada expansão do direito penal regida, com base na ideia de risco, por uma racionalidade distinta daquela inscrita sob o modelo penal liberal e cujos desdobramentos podem traduzir-se, a título ilustrativo, pelos conceitos de bem jurídico supraindividual e de proteção penal a esferas anteriores ao dano e ao próprio perigo, mediante a utilização dos crimes de perigo abstrato e dos delitos cumulativos.
Se, na teoria social desenvolvida por Beck, o surgimento dos novos riscos tecnológicos provocou abalos em todas as instituições fundamentais da sociedade industrial, o modelo penal concebido a partir da ideia de risco igualmente não ficou alheio a esse mesmo processo. Daí a inequívoca contraposição das referidas perspectivas político-criminais em face de princípios e às garantias penais estruturantes da vertente clássica, ensejando pontos de tensão difíceis de contornar.
Por todo o exposto, bem se vê que o grande desafio que se instaura no âmbito deste trabalho, a partir da ideia do direito penal na sociedade mundial do risco, consiste na necessidade em harmonizar os anseios de uma política-criminal protetiva contra os riscos, com a preservação das liberdades e garantias penais liberais, bem como os possíveis perigos de uma expansão exagerada do direito penal com pena privativa de liberdade desacompanhado das garantias clássicas.
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Luciana Carneiro da Silva
Pós-graduanda em Ciências Penais
[1]BECK, Ulrich et alii. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p. 12.
[2]BECK, Ulrich. O que é globalização? Equívocos do globalismo, respostas à globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 178, grifos do autor.
[3]Cf. BECK, O que é globalização?..., p. 178.
[4]Cf. BECK, Modernização reflexiva..., p. 17.
[5]A propósito, nas exatas palavras de BELLINI: “Em março de 1986, um artigo de nove páginas sobre as instalações nucleares de Chernobyl apareceu numa edição em língua inglesa de Vida Soviética, sob o título de ‘Segurança Total’. Apenas um mês depois, na semana 26-27 de abril, o pior acidente nuclear no mundo – até então – ocorreu na usina”. Cf. BELLINI, James [citado em referência incompleta] apud GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, p. 9.
[6]Cf. BECK, O que é globalização?..., p. 83.
[7]Cf. BECK, Modernização reflexiva..., p. 17.
[8]MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2005, pp. 38-44.
[9]Cf. BECK, O que é globalização?..., p. 77, grifo do autor.
[10]Cf. BECK, O que é globalização?..., p. 83.
[11]HASSEMER, Winfried. “Perspectivas de uma moderna política criminal”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 8, out-dez, 1994, p. 44.
[12]Cf. BECK, O que é globalização?., pp. 79-83.
[13]Cf. BECK, O que é globalização?..., pp. 82-83.
[14]Cf. HASSEMER, Winfried. “Perspectivas de uma moderna política criminal”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 8, out-dez, 1994, p. 43.
[15]ZAFFARONI, Eugenio Raúl;BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 68.
[16]BARATTA, Alessandro. Funciones instrumentales y simbólicas del derecho penal: una discusión en la perspectiva de la criminologia crítica. Pena y Estado, Barcelona, n. 1, 1991, pp. 37-55.
[17]Cf. HASSEMER, Winfried. “Perspectivas de uma moderna política criminal”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 8, out-dez, 1994, p. 41.
[18]Cf. MACHADO, Sociedade do risco..., p. 95.
[19]No decorrer deste trabalho, utilizar-se-á a terminologia bens jurídicos supraindividuais, tendo como fio condutor a ideia, também presente nas terminologias como bens jurídicos universais, coletivos, difusos etc., atinente a interesses ou a direitos que não se limitam com exclusividade a um sujeito individual. A esse respeito, cf. MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del ambiente y accesoriedad administrativa: tratamiento penal de comportamientos perjudiciales para el ambiente amparados en una autorización ilícita. Barcelona: Cedes, 1996, p. 42.
[20]Cf. HASSEMER, Winfried. “Perspectivas de uma moderna política criminal”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 8, out-dez, 1994, pp. 44-45.
[21]JAKOBS apud CALLEGARI, André Luís; GIACOMOLLI, Nereu José (Coord.). Direito Penal e Funcionalismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 33-34.
[22]BICUDO, Tatiana Viggiani. “A globalização e as transformações no direito penal”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 23, jul-set, 1998, p. 106.
[23]DIAS, Jorge de Figueiredo. Fundamento, sentido e finalidades da pena criminal. In: Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: RT, 1999.
[24]PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 119.
[25]FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, sociedade de risco e o futuro do direito penal. Panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001, p. 84.
[26]MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2005, p. 106.
[27]Cf. HASSEMER, “Perspectivas de..., p. 46
[28]Cf. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 210.
[29]Cf. FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, sociedade de risco e o futuro do direito penal. Panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001, p. 93.
[30]JAKOBS, Günter. Sociedad, norma y persona en una teoría de un derecho penal funcional. Madrid: Civitas, 1996, p. 47.
[31]SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 121.
[32]KUHLEN, Lothar. Umweltstrafrecht – aut de Suche nach einer neuen Dogmatik, ZStW, 105 (1993), p. 697-716, apud SILVA SÁNCHEZ, A expansão...p. 121.
[33]Cf. SILVA SÁNCHEZ, A expansão..., p. 116.
[34]Cf. BECK, Modernização reflexiva..., p. 14.
[35]BECK, Ulrich et alii. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p. 210.
[36]COSTA, José de Faria. “O fenômeno da globalização e o direito penal econômico”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 34, abr-jun, 2001, p. 11.
[37]GEMAQUE, Sílvio César Arouck. “Limites do direito penal na moderna sociedade de riscos”. In: Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, v. 2, n. 8, jul-set, 2003, p. 141.
[38]GARCIA, Rogério Maia. “A sociedade do risco e a (in)eficiência do direito penal na era da globalização”. In: Revista de Estudos Criminais, v. 5, n. 17, jan-mar, 2005, p. 102.
[39]DIAS, Jorge de Figueiredo. “O direito penal entre a ‘sociedade industrial’ e a ‘sociedade de risco’”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 33, 2001, p. 45, grifos do autor.
[40]A esse respeito, salienta GARCIA, aludindo ao pensamento de DIAS: “(...) a sociedade apela, desde logo a uma crescente intervenção do direito penal, suscitando a este ramo da ciência jurídica problemas novos e incontornáveis, que seguramente se acentuarão no futuro próximo, acabando por realizar uma transformação radical do modelo em que atualmente vivemos, mas isto porque o catálogo clássico e individualista dos bens jurídicos já não é suficiente para responder adequadamente às novas necessidades. O sistema punitivo antropocêntrico e liberal já não serviria, assim, para fazer frente aos novos desafios”. Cf. GARCIA, Op. cit., p. 93.
[41]MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2005, p. 178.
[42]FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 373.
[43]Cf. MACHADO, Sociedade do risco..., pp. 162-163.
[44]PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 119-123.
[45]A propósito, nas palavras de MACHADO: “(...) a partir dessa linha político-criminal de antecipação da intervenção penal, idealizada por muitos como o ponto central da estratégia de segurança contra os novos riscos, é possível vislumbrar um forte indício de que o princípio da precaução esteja por trás das formulações do direito penal do risco”. Cf. MACHADO, Sociedade do risco..., p. 135, grifo da autora. Sobre o princípio da precaução, da prudência ou da cautela, conceitua BOTTINI: “(...) como a diretriz para a adoção de medidas de regulamentação de atividades, em casos de ausência de dados ou informações sobre o potencial danoso de sua implementação.” Cf. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. “Princípio da precaução, direito penal e sociedade de risco”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 61, 2006, p. 53.
[46]BOTTINI, Op. cit., p. 65.
[47]SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 136-147.
[48]BOTTINI, Op. cit., p. 104.
[49]HASSEMER, Winfried. “Perspectivas de uma moderna política criminal”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 8, out-dez, 1994, pp. 41-51.
[50]BOTTINI, Op. cit., p. 105.
[51]DE GIORGI, Rafaelle. “O risco na sociedade contemporânea”. In: Revista Seqüência. Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, n. 28, 1994, p. 47.
O entrevistado do Bate-Bola dessa edição da Revista Liberdades possui graduação, mestrado e doutorado em psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, além de ser professor de Comportamento Humano Forense I, Criminologia I e Psicologia Forense na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a tradicional Academia do Largo São Francisco, sendo muito querido por seus alunos. Alvino Augusto de Sá também é colaborador do IBCCRIM e autor de obras como Criminologia Clínica e Psicologia Criminal (Editora Revista dos Tribunais), Reincidência criminal sob o enfoque da Psicologia Clínica Preventiva (Editora Pedagógica e Universitária) e organizador de Criminologia e os Problemas da Atualidade (Editora Atlas).
A entrevista foi realizada pessoalmente por Camila Garcia da Silva, aluna da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e estagiária do IBCCRIM, no próprio Instituto.
Professor, como o senhor se interessou por criminologia? E por que, como psicólogo, passou a atuar na área do Direito?
ALVINO AUGUSTO DE SÁ – Antes de me formar psicólogo pela PUC, tive a oportunidade de fazer um estágio na Penitenciária do Estado por 9 meses, e meu interesse já nasceu por essa questão criminal, prisional, penitenciária, criminológica e pelo diagnóstico criminológico.
Antes de formado também, quando era bacharel, prestei concurso na reitoria da USP e passei a trabalhar como assistente técnico de seleção. Assim surgiu meu interesse pela seleção organizacional, que tive a oportunidade de experimentar lá.
Depois fui para o Bradesco, no centro educacional, em que tive também uma experiência na área escolar e, novamente, na área de seleção. Eu trabalhei um bom tempo na área de seleção do Bradesco, centralizando-a, em São Paulo, na agência Nova Central.
Depois, comecei no magistério superior na Universidade de Guarulhos. Ministrava, inicialmente, psicologia social e, depois, psicologia do desenvolvimento. Em seguida, passei para técnicas de exame psicológico, em que me estabilizei, e, unindo as técnicas de exame psicológico e exame criminológico, foi por onde eu me enveredei, uma vez que, em 1972, comecei a trabalhar na Penitenciária como psicólogo. Comecei a sintetizar, a unir essas duas coisas: técnicas de exame psicológico no magistério superior e o diagnóstico criminológico na Penitenciária do Estado. A partir daí as minhas atividades se centralizaram quase que exclusivamente sobre esses temas.
O senhor sempre desejou tornar-se professor? E como tem sido sua experiência em lecionar para os estudantes de Direito?
AAS – Eu não pensava nisso antes de me formar. Foi um convite que me foi feito. Comecei e gostei da experiência, mas não pensava nisso. Comecei no magistério em psicologia social, uma disciplina que não era bem a minha área de atuação, já que gosto de lecionar aquilo em que trabalho. Posteriormente, passei a lecionar sobre técnicas de exame psicológico, que foi no que me desenvolvi mesmo, pois os alunos gostavam muito mais. Enfim, foi nisto que dominei a coisa e conquistei um espaço bastante significativo na Universidade.
Após essa experiência, comecei a dar aulas de criminologia na Faculdade de Direito da USP, onde passei realmente a lecionar aquilo que é o meu exercício profissional, qual seja, o diagnóstico de tratamento penitenciário e a criminologia clínica. Matérias em que me encontrei ainda mais, até mesmo mais que na própria Psicologia.
Porque eu gosto muito de lecionar na área do Direito e de fazer palestras nessa área. Parece um pessoal mais interessado, eles vibram mais com essa questão penitenciária do que se eu projecionar em uma turma de Psicologia. Por exemplo, em uma turma de Psicologia de 80 alunos, se você for pesquisar e observar quem tem interesse na área de criminologia e psicologia jurídica, encontrar 4 alunos já é muito. O restante não tem interesse, ao passo que, se eu for lecionar para uma classe de direito, diria que 80 a 100% têm interesse nessa área, mesmo não que vá trabalhar com isso. Além disso, agora que a criminologia tornou-se uma matéria optativa, espera-se que realmente quem escolha já tenha interesse na área penal. Então, eu gosto muito de lecionar no Direito, pois eu me encontro e me identifico.
Professor, o senhor pode nos explicar, em linhas gerais, no que consistem os projetos GETCRIM e GEDUCC? Em relação ao último, quais são os benefícios atingidos quando se dá a aproximação entre os estudantes e os encarcerados?
AAS – O GETCRIM, Grupo de Estudos sobre Temas de Criminologia, é um grupo teórico que foi criado, primeiro, com a finalidade de estudar, discutir e debater textos, que se abre para todo o leque da criminologia. Diante do histórico do GETCRIM, ele se abre mais sobre os estudos da criminologia sociológica e crítica, pois os alunos têm muito interesse em estudar as Teorias Críticas.
Já o GEDUCC é um grupo de inserção na prática. Tem uma palavra que não gosto muito de usar, pois pode ser mal interpretada, mas seria um grupo de intervenção. É que esse termo dá a impressão de coisa policialesca ou do governo federal que vai intervir. Mas o GEDUCC é um grupo de atuação que vai ao cárcere e procura construir um diálogo entre ele e a academia, entre um subgrupo de acadêmicos e um subgrupo de presos.
Quanto a benefícios, temos objetivos de que, da parte dos presos, eles vejam, sintam e que reascenda neles aquela experiência de que eles têm valor, porque estão conversando de igual para igual com universitários. Portanto, em primeiro lugar, temos essa valorização. Em segundo lugar, é uma oportunidade de debater, de fato, os seus pontos de vista com outros pontos de vista, ou seja, o ponto de vista dos detentos e dos acadêmicos, dentro de suas respectivas experiências e histórico.
E, na parte dos acadêmicos, há um crescimento, uma vez que eles descobrem uma outra realidade, que não imaginavam, ao lado dos encarcerados enquanto pessoas. E descobrem, em si mesmos, seu lado delinquente e crescem muito com isso. Não no sentido de aprender mais com a criminologia, porque assim, os presos seriam, simplesmente, objetos de estudo. Não é isso que a gente quer. Eles aprendem porque crescem com a própria discussão e ao ouvir os presos e suas opiniões. Assim, descobrem que esses criminosos têm uma história humana por trás daquilo, na qual se enraíza e tem sentido e, por consequência, passa a ter sentido toda a visão que eles têm da vida, da ética e dos valores. Enfim, o que para nós é muito válido em função da nossa história de vida, para eles também é. Da mesma forma, a visão deles é muito válida em função de sua história de vida.
