EDITORIAL
Chegamos à décima edição
Data: 24/11/2020
Autores: João Paulo Orsini Martinelli

Chegamos à Décima Edição

Chegar à décima edição de uma revista científica não é fácil. Após muito trabalho dos integrantes do IBCCRIM atingimos mais um objetivo, com a publicação de artigos científicos, resenhas e entrevistas com personalidades do Direito e áreas correlatas. A décima edição simboliza a consolidação de mais um veículo de comunicação científica, que faz a ligação da academia com a comunidade.

Desde 2009 o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais edita a Revista Liberdades em formato eletrônico, com conteúdo aberto ao público interessado no estudo das ciências criminais e na história de seus grandes representantes. A ideia inicial partiu do então coordenador-chefe do departamento de Internet, Luciano Anderson de Souza, e, desde então, com periodicidade quadrimestral, a publicação tornou-se um dos atrativos do IBCCRIM. Com seu novo formato interativo, a leitura ficou mais fácil e agradável, aumentando a expectativa de muitas outras edições futuras.

Nesta edição, contamos com quatro artigos: “Um estudo acerca das relações entre a política criminal da sociedade de risco e a mídia: abordagens críticas de suas influências face à tutela penal da dignidade sexual infanto-juvenil”, “Ressocialização de menores infratores: considerações críticas sobre as medidas socioeducativas de internação”, “Legítima defesa ‘simbólica’? Ao mesmo tempo, sobre a valência da lógica dos lugares inversos” e “Doping em Direito Penal: existe um bem jurídico a ser tutelado?”. Além disso, contamos com a resenha do documentário direcionado pela antropóloga Débora Diniz: “A casa dos mortos” e uma ilustre entrevista com o prof. Aury Lopes Jr, um dos grandes nomes do Direito Processual Penal brasileiro.

Esperamos que a Revista esteja do agrado de todos. O trabalho foi realizado com a finalidade de contribuir para os estudos e os conhecimentos de quem se interessa pelo Direito Penal. Insistimos que todos podem contribuir com a publicação, enviando comentários, sugestões, críticas e material para publicação. Boa leitura!

São Paulo, 15 de maio de 2012.

João Paulo Orsini Martinelli

Coordenador-chefe do Departamento de Internet

ENTREVISTA
Eduardo Henrique Balbino Pasqua e João Paulo Orsini Martinelli entrevistam Aury Lopes Jr
Data: 24/11/2020
Autores:

Com os 20 anos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a 10.ª edição da Revista Liberdades apresenta, com muita satisfação, uma entrevista realizada por Eduardo Henrique Balbino Pasqua e João Paulo Orsini Martinelli com o Dr. Aury Lopes Júnior, advogado criminalista, atuante desde 1992. Obteve seu título de Doutor em Direito Processual Penal na Universidade Complutense em Madrid e é professor titular do programa de Pós-Graduação de Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS. Também é membro do Conselho Diretivo para Ibero-América da Revista de Derecho Procesal, vinculada ao Instituto Ibero-Americano de Direito Processual e Relator Julgador do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-RS.

1) Professor, primeiramente, gostaríamos conhecer seu trajeto como jurista e os motivos pelos quais escolheu o Direito Processual Penal como foco dos seus estudos.

Aury Lopes Júnior: Fui estudar Direito quase que por acaso, pois minha primeira intenção era o curso de administração de empresas. Mudei de ideia às vésperas de fazer a inscrição para o vestibular, era muito jovem e não sabia o que fazer da vida, como todo mundo nesta fase. Graduei-me na Universidade Federal de Rio Grande (UFRG), tendo colado grau em dezembro de 1991. Tive um excelente professor de Direito Penal, ainda que excessivamente exigente, e também acabei estagiando na área penal. Mas também alimentava uma paixão pelo Direito Civil e o Processo Civil, que acabou sepultada quando – em 1993 – fui aprovado no concurso para professor auxiliar de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Federal de Rio Grande, na qual acabei lecionando por 10 anos. Iniciei com o Direito Penal e depois migrei para o Processo Penal, tendo feito meu Doutorado nesta área na Universidad Complutense de Madrid. A tese, intitulada Sistemas de investigación preliminar en el proceso penal, foi aprovada com nota máxima e voto de louvor unânime em 1999, tendo sido posteriormente publicada, de forma resumida, na obra Sistemas de investigação preliminar. Em 2000, passei a integrar o Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS – Especialização, Mestrado e Doutorado – onde estou até hoje. Paralelamente, sempre exerci a advocacia criminal, atuando intensamente desde 1993.

2) Na sua opinião, o ensino do Direito Processual Penal está adequado a permitir que os futuros operadores do Direito sejam capazes de interpretar as leis processuais conforme a Constituição Federal?

Aury: O ensino do Direito Processual Penal sofre com o reducionismo e o rigor da ideologia punitivista. Não raras vezes nos deparamos com professores incapazes de superar o monólogo jurídico e compreender a necessidade de uma leitura interdisciplinar e crítica, tomando a Constituição como algo que realmente “constitua-a-ação”. O ensino do Direito Processual Penal deveria ser mais dinâmico e menos afeto ao ranço inquisitório e os superados discursos de autoridade. A repetição acrítica de posições incompatíveis com a Constituição segue sendo, infelizmente, bastante comum.  Há uma imensa resistência à Constituição. Como diria Einstein, “que época triste essa nossa, em que é mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito”.  Ainda somos, em grande parte, incapazes de compreender que é perfeitamente possível garantir para punir e punir garantindo. Ou seja, o respeito às regras do jogo não é sinônimo de impunidade. Falar em direitos fundamentais no Processo Penal, não raras vezes, soa como heresia aos ouvidos dos punitivistas de plantão.

3) O Direito Processual Civil tem se preocupado muito com a oscilação do entendimento dos tribunais, considerando os malefícios que isso traz, tais como a insegurança jurídica (falta de previsibilidade), a ofensa à isonomia e a ineficiência da prestação jurisdicional. Devido a isso, tem-se estudado com afinco a “força dos precedentes” e as formas de sua utilização no Direito brasileiro, buscando-se inspiração nos institutos do common law.

Diante disso, pergunta-se: por qual motivo o Direito Processual Penal não tem se preocupado (ou se preocupado menos que o Direito Processual Civil) com a aplicação dos precedentes no Brasil, com a uniformização da jurisprudência e com o estudo dos institutos já vigentes a esse respeito (os recursos excepcionais, o julgamento por amostragem desses recursos, a repercussão geral, a súmula vinculante etc.). Por qual razão esses temas raramente se encontram (ou se encontram de maneira muito superficial) nos manuais e cursos de Direito Processual Penal e, até mesmo, nas revistas especializadas?

Aury: Não temos a cultura do precedent case no Brasil, nem um sistema jurídico assim estruturado, mas não vejo isso como algo tão negativo. A força dos precedentes tem vantagens e inconvenientes. Se por um lado dá alguma previsibilidade e segurança, por outro pode representar um engessamento no passado e a disseminação do ‘argumento de autoridade” em detrimento da “autoridade do argumento”. Prefiro uma doutrina sólida (mas dinâmica e crítica) e de qualidade a precedentes, casuístico por essência. Não raras vezes, o precedente surge exatamente da fragilidade doutrinária. Mas não podemos esquecer que, muito mais do que na área cível, a jurisdição penal deve atentar para aquele caso e suas circunstâncias. Elementar que existem regras comuns e que devem ter sua aplicação uniformizada. Não podemos abrir mão do julgamento caso a caso, mas também não se pode pactuar com o decisionismo, em que um juiz acredita que pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Eis aí um grande perigo: a filosofia da consciência e o decisionismo judicial. Só uma estrutura doutrinária sólida, aliada à jurisprudência de qualidade, permitem melhores decisões, seja em primeiro grau ou nos tribunais.

4) A tendência dos tribunais superiores (abaixo exemplificada), de impedir a utilização do habeas corpus como substitutivo dos recursos excepcionais, é mesmo apta a “prestigiar a função desse remédio constitucional”? Como essa tendência prestigiaria a função do habeas corpus e como isso poderia então melhor tutelar o direito de liberdade?

Aury: O habeas corpus é um instrumento imprescindível, mas realmente acabou sendo excessivamente banalizado no Brasil. Não tenho conhecimento de outro país no qual o HC tenha uma aplicação tão ampla. O enxugamento prestigiaria sua missão constitucional, sem dúvida, mas por outro lado, devemos atentar para o seguinte: se o HC foi tão banalizado, isso é sintoma. Primeiro, que as coisas realmente não vão bem na jurisdição criminal, pois os juízes e tribunais andam atropelando – sistematicamente – as regras do devido processo penal. O número de presos cautelares ainda é elevadíssimo e segue – em que pese a Lei 12.403 – a banalização da prisão preventiva e sua utilização como pena antecipada. Por outro lado, o HC tem sido muito criticado por ser (ab)usado como “substitutivo” recursal. Isso decorre de dois fatores: a demora excessiva dos tribunais em julgar os recursos e, por outro lado, o quase insuperável filtro estabelecido para os recursos especial e extraordinário. Hoje, pela via do REsp e do RExt, é quase impossível à defesa ascender ao STJ e ao STF, tamanho os obstáculos impostos. É óbvio que os tribunais superiores estão abarrotados de processos, mas o caminho não é restringir o acesso a eles, como tem sido feito. Ademais, o entulhamento da justiça criminal decorre – em grande parte – da banalização da intervenção penal. É o preço que estamos pagando por esse discurso punitivista, que tem fomentado uma avalanche de acusações infundadas. Em suma, podemos enxugar o campo de aplicação do HC, mas, para isso, devemos ter um sistema recursal que realmente funcione. E, mais ainda, juízes que respeitem a Constituição.

5) Mesmo com o advento das medidas cautelares pessoais diversas da prisão (art. 319 do CPP) – introduzidas pela Lei 12.403/2011 –, é possível ainda se falar em poder geral de cautela, de modo a permitir com que o juiz se valha de outras medidas, que não as legalmente previstas (v.g. cominação de astreintes, nos moldes do art. 461 do CPC)?

Aury: Sempre fui visceralmente contra o tal “poder geral de cautela”, pois é um civilismo inaplicável ao processo penal (como todos os demais civilismos que tanto mal nos fazem, como a relativização das nulidades, por exemplo). No processo penal, não existe “poder geral”, porque todo poder é condicionado e vinculado ao princípio da legalidade. É um absurdo criar medidas restritivas de direitos fundamentais que não estejam previstas em lei. Pior ainda é fazer isso invocando a analogia (in malam partem !) com o Código de Processo Civil. É um disparate total.  Deve-se compreender que no Processo Penal o princípio da legalidade é crucial, e que, por decorrência, forma é garantia. Ademais, todo poder é condicionado e precisa ser legitimado. A lei 12.403/2011 vem sepultar essa discussão, pois não há espaço para um juiz criar alguma medida restritiva de direitos fundamentais para além daquelas enumeradas – taxativamente, por elementar – no art. 319 do CPP.

6) Adotando-se (a muito coerente) concepção de James Goldschimdit, de processo como situação jurídica (em contraposição ao pensamento de Oskar Von Büllow), como resolver os problemas relacionados, sobretudo, ao plano da existência (v.g. sentença proferida por “juiz” que ainda não tomou posse) da então relação jurídica processual? Como essa concepção de Goldschimdit resolveria os conhecidos problemas práticos verificados na jurisprudência (v.g. sentença proferida por juiz impedido, sentença sem dispositivo, processo que se desenvolveu sem advogado etc.) e estudado, no Processo Penal, dentro do tema “Das Nulidades”?

Aury: Em primeiro lugar, deve-se estudar – muito mais – James Goldschmidt, possivelmente o maior processualista do século XX, pois pouco se compreendeu da sua obra. Não só da teoria do processo como situação jurídica, mas também de toda desconstrução que ele faz da equivocada noção de “pretensão punitiva” como objeto do processo penal. James Goldschmidt foi um judeu alemão, perseguido pelo nazismo, e que acabou morrendo de desgosto com a humanidade no exílio, em Montevidéo (Uruguai). Para sua compreensão, é fundamental conhecer o autor da obra, e não apenas a obra do autor. Também precisamos conhecer um pouco das críticas a ele feitas por Calamandrei, que, ao final, acaba rendendo homenagens no escrito “un maestro di liberalismo processuale”. A desconstrução que Goldschmidt faz da teoria de Büllow é crucial para a evolução do Processo Penal. Também evidencia a inutilidade (principalmente prática) da teoria dos pressupostos processuais. Os pressupostos de existência são exemplos típicos de situações exclusivamente teóricas e não vistas na realidade do processo (nunca vi uma sentença proferida por juiz que não tomou posse sentença sem dispositivo ou processo sem advogado!). Já os pressupostos processuais de validade acabam sendo tratados no campo das invalidades processuais, demonstrando, portanto, que não são pressupostos de nada. Mas o grande contributo de Goldschmidt é mais profundo, está na concepção dinâmica do processo e, principalmente, na assunção do risco e da imprevisibilidade. Romper com a ilusão de segurança e a concepção processual estática de Büllow é fundamental. Só com a assunção dos riscos inerente à guerra (ou ao jogo, na concepção de Calamandrei) é que compreenderemos o valor das garantias processuais. Resgato todas essas questões no meu livro Direito processual penal, inclusive com um texto fantástico de Eduardo Couture sobre o exílio e a morte de Goldschmidt no Uruguai. É uma vida e obra que valem a pena conhecer.

7) Atualmente, o Processo Penal deve ser concebido sob qual perspectiva? Como instrumento para a realização do Direito Penal (devendo, portanto, ser efetivo para que cumpra o seu mister, com a previsão que medidas cautelares que assegurem ao máximo os resultados práticos do processo, ou seja, o atendimento às finalidades da pena) ou, exclusivamente, para a tutela do direito de liberdade do acusado, como obstáculo imposto ao Estado para a sua investida persecutória?

Aury: Penso o Processo Penal desde uma concepção constitucional, como instrumento a serviço da máxima eficácia dos direitos e garantias da Constituição. Não vejo outra alternativa em democracia. Ao mesmo tempo em que o Processo Penal é regido pelo princípio da necessidade, pois não existe pena sem prévio Processo Penal (nulla poena sine iudicio), não pode ele ser desconectado do regime de garantias individuais da Constituição. É o processo penal um limite ao poder punitivo do Estado, um caminho legitimador da pena. Não há incompatibilidade entre garantir e punir. Podemos (e devemos) respeitar as regras do processo e punir ao final, se for o caso. O problema é que o discurso punitivista, além de manipular a base do Processo Penal, acaba por rasgar a Constituição. Sobre as cautelares, não podemos esquecer que medida cautelar é tutela do processo e não medida de segurança pública. Serve ao processo e não ao Direito Penal, portanto, não podemos querer efetivar – pela via cautelar – as funções da pena. Hoje vemos medidas cautelares que pretendem prevenção geral e especial. Ou seja, viram penas antecipadas. Inconstitucionais, portanto.

8) Qual sua opinião sobre o Tribunal do Júri? Uma decisão penal, sem fundamentação, proveniente de julgadores leigos, mesmo com previsão constitucional, é legítima?

Aury: O Tribunal do Júri foi uma instituição importante na transição e superação de modelos processuais autoritários, mas precisa ser revisado, pois, como está, deixou de ser salvador para virar algoz. Festejado como instituição democrática, revela-se profundamente autoritário e antidemocrático ao permitir decisões por íntima convicção. É puro decisionismo, incompatível com o nível de evolução civilizatória alcançada pelo Processo Penal. O número de jurados é insuficiente, pois uma condenação por 4x3 significa um veredicto com 57,14% de convicção. Isso não supera a dúvida razoável. Também temos problemas na instrução, pois ela deveria ser feita – integralmente – em plenário e não na primeira fase (diante, apenas, do juiz presidente). Os jurados não conhecem o processo nem a prova, julgam a partir de folhas mortas e o espetáculo cênico dos profissionais. Penso que o júri, para sobreviver em democracia, precisa ser profundamente remodelado. Como está, revela-se uma instituição perigosa e antidemocrática.

9) Quais as suas perspectivas para a reforma do Código de Processo Penal? Há realmente a necessidade de se elaborar um novo Código ou basta dar interpretação mais coerente ao atual?

Aury: Sou favorável a um Código de Processo Penal inteiramente novo, norteado pela Constituição e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Um código feito à luz da Constituição e não essa colcha de retalhos que temos hoje. Compreendo a necessidade das reformas pontuais, mas elas geraram uma grave inconsistência sistêmica, basta atentar para a reforma de 2008: mudaram todos os procedimentos e não tocaram no capítulo das nulidades. Isso causa graves problemas e mantém o absurdo casuísmo que vige em matéria de nulidades (sublinho o grave dano gerado pela disseminação da doutrina civilista da relativização das nulidades e a exigência de demonstração de “prejuízo”, uma cláusula genérica e indeterminada, que vai encontrar referencial semântico naquilo que quiserem os tribunais (novamente o problema do decisionismo)). Precisamos de um CPP novo, mas não vejo, a médio prazo, possibilidade de aprovação do PLS 156. Existem fortes tensões institucionais que dificultam em muito sua aprovação.

10) Nas suas carreiras como professor e advogado, há um grande abismo entre a teoria do Direito Processual Penal e a prática forense?

Aury: Não gosto desta dicotomia entre teoria e prática. Ensino em aula aquilo que servirá de base teórica para a boa prática judiciária. E pratico, no meu dia a dia como advogado, o que ensino e escrevo. Não se pode desconectar teoria e prática, sob pena de cairmos numa teorização inútil ou numa prática medíocre e totalmente empírica, incompatível com o nível técnico que as profissões jurídicas exigem atualmente. O problema é a massificação na administração da justiça, que conduz às práticas medíocres. Atores judiciários arraigados a pensamentos superados e concepções ultrapassadas são o grande problema. Sobram argumentos de autoridade, mas, não raras vezes, falta autoridade no argumento.

11) Por fim, o Senhor entende que a demora de uma decisão judicial seja argumento para representar o Brasil na Comissão Americana de Direitos Humanos para eventual julgamento pela Corte? Um processo com prazo acima do tolerável representa grave violação a direitos humanos?

Aury: O Brasil ainda não levou a sério a questão do direito de ser julgado em um prazo razoável. No CPP sobram prazos, mas faltam sanções, o que significa ineficácia do direito fundamental. A (de)mora judicial, já causou sérios problemas a países como Itália e Portugal, pois o Tribunal Europeu de Direitos Humanos é bastante rígido nesta questão. Deveríamos nele nos inspirar, especialmente quando disse, em certo julgamento, que “não se pode mais tolerar como normal, o anormal funcionamento da justiça”. O argumento da falta de recursos humanos e materiais é compreensível, mas não justifica. Há um profundo e interesseiro reducionismo nesta matéria. Precisamos definir claramente os prazos máximos de duração do Processo Penal e da prisão cautelar, impondo as sanções processuais respectivas. Precisamos levar a sério esse direito fundamental e aprender a respeitar o “tempo” do outro. Eis um tema que desenvolvi antes mesmo da reforma Constitucional, e aprofundo bastante no meu livro.