O senhor acha adequado o uso de expressões como “reinserção social” ou “ressocialização do preso” ou, na prática, temos, na maioria das vezes, um indivíduo que já estava marginalizado?
AAS – O problema não é o “re” que tanto se fala, porque quando falamos ressocialização, reintegração, há uma diferença fundamental de conceito. E essa diferença não está no “re”. Mas se você quiser falar de socialização, não use ressocialização, ou se quiser falar de integração social, não fale de reintegração social. Então o “re” é o que menos interessa, e para mim isso já está superado. Há 20, 30 anos atrás, já ouvia falar dessa história. A questão é o próprio conceito, porque quando se fala de ressocialização ou de socialização, a gente está pensando em estratégias para o preso assimilar e aprender a ética social e se conscientizar dos valores sociais, permitindo, assim, que ele tenha condições de se reinserir socialmente.
Quando se fala em integração ou reintegração, não tem essa história de assimilar a ética social ou os valores sociais, porque tudo isso eles já sabem. E nisso eles não acreditam. Os presos não acreditam por uma série de precedentes em sua história de vida e por uma série de precedentes na própria história da sociedade. Por que eles vão acreditar em valores que não lhe trazem benefício algum, valores de um grupo ao qual eles não pertencem, que não quer aceitá-los e para o qual eles se sentem despreparados para voltar? Por que eles vão aceitar valores que não são respeitados por esse próprio grupo a partir de seus líderes, que vêm de Brasília e que se dizem legisladores, governantes e executivos... Então isso caiu totalmente em descrédito perante os presos.
Ao falarmos de integração, reintegração, devemos ter em mente essa oportunidade de diálogo que, pelo menos, faz com que eles enxerguem uma luz no fim do túnel, no sentido de eles terem direito, terem condições, terem capacidade e de pertencerem a esse grupo, sem exigências. O GEDUCC é uma experiência pequena, que eles tem durante 2 ou 3 meses, mas é significante para muitos, no sentido de eles experienciarem essa pertença, essa convivência em grupo. De repente, eles descobrem que isso é possível.
Então, quando eles se valorizam e têm uma experiência de pertencimento, de que é possível a integração a esse grupo, eles se sentem mais seguros, fortes e exigentes, de cabeça erguida quando voltarem para tal grupo. Ao entrar nesse grupo, passando a ter valor para seus membros, então, as normas desse grupo passam a ter valor para os ex-detentos também.
Ao contrário do que se pensa, não é que se espera primeiro a socialização, quer dizer, o aprendizado da ética e dos valores, para, depois, a integração e a reinserção. Primeiro, uma experiência de integração, de pertença, de valorização de si mesmo. Portanto, uma experiência de capacidade de reinserção, de integração com o grande grupo social. Dessa forma, eles se sentem motivados, não capacitados, a aderir a esses valores ou, pelo menos, a ter uma consciência desses valores e decidirem, conscientemente, o que eles querem de suas vidas.
E, ainda, qual seria a aplicabilidade dessa tese, vez que um dos métodos mais importantes para a “ressocialização” de um indivíduo seria a inserção no mercado do trabalho, conforme observamos, atualmente, em projetos como o “Começar de novo” do CNJ? No entanto, apesar do grande problema do desemprego em nossa sociedade, não é paradoxal que o próprio Estado exija que, para a ocupação de determinados cargos públicos, se apresente uma declaração de bons antecedentes criminais?
AAS – É uma hipocrisia perfeita, não é? Porque, para o sujeito ocupar, ou até mesmo estagiar, um cargo do Estado, seja ele uma ocupação simples, de início de carreira, como a de assistente administrativo etc., exige-se que ele tenha uma vida pregressa limpa. Se ele tiver algum antecedente, há cinco anos atrás, às vezes, só o fato de ele estar sendo processado, já não pode assumir esse cargo de assistente administrativo.
No entanto ele pode assumir o cargo de deputado federal, senador, governador e presidente. Portanto, é uma hipocrisia perfeita desse governo, desse Estado, desse país e dessa sociedade. Eu não tenho como responder, senão reforçar o paradoxo que você está apontando, e isso tudo passa para os presos e disso tudo eles têm consciência e sabem que essas coisas acontecem. Esse mesmo Estado que luta pela sua inserção, propõe as empresas “vamos começar de novo” e cria programas de estímulo para eles encontrarem seu lugar, ele próprio, não os aceita. Não sei o que responder a você a não ser que isso é uma grande hipocrisia, e mais, esse mesmo Estado que não aceita, aceita pessoas com ficha suja, que têm não sei quantos processos em andamento, verdadeiros ladrões, assaltantes do povo.
No que tange a violência juvenil, podemos entender que a banalização da violência exposta nos meios de comunicação, amplamente exibida em cenas de filmes e jogos, levaria o adolescente a praticar algum tipo de delito? E quais as medidas possíveis para evitar esse tipo de contato, tendo em vista as propostas de fiscalização e censura?
AAS – Parece-me que já foi feita alguma pesquisa no Brasil. Não saberia lhe citar agora. Apenas sei que foi feita uma pesquisa sobre a força que esses filmes tem de estimular a violência e me parece que o resultado foi negativo, quer dizer, que eles não tem a força de estimular e de provocar a violência. Agora uma coisa é certa: se não provoca a violência, também não estimula a paz. Se a gente for dizer alguma coisa nesse sentido, lá vem aquela velha medida nesse país: “vamos censurar”. Parece que é a única coisa que se sabe aqui e que se pensa nesses casos: censura e punição. Será que não existe alguma outra saída no lugar de censura e punição? Que tal a educação? A mídia tem a disposição uma série de programas, não são somente os violentos. Existem outros canais interessantes, mas também existem canais que são especializados em porcaria, em besteira, em Big Brother, e nessas coisas que não educam em nada e não servem para absolutamente nada... Acho que a mídia, nesse sentido, banaliza a violência, o sexo, e coloca tudo a disposição. E, depois, essa própria mídia reclama da violência, dos crimes sexuais. Não sei se censura resolve, porque sou contra, em princípio, à lei resolver as coisas.
Não acredito que seja possível resolver as coisas por leis, por censuras e punições, e sim pela educação. Esqueçamos os Big Brothers, o ideal seria que as pessoas fossem educadas para selecionar os seus programas. Há outros programas que são educativos em outros canais, mas o problema não está na censura, não está na punição, mas estaria na educação. Agora, que estes filmes, que estes programas não trazem muita coisa de proveito, não trazem. Segundo, banalizam o sexo e a violência, tornando isso tudo muito comum. Agora, que leve as pessoas a se tornarem violentas não sei, isso já não poderia nem dizer, que seria mera suposição da minha parte.
Em relação aos adolescentes em conflito com a lei, mas também levando em consideração os detentos comuns, é possível apontar que, se o indivíduo sofre algum tipo de violência quando criança, ele tem maiores chances de cometer algum tipo de infração posteriormente?
AAS – Não é que se trata de um determinismo, mas você mesma usou a expressão maior chance. É claro que uma pessoa, uma criança, que sofreu violência durante a sua infância, sofreu violência física por parte dos pais ou, até mesmo, violência sexual, uma criança sofrida, fustigada, castigada, punida, a gente não vai dizer que o futuro dela pode ser o mesmo da outra que recebeu todo o tratamento, toda a atenção afetiva, amor, acolhimento. Não, não dá pra dizer isso. Essa criança que sofreu violências físicas, sexuais, verbais, morais, psíquicas, psicológicas, enfim, que não recebeu apoio, essa criança, é evidente, que corre um risco muito maior de se desajustar na vida. Isso não quer dizer que vá cometer crimes.
Entre esses desajustes, em meio desse desajuste social todo, desse desequilíbrio emocional todo, ela está fragilizada, vulnerabilizada diante dos revezes da vida e diante das exigências e pressões que a sociedade vai fazer para ela. Então, em função dessas exigências, pressões, reclamos, demandas e com tudo o que a sociedade lhe oferece, o comércio, mercado, consumo, e ela muito vulnerabilizada por todo esse passado, com uma agressividade e violência que foram internalizadas, evidente que ela está muito vulnerável e frágil para enfrentar tudo isso. E uma das respostas possíveis poderá ser a resposta delinquente. Portanto, não há uma predeterminação, mas há uma condição facilitadora.
Qual é a importância dos instrumentos como o exame de personalidade, criminológico e da avaliação da Comissão Técnica de Classificação durante a execução da pena? As autoridades estão preparadas para aplicar adequadamente esses instrumentos em meio ao “caos penitenciário”?
AAS – Acho que o exame criminológico seria recomendável naquele exame inicial, o exame de observação, que é previsto no art. 8º da Lei de Execuções Penais e no art. 34 do Código Penal. Ele é feito no início da execução da pena para o conhecimento do indivíduo, que não tem uma finalidade prognóstica, que deva ter unicamente uma finalidade diagnóstica.
O exame de personalidade é previsto no art. 34 da Exposição de Motivos, distinguindo-se do criminológico. Portanto, o exame de personalidade seria o exame da pessoa do preso, o que acho muito interessante, porque a Lei de Execuções Penais refere-se a um exame de personalidade no art. 9º. É um exame da pessoa do preso. Então, se nós tivéssemos um exame criminológico inicial e um exame de personalidade inicial, ou apenas um exame de personalidade inicial grande e abrangente, nós teríamos dados muitos ricos para nos ajudarem na individualização da execução da pena deste indivíduo.
Agora, com relação à concessão de benefícios, se há alguma avaliação técnica a ser feita, entendo que a melhor seria a da Comissão Técnica de Classificação, que não é um exame criminológico, isto é, que não pretende aferir os porquês do crime, as condições psíquicas e sociais do indivíduo que o teriam levado a praticar o crime, e, muito menos, o prognóstico da reincidência. A avaliação da Comissão Técnica de Classificação se debruça única e exclusivamente sobre o histórico prisional. É uma avaliação de conduta. Seria uma avaliação técnica, interdisciplinar complexa da conduta dentro do histórico do preso. E acho que seria recomendável, principalmente, para esses casos mais graves. E neles, vejo que também seria recomendável o exame criminológico.
Em suma, como rotina, o parecer da Comissão Técnica de Classificação, uma comissão interdisciplinar, que vai informar o juiz e o MP sobre como está indo esse preso no cumprimento de sua pena. Já o exame criminológico seria uma perícia mais aprofundada em termos de personalidade, de psiquismo, de histórico social, familiar, para aqueles casos realmente mais graves. Como esse que aconteceu da Suzane von Richthofen, ou o maníaco do Parque, ou esse que aconteceu em Goiás, por exemplo, em que o delinquente já havia matado 7 crianças, é nesses casos em que há necessidade de realizar um exame acurado, quando há pedido de liberdade ou de progressão de regime.
E em relação à forma como as autoridades estão preparadas, não sei, porque as autoridades sabem falar mais em exame criminológico. Os juizes e promotores não têm lá muita noção, e nem sei se deveriam ter, da diferença do exame criminológico e do parecer da Comissão Técnica de Classificação. Quer dizer, mais os técnicos que deveriam mostrar essa diferença e oferecer peças técnicas diferentes. Agora tem um velho entrave: para a Comissão Técnica fazer um parecer ela tem que desenvolver seu trabalho de individualização na execução, quer dizer, ela tem que desenvolver programas para avaliar depois a resposta que o preso está dando a esses programas. Por conseguinte, há um problema sério, porque ela não tem feito, não tem tido tempo de fazer, não tem havido técnicos suficientes para fazer, porque o Estado também não valoriza esse tipo de coisa.
Sobre a Justiça Restaurativa, o senhor acredita que seus mecanismos de composição entre o ofendido e seu agressor podem ser uma via interessante para diminuir a superlotação carcerária ou seus princípios devem ser aplicados de modo restritivo?
AAS – Não tenho experiência com Justiça Restaurativa. Li, gosto da Justiça Restaurativa, os autores que a propõem têm tido experiência. Os autores aqui no Brasil, como todos sabem, são Leonardo Sica e Pedro Scuro. Parece que as experiências têm sido bastante positivas. Eu não tenho trabalhado, mas já vi preso interessado em passar por essa experiência, em fazer esse tipo de intercâmbio com a vítima. E acredito que a Justiça Restaurativa é uma saída melhor que a pena privativa de liberdade e que outras formas de punição.
Acho que a Justiça Restaurativa pode ser uma oportunidade de crescimento para o agressor e para a vítima, principalmente se se tratar de restaurar relações e não só de restaurar os danos e perdas de quem ofendeu ou roubou. Não se trata de um mero ressarcimento, já que não se pode continuar como dantes. Acho que não deveria parar por aí. É uma restauração e um restabelecimento de relações, uma busca de entendimento das pessoas, o agressor entender os desdobramentos da sua conduta junto à vítima, desdobramentos esses que ele não tem consciência.
É como um professor quando reprova: dá uma nota ao aluno pela qual o aluno fica reprovado. O professor às vezes não tem consciência de todas as consequências que aquela reprovação vai trazer para o aluno. Não é por isso que ele não deva reprovar, não estou dizendo isso, mas às vezes o professor dá uma nota e não pensa muito nas consequências de seus atos. E é professor universitário. Quem sabe, se um dia ele for conversar com o aluno reprovado, ele irá ver o que aquilo acarretou para o aluno. Será que não seria o caso de ele relevar aquele ponto, em função de toda a perda que o aluno sofreu? Estou fazendo uma analogia, assim como o professor, digo até por experiência, na época em que eu era muito durão como professor, não adiantava o aluno pedir 0,25, 0,5... Reprovou, reprovou e pronto. Assim como o professor não tem consciência dos desdobramentos de sua decisão, muito menos a tem o agressor dos desdobramentos que seu ato teve na vítima.
Qual será o futuro da realidade prisional brasileira? Quais são os problemas e as saídas que devemos buscar?