ARTIGO
Doping em Direito Penal: existe um bem jurídico a ser tutelado?
Data: 24/11/2020
Autores: Décio Franco David

Sumário: 1. Considerações iniciais: o esporte e seu inimigo íntimo – 2. A atuação do Direito frente ao esporte e o doping: 2.1 A proteção ao desporto: aspectos normativos; 2.2 Normas específicas sobre doping no ordenamento jurídico brasileiro – 3. O doping em Direito Penal: 3.1 Missão do Direito Penal; 3.2 O doping é capaz de lesionar algum bem jurídico-penal? – 4. Conclusão – 5. Referências bibliográficas.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo apurar a (des)necessidade de um controle penal do doping. Deste modo, procura-se demonstrar a ausência de bem jurídico-penal nas condutas inerentes à dopagem de atletas (profissionais e amadores). Para tanto, é realizada uma abordagem sobre as normas internacionais pertinentes e sobre o ordenamento jurídico brasileiro. Toda a análise realizada tem como norte a teoria do bem jurídico-penal e o Olimpismo.

Palavras-chave: Doping – Bem jurídico-penal – Olimpismo.

1. Considerações iniciais: o esporte e seu inimigo íntimo

O esporte representa o âmago dos sonhos humanos, a esperança de alcançar o eterno mito do herói. Desde a antiga Grécia os homens já competiam para ver entre si quem era o mais forte, o mais rápido ou quem saltava mais alto: Citius Altius Fortius.

Talvez o estado natural Hobbesiano de beligerância dos seres humanos seja bem exemplificado pelo esporte: a necessária e interminável competição que faz aflorar emoções e alimenta sonhos cria um ambiente em que as relações se baseiam no conflito. Afinal de contas, enquanto todos tiverem o que todos querem, ter-se-á a paz; entretanto, quando alguém tiver o que os outros não puderem ter, instituir-se-á o estado de disputa.[1] O esporte é uma força de disputa, sem que seja necessária a guerra. Os seres humanos sempre desejaram se tornar únicos, de destaque, alcançar feitos que outros jamais alcançaram. O vencedor se torna o herói que todos almejam ser.

O esporte transmite para as pessoas a emoção de vencer o impossível, de alcançar feitos inimagináveis como, por exemplo, correr os 100 metros rasos abaixo de 10 segundos.[2] Tais feitos quase convertem o ser humano numa divindade, isto é, criam o semideus e são capazes de demonstrar que o impossível também sucumbe à determinação humana.

Os sentimentos realçados pela competição esportiva são reflexos das valorações adotadas no convívio humano diário. A Carta Olímpica do Comitê Olímpico Internacional (COI) estabelece os princípios e valores do Olimpismo, o qual é definido como uma “filosofia de vida, que exalta e combina num conjunto equilibrado as qualidades do corpo, vontade e mente. Misturando esporte com cultura e educação, o Olimpismo procura criar um estilo de vida baseado no júbilo do esforço, o valor educacional do bom exemplo, a responsabilidade social e o respeito pelos princípios éticos universais fundamentais”.[3]

Assim, a meta do Olimpismo é “colocar o esporte a serviço do desenvolvimento harmonioso da humanidade, com vista a promover uma sociedade pacífica preocupada com a preservação da dignidade humana”.[4]

A Carta Olímpica afirma claramente que a prática do esporte é um direito humano, ou seja, inerente à própria natureza do ser, refutando qualquer espécie de discriminação dentro do esporte.[5] O esporte age como elemento de agregação social, sendo que a própria bandeira olímpica representa a união dos cinco continentes em seus cinco arcos entrelaçados.[6]

O esporte desempenha um importante papel na proteção da saúde, bem como na educação moral, cultural e física e possibilita a promoção do entendimento e compreensão internacional e da paz.[7]

O esporte é fator de integração social e com o desenvolvimento econômico sobre sua natural competitividade saudável se converteu em instrumento de revolução social, possibilitando que pessoas que vivem à margem da sociedade acumulem fortunas inesgotáveis por intermédio de suas habilidades desportivas, tornando-se não apenas o herói esportista, mas também o sonho econômico de muitas pessoas, em especial crianças.

Por sua vez, a realidade social é apresentada pela música, em especial no pertinente ao tema ora tratado nos versos do cantor e compositor Gabriel, o Pensador, em sua música Brazuca:

“No país do futebol o sol nasce para todos mas só brilha para poucos e brilhou pela janela do barraco da favela onde morava esse garoto chamado Brazuca

Que não tinha nem comida na panela, mas fazia embaixada na canela e deixava a galera maluca

(...)

No país do futebol quase tudo vai mal,

Mas Brazuca é bom de bola, já virou profissional;

Campeão estadual, campeão brasileiro;

Foi jogar na seleção, conheceu o mundo inteiro;

E o mundo inteiro conheceu Brazuca com a dez,

Comandando na meiúca como quem joga sinuca com os pés;

Com calma, com classe, sem errar um passe;

O que fez com que seu passe também se valorizasse

E hoje ele é o craque mais bem pago da Europa

(...)

Enquanto o seu irmão, Zé Batalha, e todo o seu povão, a gentalha da favela de onde veio, só trabalha

Suando a camisa, jogado pra escanteio

Tentando construir uma jogada mais bonita do que a grama que carrega na marmita”.[8]

Os versos curtos e diretos de linguagem extremamente simples e realística apresentam esta outra faceta do esporte, a possibilidade da evolução econômica. Os milhares pagos a um esportista são fortunas que dificilmente (para não dizer jamais) serão alcançadas por qualquer profissional intelectual.[9] Tal situação é bastante antiga, conforme relata Aquino Neto, os vencedores olímpicos da antiguidade tinham vantagens sociais, tais como a alimentação, moradia, isenção de serviço militar etc.[10]

Em razão disso, cada vez mais novas tecnologias são desenvolvidas para auxiliar na quebra das marcas, recordes e títulos não apenas esportivos, mas também econômicos.

Entretanto, por mais que haja essa disputa esportiva fundada no desenvolvimento da tecnologia esportiva e do patrocínio econômico, ela não é desmedida, ou seja, algumas regras ainda devem ser obedecidas para que o mito heroico do vencedor não seja penado pela mancha do desmerecimento.

Entre estas normas de regulamentação, destaca-se como mais importante a proibição do doping, o qual é contrário ao espírito esportivo, pois possibilita ao competidor a vitória por subterfúgios desiguais de vantagem, sem os quais não conseguiria vencer.

Assim, o doping acaba sendo o inimigo íntimo da competitividade esportiva, ou seja, torna o esporte injusto; afinal, como bem afirma Gustav Rdbruch, “a justiça (...) significa igualdade”.[11]

O doping é tão antigo quanto as próprias competições esportivas, há relatos de que, já em 1.700 a.C., os chineses utilizavam plantas com efeitos estimulantes.[12] Ocorre que com o avanço tecnológico do século XX, a dopagem passou a se revestir com outras roupagens, atualmente não são apenas plantas estimulantes, mas transfusões sanguíneas, substâncias químicas cada vez menos detectáveis e, inclusive, alterações genéticas.

Desse modo, sua proibição tornou-se imperiosa, sendo que a própria Carta Olímpica, em seu art. 2.º, prevê como missão do Comitê Olímpico Internacional o combate ao doping. Assim, para efetivar essa batalha, foi criada, em 1999 pela conferência de Lausanne, a Agência Mundial Antidoping (World Anti-Doping Agency – WADA), a qual é a instituição responsável por combater a dopagem esportiva.[13]

No ano de 2004 entra em vigor o Código Mundial Antidoping (World Anti-Doping Code), o qual procura preservar o espírito do esporte, o qual é a “celebração do espírito humano, corpo e mente”.[14] O Código apresenta os valores[15] que caracterizam o espírito esportivo, quais sejam: a) Ética, justiça e honestidade; b) Saúde; c) Excelência em performance; d) Caráter e educação; e) Lazer e diversão; f) Trabalho em equipe; g) Dedicação e comprometimento (compromisso); h) Respeito para as normas e regras; i) Respeito a si e a outros participantes; j) Coragem; l) Solidariedade e comunidade.[16]

Para uma efetivação da estratégia contra o doping não bastava a criação de um código, era necessário que os Estados unificassem-se em padrões uniformes de políticas de combate.[17]

Assim, não obstante os valores traçados pelo próprio Código, agregados aos já mencionados valores do espírito esportivo e do Olimpismo, em 2005 a Unesco elabora a Convenção Internacional contra o Doping no Esporte, o qual é “a mais importante normativa internacional sobre o tema”.[18] Deste modo, foi conseguido que os Estados signatários reconhecessem o Código Mundial Antidoping (WADC) como norte normativo a ser cumprido no escopo da proibição do doping, ou seja, de sua reprovação ética dentro do esporte.[19]

A convenção da Unesco, consciente de que o doping coloca em risco a ética e os valores incorporados à prática esportiva, debruça sua preocupação em três nortes: a preservação da saúde do atleta, a consolidação do fair play como valor e a eliminação da fraude e da trapaça no esporte.[20]

Para alcançar êxito em seus elementos objetivos, a convenção da Unesco afirma em seu art. 3.º que os Estados signatários devem adotar as medidas necessárias para cumprir com os objetivos, além de encorajar toda a cooperação e ajuda internacional estatal e de organismos contrários ao doping, em especial a Agência Internacional Antidoping (WADA) e que deverão promover o auxílio internacional na proteção da saúde dos atletas e da ética no esporte.[21]

Igualmente, no Capítulo II (arts. 7.º a 12), a convenção da Unesco apresenta diretrizes a serem adotadas pelos países signatários, entre as quais determina que os Estados deverão criar órgãos de combate, proibir o comércio, supervisionar os suplementos alimentares etc.