AAS – Difícil, hein? Acho que o caminho parece passar por aí, pelo Direito Penal Mínimo. Dizer que vai se extinguir a prisão, não acredito, mas certamente aparecerão outras alternativas, como a Justiça Restaurativa, o Direito Penal Mínimo, a descriminalização de muitas condutas, como o tráfico, a descoberta de entorpecente. É possível que, daqui há 100, 150 anos, isso não exista mais. Então se você descriminalizar só o comércio de entorpecentes, terá uma redução de 30 a 40% das nossas taxas de encarceramento, e, consequentemente, vai ter a redução do crime organizado, redução muito grande dos homicídios, por conta disso também existirá uma redução da nossa taxa de encarceramento. Em decorrência disso, teremos uma redução de muitos assaltos e furtos que são feitos para sustentar o tráfico, e nova redução das taxas de encarceramento.
Acredito que nosso caminho seja: Direito Penal Mínimo, descriminalização de condutas e aumento das penas alternativas de prestação de serviços, que deixariam de ser alternativas, e, quem sabe, a pena de prisão passe a ser alternativa, e realmente haverá a minimalização do Direito Penal!
* * *
Terrorismo y Guerra Justa, de Michael Walzer
(Katz Editores, 2008, 1ª edição, Madrid)
Michael Walzer (03.03.1935) é um filósofo americano judeu, e, desde 1980, é professor de Ciências Sociais no Instituto de Estudos Avançados, em Princeton, Nova Jersey. Atualmente é identificado como um dos principais proponentes do “Quadro Comunitário de Posição” na teoria política, juntamente com Michael Sandel e Alasdair MacIntyre.
Com uma bibliografia caracterizada por muitos livros publicados que abordam vasta diversidade de tópicos, incluindo justiça econômica, crítica social, tolerância, radicalismo, o Autor traz em Terrorismo e Guerra Justa uma abordagem sobre a Teoria da Guerra Justa e alguns pontos relevantes da “Guerra contra o Terror”.
Walzer considera que o fato ocorrido em 11 de setembro de 2001, nos EUA, tornou-se o marco dos atos terroristas mundialmente conhecidos, a partir do qual a violência passou a ser reconhecida como recurso para a solução de conflitos, ou seja, como uma “arma política”.
Em uma linguagem contemporânea, Walzer, nesta obra, utiliza-se de expressões como justa causa para a guerra, guerra justa, guerra injusta, resistência à agressão armada, emergência suprema, dentre outros. Assim sendo, para uma completa compreensão de tais termos, faz-se necessário um conhecimento prévio dos conceitos e teorias desenvolvidos em outra obra do mesmo Autor, Guerras Justas e Injustas[1].
Para Walzer, o conceito de terrorismo baseia-se no assassinato aleatório (vulnerabilidade universal) de pessoas inocentes impulsionado pela esperança de produzir um temor generalizado. Na criação do terror inerente às pretensões terroristas, os elementos aleatoriedade e inocência das pessoas alvos dessas ações são de crucial importância,[2] demonstrando que os terroristas têm a intenção política da destruição, da subordinação radical de pessoas enquanto indivíduos pertencentes a um povo que se pretende desestabilizar.
Sabendo que por vezes o ato terrorista é formado por um conjunto de ideias políticas e morais (estratégia civil), o Autor não crê que o terrorismo possa ser justificado, tampouco que as razões que “sustentam” o terrorismo possam ser justas ou injustas. Porém, entende que em casos raros, muito determinados, talvez seja possível não justificar, mas desculpar-se pelos atos terroristas perpetrados, já que por vezes, são impulsionados por um sentimento de injustiça, pela luta da liberdade, contra a tirania, apesar de contestável, por poderem ser considerados como uma resposta natural, justa ou até mesmo necessária.[3]
De acordo com o Autor, os terroristas não querem suas identificações, tampouco desejam ser julgados pela mensagem que enviam, mas objetivam anúncios: querem anunciar por meio de destruições, de expulsões, seja por sua vitória em uma “guerra justa”[4] ou pelo triunfo de sua religião[5].
As reflexões do Autor neste livro sobre a guerra atêm-se a um projeto teórico sobre a justiça e a moral, pois já que são exatamente a natureza e os limites morais da guerra que são questionados quando de seu início e, principalmente, quando seu fim não chega[6].
Podemos, pelas afirmações do Autor, concluir que a agressão e o massacre são causas legítimas da guerra, muito embora muitos não comunguem desta teoria. Mas o que não podemos esquecer é que as consequências da guerra perduram por anos, principalmente quando falamos do povo atingido.
Trazendo conceitos sobre o terrorismo e sobre uma guerra que pode ser tida como (in)justa, o Autor também aborda a Teoria da Guerra Justa.
A Teoria da Guerra Justa pressupõe que as guerras podem ser analisadas à luz da moral. Diante da possibilidade de determinação e classificação de determinada guerra como justa ou injusta, a partir do estabelecimento de limites éticos de conduta na guerra, e, implicitamente, conduzindo uma corrente que defende a ideia da teoria da paz justa.
Não nos olvidemos que a justiça na guerra, também conhecida por “direito humanitário” (jus in bellum), compreende três pontos essenciais: o uso da força mínima; a proporcionalidade da violência ao ataque sofrido; e, por fim, o emprego da força dirigida apenas contra pessoas que sejam alvos legítimos de ataque (proteção dos não combatentes).
As mesmas regras que regem o jus in bellum se aplicam à “guerra” contra o terrorismo, ademais, a todas guerras em geral: os soldados devem atuar unicamente contra objetivos militares e minimizar o dano que causam aos civis.
A Teoria da Guerra Justa é regida por três questões morais[7] fundamentais: a teoria do jus ad bellum, que avalia a “justiça” da decisão de entrar em uma guerra; a teoria do jus in bellum, que exprime a justiça do combate; e a teoria do jus post bellum, referente à justiça do pós-guerra.
A jus ad bellum, como dito anteriormente,refere-se à justiça da decisão de entrar ou não em guerra, e por isso é a parte da Teoria da Guerra Justa que analisa as condições em que as guerras podem ser ditas “justas”, ou seja, quando as razões pelas quais os Estados são legítimos ou quando há uma necessidade “moral” para se fazer guerra.
Retornando à questão da guerra, o Autor aborda a característica de que toda guerra é perversa, porque viola muitos mandamentos da ética e da moral, e traz um ponto intrigante: o que fazer quando um país é agredido por outro?, ou um povo é levado à humilhação por outro povo por políticas, religiosas etc?
Pois bem, nasceria o direito de se defender por força defensiva? Por agressão mútua?
Valeria a alegação do princípio da não intervenção em assuntos internos de estados soberanos e, em razão disso, deveríamos assistir, passivos, a crimes contra a humanidade? Como reagir ao fenômeno difuso do terrorismo que pode utilizar armas de extermínio em massa e vitimar milhares de inocentes? Contra isso seria legítima uma guerra preventiva?
Considerando que a “guerra justa” é um campo cada vez mais fértil para abordagens estreitas, o Autor enfrenta o assunto no campo da filosofia moral.
Para Walzer, estas são questões éticas que preocupam àqueles que têm em mente que o mundo inteiro pode ser prejudicado dada a capacidade devastadora da guerra moderna, bem como as estratégias de combate de países, como os EUA, o Irã, a China, de usar a força para fazer valer seus interesses globais.
Diante deste quadro, poder-se-ia falar em guerra justa[8] (ius ad bellum)?
Assim, as expressões “Guerra contra o Terror” ou “4ª Guerra Mundial” procuram caracterizar a guerra característica do mundo globalizado, na qual os atores principais já não são os Estados. Uma guerra pressupõe-se terminada quando uma das partes se rende ou ocorre uma negociação. E este não é o caso do terrorismo.
Pela teoria do ius ad bellum, estabelece-se uma divisão da teoria da guerra justa que estuda as condições em que as guerras podem ser ditas justas, ou, até mesmo, consideradas como uma “necessidade moral” de se fazer uma guerra. E, segundo Walzer, a Teoria da Guerra Justa domina os nossos discursos sobre a guerra e, comumente é utilizada como “arma” pelos líderes políticos como forma de justificar as suas decisões e ações. Lembra, também, que a aleatoriedade e a inocência[9] são elementos cruciais para a definição dos atos terroristas.
Afirma, ainda, que as mesmas regras que regem o ius in bellum se aplicam à “guerra” contra o terrorismo. Afinal, em uma guerra, em geral, os soldados devem atuar unicamente contra objetivos militares e hão de minimizar os danos que possam causar aos civis. Contudo, o Autor considera que, dependendo das circunstâncias (“emergência suprema”)[10], a moralidade pode ser suspensa.
E, para concluir, assinala que, para uma guerra ser considerada “justa”, não se deve apenas ter uma causalidade apropriada, deve, também, ser travada com boa intenção, de modo a evitar que a guerra seja um pretexto para alcançar outros objetivos.
Mas, para que se possa falar em boas intenções, uma guerra deve ser travada com a finalidade de defender a vida, a liberdade, a justiça ou de promover a própria paz, e não deve ter como finalidade a opressão dos povos, por meio do terror, ou visar a fortalecer o poder de um determinado Estado, também por meio do terror.
Vanessa Faullame Andrade
Advogada.
[1]WALZER, Michael. Guerras Justas e Injustas. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[2]Idem. Ibidem, p. 9-10.
[3]Talvez possamos aqui ilustrar com a história trazida pelo filme “Bastardos Inglórios” (Título original: Inglourious Bastards), de Tarantino, ou, até mesmo pode ser exemplificado com Mandela, que aderiu aos ataques armados contra bases militares na luta pelo fim do regime do Apartheid.
[4]Para o Autor, só podemos concluir que uma guerra é justa quando não bastar a determinação da justiça das causas, mas necessitar da avaliação da justiça dos meios de combatê-la.
[5]WALZER. Op. cit., p. 21.
[6]Imperioso salientar que Walzer estuda essencialmente no jus post bellum as condições que permitem terminar uma guerra de forma justa; excluindo-se as formas de vingança coletiva ou de violação de direitos.
[7]A concepção walzeriana de moralidade mínima tem sua manifestação na Teoria da Guerra Justa por meio da proteção universal dos direitos, principalmente, dos direitos à vida, à liberdade e à autodeterminação política. Neste caso, a tirania e o terror estão estreitamente vinculados. Podendo ser indagado se o terror, em algumas ocasiões, não seria uma estratégia dirigida a lograr modificações políticas de um governo, até mesmo em tempos de guerra.Ainda, para o Autor, os Estados têm o direito de tentar ganhar as guerras, mas não têm o direito de fazer todo o necessário para ganhar, principalmente se importar no desrespeito das regras morais.
[8]Walzer defende algumas exceções que podem justificar moralmente a guerra, consistindo por isso causa justa: a) a intervenção por antecipação em casos em que a agressão esteja iminente, pondo em risco a integridade territorial e a soberania do Estado; b) a intervenção para anular os efeitos de uma intervenção anterior; c) a ingerência em situações provadas de violações dos direitos humanos, assumindo como que um estatuto de “intervenção policial” para por cobro a atuações criminosas de Estados; d) a prestação de auxílio a movimentos secessionistas, desde que provado o seu caráter representativo.
[9]Para Walzer, o termo “inocência” define o grupo de não combatentes, de civis, de homens e de mulheres que não estejam implicados materialmente em esforço bélico (WALZER. Op. cit., p. 10).
[10]Walzer defende que estaremos em “emergência suprema”quando os “valores humanos estiverem amenizados” ou quando um Estado tenha sistematizado um massacre, dando-se, então, uma situação de emergência suprema, justificando-se, até mesmo, a suspensão de algumas leis morais (WALZER. Op. cit., p. 55 – entrevista).
Crash – No Limite (Crash, Eua, 2004)[1]
Deixar a forma humana para esposar novas forças, da velocidade dos engenhos, do microcosmo molecular, da verticalidade aérea e suas vertigens. (...) é inegável o quanto a arte cinematográfica ela mesma desterritorializou o olho humano e a percepção, deslocando seu centro de gravidade, violentando-a, estilhaçando-a, arrastando-a para outras sensações, para uma outra lógica, para um outro cogito, para uma outra subjetividade, um eu polimorfo, instável, dispersivo, descontínuo, plástico, quase amorfo, um tanto quântico, como sugeriu Epstein ao referir-se ao cinema como instrumento de representação transcartesiano, como esta máquina de fabricar sonhos, mesmo inumanos. O olho não como suporte de um ponto de vista, mas instrumento de mergulho molecular, ou de surfe, ou de sobrevôo.
(Pelbart, 1997, pág. 9).
O presente artigo fará uma analise do atravessamento de três importantes formas contemporâneas: a subjetividade, o capitalismo, e a cidade, pensando seu surgimento desde a modernidade. Utilizaremos como instrumento alguns filmes que nos mostram essas formas, pensando o filme como essa “máquina de desterritorialização do olho humano”, conforme nos traz Peter Pal-Pelbart na citação acima.
A subjetividade será tratada tentando-se fugir de uma certa interioridade, que durante tanto tempo fez do “eu” a sua casa. Para isso, remetemo-nos, primeiramente, num “mergulho molecular” para a atmosfera de Crash – no limite, filme de Paul Haggis, que nos leva a cidade de Los Angeles, mas que poderia ser outra, com peculiaridades e, também, similaridades na nossa contemporaneidade capitalística.
Alguns processos de subjetivação, ou subjetividades contemporâneas, são apresentados no filme. Chamarei atenção, neste momento, para as questões que rondam a intolerância e a violência. Percebemos como essas questões, junto às diferenças raciais, atravessam os personagens do filme. Não se trata de um “eu” intolerante ou um “eu” racista, e sim processos que atravessam os personagens. Enquanto há dois policiais: aquele que demonstra sua truculência molestando uma negra rica e humilhando seu marido, junto ao outro que, inquieto desde o primeiro instante com a ação do parceiro, pede para ser afastado da parceria, nem que para isso tenha que fazer a ronda sozinho. Em certo momento posterior – em uma situação limite – é o policial truculento que arrisca a sua vida para salvar a mesma negra molestada. Enquanto, o seu parceiro, “moralmente correto”, é o autor do homicídio de um jovem negro, em virtude do medo e pré-conceito – este último no sentido de se preconceber que o negro não conhecia música country e estava preparado para matar o policial loiro enquanto este lhe dava uma carona. Na situação limite, este policial foi atravessado pelas subjetividades neoconservadoras[2], momento em que o seu “eu” anterior se perdeu no apeíron de que trata Pelbart na citação abaixo:
O sujeito, que nesse contexto eu apelidaria de subjetividade, aparece como o indivíduo e seu apeíron, seu ilimitado humano, que o tempo todo realimenta o seu campo de possíveis. Trata-se, portanto, de um modelo de subjetividades intimamente relacionado com sua exterioridade inumana, com uma multiplicidade de singularidades pré-pessoais, coextensivo a suas diferenciações, a suas metamorfoses multifacéticas, bem como às estranhezas daí advindas. (Pelbart, 1997, pág. 8)
Como pensar, então, a formação dessas subjetividades no capitalismo contemporâneo? Entendemos que existem “novas forças, moleculares, cósmicas, biotecnológicas, cibernéticas” (Pelbart, 1997, pág. 6), que, de certa forma, fazem parte da formação desses atravessamentos que percebemos nos filmes.