No mesmo sentido, o Código da WADA determina em seu art. 22 algumas diretrizes de cumprimento pelos Estados para que contribuam ao combate do doping, bem como para que cumpram certas políticas, sob pena de perda de eleição ou admissão de candidatura a eventos esportivos.[22]

Nesse contexto, o doping deixa de ser um problema exclusivo das entidades desportivas privadas e passa a ser de toda a coletividade, principalmente daqueles Estados que participam dos processos seletivos para sedes de olimpíadas, copas do mundo e demais etapas de campeonatos mundiais. Afinal, a não adoção de medidas apropriadas desabilita o país para a realização destes eventos, o que causaria diversos efeitos colaterais, não apenas esportivos, mas, principalmente, econômicos, políticos e sociais.

Desse modo, sendo o Direito a ordenação normativa das relações sociais, este é chamado a intervir na temática apresentada, não apenas em face do Brasil ser a próxima sede da copa do mundo de futebol, ou então a sede dos jogos olímpicos de 2016, mas também pelo fato de que habitualmente recebe etapas de outros campeonatos esportivos e, principalmente, em razão da filosofia ética do esporte e de seus impactos econômicos na sociedade.

De acordo com o Comitê Olímpico Brasileiro, “o aumento do uso de substâncias ou métodos proibidos, destinados a melhorar artificialmente o desempenho esportivo, motiva uma ação de combate intensa por parte de autoridades nacionais e internacionais”.[23] Portanto, “o objetivo é evitar uma vantagem desleal de um competidor sobre os demais, além de preservar os aspectos éticos e morais do esporte e, acima de tudo, a saúde do atleta”.[24] Destarte, o doping se torna um problema jurídico brasileiro.[25]

2. Atuação do Direito perante o esporte e o doping

2.1  A proteção ao desporto: aspectos normativos

A Constituição é a norma matriz de um Estado, pois ela se define como o “conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais”.[26]

Tal preceito integra o conteúdo material da Constituição, ou seja, aquelas normas e elementos mais importantes, sem os quais o modelo estatal adotado não sobrevive,[27] entre os quais é possível citar o rol dos direitos fundamentais previsto no extenso art. 5.º.

Entretanto, alguns textos constitucionais preferem por englobar em seu conteúdo outros elementos de importância secundária do ponto de vista constitucional, ou seja, conteúdos que só ganham o adjetivo de constitucionais em razão de um formalismo do legislador constituinte.[28] Caso contrário poderiam ser definidos em legislações secundárias, infraconstitucionais, as quais não alterariam seu fundamento, mas apenas e tão somente sua equiparação a conteúdo propriamente constitucional.

Ocorre que ao se abordar o assunto desporto, faz necessário, antes de qualquer outra análise, entender a abordagem jurídica pertinente ao assunto.

O esporte não está previsto no conteúdo puramente material da Constituição, isto é, não se reconhece como norma fundamental um direito à atividade esportiva. Reconhece-se, sim, um direito à saúde (na verdade, preocupa-se com a prestação de serviços a garantir um padrão saudável aos cidadãos), a qual está indiretamente ligada ao esporte.

De qualquer forma, o legislador constituinte de 1988, ao abordar a Ordem Social, optou por abranger o desporto como valor constitucional. Em outras palavras, ao buscar o bem-estar da coletividade, o Estado opta por definir no texto constitucional a inserção do desporto em equivalência à educação e à cultura.

No entanto, a norma contida no art. 217, inc. II, prevê claramente o caráter educacional do desporto, essencialmente quando houver intervenção estatal, pois, no item acima, o legislador reconhece a independência estatal das entidades desportivas dirigentes e associações quanto à sua organização e funcionamento.

Outrossim, o reconhecimento das organizações e entidades esportivas como autônomas e independentes de esfera privada está consubstanciado no art. 217, § 1.º, da CF. Portanto, a intervenção estatal no desporto deve ser apenas quando voltada ao fundamento educacional, enquanto que, sendo que na modalidade profissional, esta intervenção deve ser excepcional. Igualmente ao vínculo ao Poder Judiciário, o qual só deve ser usado quando a justiça desportiva (então instituída) tiver esgotado todas as suas instâncias.[29]

Assim, inicialmente, qualquer temática de raízes desportivas deve ser debatida e resolvida dentro da esfera da justiça desportiva, a qual abrange todas as entidades descritas no art. 1.º do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, devidamente instituído pela Resolução do Conselho Nacional do Esporte n. 1, de 23.12.2003, em obediência ao art. 11, inc. VI, da Lei 9.615, de 24.03.1998.

A alusiva lei dispõe normais gerais sobre o desporto, sendo importante ressaltar o conteúdo previsto em seu art. 3.º, o qual divide o desporto em três modalidades: educacional,[30] de participação[31] e de rendimento.[32]

O esporte de rendimento é dividido, ainda, em duas espécies: a) profissional, caracterizado pela remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva;[33] b) não profissional, identificado pela liberdade de prática e pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio.[34]

Esta segunda espécie, não profissional, é representada em algumas modalidades esportivas pelo termo “amador”. Esta palavra expressa bem a questão do esporte não profissional. Amador é derivado da palavra amor, sendo aceito como aquele que ama, ou seja, pratica o esporte por paixão e não apenas por motivos profissionais. São esses atletas, aliados aos esportistas de participação e de educação, que justificam todo o interesse do Estado em criar políticas públicas direcionadas à prática esportiva, pois são os valores alimentados por tais praticantes que desenvolvem o Olimpismo acima referenciado.

Nesse mesmo condão, a Lei 9.615/1998 dispõe em seu art. 2.º os valores adotados pelo desporto nacional:

“Art. 2.º O desporto, como direito individual, tem como base os princípios:

I – da soberania, caracterizado pela supremacia nacional na organização da prática desportiva;

II – da autonomia, definido pela faculdade e liberdade de pessoas físicas e jurídicas organizarem-se para a prática desportiva;

III – da democratização, garantido em condições de acesso às atividades desportivas sem quaisquer distinções ou formas de discriminação;

IV – da liberdade, expresso pela livre prática do desporto, de acordo com a capacidade e interesse de cada um, associando-se ou não a entidade do setor;

V – do direito social, caracterizado pelo dever do Estado em fomentar as práticas desportivas formais e não-formais;

VI – da diferenciação, consubstanciado no tratamento específico dado ao desporto profissional e não-profissional;

VII – da identidade nacional, refletido na proteção e incentivo às manifestações desportivas de criação nacional;

VIII – da educação, voltado para o desenvolvimento integral do homem como ser autônomo e participante, e fomentado por meio da prioridade dos recursos públicos ao desporto educacional;

IX – da qualidade, assegurado pela valorização dos resultados desportivos, educativos e dos relacionados à cidadania e ao desenvolvimento físico e moral;

X – da descentralização, consubstanciado na organização e funcionamento harmônicos de sistemas desportivos diferenciados e autônomos para os níveis federal, estadual, distrital e municipal;

XI – da segurança, propiciado ao praticante de qualquer modalidade desportiva, quanto a sua integridade física, mental ou sensorial;

XII – da eficiência, obtido por meio do estímulo à competência desportiva e administrativa”.

Todos esses valores suprarreferenciados só se justificam em razão da previsão do caput: “direito individual”, isto é, pertencente ao indivíduo. Tais valores realçam o preceito ético do esporte, reforçando os valores e ideais expressos pelo Olimpismo instituído de forma universal pelo Comitê Olímpico Internacional.

Dessa forma, a infração a estes preceitos resulta numa infração moral e ética, sem, inicialmente, conteúdo jurídico, mas vinculado apenas aos fundamentos da atividade desportiva.

Ocorre que o legislador optou, igualmente, por definir certos aspectos éticos à economicidade do desporto. Assim, no parágrafo único do remissivo dispositivo legal, incluído pela Lei 10.672/2003, está estatuído:

“A exploração e a gestão do desporto profissional constituem exercício de atividade econômica sujeitando-se, especificamente, à observância dos princípios:

I – da transparência financeira e administrativa;

II – da moralidade na gestão desportiva;

III – da responsabilidade social de seus dirigentes;

IV – do tratamento diferenciado em relação ao desporto não profissional; e

V – da participação na organização desportiva do País.”

Assim, o legislador padroniza o tratamento ético ao desporto, principalmente em seu aspecto econômico. Assim, por simples interpretação normativa, qualquer lesão à ética no esporte profissional representa uma infração econômica.

Este ponto será debatido neste mesmo trabalho em um segundo momento, fazendo-se necessário, agora, introduzir o doping neste cenário normativo.