Ainda hoje é difícil pensar as formas atuais sem nos remeter à nossa formação moderna. Por isso faremos uma contextualização desde então e utilizaremos a história como Foucault (2001 a) propôs, algo como uma ferramenta para nos apropriarmos criticamente do passado e assim podermos “fazer” o presente. Estamos nos referindo aqui a uma desnaturalização histórica do presente, fazendo, assim, com que possamos pensá-lo de formas diferentes. Façamos, então, uma breve pausa para pensarmos a modernização ocidental.
A sociedade europeia de forma geral, passava por um profundo processo de transformação advindo das cruzadas, que geraram um acúmulo de capital e a consequente criação de novas formas de produção, que geraram novo acúmulo de capital, que, por fim, gerou uma série de mudanças econômicas e sociais. Importa ter-se em mente que o processo de mudanças não foi gradual e nem teve um ponto de início determinado. Ele é resultante e resultado de interações diferenciadas entre as pessoas em si e entre as pessoas e a natureza. Porém, de uma forma acadêmica, colocar-se-á da forma acima exposta.
Essas novas formas de produção, econômicas e sociais geraram, por sua vez, novas estratégias de poder, aquele pensado na obra de Foucault (2001 b).
Em decorrência das novas formas de produção, a riqueza das nações agora era gerada pela mais-valia – conceito formulado por Marx, ou seja, pela venda de mercadoria e pelo lucro gerado entre o custo de produção (o trabalho do empregado) e o preço final do produto. De modo esclarecedor e didático, Huberman (1986, pág. 219-220) descreveu assim a mais-valia:
O sistema capitalista se ocupa da produção de artigos para a venda, isto é, de mercadorias. O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente encerrado na sua produção. O trabalhador não possui os meios de produção (terras, ferramentas, fábricas, etc.). Para viver, ele tem que vender a única mercadoria de que é dono, sua força de trabalho. (...) Os salários que lhe são pagos, portanto, serão iguais apenas ao necessário a sua manutenção. Mas, esse total que recebe, o trabalhador, pode produzir em parte de um dia de trabalho. Isso significa que apenas parte do dia de trabalho o trabalhador estará trabalhando para si. O resto do tempo estará trabalhando para o patrão. A diferença entre o que o trabalhador recebe de salário e o valor da mercadoria que produz é a mais-valia. A mais-valia fica com o empregador – o dono dos meios de produção. É a fonte do lucro, dos juros, das rendas – as rendas das classes que são donas. A mais-valia é a medida da exploração do trabalhador no sistema capitalista.
Pela descrição acima, o que é de fácil análise é que a riqueza, a base do sistema de classes, do sistema de desigualdade social, é o lucro gerado pelo trabalho do empregado. Nesse ponto, depende-se da massa de trabalhadores e de sua força de trabalho para se gerar lucro e sua consequente riqueza. Antes desse período, tinha-se como fonte de riqueza das castas superiores os tributos pagos pelos servos – a corvéia e as banalidades –, e, na antiguidade e no império romano, essa fonte provinha do trabalho escravo de prisioneiros de guerra e do saque das cidades invadidas. Nesses casos, o conceito de empregado nem existia e não havia também essa dependência com a grande massa para se gerar riquezas.
Ocorre, então, uma mudança no foco da geração de riquezas, passa-se o foco para o próprio trabalhador, ou seja, para uma massa multiforme de pessoas aglomeradas para o trabalho injusto e nada dignificante. Ele era injusto na medida em que a maior parte da renda desse trabalho ficava nas mãos do proprietário. E ele não era nada dignificante, pelo fato de sua automação e o sacrifício de até 18 horas diárias trabalhadas. Neste momento, podemos nos transportar para os Tempos Modernos de Charles Chaplin[3]. De modo diverso, o que se tentou pregar na época foi a proverbial frase: “O trabalho dignifica o homem”.
Conjuntamente com as mudanças estruturais da sociedade, houve uma mudança na concepção de homem. É possível perceber que essa mudança tem relação com as realizações dos mesmos, tais como a conquista de outros continentes por meio das cruzadas e dos diversos projetos concretizados ao longo da modernidade. Isso trouxe uma valorização própria do homem o que resultou no “humanismo” presente em toda a sociedade.
A modernização trouxe mudanças em diversos segmentos como entendeu, ainda, Bobbio, Matteucci e Pasquino (1995, pág. 776):
A modernização é um fenômeno complexo, de amplo fôlego e multidimensional, que acontece em períodos e tempos diferentes e em todos os setores do sistema social. Os dois temas que emergem no estudo da Modernização são: de um lado, a tentativa do homem de controlar a natureza e sujeitá-la a suas necessidades, do outro, o esforço perene de ampliar o âmbito das opções sociais e políticas para o maior número de pessoas.
E é na civilização que se baseavam as grandes reformas e mudanças citadas acima. Como entende Bauman (1998, pág. 7), a civilização é um conceito estritamente moderno que significa “a ordem imposta a uma humanidade naturalmente desordenada”, e essa ordem veio de forma providencial, uma vez que era preciso garantir a nova forma de produção e acumulação de riquezas, e, tendo em vista que essas eram provindas do trabalho das massas, o controle só seria possível por meio de uma estrita ordem.
É interessante observar que na análise da modernidade de diversos autores está presente a visão de uma modernidade ambígua ou com contradições em suas formas.
Inicialmente, tem-se a posição de Berman (1999, pág. 15), que em sua obra Tudo que é Sólido Desmancha no Ar, certo momento se refere à modernidade nos seguintes termos:
A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classificação e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia.
Outro autor que coloca essa ambivalência de forma clara é Krishan Kumar, que separou dois processos diferentes: a modernidade e o modernismo, considerando esse último como uma crítica à modernidade. Kumar (1997, pág. 96-97) colocou a divergência nos seguintes termos:
De um lado a ciência, a razão, o progresso, o industrialismo; do outro, a refutação e a rejeição apaixonada dos mesmos, em favor do sentimento, da intuição e do uso livre da imaginação. Por um lado a modernidade burguesa, por outro a modernidade cultural com sua total rejeição da modernidade burguesa, com sua consumidora paixão negativa.
Para ilustrar esse movimento de negação à modernidade, o autor dá como exemplos os movimentos culturais, inicialmente, o romantismo europeu e, posteriormente, com a desilusão do pós-primeira grande guerra, os movimentos de dadaísmo e surrealismo e, na psicanálise, uma segunda fase freudiana.
Interessante ilustrar a rejeição da cultura e da arte burguesa pela obra de Marcel Duchamp – L.H.O.O.Q[4] – em que ele coloca bigodes na Mona Lisa.
Por fim, o entendimento que melhor corrobora o dissertado: o de Hardt e Negri (2001), na sua obra contemporânea Império. Nela, também é admitida a existência de duas modernidades, uma de revolução e outra de civilização ou contrarreforma, como eles denominaram.
A revolução se baseava inicialmente na Imanência que era estabelecida na separação entre os homens e Deus. Após, ou simultaneamente, as cruzadas, a abertura de horizontes e as quebras de tabus, surgiu o humanismo, o homem como o centro do universo. Cite-se a seguinte passagem do livro supracitado (2001, pág. 109):
Seres humanos se declararam donos de suas próprias vidas, produtores de cidades e de histórias. Herdaram uma consciência dualista, uma visão hierárquica da sociedade, uma idéia metafísica da ciência, mas passaram adiante, para gerações futuras, uma concepção constituinte de histórias e cidades, e propuseram o ser como terreno imanente de conhecimento e de ação. O pensamento desse período inicial (...) demonstra a radicalidade das forças em ação na modernidade.
Entretanto, juntamente com essa revolução, houve a contrarreforma ou a tentativa de se restabelecer a ordem, a constituição da civilização. Tentava-se voltar à transcendência, mas não à transcendência medieval. Procurava-se, na verdade, conter o movimento que se iniciara, um movimento de imaginação, de liberdade, de humanismo – este no sentido da libertação do homem, em relação a Deus e a busca dos céus. A libertação em relação à ideia metafísica de felicidade.
O que ocorreu, porém, foi que essa transcendência foi deslocada para o homem e, desta forma, surgiu um novo conceito de humanismo. O soberano, o excelso, o metafísico agora estava presente no homem. Não há melhor ilustração dessa soberania do que a teoria contratual, em que os indivíduos deveriam repassar a sua soberania para um poder supremo, para alguém que os governasse, um poder transcendental.
Os autores de O Império ilustram essa passagem na história com a pintura da Capela Sistina, de Michelangelo[5]. Olhemos tal ilustração pela parte central da pintura em que ao invés da interpretação tradicionalmente dada da gênese, ali estaria a separação entre o homem e Deus, com o advento do humanismo. A mão que se pensa estar prestes a tocar a mão de Deus está na verdade se desvencilhando dela e os ditos anjos em torno de Deus são os homens do mundo antigo, indo embora com ele. O que Deus naquele momento passa para o homem não era simplesmente a vida, mas sim a soberania. “A transcendência de Deus é simplesmente transferida ao Homem” (Hardt e Negri, pág. 109). Essa era a Gênese da Modernidade.
Foi neste contexto que vemos surgir as cidades modernas. Remetendo-nos aos bulevares parisienses, essa inovação de Haussmann, custeada por Napoleão, que pretendiam fazer o tráfico fluir como veias e artérias que levam o sangue humano. Para tanto, eles “eliminariam as habitações miseráveis e abririam ‘espaços livres’ em meio a camadas de escuridão e apertando congestionamento” (Berman, 1999, pág. 171). Eliminar as habitações miseráveis para abrir espaços livres resultou no Rio de Janeiro de Pereira Passos, nas numerosas favelas e em todo o contexto atual que elas nos trazem. Pereira Passos e seu projeto “bota-abaixo”, aplicado no centro do Rio de Janeiro, junto a represália à revolta da vacina em 1904, expulsaram as pessoas dos Morros da Saúde, da Gamboa e da Cidade Nova, as quais foram para mais longe e mais alto. Passados cem anos, hoje estão na Rocinha.
É interessante pensar, ainda, nas mudanças ocorridas nestes pouco mais de cem anos de “modernização” da cidade do Rio de Janeiro. Sem esquecer que, neste interregno, passamos por um período de ditadura militar (1964-1985) e por alternâncias na concepção e na escolha do inimigo interno, que deixou de ser o comunista e passou a ser o traficante pobre.
A era da belle époque carioca, do Rio bossa-nova, cidade maravilhosa, princesinha do mar, é substituída, de forma drástica, pela era da violência do Rio arrastão, tráfico, AK-47, Comando Vermelho, Terceiro Comando. “E esta mudança na percepção da cidade começa a ser sentida não somente no dia-a-dia da população carioca e no imaginário nacional e internacional, com a perda da aura do Rio de Janeiro, na própria acepção da obra de arte benjaminiana” (Ribeiro e Strotzenberg, pág. 26).
Assim, se vai a “cidade-maravilhosa” e o inimigo comunista, e aparecem a cidade-medo e o inimigo traficante pobre. Neste passo e retomando o primeiro filme citado (Crash – No Limite), podemos pensar em que sentido se formam os processos de subjetivação no nosso rio contemporâneo. Temos muito presente o medo e a distância. A distância é mostrada em Crash na primeira cena, quando, em uma batida de carro, os personagens conversam sobre os vidros que separam e a falta de toque na cidade de Los Angeles, assim como podemos pensar no Rio de Janeiro de O Outro Lado da Rua[6], onde a distância dos prédios[7] – invenções modernas – também marcam a distância entre as pessoas.
Por fim, pensando em subjetividade, fecharemos com uma frase do filme Crash: “Eu acordo assim toda manhã... eu estou chateada o tempo todo e não sei porquê...”. A cidade, a distância, o medo... o que será?
Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998.
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: a aventura da modernidade. 16ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 7ª ed. Brasília: Editora UNB, 1995.
CHIAPPINI, Pedro. Meta física. Rio de Janeiro: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2006.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder: Nietzsche, a genealogia e a história. 16ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 2001 a. p.15 – 39.
_____. Microfísica do Poder: Verdade e Poder. 16ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 2001 b. p.01 – 14.
HARDT, Michel; NEGRI, Antonio. Império: 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed Record. 2001.
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 21ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogans S.A, 1986.
KUMAR, Krishan. Da Sociedade Industrial à Sociedade Pós-Moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
RIBEIRO, Paulo Jorge; STROTZENBERG, Pedro (org.). Balcão de Direitos: Resoluções de conflitos em Favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.
Laila Maria Domith Vicente
Advogada. Mestre em psicologia pela UFF – Universidade Federal Fluminense. Professora de Psicologia Jurídica pela Faculdade Estácio de Sá – Vila Velha, coordenadora do NEAC – Núcleo de Extensão e Atividades Complementares da mesma instituição, e professora convidada da FDV – Vitória/ES, no projeto Filmes em Debate.
Notas
[1]Ficha Técnica: título original: Crash;, gênero: drama; tempo de duração: 113 minutos; ano de lançamento (EUA): 2004; distribuição: Lions Gate Films Inc./Imagem Filmes; direção: Paul Haggis; roteiro: Paul Haggis e Robert Moresco, baseado em estória de Paul Haggis; produção: Don Cheadle, Paul Haggis, Mark R. Harris, Cathy Schulman e Bob Yari; música: Mark Isham; fotografia: James Muro.
[2]Denominamos aqui de subjetividades neoconservadoras uma nova movimentação de lei e ordem que ronda a cidade. Enxergamos sua base no medo difuso e na segregação, entre outros fatores.