2.2 Normas específicas sobre doping no ordenamento jurídico brasileiro

Ante a apresentação das normas legais pertinentes ao esporte, conclui-se que elas mantêm um elemento agregador que ora é chamado de ética, ora é chamado de Olimpismo, mas que no fundo possuem a mesma raiz axiológica: a preservação do espírito do esporte. Em síntese: o doping fere este espírito.

Conforme já relatado anteriormente, a convenção da Unesco, assim como o Código Mundial Antidoping (WADC), determinam que os Estados devem adotar políticas de combate ao doping em seus limites geográficos e colaborar com o combate internacional.

Nessa toada, por meio do Decreto Legislativo 306/2007, o Brasil ratificou sem ressalvas a convenção da Unesco, sendo que o instrumento de ratificação foi depositado pelo Brasil no dia 18.12.2007.[35]

Igualmente, o Decreto 6.653, de 18.11.2008, que promulga a Convenção Internacional contra o Doping nos Esportes, celebrada em 19.10.2005, impõe ao Brasil a adoção da Convenção e o seu fiel cumprimento. Destaca-se que os parâmetros desta Convenção são os mesmos utilizados no Código Mundial Antidoping (WADC).

A Resolução 2, de 05.05.2004, do Ministério do Esporte e do Conselho Nacional do Esporte define o doping como “a substância, agente ou método capaz de alterar o desempenho do atleta, a sua saúde ou espírito do jogo, por ocasião de competição desportiva ou fora dela”. Por intermédio da Resolução 29, de 10.12.2009, do Conselho Nacional do Esporte, é modificado o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, incluindo-se métodos de colheita e divulgação do resultado de exames.

Mas, afinal, o que é doping?

São as violações das regras antidoping especificadas no art. 2.º do Código Mundial Antidoping (WADC), que no Brasil estão expressas no Decreto 6.653/2008, em seu art. 2.º, item 3:

“‘Violação das regras antidoping’ nos esportes refere-se a uma ou mais das seguintes infrações:

(a) presença de alguma substância, de seus metabólitos ou de marcadores na amostra corporal de um atleta;

(b) uso ou tentativa de uso de uma substância proibida ou de um método proibido;

(c) recusa ou falha, sem justificativa criteriosa, a submeter-se à coleta de amostras após notificação conforme autorizado pelas regras antidoping aplicáveis, ou esquivar-se, de qualquer outra forma, do processo de coleta de amostras;

(d) violação das exigências aplicáveis, relativas à disponibilidade do atleta para realização de testes fora de competições, incluindo a falha em fornecer informações sobre seu paradeiro e o não comparecimento a testes que sejam declaradamente baseados em regras razoáveis;

(e) falsificação ou tentativa de falsificar qualquer etapa do controle de doping;

(f) posse de substância proibida ou método proibido;

(g) tráfico de qualquer substância proibida ou método proibido;

(h) administração ou tentativa de administração de uma substância proibida ou método proibido a um atleta, ou assistência, encorajamento, auxílio, incitamento, encobrimento ou qualquer outro tipo de cumplicidade envolvendo uma violação ou qualquer tentativa de violação de regra antidoping”.

A prática de qualquer uma das condutas supra-apresentadas representa a infração por doping. Tais normas exigem a atuação do Estado perante o problema, porém, de que forma? Em quais esferas? Quais os limites?

Certamente o Direito possui diversas modalidades de intervenção e controle dos problemas sociais, mas como a resposta para as perguntas apontadas anteriormente pode ser de natureza penal, passa-se a tratar do tema especificamente nesta seara.

3. O doping em Direito Penal

3.1 Missão do Direito Penal

O Estado, conforme definição de Dalmo de Abreu Dallari, é “a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”.[ref36] Partindo-se desse pressuposto, deve-se afirmar que o Estado possui a função de garantir as condições mínimas de existência, convivência e sobrevivência de seus cidadãos, ou seja, “serve para manter viva a sociedade”,[37] isto é, deve “regrar os processos comunicativos sociais”.[38]

Para tanto, o Estado se vale de diversos mecanismos, entre os quais as modalidades normativas sancionatórias, as quais impõem uma “certa obediência, certo respeito”.[39] O desenvolvimento do poder punitivo estatal está vinculado à própria concepção de ser perante a sociedade. A evolução da sociedade, desde os agrupamentos sociais precários até os atuais modelos estatais, sempre dependeu da propositura de regras que servissem como elementos vinculativos entre os indivíduos para que aqueles que não o aceitassem saíssem do grupo ou então fossem excluídos.

As principais regras de convívio da sociedade se dão por normas comportamentais, as quais estão associadas ou predeterminadas em previsões legislativas que representam o conjunto de valores e interesses de dada coletividade. Essa sociedade caracterizada por normas de comportamento “constitui uma cultura reveladora dos valores básicos admitidos como objetivos consagrados pelo meio social”.[40] Assim, “toda norma jurídica assinala uma tomada de posição perante os fatos em função tensional de valores”.[41]

Diante dessa concepção, conclui-se que a pessoa humana é o centro do sistema valorativo,[42] isto é, “o Direito e o Estado existem para servir à pessoa”.[43] Dentro do Estado constitucionalizado, em especial o brasileiro, a proteção e o reconhecimento da dignidade humana é norte fundamentador do existir do ente estatal (art. 1.º, inc. III, da CF).[44]

Em outras palavras, o ser humano, como indivíduo (cidadão), “só é em relação aos demais”,[45] pois “se não houver o outro para que haja a comunicação e a identificação do que se é, não haveria ser. Desta forma, pode-se dizer que o ser só se identifica enquanto sujeito porque contraposto em relação ao outro”.[46]

Este preceito não poderia expressar outra conotação, pois “o homem sempre aparece em sociedade interagindo de maneira muito estreita com outros homens”,[47] sendo que destas relações sempre advém diversos conflitos valorativos, os quais acabam, de certa forma, configurando a estrutura de poder incidente em uma sociedade.[48]

Assim, para assegurar a proteção ao próprio homem (como integrante do grupo social – ser) é que o legislador, ao editar as leis, ocupa-se, entre outras coisas, de exercer o controle social; porém, não é apenas a norma jurídica contida na lei que desempenha tal função. A escola, a religião, o sistema laboral, as organizações sindicais, os partidos políticos, a educação familiar, as mensagens emitidas pelos meios de comunicação, o entorno no qual se desenvolvem as relações sociais etc. são outras modalidades de exercício do controle.[49]

Este processo normativo-sancionatório, ainda que diversas vezes seja composto apenas de normas sociais,[50] que incide sobre o viver em sociedade, denomina-se controle social, ou seja, é o garantidor do viver em sociedade, pois “assegura os limites da liberdade humana na rotina da vida cotidiana e é um instrumento de aprendizagem cultural e de socialização dos membros do grupo ou da sociedade”.[51] Em outras palavras, ele é indispensável à existência coletiva.

O controle social institucionalizado possui níveis de atuação, sendo que as leis penais são seu pináculo punitivo. Este fenômeno representa o modelo social adotado, ou seja, se a sociedade está submetida a uma estrutura autoritária ou democrática.[52] Desta forma, as leis penais “contêm uma norma que pode ter característica proibitiva ou mandamental, permissiva, explicativa ou complementar”,[53] sendo que seu objetivo geral é “regrar os processos comunicativos sociais”.[54]

Contudo, este controle excepcional (ultima ratio/subsidiário) só está legitimado a atuar quando indispensável à manutenção e preservação dos valores fundamentais à sobrevivência humana, ou seja, aquelas “circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos”.[55]

Isto se dá em razão de que o Direito Penal age na sociedade de forma violenta e, muitas vezes, carregada de efeitos não tão desejáveis,[56] como, por exemplo, a própria existência do condenado, arrastando-o para a margem da sociedade.[57]

É pela própria ideia de controle subsidiário que os cidadãos repassam ao Estado o dever de manter a sociedade.[58] Este controle subsidiário é a missão do Direito Penal a qual se expressa pela famosa receita da proteção de bens jurídicos[59]

A dificuldade de conceituação de bem jurídico é cediça e indiscutível. Ao discorrer sobre o conceito de bem jurídico, Günter Stratenwerth chega a elencar 11 conceitos diferentes de jurista de reputação e renome indiscutíveis.[60] No entanto, em um ponto a supra maioria concorda: o bem jurídico ainda é um conceito necessário.[61]

Outro consenso entre os doutrinadores que merece destaque é de que “somente os bens mais importantes para a convivência dos indivíduos em sociedade podem ser tomados como referência para a elaboração de uma norma penal incriminadora”.[62]

Para Knut Amelung, o especial valor do conceito de bem jurídico consiste na possibilidade de tradução (interpretação) dentro de um sistema jurídico, isto é, como se interpreta o Direito Penal, na determinação com outras áreas do direito, no controle de sua compatibilidade com a Constituição (princípio da proporcionalidade) e na discussão político-jurídica.[63]

Assim, o conceito de bem jurídico expressa a relação que se adotará entre o Estado monopolista do jus puniendi e os cidadãos, simultaneamente, sujeitos e objetos do exercício punitivo estatal.

Impera-se repetir que “o Estado existe para o indivíduo (...) de sorte que ele só pode ser concebido como garantidor da liberdade/dignidade do homem. É meio e não fim”.[64] Afinal de contas, o homem, como personalidade de direitos, “se situa no centro de toda ordem e atividade estatal, cumprindo ao poder público garantir e proteger sua dignidade”.[65] Como bem ressalta Winfried Hassemer, a tutela penal desvinculada da adoção de bens jurídicos constitui-se terror estatal, uma restrição da liberdade de agir despida de qualquer fundamento.[66]

Winfried Hassemer defende uma teoria pessoal do bem jurídico. De tal modo, afirma que os bens jurídicos podem ser conceituados como “interesses humanos que carecem de proteção penal”.[67] Em outras palavras, significa que a tutela penal é limitada “até onde ela for condição da possibilidade de proteção de pessoas humanas”.[68]

No mesmo sentido é o entendimento de Detlev Sternberg-Lieben, o qual afirma que “esta teoria pessoal de bem jurídico reflete corretamente a relação entre um indivíduo e a sociedade estabelecida pela ordem de valores da Lei Fundamental para o âmbito penal”.[69] Tal postura garante a construção de um Direito Penal orientado ao valor fundamental do sistema jurídico: a pessoa (indivíduo).[70]

Segundo Juarez Tavares, a vinculação do bem jurídico às origens e finalidades pessoais “constituem uma garantia de respeito ao indivíduo de que sua liberdade não será molestada por supostas adoções de políticas públicas, em âmbito administrativos, econômicos ou sociais, ou para finalidades eleitorais”.[71]

O posicionamento apresentado é concordante à teoria pessoal do bem jurídico proposta por Hassemer. Todavia, muitos doutrinadores criticam tal doutrina, afirmando que ela não seria capaz de tutelar bens jurídicos coletivos, o que não é verdade. Afinal, a proteção penal deve incidir sobre esses bens jurídicos, com a condição de que sejam tutelados a partir da pessoa humana, tomando-se por base os interesses dos indivíduos,[72] ou seja, deve-se adotar uma teoria monista personalista.[73]

Concluindo-se que a função do Direito Penal é exercer o controle social do intolerável pela seleção fragmentária de bens jurídicos essenciais às relações humanas,[74] passa-se à análise do possível bem jurídico a ser tutelado em uma modalidade criminosa do doping.

3.2  O doping é capaz de lesionar algum bem jurídico-penal?

Diante da análise da necessidade de lesão ou exposição a risco de um bem jurídico, qual seria afetado pela prática do doping?

Sobre essa questão, Claus Roxin e Luis Greco já debruçaram um completo estudo apresentando seus entendimentos sob a possibilidade de se tutelar penalmente o doping.[75] Roxin, ao fazer um estudo sobre a legislação penal alemã antidoping, afirma que o tipo penal germânico adota apenas valores e não propriamente bens jurídicos, motivo pelo qual não merece a atenção da área penal.[76] Por sua vez, Greco afirma que “é ideologicamente suspeito recorrer às necessidades de um corpo social para restringir a posição dos indivíduos”.[77]

No mesmo passo, punir o doping apenas em razão de proteger a própria saúde dos atletas cairia no famoso adágio “autolesão não é crime”. Tal motivação não é suficiente, por isso realça-se, com Greco, que tal prática paternalista do Estado interfere na esfera individual da pessoa de forma excessiva, contrária ao Direito Penal liberal.[78]

Greco ainda questiona sobre a possibilidade da tutela da saúde de terceiros, que consistiria no fato de que um atleta que se dopa acaba por gerar um efeito cascata, induzindo o adversário a se dopar igualmente. Este argumento é rebatido pela relação entre coação e violência estrutural.[79]

Ambos os autores acabam por concordar na tutela penal do doping por intermédio da identificação do bem jurídico “concorrência”. Isto se daria em razão da adoção de valores econômicos ao esporte profissional.[80] Em que pese o entendimento destes renomados autores, a finalidade econômica do esporte não justifica a intervenção penal.

Por tal postura estar-se-ia adotando uma vertente puramente patrimonial do esporte, forçando a atuação penal a uma missão diversa dos valores e experiências sociais expressos no desporto.

A concorrência econômica não possui vinculação aos valores econômicos do esporte, uma vez que o Direito da Concorrência pode ser apresentado como “o ramo do Direito Penal-econômico que disciplina as relações de mercado entre os agentes econômicos e os consumidores, tutelando-lhes, sob sanção, o pleno exercício do direito à livre concorrência como instrumento da livre iniciativa, em prol da coletividade”.[81] Assim, “visa a defesa da concorrência, como um valor em si mesmo, ou seja, de um ‘processo’ destinado a coibir condutas abusivas de mercado, e preservar a multiplicidade de opções como instrumento de proteção dos consumidores contra a prática de preços supracompetitivos”.[82]

Se for reconhecida essa faceta concorrencial, o espectador deixa de ser torcedor ou admirador do esporte e assume uma posição de consumidor, porém não na expressão sociológica de Zygmunt Bauman,[83] mas sim na concepção jurídica do termo como destinatário final de um serviço ou produto (art. 2.º do Código de Proteção e Defesa do Consumidor).

Ao comprar o ingresso para um jogo, o espectador não é destinatário final de produto ou serviço, pois se o fosse, estaria vinculado ao resultado final, quer dizer, compraria o resultado da partida. Isso em razão de as relações de consumo serem relações finalistas, e não “de meio”.

Ademais, esta concepção concorrencial do doping converteria os atletas em agentes econômicos, de preceitos puramente racionais, convertendo o campo da prática esportiva em mercado financeiro. Não torceríamos mais para o atleta que gostamos, mas sim para àquele que nos fosse mais vantajoso economicamente.

Outrossim, essas situações também derivariam de circunstâncias puramente contratuais, sobre as quais seria inadequado aplicar o Direito Penal.[84]

Outro ponto que merece destaque ainda em razão da postura econômica do doping, é o posicionamento de Roxin que defende a inserção deste tipo apenas aos atletas de rendimento profissional. No entanto, não são apenas estes que vivem às expensas do esporte. O atleta amador (de rendimento não profissional) também sobrevive de suas atividades desportivas, mesmo que não seja no mesmo patamar dos atletas de alto nível.

Um bom exemplo dessa afirmação é o caso dos boxeadores olímpicos, modalidade não profissional do esporte. Pela postura apresentada, seria aceitável punir um boxeador dopado que atua pela Associação Mundial de Boxe, mas não se puniria um atleta de mesmo nível, porém vinculado às normas do Comitê Olímpico Internacional que o impedem de se profissionalizar para disputar a medalha olímpica.[85]

Esta postura é contrária aos valores que o COI e a WADA defendem como fundamentais ao esporte. O esporte se funda em valores, sejam aqueles elencados pela Carta Olímpica, ou então os constantes no WADC, ou, em atenção especial, aqueles constantes no ordenamento jurídico pátrio.

Relembremos que tais valores possuem conotação ética,[86] e em razão disso devem ser cumpridas,[87] mas não necessariamente pela intervenção jurídica.

Mister reconhecer que o doping possui como bem jurídico a sua própria moralidade ética, a qual (ad argumentandum tantum) possuiria o caráter de bem jurídico-penal coletivo e seria aplicável a ela a teoria monista personalista para a proteção da pessoa. Afinal de contas, o Olimpismo possui o objetivo de desenvolver a própria pessoa.

No entanto, “meras concepções morais ou idéias de ordem, ainda que partilhadas por toda a sociedade, não merecem uma valoração penal”,[88] sob a consequência de deturpar a missão do Direito Penal, motivo pelo qual, afirma-se: nenhuma das modalidades de prática antidoping previstas no decreto são capazes de oferecer uma modalidade penal de tutela destes valores, em razão de serem propriamente valores éticos.

Frisa-se que nem por isso devem-se abandonar por completo os valores e as experiências sociais. Estes fazem uma constante troca de informações com o Direito, sendo que “ao procurar compreender a norma jurídica, ou seja, ao querer determinar o alcance da prescritividade valorativa inerente à formula legal objetivada, o intérprete refaz, de certa forma, o caminho do legislador: vai da norma ao fato, mas tendo presentes os fatos e valores que condicionaram o aparecimento desta, bem como fatos e valores superveninentes”.[89]

Evidencia-se que o grande impasse dogmático penal incide sobre a criminalização primária, ou seja, na gênese da norma penal, momento em que o legislador, “no ato de determinar a estrutura conceitual de um novo delito, teve presentes um fato típico, considerado lesivo de um bem ou valor jurídico, e, como tal, normativamente reprovável”.[90]

“Se transpusermos o mesmo raciocínio para o momento da aplicação da regra penal, veremos que só há crime quando um fato (que pode ser um ato situado como acontecimento delimitado em uma certa relação espaciotemporal) é lesivo de um bem jurídico, segundo os valores vigentes em dado ciclo histórico, e é considerado axiologicamente negativo (antijuridicidade como dimensão axiológica objetiva do fato) e, como tal, reprovável e punível segundo a norma determinadora das razões e limites de culpabilidade”.[91]

Desta forma, não é devido afirmar que o legislador constrói o bem jurídico, ele apenas reconhece o status,[92] afinal de contas ele preexiste à construção normativa, sendo objeto da escolha do legislador enquanto valor digno de tutela, seja penal, seja no âmbito administrativo.[93] O bem jurídico “exerce, na esfera da Política Legislativa, importante função ao orientar o legislador na decisão de qual conduta deve ser reprimida por meio da ameaça penal”,[94] sendo certo que quando houver outras possibilidades de abordagem normativa, sem exigir a ultima ratio, elas devem ser utilizadas, garantindo-se, não apenas a integridade do Direito Penal, mas de todo o ordenamento jurídico.