[3]Ficha Técnica: título original: Modern Times; gênero: comédia; tempo de duração: 87 minutos; ano de lançamento (EUA): 1936; estúdio: United Artists/Charles Chaplin Productions; distribuição: United Artists; direção, produção e roteiro: Charles Chaplin.
[4]DUCHAMP, Marcel. L.H.O.O.Q.: Robert A. Barron, Mona Lisas. Disponível em <http://www.studiolo.org/Mona/MONA11.htm>. Acesso em 27/11/2004.
[5]GOMBRICH, E.H. A História da Arte. 16ª ed. Rio de Janeiro: LTC Editora S.A, 1999. pág. 309.
[6]Ficha Técnica: título original: O Outro Lado da Rua; gênero: drama; tempo de duração: 97 minutos; ano de lançamento (Brasil): 2004.
[7]Prédios ou apartamentos. Pensando semanticamente, apartamento não vem de apartar, separar?
Sumário:
1. Introdução; 2. Preconceito racial e sua constelação de estereótipos; 3. O negro em permanente estado de suspeição; 4. O malandro como construção identitária; 5. Considerações finais: fazendo um contraponto com o rap; Bibliografia.
Resumo:
A pesquisa analisou a obra musical de um dos mais populares sambistas brasileiros: Bezerra da Silva (1927-2005). Sua discografia (1976-2005) reflete extraordinariamente o ponto de vista daqueles que representam a clientela básica do sistema penal (em particular, o favelado dos morros cariocas).
Nosso principal interesse foi estudar como determinada resposta identitária foi organizada num contexto de violência policial; como a seletividade do sistema penal foi simbolicamente reelaborada por quem é obrigado a conviver com ela; enfim, como a identidade do favelado foi-se construindo nos cenários sobrepostos de discriminação penal e de discriminação racial. Nesse sentido, Bezerra da Silva dá voz a uma ética da malandragem, marcada pela valorização do ambiente local e pelo resgate de atributos morais do malandro, como também pela afirmação de uma religiosidade clandestina. Aversão ao delator, violência policial, prisão para averiguações são alguns dos temas recorrentes na mencionada discografia.Como as identidades são sempre fluidas e movediças, comparamos as mensagens de Bezerra da Silva com a linguagem musical do rap, também muito sensível à violência policial.
Palavras-chave:
Identidade – Racismo – Bezerra da Silva – Malandro – Violência policial.
1. Introdução
O tema dos estereótipos teve grande impacto nos estudos criminológicos com a teoria do labelling approach[1]. O que define uma conduta como criminosa não seria exatamente o seu caráter lesivo. O decisivo é saber quem estaria em condições de etiquetá-la como tal (criminalização primária) e quem são os sujeitos mais vulneráveis às etiquetas (criminalização secundária). O crime perde a sua suposta transcendência e os estudos deslocam-se para o jogo das relações sociais de poder.
Em que pese a posição de realce do conceito de estereótipo na criminologia crítica, ele nos proporciona uma visão mais estática dos processos de construção da identidade. O que os outros pensam de nós é, sem dúvida, um fator muito influente. Porém, considerando que as identidades estão em permanente negociação[2], seria igualmente sugestivo investigar o que pensamos de nós mesmos.
Quisemos, assim, estudar as reações (em forma de resposta identitária) de grupos mais expostos aos contatos com a polícia, especialmente sob o ângulo racial. E, nesse sentido, a discografia de Bezerra da Silva revelou-se uma fonte preciosa de matéria-prima.
Antes, porém, de entrar na construção tão original da ética da malandragem em Bezerra da Silva, tentamos ilustrar, mesmo rapidamente, os sinais do preconceito racial na cultura brasileira, para ver que o negro em permanente estado de suspeição é apenas um dos estereótipos do universo do racismo.
Para levar adiante a investigação proposta, analisamos dezenas e dezenas de composições, com destaque para as lançadas na década de 80, período de maior sucesso do cantor. Nosso trabalho resumiu-se a encontrar antigos LP’s e CD’s, ouvir, ouvir novamente, selecionar, transcrever e buscar conexões entre os assuntos recorrentes da discografia. Queríamos sobretudo compreender o tratamento dedicado à discriminação racial. E, pouco a pouco, vimos que a figura do malandro impunha como autêntica e complexa resposta identitária do favelado (negro e pobre) frente à rotina de incursões policiais.
Na parte final, arriscamos algumas comparações entre a produção musical de Bezerra da Silva e outras respostas trazidas pelo rap, que nos permitiram constatar uma visível variação de tom.
2. Preconceito racial e sua constelação de estereótipos
Ao investigar a fundo a literatura brasileira, Roger Bastide deparou-se com um extenso repertório de estereótipos desfavoráveis sobre o negro, destacadamente: malcheiroso, supersticioso, submisso, servil, feio como um animal, lúbrico, sujo, ébrio, canalha, preguiçoso, cruel, perverso e criminoso.[3] Chama-lhe a atenção, ainda, a vaidade atribuída ao mulato e a lascívia das mulheres negra e mulata – estereótipos repetidos em inúmeras obras literárias. Adverte, também, que alguns estereótipos supostamente favoráveis, bem entendidos, traduzem enorme constrangimento à pessoa negra: “A apologia da força física do negro, por exemplo, subentende muitas vezes a idéia de que ele só serve para trabalhos de força, como a apologia sexual da negra subentende uma opinião pejorativa de sua moralidade”[4].
Também disposto a levantar os estereótipos frequentemente relacionados aos negros, Anatol Rosenfeld passa a listar os seguintes: “preguiçosos, pouco confiáveis, descuidados, falsos, sujos, pervertidos, inconstantes, supersticiosos, selvagens, briguentos, depravados, burros, primitivos, beberrões, incontroláveis etc”[5]. Da mesma forma, alerta para estereótipos “aparentemente” positivos:
[...] simples (portanto, podem viver com menos dinheiro do que os brancos), humildes, dóceis, afáveis (característica positiva, que por outro lado caracteriza a personalidade do escravo ideal), talentoso do ponto de vista musical e da dança (“pode não estar tudo bem com ele, mas vive com mais prazer do que nós”), muito forte (portanto, adequado aos trabalhos mais pesados), religioso (“eles são pobres, mas encontram na fé mais alento do que nós no dinheiro”), sensuais, dotados de sexualidade (a mulher negra como objeto sexual do homem branco), emotivos, imaginativos (“eles são mesmo crianças, não podemos levá-los muito a sério”)[6].
Joseli Maria Nunes Mendonça pôde constatar que o estereótipo do negro “preguiçoso” constituiu, nos debates parlamentares, um recurso retórico de resistência à Lei dos sexagenários (Lei n. 3.270, de 28 de setembro de 1885), para tentar explicitar a inadaptabilidade do liberto ao trabalho assalariado, pois suas necessidades seriam medidas pelo ínfimo “nível de subsistência”. Segundo se argumentava, faltava-lhe estímulo ao trabalho, mas não à ociosidade – raciocínio que, em última análise, como demonstrou a autora, foi utilizado pela política imigrantista de substituição do escravo pelo trabalhador estrangeiro[7].
É certo que a investigação semântica pode revelar o uso desavisado e quase imperceptível de algumas contaminações. Examinando-se a terminologia empregada na época para designar os negros recém-chegados da África (boçais), que logo se juntavam àqueles já conhecedores do idioma português (ladinos), nota-se que, hodiernamente, remanesce em tais expressões um legado semântico pejorativo: a boçalidade como própria dos estúpidos, dos ridículos; a ladinice como característica dos astutos, dos descarados. O verbo denegrir talvez pertença àquilo que Noam Chomsky chamou de “familiaridade dos fenômenos”[8], tornando-se tão usual que dificilmente é percebido pelos interlocutores como enegrecer, senão como mácula. Clóvis Moura também relata que a palavra chulo foi criada para depreciar as contribuições linguísticas dos grupos negros à língua portuguesa[9].
Quanto à construção social da beleza, o estratagema da boa aparência – que habitou os classificados de oferta de empregos dos grandes jornais brasileiros durante décadas, sem que se ouse duvidar que ainda habite a imaginação coletiva – é a síntese da depreciação estética do negro. Impressiona como uma expressão tão polida – exige-se boa aparência – fosse tão nociva à distribuição igualitária das oportunidades no mercado de trabalho. É surpreendente como uma sequência tão curta de palavras tenha o poder de explicar tão esclarecedoramente as sutilezas do racismo no Brasil. Não se pode acusá-la formalmente de nada, pelo menos em tese, pois o anunciante provavelmente retrucará que se interessava por uma pessoa apresentável e asseada, ou, sem dar maiores explicações, irá se defender dizendo que é praxe das contratações. Concretamente, porém, a aparência exigida no anúncio não é a do fenótipo negro, e o anunciante está intimamente convencido disso.
Quanto à teledramaturgia brasileira, Joel Zito Araújo chamava atenção para o fato de que, até 2000, “as telenovelas brasileiras só apresentaram quatro famílias negras de classe média em toda a sua história. A subalternidade sempre deu o tom para a maioria dos personagens negros e para a quase totalidade da representação das famílias afro-descendentes”[10].
3. O negro em permanente estado de suspeição
Sugerir que o negro se encontra em permanente estado de suspeição nas ações policiais seria apenas um retrato entre tantos estereótipos que povoam o universo simbólico do preconceito racial. Um retrato que, no entanto, pode ser extremamente revelador quanto às preferências do sistema penal. Mas onde encontrar as evidências dessa suspeição? Por onde demonstrar que o estado de suspeição é captado pelos organismos policiais? Ora, é plausível que essas evidências possam ser observadas na “resposta” daqueles que sofrem da suspeição, ou seja, no material cultural que tenciona afirmar positivamente a identidade do negro em face da seletividade racial do sistema penal. Um material que recepciona o aludido estado de suspeição e a série de perseguições dele decorrente.
Nesse sentido, o samba mostrou-se como ponto de partida quase obrigatório. Mas, como a história do samba é de uma grandeza biográfica imensurável, a escolha particular de um sambista, além de arbitrária, pode remexer ardentes paixões. Fato é que a discografia de um compositor e intérprete, em especial, prendeu-se às interações com a polícia. Ademais, é incontestavelmente representativo. A maioria das composições que interpreta é de autoria de ilustres desconhecidos, outros tantos que “desciam o morro para trabalhar”. A despeito dessa pluralidade autoral, não é difícil ver um fio condutor em toda a obra discográfica de Bezerra da Silva, seja pelo inconfundível modo de cantar o samba de partido alto, seja pela recorrente valorização de sua própria biografia[11], seja pela insistência temática.
Em Meu samba é duro na queda (que parece ter sido feito especialmente para Bezerra da Silva), fica patente a relação entre o sambista e os compositores por ele acolhidos:
Meu samba é duro na queda ... Sou porta-voz de poetas que ninguém dá chances assim como eu / Uns vêm da favela outros da baixada ... Falo a língua de um povo que me ajudou a chegar onde estou ... porque mostro a realidade com dignidade e sem demagogia / cantando tento amenizar o sofrimento cruel do nosso dia-a-dia / Meu samba é duro ...[12]
4. O malandro como construção identitária
O tema da discriminação racial irá ocupar as interpretações de Bezerra da Silva de forma subcutânea. Vez ou outra, surgirá como erupção visível. É que lhe interessa, mais de perto, a ética da malandragem e a estilização de uma linguagem da rapaziada (conteúdos que serão preenchidos a partir da experiência dos contatos com a polícia, do contexto de pobreza e de discriminação racial). É preciso, portanto, redobrar a atenção para as entrelinhas das composições examinadas, para uma ou outra palavra perdida. Em muitos casos, o silêncio diz mais do que qualquer coisa, bastando considerar que a ideologia da democracia racial ganhou o domínio popular e, como não poderia ser diferente, também adentrou o universo musical do samba.
Como observou Letícia C. R. Vianna, na discografia de Bezerra da Silva, “o termo preto aparece como sinônimo de favelado, pobre, injustiçado, não se referindo necessariamente à cor da pele”[13]. Assim, sugere que a “cor da pele” mediatiza outras categorias, como a pobreza, a injustiça social, a condição de favelado etc. Por essa análise, onde se lê “preto” é possível ler “favelado” (como categoria acromática).
Sem divergir dessa interpretação, podemos dizer, no entanto, que a recíproca também é verdadeira e igualmente rica do ponto de vista sociológico. Isto é, nas músicas de Bezerra da Silva, onde se lê “favelado” é perfeitamente possível ler “preto”. Nos seus chamativos, alô rapaziada, aí malandragem, embora não haja referência explícita à condição racial, subsiste uma força englobadora do negro (como se fosse o “favelado” que dispensa apresentações).
Pelo menos em duas gravações o racismo é denunciado de maneira totalmente aberta. Em Preconceito de cor:
... Somos crioulos do morro / mas ninguém roubou nada ... Isso é preconceito de cor ... A lei só é implacável para nós favelados / E protege o golpista / ele tinha que ser o primeiro da lista ... Eu assumo o compromisso / pago até a fiança da rapaziada / Porque que é que ninguém mete o grampo / no pulso daquele de colarinho branco ...[14]
Interessante notar que, em primeiro lugar, há uma afirmação (somos crioulos do morro) logo seguida de uma oposição (mas ninguém roubou nada). É quase certo que o estado de suspeição leva a uma defesa do tipo afirmação/negação. A conjunção “mas”indica relação com a ideia imediatamente anterior: aquele que nega está consciente de que tem um motivo adicional para fazê-lo. Não poderia passar despercebido, igual modo, a relação de identidade entre somos crioulos e nós favelados. A primeira pessoa do plural amalgama as referidas categorias como uma coisa só (nós: crioulos e favelados).
E em Negro de verdade:
Sou negro e peço me trate direito / eu exijo mais respeito pois também sou cidadão ... Não nego sou carente de riquezas / mas tu podes ter certeza não aturo humilhação ... Tudo que tenho na vida fiz por merecer / Eu não compreendo o motivo da sua revolta / se eu sempre fui à luta pra poder sobreviver / Com garra provei para o mundo que posso vencer / e o seu preconceito e recalque só me faz crescer / cansei de ser discriminado só por ser da cor ...[15]
O mesmo tipo de afirmação/negação está na sequência não nego sou carente de riquezas / mas tu podes ter certeza não aturo humilhação, sugerindo uma associação entre negritude / pobreza / humilhação. O verso tudo que tenho na vida fiz por merecer é particularmente explicativo do estado de suspeição, ou seja, revela ao mesmo tempo a necessidade de reconhecimento meritório (também presente em provei para o mundo que posso vencer) e a negativa implícita da condição de suspeito (não tenho nada que não seja meu, que não seja fruto de meu trabalho, que não tenha sido conquistado honestamente).