Observando todos os valores que o esporte expressa, seja pelo Olimpismo ou pelas determinações legais da Carta Olímpica, do Código Mundial Antidoping ou até mesmo pelo Decreto 6.653/2008, depara-se que a medida jurídica a efetivar um combate ao doping deve se dar por políticas públicas de conscientização em massa (medidas administrativas), além de incentivar a justiça desportiva a aplicar multas, rescisões contratuais e outros procedimentos da área cível, administrativa e, se for o caso, trabalhista, porém não deve se utilizar o Direito Penal, sob risco de ele se converter em instrumento meramente simbólico.

4. Conclusão

O Olimpismo e os valores do desporto previstos no Decreto 6.653/2008 são princípios de significante vinculação aos relacionamentos humanos, seja na esfera profissional, seja na esfera recreativa.

O esporte faz exsurgir emoções muitas vezes ignoradas no viver cotidiano. Sempre nos flagramos torcendo por algum azarão, ou então sonhando com aqueles momentos de glória no campinho do bairro Tupanci que Carlos Moraes eternizou em seu famoso romance infanto-juvenil.[95]

O esporte transmite a força de vontade, força de viver, força de lutar, força de vencer... Desperta nos seres humanos a admiração pelos feitos, o ímpeto pelo inalcançável, a beleza do corpo e o sonho do impossível. Expressa nos seres humanos a tragédia grega por excelência. Cria nos homens o desejo “icariano” de alcançar o sol. Em outras palavras, o esporte converte a sociedade em sua expressão mais antropocêntrica possível.

Mas suas conjecturas, por mais nobres que sejam, não são bens jurídicos merecedores de tutela penal, haja vista que não representam valores essenciais à vida humana, isto é, a ausência de punição do doping não impede que a sociedade continue existindo.

Sua punição na esfera penal representaria a construção de um Direito Penal silente ao bem jurídico, o qual “permite que leis penais sejam editadas de forma totalmente assistêmica, visando apenas atender demandas muitas vezes postas por pressão da mídia”,[96] a qual gosta de expor a vida dos atletas, desmistificando-os e “humanizando” seus feitos imbatíveis que lhes transformavam em semideuses.

Por tal motivo, conclui-se que a intervenção estatal no auxílio ao direito desportivo para combater o doping é necessário, contudo não se deve utilizar o pináculo punitivo estatal para tal proeza.

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Décio Franco David

Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).

Professor de Direito Penal das Faculdades Integradas de Itararé (FAFIT) e do Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais (CESCAGE).

Advogado.

[1] Hobbes, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2009.

[2] Feito alcançado pela primeira vez por Jim Hines em 1968. Atualmente, o recorde da prova pertence ao jamaicano Usain Bolt, que realizou o percurso em 9,58 segundos em Berlim, no dia 16 de agosto de 2009.

[3] Fundamental Principles of Olympism, item 1. Olympic Charter.Disponível em: , p. 10.

[4] Idem, item 2.

[5] Idem, itens 4 e 6.

[6] Preamble of Olympic Charter. Disponível em: . p. 9.

[7] Unesco. Preâmbulo. Convenção internacional contra o Doping no Esporte. Disponível em: < http://portal.unesco.org>.

[8] Faixa 9 do álbum “Nádegas a Declarar”, pela gravadora Sony Music, 2002.

[9] Roxin, Claus. Doping e direito penal. In: Roxin, Claus et al. Doping e direito penal. São Paulo: Atlas, 2011. p. 31

[10] Aquino Neto, Francisco Radler. O papel do atleta na sociedade e o controle de dopagem no esporte. Revista Brasileira de Medicina no Esporte, v. 7, n 4. p. 138-148, Niterói, jul.-ago. 2001. Disponível em: .

[11] Radbruch, Gustav. Filosofia do direito. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 49.

[12] v. 1. Referência inteira: DE ROSE, Eduardo Henrique; NOBREGA, Antonio Claudio Lucas da. Drogas lícitas e ilícitas. In: GHORAYEB, Nabil; BARROS NETO, Turibio Leite de (org). O exercício: preparação fisiológica, avaliação médica e aspectos especiais e preventivos. São Paulo: Atheneu, 1999, p. 395-405.

[13] Leite, Alaor. O doping como suposto problema jurídico-penal: um estudo introdutório. In:Roxin, Claus et al. Doping e direito penal. São Paulo: Atlas, 2011. p. 2.

[14] World Anti-Doping Code, 2009, p. 14. Disponível em .

[15] Conteúdo previsto nos fundamentos para o Código Mundial Antidoping. World Anti-Doping Code, 2009, p. 14.

[16] No sentido de compartilhamento.

[17] Leite, Alaor. Op. et loc. cits.

[18] Idem, ibidem.

[19] Idem.

[20] Unesco. Preâmbulo. Convenção… cit.

[21"> “Article 3 – Means to achieve the purpose of the Convention

In order to achieve the purpose of the Convention, States Parties undertake to:

(a) adopt appropriate measures at the national and international levels which are consistent with the principles of the Code;

(b) encourage all forms of international cooperation aimed at protecting athletes and ethics in sport and at sharing the results of research;

(c) foster international cooperation between States Parties and leading organizations in the fight against doping in sport, in particular with the World Anti-Doping Agency.”

[22] “Art. 22.6 Failure by a government to ratify, accept, approve or accede to the Unesco Convention by January 1, 2010, or to comply with the Unesco Convention thereafter may result in ineligibility to bid for Events as provided in Articles 20.1.8 (International Olympic Committee), 20.3.10 (International Federation), and 20.6.6 (Major Event Organizations) and may result in additional consequences, e.g., forfeiture of offices and positions within WADA; ineligibility or non-admission of any candidature to hold any International Event in a country, cancellation of International Events; symbolic consequences and other consequences pursuant to the Olympic Charter.”

[23] Disponível em: .

[24] Idem.

[25] Leite, Alaor. Op. cit., p. 15.

[26] Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 80.

[27] Idem, p. 80-81.

[28] Idem, p. 81.

[29] “Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II – a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III – o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;

IV – a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1.º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2.º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3.º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.”

[30] Definido como aquele “praticado nos sistemas de ensino e em formas assistemáticas de educação, evitando-se a seletividade, a hipercompetitividade de seus praticantes, com a finalidade de alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer” (art. 3.º, inc. I, Lei 9.615/1998).

[31] Compreendido como as modalidades desportivas praticadas com a finalidade de contribuir para a integração dos praticantes na plenitude da vida social, na promoção da saúde e educação e na preservação do meio ambiente (art. 3.º, inc. II, Lei 9.615/1998).

[32] Definido como aquele que objetiva resultados e integrar comunidades e comunidades brasileiras, bem como estas com outras internacionais (art. 3.º, inc. III, da Lei 9.615/1998).

[33] Art. 3.º, parágrafo único, inc. I, da Lei 9.615/1998.

[34] Art. 3.º, parágrafo único, inc. II, da Lei 9.615/1998.

[35] Leite, Alaor. Op. cit., p. 4.

[36] Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 118.

[37] Busato, Paulo César. Por que, afinal, aplicam-se penas? In: Schmidt, Andrei Zenkner. Novos rumos do direito penal contemporâneo – Livro em homenagem ao Prof. Dr. Cezar Roberto Bittencourt. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 518.

[38] Busato, Paulo César; Huapaya, Sandro Montes. Introdução ao direito penal – Fundamentos para um sistema penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 111.

[39] Reale, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 721.

[40] Reale Júnior, Miguel. Instituições de direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 3.

[41] Reale, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 98.

[42] Costa, Helena Regina Lobo da. Proteção penal ambiental. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 5.

[43] Idem, ibidem.

[44] Sarlet. Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 43.

[45] Silva, Eduardo Sanz de Oliveira e. Direito penal preventivo e os crimes de perigo. In: Costa, José de Faria (coord.). Temas de direito penal económico. Coimbra: Coimbra Ed. 2005. p. 254.

[46] Idem, ibidem.

[47] Zaffaroni, Eugenio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Parte geral. 8 ed. São Paulo: RT, 2009. v. 1, p. 58.

[48] Idem, ibidem.

[49] Busato, Paulo César; Huapaya, Sandro Montes. Op. cit., p. 111. No mesmo sentido: Reale Júnior, Miguel. Instituições... cit., p. 3-11, passim; Zaffaroni, Eugenio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Op. cit., p. 59.

[50] Sobre este assunto Francisco Muñoz Conde e Winfried Hassemer afirmam que a vida cotidiana, assim como o Direito Penal, está dominada por normas e nelas se impõe sanções em caso de desviação normativa (normas e sanções sociais). Assim, apresentam como exemplo de normas sociais: “regras de moda em determinadas situações, proibições de falar muito alto ou muito baixo; de rir ou de cuspir no chão; cumprimentar o anfitrião; não molestá-lo por muito tempo; regras pragmáticas sobre o conversar; ordens de responder a determinadas ofensas; proibição de bater nos filhos”. Continuam ainda, com os exemplos de sanções sociais: “ridículo, difícil silêncio dos companheiros diante uma palavra inadequada; forma de privação de carinho pelos pais; advertências escolares; interrupção dos contatos sociais”. Para estes autores o fundamento de toda relação sancionatória é o desvio da norma: “toda sanção leva implícita a advertência de que voltará a se impor se se comete, no futuro, outro desvio normativo (...). O desvio mantém viva a norma, protegendo-a para que não se torne obsoleta , seja esquecida, vista como supérflua ou em objeto; mas sobretudo a sanção é a que expressa sua vigência; só que esta sanção só se impõe quando se infringe” (Muñoz Conde, Francisco; Hassemer, Winfried. Introdução à criminologia. 2. tir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 247-248).