Um só falante
Os sambas interpretados por Bezerra da Silva têm, ainda, uma característica especial do ponto de vista da estrutura dialógica. Em muitos casos, há um interlocutor presente, que não fala, que não contesta, apenas ouve. A preferência por um diálogo mudo indica provavelmente um déficit de escuta na vida real que a linguagem musical pretende superar. O samba, pois, é essencialmente uma forma de se fazer ouvir. Esse interlocutor pode ser um sujeito indefinido (mas tu podes... não compreendo o motivo da sua revolta), embora geralmente apresente a condição honorífica de “doutor” delegado de polícia.
Em Foi o dr. delegado que disse, há um raro momento no qual o próprio doutor está se lamentando:
Foi o dr. delegado que disse / ele disse assim está piorando / até filho de bacana hoje em dia está roubando ... E na semana passada quase perdi a patente / só porque grampeei um rapaz boa pinta em Copacabana botando pra frente / Dei um flagrante perfeito / mas o meu direito foi ao léu / o esperto além de ter costa-quente ainda era filho de um coronel ... O meu livro de ocorrência a cada dia está aumentando / Eu também prendi um pastor com a Bíblia na mão em um supermercado roubando[16].
Ainda assim, a autenticidade da fala é questionável. Quem está se queixando do fato de que a prisão não é feita para os bacanas? Quem tem interesse em denunciar o uso seletivo da prisão? Afinal, de nada vale um flagrante perfeito diante da costa-quente. A figura do delegado, neste caso, foi humoristicamente apoderada no sentido de mostrar que as próprias autoridades sabem das predileções carcerárias, até com a sensação de impotência (o meu direito foi ao léu). Por outro lado, mostra sutilmente que qualquer pessoa pode praticar pequenos delitos, até um imaculado pastor com a Bíblia na mão.
O inverossímil
Portanto, o pano de fundo estaria na demanda de igualdade em relação à prisão e na rejeição à caracterologia do suspeito natural. A cogitação de um religioso com o Livro sagrado nas mãos[17] sugere, por inesperada, uma ruptura da lógica do suspeitável, solapando as percepções mais assentadas sobre o suspeito natural com recurso ao inverossímil. Porém, trata-se de uma rejeição indireta e não incisiva. Em Defunto grampeado, não só as personagens são insuspeitas, a situação mesma é indesconfiável:
... Parem o enterro / gritaram os homens da lei ... Nós temos ordem pra levar esse defunto pro xadrez ... Mas aquela atitude causou muito espanto e admiração / Até o vigário com 171 dizia que aquilo era anticristão / Fechou o tempo lá no cemitério / ninguém entendeu a tal voz de prisão ... onde foi que já se viu um defunto grampeado ... Quando os homens abriram o caixão o defunto era apenas cabrito importado / Sururu formado / Sururu formado / Quando o vigário sentiu o flagrante perfeito quis sair de pinote mas foi logo algemado...[18]
Especula-se, assim, sobre a exagerada capacidade de vigilância da polícia e sua imponderada missão de prender (Nós temos ordem pra levar esse defunto pro xadrez).
A prisão para averiguações
A prova mais pujante do estado de suspeição do negro, do favelado, no entanto, está na consagração da prisão para averiguações[19], quando então os estereótipos manipulam eficientemente o status libertatis. Prescinde-se da existência de um fato concreto, tudo para que o suspeito seja levado a prestar explicações, seja dissecado em sua intimidade, seja averiguado do ponto de vista moral. Permite-se dizer, pois, que o racismo é uma grande prisão para averiguações. Em Defunto morto não fala, o uso extensivo da averiguação foi ridicularizado:
... O dr. delegado que estava presente quis saber como foi que o defunto morreu ... A viúva assim respondeu é melhor perguntar o defunto doutor / Deu zebra sim ... / Sujou sujou / Defunto morto não fala / O dr. delegado entrou logo em ação / gritando com o bronco o presunto tá preso / em nome da lei para averiguação / algemou o cadáver na hora / e jogou na caçapa de um rabecão ...[20]
É certo que as coisas comuns caem mais facilmente no ridículo. Se até um defunto pode ser conduzido para averiguação, em nome da lei, não há realmente o que protestar. O próprio Bezerra da Silva relata, com certa resignação, a rotina de prisões a que foi pessoalmente submetido:
A polícia era o seguinte: eles queriam na época uma carteira profissional assinada, o documento era esse; se não tivesse, eles levavam para averiguação. Sempre existia arbitrariedade, já iam botando no xadrez. Tinha até o xadrez dos pobres, para averiguação, o xadrez dos otários. Nunca batiam. Aí deixavam você 24 horas até o boletim chegar com o nada consta, e você ir embora. Eles prendiam mais trabalhador para fazer estatística. Quem prendesse mais, ganhava um prêmio. Eu era freguês de averiguação. Tinha dia que eu entrava em cana duas vezes. Eu ia fazer o quê? Se eu tivesse carteira, eu ia descontar o IAPI e morrer de fome, eu não tinha como sobreviver. [...] Outro dia, preso de novo na 12ª. Aquilo lá era a minha casa, eu já sabia onde era o meu quarto. Doze vezes preso. O comissário me perguntou: “Você trabalha em quê?” Eu dizia que era pintor, não adiantava, a polícia podia me prender toda hora, que eu não ia assinar carteira. Eu não fiz nada, não matei, não roubei[21].
É bem sugestivo que a “carteira de trabalho” funcione como salvo-conduto na narrativa de Bezerra da Silva. Mesmo assim, bem analisado, ser trabalhador não constituía um empecilho ao ato concreto da prisão (eles prendiam mais trabalhador para fazer estatística). A necessidade de possuir o aludido documento revela mais uma espécie de ritualística da prisão para averiguações doque uma questão de estereótipos propriamente dita. Em que sentido? A rigor, a cor da pele e o locus parecem contribuir mais decisivamente para deflagrar a prisão para averiguação do que o fato negativo de não ser trabalhador. O condicionamento rígido para o trabalho (não um trabalho qualquer, mas um trabalho de carteira assinada e, como tal, reconhecido oficialmente) diz respeito ao conteúdo moralizante da prisão para averiguações. No entanto, a ação moralizadora inicia-se por categorias imediatamente reconhecíveis e que dispensam qualquer tipo de formalização documental. O suspeito, em si, reivindica atributos que o simples desemprego não está em condições de oferecer. Para ilustrar, Bezerra da Silva sentiu-se envaidecido por ter livrado, certa vez, alguns amigos de uma batida policial:
Um dia eu tava no morro do Macaco, Vila Isabel, tinha ido buscar duas músicas com o rapaz. Duas horas da manhã, seis crioulos descendo o morro... Metralhadora no peito. Daqui a pouco, pintou um helicóptero, vinha subindo um montão de polícia. Eu tava com quatro crioulos. Não prenderam ninguém, foram embora. Os policiais de hoje são meus fãs[22].
Em Malandro Coisé, novamente, a prisão para averiguações tomou contornos de samba, com descrições raciais mais nítidas:
Aí é o seguinte / Eu fui na casa de um malandro aí / só tinha mané meu irmã aí ... Um negão de dois metros de altura / dizia pras negas que era cantor / e também estudou medicina / mas nunca quis ser doutor / um neguim de cabelo esticado falou que na área já foi o terror / hoje está regenerado / mas em tempos passados a polícia encarou olha aí / A SWAT que ia passando arrastou um montão pra delegacia / uns por não ter documentos / outros porque nada faziam / um esperto que tava apegado uma semana depois me contou como foi / o sufoco daqueles manés / que dormiram sentados na boca do boi...[23]
Violência policial e o político canalha
Nas composições interpretadas por Bezerra da Silva, não faltam referências à característica mais marcante da atuação dos órgãos policiais: o uso da violência. Entretanto, por incrível que pareça, a musicalização da violência não chegou a traduzir, nas letras examinadas, um discurso de oposição direta aos agentes da polícia. Não é de todo admirável, assim, a afirmação de que os policiais de hoje são meus fãs. É que se estimulou um tipo de consciência política que tateia a realidade do sistema penal, mas que prefere centrar fogo na tradicional política clientelista. Uma ambiguidade que se manifesta, por exemplo, na forma quase elogiosa da expressão homens da lei, que abre Malandragem dá um tempo, grande sucesso na voz de Bezerra da Silva:
Aí meu irmão / Cuidado pra não dá mole a Cojac / Quando os homem da lei grampeia o coro come toda hora amizade / Vou apertar mas não vou acender agora ... É você não está vendo que a boca tá assim de corujão / e dedo-de-seta [fio desencapado] adoidado / todos eles a fim de entregar os irmãos ... É que o 281 foi afastado / o 16 e o 12 no lugar ficou / E uma muvuca de espertos demais / deu mole e o bicho pegou / Quando os homens da lei grampeia / o coro come toda hora / é por isso que eu vou apertar mas não vou acender agora ...[24]
Intrigante porque, na verdade, se trata de homens fora da lei; homens que perpetram um tipo de violência largamente denunciada por Bezerra da Silva, mas que são “poupados” quando o assunto é a conquista da consciência política. Em resumo, a polícia não é vítima do escárnio que pesa sobre o delator, recebendo um tratamento perto de respeitoso, pois os homens da civil não são brincadeira[25]. Talvez a explicação mais aceitável para esse paradoxo seja ver uma estratégia de sobrevivência musical num ambiente inóspito, no qual, para denunciar os fatos, deva-se “poupar” os executores. Assim, o político (e não diretamente a polícia) foi escolhido como a personificação das mazelas do morro, inclusive da perseguição policial, devendo ser rechaçado por uma nova mentalidade cívica, como está proposto em Candidato Caô Caô:
Aí meu irmão / Vocês não tomam vergonha / Ainda não aprenderam a votar / Ele subiu o morro sem gravata / dizendo que gostava da raça / foi lá na tendinha bebeu cachaça ... Eu logo percebi é mais um candidato para a próxima eleição ... É ele fez questão de beber água da chuva / foi lá no terreiro pedir ajuda / bateu cabeça no congar / Mas ele não se deu bem porque o guia que estava incorporado / disse esse político é safado / cuidado na hora de votar ... hoje ele pede seu voto / amanhã manda a polícia lhe bater ... Meu irmão se liga no que eu vou lhe dizer / depois que ele for eleito dá aquela banana pra você[26].
Sem contestar o diagnóstico apresentado, a crítica genérica ao exercício do direito de voto, no entanto, estaca-se numa forma superficial e contida de expressão política. Essa volta (passar pelo político para se chegar na polícia – se elegeu com o voto da favela depois mandou nela meter bala) é antes uma necessidade da conjuntura em que vive o sambista: necessidade de apontar os problemas e não de criá-los para si. Novamente, em Verdadeiro canalha, o político tradicional é retomado como alvo central das críticas:
... Canalha tu é um verdadeiro canalha ... Você vive de trambique deita na sopa e se atrapalha / Olha aí seu canalha ... Se elegeu com o voto da favela depois mandou nela meter bala / isso é que é ser canalha ... Comprou carrão, fazenda e mansão / e o povo na miséria comendo migalha ... Quem judia de um povo sofrido é um tremendo patife, um estorno, uma tralha ... E no dia do Juda tu fica na tua se tu for pra rua a galera te malha / fica em casa canalha ... Comeu bebeu fumou e cheirou / depois caguetou o cabeça-de-área / Olha a bala canalha ... Nunca vi ninguém dá dois em nada e também se vê cadeado não fala / aprende isso canalha ...[27]
A ética da malandragem
A dubiedade em relação aos organismos policiais – denúncia da violência e responsabilização esquiva do político canalha – estará refletida na construção da ética da malandragem, o principal tema da discografia de Bezerra da Silva. Com essa expressão, quer-se designar a afirmação de uma identidade positiva do favelado socialmente injustiçado e perseguido pelas incursões policiais. Trata-se de uma identidade reivindicada pela valorização do ambiente local (a favela / o morro / a colina) e resgate de atributos morais do malandro (lealdade / solidariedade / astúcia / desprendimento), como também pela afirmação de uma religiosidade clandestina (especialmente a umbanda). Essas três vertentes permitem explicar razoavelmente como se plasmou, na discografia de Bezerra da Silva, a identidade do favelado nos contextos sobrepostos de discriminação penal e de discriminação racial.
Em Prepara o pinote, alguns desses elementos podem ser claramente identificados:
... Sujou sujou alô malandragem prepara o pinote / olha aí ... Eu só sei que os homem já armaram o bote / e quem dançar vai ter que segurar / É osso duro / É osso duro compadre na hora que o coro come ... Eu só sei que o malandro quando é veneno não entrega o ouro na hora do pau / aceita o cacete de boca fechada / tudo isso em defesa de sua moral / É aí que a gente vê quem é malandro e quem não é ... porque o sangue puro é cadeado blindado / ele não cagueta e nem banca o mané ... Malandro não conta história / porque se garante quando é detido / ele morre debaixo do pau amizade / e não cagueta os amigos / E também quando sai de cana a moçada faz festa pra lhe receber / Ainda ganha tudo que tem direito como recompensa do seu merecer...[28]
“Malandro” é aquele que não entrega o ouro na hora do pau, aquele que, em nenhuma hipótese, alcagueta os amigos para a polícia. Ser malandro, antes de mais nada, é garantir um mínimo de solidariedade num cenário específico de perseguições policiais. O primeiro mandamento da ética da malandragem é, pois, jamais delatar os companheiros. A necessidade de reiteração desse princípio sugere que, no dia-a-dia, o estereótipo do suspeito, para além de amealhar a clientela do sistema penal, inibe as chances de resistência solidária. A propósito, Alessandro Baratta vale-se do termo “obrigação de coalizão” para designar a união entre terceiros não interessados contra aqueles afetados pela aplicação das leis penais (processo de criminalização), alertando, simultaneamente, para o fenômeno correlato da “proibição de coalizão”, ou seja, a estigmatização penal encarrega-se de dificultar a solidariedade entre os próprios criminalizados[29]. Os efeitos da rotulação, portanto, referem-se tanto à “coesão fictícia das maiorias silenciosas” como ao “desalento de solidariedade” entre os sujeitos estigmatizados[30].
Nesse passo, o malandro se ergue antagonicamente ao indivíduo que mina a possibilidade de solidarização entre os favelados suspeitos (E aí que a gente vê quem é malandro e quem não é). De um lado, tem-se o malandro, o cadeado blindado, o sangue puro; no lado oposto, o mané, o corujão, o dedo-duro, o judas, o otário, o radar, o língua nervosa. Percebe-se, mais uma vez, que a revolta está dirigida ao delator (e não ao aparelho de torturas, pois o malandro aceita o cacete de boca fechada). Aqui, surge um dos aspectos fundamentais da discografia examinada. A construção da identidade do favelado nas interações com os órgãos policiais enfatiza a necessidade de uma resistência solidária às práticas persecutórias, mas não a ponto de se indispor frontalmente com o estereótipo do suspeito. A perseguição policial transforma-se, pois, no campo identitário, em perseguição ao informante, contudo, sem que isso represente uma antítese clara ao estereótipo em questão.
Aversão ao delator
Assim, no grosso da obra discográfica analisada, a condição de suspeito em si permanece como uma interrogação. Daí por que a música de Bezerra da Silva poderia ser chamada de sambandido[31], desde que com essa expressão se designe uma manifestação cultural que se apropria da temática da violência e da perseguição penal, para, de modo peculiar, revitalizar o malandro como sujeito leal e solidário, astuto e desprendido, embora sem intransigência absoluta com o estereótipo do suspeito. Nesse sentido, Letícia C. R. Vianna refere-se à Bezerra da Silva como “um sambista que não é santo”, anotando que seu repertório explora “uma linguagem própria marcada pela ambiguidade, pelo duplo sentido e ironia e pela relatividade ou ausência de julgamento moral; um discurso que afirma a identidade de um etos favelado, excluído dos mecanismos de justiça social”[32].
Predomina, pois, com relação à figura do malandro, a marca da ambiguidade, daquilo que não pode ser dito, do sujeito que fala o suficiente e que, por isso, é considerado pela rapaziada. Sem embargo, em algumas composições, o estereótipo do favelado como ladrão é rejeitado com vigor, como em Vítimas da sociedade:
... E se vocês estão a fim de prender o ladrão / podem voltar pelo mesmo caminho / O ladrão está escondido lá embaixo atrás da gravata e do colarinho ... Só porque moro no morro / a minha miséria você despertou / A verdade é que vivo com fome / nunca roubei ninguém sou um trabalhador / Se há um assalto a banco / como não podem prender o poderoso chefão / aí os jornais vêm logo dizendo que aqui no morro só mora ladrão ... Falar a verdade é crime / porém eu assumo o que vou dizer ... Não tenho curso superior / nem o meu nome eu sei assinar / onde foi que se viu um pobre favelado com passaporte pra poder roubar ... Somos vítimas de uma sociedade famigerada e cheia de malícia / No morro ninguém tem milhões de dólares depositados nos bancos da Suíça ...[33]
A composição pretende, pois, convencer que o morro não é lugar de ladrão, por mais que os jornais digam o contrário, por mais que a polícia sempre esteja à volta. O favelado é representado, aqui, como vítima de uma sociedade famigerada, como um trabalhador honesto. Mas a defesa logo se transforma em acusação: o ladrão está escondido lá embaixo atrás da gravata e do colarinho. Nessa passagem, a seletividade do sistema penal não é ignorada pelo favelado, o qual se vê obrigado a falar a verdade.
A ética da malandragem, em primeiríssimo plano, como visto, nutre-se da aversão ao delator. Seja porque este inviabiliza as possibilidades de construção horizontal da solidariedade, seja porque representa uma ameaça à totalidade dos suspeitos. A sombra da delação pode surgir a qualquer hora, em qualquer lugar, causando maior irritação do que a própria presença da polícia, como nos versos de Defunto caguete:
Mas é que eu fui num velório ... O bicho esticado na mesa / era dedo nervoso e eu não sabia / Enquanto a malandragem fazia a cabeça o indicador do defunto tremia ... Eu só sei que a polícia pintou no velório / o dedão do safado apontava pra mim ... Eu já vi que a polícia arrochou o velório e o dedão do coruja apontava pra mim / Caguete é mesmo um tremendo canalha / Nem morto não dá sossego / Chegou no inferno e entregou o diabo / e lá no céu caguetou São Pedro ... Quando o caguete é bom caguete / ele cagueta em qualquer lugar ...[34]
A lei irrevogável da malandragem é repetida em Jornal da Pedra:
... Está escrito assim / Todos têm que respeitar / Não vi não sei não conheço / É somente a resposta que se pode dar / Quem caguetar na favela / já está ciente que vai dançar / Não adiante pedir segurança a ninguém / De qualquer maneira o bicho vai pegar ... Essa lei tem um artigo exonerando o defensor / cujo número é 00 / que doutor nenhum estudou / Ela não dá direito a perdão / mesmo sendo primário não vai dar sorte / A sociedade apóia o delator / na favela ele é condenado à morte...[35]
Sublinhe-se o trecho em que a sociedade apóia o delator / na favela ele é condenado à morte. Como exposto, o locus será um importante elemento na definição estereotípica dos suspeitos. O conjunto dos moradores da favela tem, por essa ótica, motivos convincentes para se inquietar com a delação. Ou seja, o repúdio ao delator não é um sentimento exclusivo dos criminosos, dos que “devem”, mas de todos aqueles que se encontram em estado de suspeição. E como a suspeição não é um acontecimento histórico, mas uma construção simbólica inquebrantável, ser ou não criminoso é o que menos importa para definir a situação de vulnerabilidade às incursões policiais. Portanto, conforme o trecho sublinhado, toda a favela há de enaltecer a lealdade, condenando o delator.
A mesmice da violência
O fato de ser uma condenação à morte, em especial, revela que os métodos de abordagem policial têm, ainda, o efeito dramático de naturalizar a violência, de planificá-la, de torná-la uma moeda de troca, um patrimônio de todos. A violência converte-se, enfim, em linguagem de fácil entendimento. O próprio Bezerra da Silva narra um marco divisor em sua vida, após o qual conquistou definitivamente o respeito do morro:
Tinha trabalhado de segunda a sexta. Quando ia subindo o morro, pela Teixeira de Mello, tinha uma birosca com três rapazes. Me chamaram para beber, eu disse que não era de beber. De repente, navalha no pescoço. Meteram a mão no meu bolso, tomaram meu dinheiro, eu nem tinha feito as compras. Ele disse: “otário não precisa de dinheiro”. Eu respondi “falou, tá falado”. [...] Aí, 11 horas eu saí, fui na casa de um amigo, eguei uma Mauser. [...] Aí vim, subi o morro, meio-dia e pouco. Na porta da tendinha tinha um deles. Eu passei prá la, passei prá cá, cheguei prá ele e falei, “ô cumpadre, num tá me conhecendo?” “Tô, você não é aquele otário?” Aí eu: pá, pá ... Saí dando. [...] Depois desse lance a moral no morro levantou. Ficou tudo legal. A vida continuou no sufoco do morro: discriminação, preconceito, perseguição[36].
Em constante movimento, a violência assume formas e protagonistas diferentes – da polícia contra o malandro, do malandro contra o delator, do morador contra o vizinho. A maior parte das relações sociais esbarra em alguma forma de violência, inclusive no que diz respeito à divisão do prestígio social. Não é de estranhar, pois, que certa expressão familiar esteja presente nas letras que relatam a violência policial. Em certas ocasiões, o malandro tem de enfrentar outro malandro segundo a linguagem monótona da violência, como nos versos de O malandro era forte:
... Se eu não derrubasse eu caía / porque o malandro era forte / ele dava pernada dava cabeçada / ele era de morte ... A própria lei é quem diz que a defesa é um direito sagrado / Aí eu também meti a mão no meu berro / saí dando pipoco / derrubei o malvado ...[37]
A linguagem da rapaziada
Bezerra da Silva é embalado por uma típica situação de legítima defesa (A própria lei é quem diz que a defesa é um direito sagrado), a ponto de impressionar a perfeita caracterização do instituto legal. Assim, outro importante aspecto da discografia estudada é exatamente a estilização de uma linguagem da rapaziada que reelabora a linguagem policial em favor do malandro. Um número apreciável de letras, portanto, é dotado de profundo sentido pedagógico para os contatos com a polícia. Como as intervenções policiais são conhecidas pelo desrespeito aos direitos fundamentais, a própria linguagem policial é “invadida” ou “capturada” como forma de se criar uma alternativa de diálogo. O conhecimento da lei – logo, o conhecimento dos limites da ação policial – torna-se uma estratégia de defesa desde o primeiro momento, como mostra A fumaça já subiu pra cuca:
... Não tem flagrante porque a fumaça já subiu pra cuca / olha aí / ESTRIBILHO / Deixando os tira na maior sinuca / e a malandragem sem nada entender / Os federais queriam o bagulho e sentou a mamona na rapaziada / só porque o safado de antena ligada ligou 190 para aparecer / Já era amizade quem apertou queimou já está feito / Se não tiver a prova do flagrante nos autos do inquérito fica sem efeito ... tem nego que dança até de careta / porque fica marcando bobeira / quando a malandragem é perfeita ela queima o bagulho e sacode a poeira / Se quiser me levar eu vou / nesse flagrante forjado eu vou / mas na frente do homem da capa preta é que a gente vai saber que foi que errou ...[38]
Todas as personagem foram evocadas num único samba: o delator, o policial, o malandro e o juiz. O conflito ocorre só porque um safado de antena ligada ligou 190 para aparecer (rotina da delação). Em seguida, surge a polícia com o seu cartão de visita: os federais queriam o bagulho e sentou a mamona na rapaziada (rotina da violência). Na sequência, o malandro tenta precariamente se defender: se não tiver a prova do flagrante nos autos do inquérito fica sem efeito (rotina da perseguição). E, finalmente, o juiz representando, de forma otimista, a possibilidade de que o flagrante forjado seja desfeito (rotina das expectativas processuais). Os vestígios de Bezerra da Silva continuam presentes: sentimento de revolta contra o delator; ausência desse sentimento em relação à polícia; ambiguidade do malandro, porque não chega a promover uma defesa de mérito; apropriação estilizada da linguagem jurídica.
Orixás perseguidos
A ética da malandragem se afirma, ainda, no campo de uma religiosidade clandestina, resgatando as tradições afro-brasileiras pelo culto às entidades da umbanda[39]. As perseguições policiais, agora, têm o “terreiro” como espaço de atuação e, como vítimas, as próprias entidades sobrenaturais. Em Feitiço do Tião, tem-se uma perfeita descrição de intolerância religiosa, de violência policial extremada e de controle social da fé:
Nossa Senhora / é feitiço no terreiro do Tião amizade / Tá pra existir feitiço igual esse que eu fui conhecer ... Era o feitiço do Tião / juro fiquei bolado sem nada entender / Ao invés dos médiuns bater a cabeça / fazia a cabeça do santo descer ... Na gíria de Preto-velho falei com Vovó Joaninha ... Foi aí que eu conheci um tal de Preto-velho Alcatraz ... Mas quando deu meia-noite sujou / o bicho pegou de verdade / a 39ª baixou no feitiço / descendo a lenha em toda entidade / Exu macaco saiu de fininho / Seu Ogum Ventarola selou seu cavalo / Iansã do Brejo se arrancou pro morro / Vovô Tanajura ficou grampeado / E o coitado do Tião foi prestar conta na Delegacia / apanhava igual a tambor de macumba / De longe seus gritos o povo ouvia / desesperado ele gritava doutor sou um membro da sociedade / o dinheiro que arrecado no feitiço é só pra prestar caridade ...[40]
Com efeito, a religião torna-se uma questão de polícia. Nem bem chegaram ao terreiro de umbanda, os agentes foram logo descendo a lenha em toda entidade. Por fim, o líder foi obrigado a dar explicações na Delegacia, onde apanhava igual a tambor de macumba. Nesse samba, obviamente, está sendo retratada uma ínfima parte da história de perseguições aos orixás africanos, que, depois de se transvestirem de santos católicos, associaram-se ao espiritismo kardecista em busca de maior aceitação social[41]. Em várias outras composições, os rituais e símbolos da umbanda são exaltados ou vivenciados segundo o contexto de patrulhamento policial, como nos sambas Sai encosto[42], Vovó D’Angola[43], Zé Fofinho de Ogum[44] e Deixa uma paia pro véio queimá[45]. Neste último, é interessante notar como a própria entidade assume por completo a gíria da malandragem (esse otário é metido a malandro / ele não é malandro é vacilador).
5. Considerações finais: fazendo um contraponto com o rap
Temos de situar a obra discográfica de Bezerra da Silva no tempo e no espaço. Sendo considerada uma forma de afirmação da identidade do pobre favelado (subentendo-se, virtualmente, pobre, negro e favelado) em suas interações com a polícia, a discografia analisada fala de um “nós” localizado sobretudo na década de 80, que deita raízes nos morros cariocas.
Ademais, trata-se apenas de um aspecto da construção da identidade do negro no contexto sociocultural mais amplo, que, como foi dito, pretendeu “responder” ao estado de suspeição. Como a identidade social, por definição, constitui um rascunho modificável com a evolução dos cenários sociais, outras representações do negro vão surgindo diante do ambiente (inalterado) de perseguições policiais. É dizer: a rotulação do negro como suspeito permanece e resiste nos dias de hoje; muda-se, contudo, a natureza da resposta identitária.
É bastante provável que essas representações mais recentes sejam legatárias do universo simbólico de Bezerra da Silva, dele se aproximando por afinidade ou por contraste. Um rápido olhar sobre o material produzido pelo rap (rhythm and poetry) nos últimos anos, principalmente em São Paulo, permite uma revisão da identidade do negro nos contatos com a polícia.
Sem fixar a investigação sobre um grupo em particular, é possível ver imediatamente que o tema da discriminação racial passa a ocupar posição central e destacada no mundo do rap. O racismo é denunciado de forma direta e incisiva na maioria das composições. Essa visibilidade aspira desmascarar as estratégias de negação e de suavização da questão racial, reivindicando do negro uma consciência de si mesmo, conclamando-o a não ser mais um número das estatísticas.
Com efeito, o malandro é substituído pelo mano, pelo sangue bom, geralmente descrito como sobrevivente, que se afirma por sua consciência e capacidade de pensar, de articular as ideias, de informar, em oposição ao playboy, sujeito alienado que “tem tudo na mão e não faz nada pra ninguém” (Racionais). Assim, por meio do rap, postulam a liberdade de expressão como condição de existência cultural, anunciando uma revolução verbal, pois “as grades podem aprisionar meu corpo, até minha alma, mas ela jamais vão aprisionar meu pensamento”(Facção Central).
O mano é um sujeito firmeza, de atitude, cuja principal qualidade é a consciência da situação de injustiçado, de perseguido, de sobrevivente, encontrando no rap o veículo privilegiado dessa consciência. Diante da acusação de apologia ao crime, respondem que “ninguém tem o direito de aprisionar um pensamento, por mais vadio que ele seja” (Detentos do Rap).
Ao invés de escarnecer o político canalha, a consciência política de que o rap é porta-voz identifica, de maneira impessoal, o sistema como o responsável pela miséria da periferia paulista. A palavra sistema é constantemente evocada como sinônimo da iniquidade social, do abuso de poder, da escravização pelo trabalho, da desvalorização do ser humano, da “lavagem cerebral” provocada pela mídia, da parcialidade quanto à aplicação da lei. Paralelamente, a sociedade é descrita como um campo minado, em estado de guerra civil, uma “terra de ninguém” (Pavilhão 9).
A reverência que Bezerra da Silva dispensava à polícia dá lugar a um discurso de hostilidade, no qual os policiais são vistos como “covardes”, “despreparados”, “bandidos”, “folgados”, “assassinos”, “corruptos”, “marginais”, “otários fardados”, “que se julgam homens da lei”. Põe-se em dúvida a própria necessidade do aparato policial: “Se eu fosse mágico não existia droga, nem fome e nem polícia” (Racionais). A violência policial, além disso, ganha concretude pelo relato de casos reais, não os deixando cair no esquecimento, como também pelo detalhamento das torturas, das execuções sumárias, dos extermínios em larga escala.
Como contraponto, o mano perde gradativamente a ambiguidade do malandro, uma vez que os versos, reiteradas vezes, desaconselham a vida do crime, não como sermão, não como orientação “politicamente correta”, mas como alerta de que o crime é ilusório, sem retorno, sem futuro, levando, invariavelmente, à cadeia, ao velório ou ao desespero materno.
Finalmente, como estilo musical que afirma o negro no contexto da seletividade do sistema penal, o rap perde em comicidade o que lhe sobra em seriedade, em rudeza, facilmente verificada nas suas expressões faciais fechadas e doloridas, diferente do riso fácil e contagiante das rodas de samba de Bezerra da Silva.
Bibliografia:
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Fabiano Augusto Martins Silveira
Doutor e Mestre em Ciências Penais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Consultor Legislativo do Senado Federal nas áreas de direito penal, processual penal e penitenciário.
Autor do livro Da criminalização do racismo: aspectos jurídicos e sociocriminológicos (Del Rey, 2006).
[1]Cf. BECKER, Howard S. Los estraños, 1971; GOFFMAN, Erwing. Estigma, 1988; BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, 1999; LARRAURI, Elena. La herencia de la criminología critica, 1992.
[2]Seria talvez mais preciso falar em “posições-de-identidade”, como prefere Stuart Hall (A identidade cultural na pós-modernidade, 1999, p. 84), ou em “identificações em curso”, acompanhando Boaventura de Souza Santos (Pela mão de Alice, 2000, p. 135).
[3]Cf. BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros, 1973, p. 113 et seq.
[4]Idem. Ibidem, p. 115. A lubricidade da mulata é aceita por Nina Rodrigues (As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, s/d, p. 154); também por Silvio Romero: “Ao mestiço pertence, como próprios, o langor lascivo e os cálidos anelitos da paixão (...) todos os versos desta espécie coligimos da boca de ariscas e faceiras mulatas” (Estudos sobre a poesia popular do Brasil, 1977, p. 189).
[5]ROSENFELD, Anatol. Negro, macumba e futebol, 1993, p. 29.
[6]Idem, 1993, p. 29.
[7]MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis, 1999, p. 56 et seq.
[8]COMSKY, Noam. Linguagem e pensamento, 1971, p. 40.
[9]MOURA, Clovis. Dialética radical do Brasil negro, 1994, p. 182.
[10]ARAÚJO, Joel Zito. Identidade racial e estereótipos sobre o negro na TV brasileira, 2000, p. 79.
[11]José Bezerra da Silva (1927–2005) é pernambucano de origem, chegando ao Rio de Janeiro ainda jovem, por meio de uma viagem clandestina de navio. Depois de arrumar emprego na construção civil, foi morar no Morro do Galo (Cantagalo). “Um tempo depois eu já tocava tamborim no Galo e um rapaz me chamou pra fazer um programa de rádio. Aí eu passei mais dez anos na rua da amargura. Nesse tempo eu ganhava 300 por semana. E naquele dia eu fui gravar das dez da manhã até as duas da tarde, gravei seis músicas e ganhei 240 mil réis. Aí eu pensei: não vou mais para obra de jeito nenhum, não passo nem perto. Virei artista. Só que não sabia o que estava me esperando. Um contrato de exclusividade com a fome por tempo indeterminado. [...] Depois, quando tava melhor, tocando surdo, estudando violão, trompete, apareceu um louco, só podia ser. Me disse que a minha música tinha sido classificada, assina aqui que agora você vai ser cantor, vai gravar cantando. Aí cantei, fiz um disco, gravei, fez sucesso. Isso foi em 75, meu primeiro disco.” (SILVA. Discursos sediciosos entrevista Bezerra da Silva, p. 13). Segundo Letícia C. R. Vianna, “ele [Bezerra da Silva] divide sua vida em quatro fases: a infância no nordeste, a vida no Rio antes da sarjeta, os sete anos de sarjeta, dos quais três na mendicância e quatro se recuperando em um terreiro de umbanda, e a vida depois da sarjeta, quando virou sambista de sucesso. [...] No Rio, não tinha casa nem trabalho, nem quem o ajudasse. E como alternativa dada a tantos migrantes na mesma condição, foi se integrando no mercado de trabalho da construção civil como ajudante em obras e se qualificou como pintor. A partir de então não era mais José e sim Bezerra, de modo a se distinguir de tantos josés da silva vindos do Nordeste que trabalhavam como peões” (Bezerra da Silva, 1999, p. 16-21). O samba Preço da glória conta os momentos mais dramáticos da vida de Bezerra da Silva: “É malandro / pra chegar até aqui não foi mole não / passei um tremendo sufoco / Eu sou aquele que chegou do Nordeste pra tentar/ na cidade grande minha vida melhorar / Graças a Deus consegui o que eu queria / Hoje estou realizado / terminou minha agonia / ESTRIBILHO / É... mas o preço da glória pra mim / ele foi doloroso e cruel / comi o pão que o diabo amassou / em seguida uma taça de fel / Me prenderam várias vezes / porém sem nada dever / Morei na rua das Amarguras sem ter nada pra comer / Longos anos dormi na sarjeta / nem assim me revoltei / e na universidade da vida foi nela que me formei / e como penei / Quem não acreditar em tudo que falo / minha testemunha ocular é o morro do Cantagalo / minha testemunha ocular é o meu morro do Galo / ESTRIBILHO / Não é mole não” (Caboré / Pinga / Jorge Portela. In: SILVA. Produto do morro, lado B, faixa 4).
[12]Guilherme do Ponto Chic / Laís Amaral / Pinga. In: SILVA. Meu samba é duro na queda, faixa 4, 3’55 (Transcrição parcial).
[13]VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva, 1999, p. 86.
[14]Naval / G. Martins. In: SILVA. Justiça social, lado B, faixa 2 (Transcrição parcial).
[15]Caboré / Pinga / Jorge Portela. In: SILVA. É esse aí que é o homem, lado A, faixa 2 (Transcrição parcial).
[16]Nilson Reza Forte. In: SILVA. Meu samba é duro na queda, faixa 5, 3’28 (Transcrição parcial).
[17]Também elaborada em Bom pastor (Pedro Butina / Regina do Bezerra. In: SILVA. Se não fosse o samba, lado A, faixa 1).
[18]Evandro Galo / Pedro Butina. In: SILVA. Aplauso, faixa 5, 3’38 (Transcrição parcial).
[19]Alba Zaluar destaca que, no Rio de Janeiro e em São Paulo, a “prisão para averiguações” disseminou-se na virada de século, em razão do crescimento urbano, sobretudo como forma de controle e de moralização de vadios, de desordeiros, de ébrios e dos famosos capoeiras: “Por isso as estatísticas sobre os detidos nessas cidades, alguns colocados nas casas de detenção ou prisões sem nenhuma acusação concreta, são muito altas; havia muito mais detidos ‘para averiguações’ do que presos com base num processo. Em São Paulo, entre 1892 e 1916, os detidos por contravenções ou para averiguações correspondiam a 83,8% do total, enquanto os presos sob acusação de ter cometido crimes somavam apenas 16,2%. E o que é mais importante: enquanto os brasileiros (em geral negros e mulatos) eram logo tachados de vadios, os estrangeiros continuavam sendo considerados bons trabalhadores e iam presos por desordem” (Da revolta ao crime S.A., 1996, p. 81).
[20]Adelzonilton / Franco Texeira. In: SILVA. Perólas, faixa 5, 3’11 (Transcrição parcial).
[21]SILVA, Bezerra da. Discursos sediciosos entrevista Bezerra da Silva, 1999, p. 12-13. As experiências de Bezerra da Silva com a prisão para averiguações foram narradas em Se não fosse o samba (Carlinhos Russo / Zezinho do Valle. In: SILVA. Se não fosse o samba, lado B, faixa 2).
[22]SILVA, Bezerra da. Discursos sediciosos entrevista Bezerra da Silva, 1999, p. 17.
[23]Moacyr Bombeiro / Adivinhão da Chatuba. In: SILVA. Samba partido e outras comidas, Lado A, faixa 6 (Transcrição parcial).
[24]Adelzonilton / Moacyr Bombeiro. In: SILVA. Aplauso, faixa 14, 3’51 (Transcrição parcial).
[25]Expressão retirada de As 40 DP’S (Gil de Carvalho. In: SILVA. Se não fosse o samba, lado A, faixa 5).
[26]Walter Meninão / Pedro Butina. In: SILVA. Violência gera violência, lado A, faixa 1. (Transcrição parcial). Na contracapa do referido disco consta a seguinte definição: “N. B.: Candidato Caô Caô – Político safado, mentiroso, 171, canalha e colarinho branco que promete mas não cumpre”.
[27]José Mirim / Rodrigo / Sérgio Fernandes. In: SILVA. Contra o verdadeiro canalha, Lado A, faixa 1, participação especial de Genaro (Transcrição parcial).
[28]Franco Teixeira / Nilo Dias / Adelzonilton. In: SILVA. Aplauso, faixa 2, 4’13 (Transcrição parcial).
[29]BARATTA, Alessandro. Por una teoría materialista de la criminalidad y del control social, 1989, p. 39-40.
[30]Idem. Ibidem, p. 40-41.
[31]Expressão utilizada por VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva, 1999, p. 125-146 passim.
[32]Idem. Ibidem, p. 123.
[33]Crioulo Doido / Bezerra da Silva. In: SILVA. Malandro rife, lado 2, faixa 2. (Transcrição parcial).
[34]Adelzonilton / Franco Teixeira / Ubirajara Lúcio. In: SILVA. É esse aí que é o homem, lado A, faixa 1 (Transcrição parcial).
[35]Ary Guarda / Pinga. In: SILVA. É esse aí que é o homem, lado B, faixa 2 (Transcrição e destaques do autor).
[36]SILVA, Bezerra da. Discursos Sediciosos entrevista Bezerra da Silva, 1999, p. 13-14.
[37]Pinga / Netinho. In: SILVA. Malandro rife, lado 2, faixa 3 (Transcrição parcial).
[38]Tadeu do Cavaco / Adelzonilton. In: SILVA. Pérolas, faixa 6, 3’54 (Transcrição parcial).
[39]De acordo com Wagner Gonçalves da Silva: “A umbanda, como culto organizado segundo os padrões atualmente predominantes, teve sua origem por volta das décadas de 1920 e 1930, quando kardecistas de classe média, no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, passaram a mesclar com suas práticas elementos das tradições religiosas afro-brasileiras, e a professar e defender publicamente essa ‘mistura’, com o objetivo de torná-la legitimamente aceita, com o status de uma nova religião. A umbanda constituiu-se, portanto, como uma forma religiosa intermediária entre os cultos populares já existentes. Por um lado, preservou a concepção kardecista de carma, da evolução espiritual e da comunicação com os espíritos e, por outro, mostrou-se aberta às formas populares do culto africano” (Candomblé e umbanda, 1994, p. 106-112).
[40]Gil de Carvalho / Marcio Pintinho. In: SILVA. Violência gera violência, lado A, faixa 2 (Transcrição parcial).
[41]Como salienta Reginaldo Prandi: “Nos seus primórdios, a umbanda se autodenominava espiritismo de umbanda, e se ela nunca logrou reproduzir completamente esses traços tão caros ao kardecismo, no mínimo sua preocupação em valorizar o modelo muito contribuiu para arrefecer em parte o preconceito contra religiões de origem negra e assim atrair mais facilmente boa parte de seu contigente de adeptos brancos” (Herdeiras do axé, 1996, p. 80).
[42]J. Canseira / Marimbondo. In: SILVA. Pérolas, faixa 3, 3’29.
[43]Moacyr Bombeiro / Popular P. In: SILVA. Bezerra da Silva e um punhado de bambas, lado 2, faixa 5.
[44]Dario Augusto / Embratel do Pandeiro. In: SILVA. Malandro rife, lado 1, faixa 2.
[45]Adelzonilton. In: SILVA. Bezerra da Silva e um punhado de bambas, lado 1, faixa 4.