[51] Idem, p. 248.

[52] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Op. cit.,p. 59. Segundo Muñoz Conde e Hassemer, “As normas que se estabilizam com o controle social configuram a imagem do grupo ou da sociedade” (op. cit., p. 249).

[53] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. vol. 1, p. 112.

[54] Busato, Paulo César; Huapaya, Sandro Montes. Op. cit., p. 111.

[55] Roxin, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 18.

[56] Busato, Paulo César; Huapaya, Sandro Montes. Op. cit.,p. 42.

[57] Roxin, Claus. A parte geral do direito penal material. In:Roxin, Claus et al. Introdução ao direito penal e ao direito processual penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 8. Miguel Reale Júnior também tece uma crítica exemplar a respeito ruptura com o mundo social e a inserção do indivíduo num novo ordenamento social (Instituições... cit., p. 330-331).

[58] Idem, ibidem.

[59] Paschoal, Janaína Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: RT, 2003. p. 21.

[60] Stratenwerth, Günther. Sobre o conceito de “bem jurídico”. In: Greco, Luís; Tórtima, Fernanda Lara. O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 102-103. Destaca-se que a postura deste autor é crítica quanto à teoria dos bens jurídicos (Sobre o assunto: Greco, Luís. Modernização do direito penal, bens jurídicos coletivos e crimes de perigo abstrato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 10-12).

[61] Santos, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007. p. 14.

[62] Raposo, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011. p. 106.

[63] Amelung. Knut. O conceito de bem jurídico na teoria jurídico-penal da proteção de bens jurídicos. In: Greco, Luís; Tórtima, Fernanda Lara. O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 122.

[64] Prado, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e Constituição. 4. ed. São Paulo: RT, 2009. p. 80.

[65] Idem, ibidem.

[66] Hassemer, Winfried. ¿Puede haber delitos que no afecten a um bien jurídico penal? In: Hefendehl, Roland. La teoria del bien jurídico: ¿Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, p. 103

[67] Hassemer, Winfried. Linhas gerais de uma teoria pessoal do bem jurídico. In: Greco, Luís; Tórtima, Fernanda Lara (org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 21.

[68] Hassemer, Winfried. Op. et loc. cits. Idem, p. 21

[69] Sternberg-Lieben, Detlev. Bien jurídico, proporcionalidad y libertad del legislador penal. In: Hefendehl, Roland. La teoria del bien jurídico: ¿Fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, p. 109.,2007

[70] Idem, p. 110.

[71] Tavarez, Juarez. E. X. Bien jurídico y función en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004. p. 53.

[72] Hassemer, Winfried.Linhas gerais...., p. 25.

[73] Busato, Paulo César; Huapaya, Sandro Montes. Op. cit., p. 67-68.

[74] Busato, Paulo César. Por que, afinal... cit., p. 519-522.

[75] Doping e direito penal. São Paulo: Atlas, 2011 (obra em coautoria com Alaor Leite).

[76] Roxin, Claus. Doping... cit., p. 39.

[77] Greco, Luis. Sobre a legitimidade da punição do autodoping nos esportes profissionais. In: Roxin, Claus. Doping... cit., p. 55. Continua ainda o autor: “a compreensão organicista da saúde pública não é ontologicamente, mas sim politicamente inaceitável; a compreensão individualista, por sua vez, é politicamente irrepreensível, mas conduz, por sua vez, ao desaparecimento do aspecto coletivo. Esse dilema coloca às claras a razão pela qual se deve concordar cm a crítica à noção de saúde pública. A idéia tem de perder sua majestade até no seu próprio reino – o Direito Penal das drogas – de forma que suas pretensões imperialistas de expansão ao Direito Penal desportivo têm de ser ainda mais decididamente rechaçadas” (idem, p. 55-56).

[78] Idem, ibidem.

[79] “A razão decisiva para recusar o argumento se revela ao compararmos afigura do atleta com as figuras do acusado e do doente psiquiátrico. É possível fala em coação estrutural apenas com relação aos últimos, e não com relação ao primeiro, porque situações de coação estrutural são aquelas nas quais o indivíduo é simplesmente colocado, e não aquelas nas quais ingressa livremente. O acusado é acusado por alguém, o doente psiquiátrico é submetido a tratamento. Ao contrário, nas modernas democracias livres, ninguém é obrigado a tornar-se atleta. A participação no mundo dos esportes é uma decisão livre. Noutras palavras: o ingresso livre numa estrutura coatora retira da estrutura o seu caráter coator” (idem, p. 64).

[80] Op. cit., p. 44-47 e p. 77-78.

[81] Franceschini, José Inácio Gonzaga. Introdução ao direito de concorrência. RBCCrim, São Paulo: RT, ano 4, n. 14, p. 220, abr.-jun. 1996. José Inácio Gonzaga Franceschini expõe que a doutrina diverge quanto à classificação do regime jurídico da concorrência, sendo possível classificá-la nos seguintes ramos: Direito Administrativo, Direito Econômico e Direito Penal-Econômico, tendo sob sua ótica a classificação como ramo do Direito Penal Econômico (loc. cit.). Já para Isabel Vaz, “Os princípios diretores da legislação penal são informados por valores distintos daqueles aplicáveis à legislação sobre a concorrência empresarial” (Vaz, Isabel. Direito econômico da concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 271). Ainda, segundo esta mesma autora, a legislação antitruste não é compatível com o Direito Penal (idem, p. 273). Onofre Sampaio em trabalho sobre a Lei de Defesa da Concorrência afirma que o conteúdo da norma tem “se integrado aos ramos do direito penal, do direito administrativo, do direito civil e dos direitos difusos”, concluindo que na competência repressora, a alusiva legislação possui natureza penal e, simultaneamente, natureza repressora administrativa (Sampaio, Onofre. As dificuldades e a praticidade na aplicação da legislação de defesa da concorrência. In: Reale, Miguel et al. Experiências do direito. Campinas: Milennium, 2004. p. 168-189). Neste trabalho é adotada a posição de José I. G. Franceschini, a qual pode ser aprofundada por diversos artigos de sua autoria, todos disponíveis no site .

[82] Idem, p. 228. Segundo Franceschini, “a finalidade e propósito do Direito de Concorrência é a eficiência econômica, em benefício do consumidor, tutelando um bem jurídico da coletividade” (op. cit., p. 253-254). Destaca-se, porém, que a eficiência, seja ela adotada pelo teorema de Pareto ou pelo teorema de Kaldor-Hicks, não possui qualquer idoneidade para o aspecto punitivo do doping no esporte, tanto na seara administrativa quanto na seara penal. Em outras palavras, o parâmetro não possui ligação material.

[83] Bauman afirma que a sociedade atual é uma sociedade líquida, na qual “as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que o necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas de agir”, de tal modo que a vida se torna líquida, isto é, “não pode manter a forma ou permanecer por muito tempo”, motivo pelo qual afirma que “a vida líquida é uma vida de consumo. Ela projeta o mundo e todos os seus fragmentos animados e inanimados como objetos de consumo” (Bauman, Zygmunt. Vida líquida. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 7 e 16).

[84] Roxin, Claus. A parte geral, p. 7.

[85] Alaor Leite afirma que “sustentar o tipo penal de doping, por ex., na proteção à saúde individual dos atletas e apenas punir a conduta no interior de competições esportivas oficiais, significa dizer que a saúde do atleta profissional possui maior valor para o Direito Penal do que a saúde daquele atleta que pratica esportes por lazer” (op. cit., p. 14).

[86] Greco, Luís. sobre a legitimidade da punição do autodoping nos esportes profissionais... p. 65.

[87] Reale, Miguel. Lições Preliminares... ,p. 72.

[88] Hassemer, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 36.

[89] Reale, Miguel. Teoria Tridimensional... p. 113.

[90] Reale, Miguel. Preliminares ao estudo da estrutura do delito. Revista da Faculdade de Direito, São Paulo: Universidade de São Paulo, v. 63, p. 158, 1968.

[91] Idem, p. 158-159.

[92] D’Avila, Fábio Roberto. Aproximações à teoria da exclusiva proteção de bens jurídicos no direito penal contemporâneo. RBCCrim, São Paulo: RT, ano 17, n. 80, p. 21, set.-out. 2009. Nas palavras do autor: “os bens jurídico-penais não são – ou, ao menos, não devem ser – criados pelo direito. A difícil tarefa do direito penal não está,definitivamente, na sua produção, mas no seu adequado ‘reconhecimento’”.

[93] Reale Júnior, Miguel. Despenalização no direito penal econômico: uma terceira via entre o crime e a infração administrativa? RBCCrim, São Paulo: RT, ano 7, n. 28, p. 121, 1999.

[94] Idem, p. 122.

[95] MORAES, CARLOS. A vingança do Timão. 2. ed. São Paulo: Quinteto Editorial, 1987, 151 p. A obra foi vencedora do prêmio Jabuti de 1981, na Categoria Literatura Juvenil.

[96] Paschoal, Janaína Conceição. Op. cit., p. 40.

ARTIGO
Legítima defesa “simbólica”? Ao mesmo tempo, sobre a valência da lógica dos lugares inversos
Data: 24/11/2020
Autores: Bruno Moura

Resumo: O artigo discute a exigência de “idoneidade” na legítima defesa e situa a chamada “legítima defesa simbólica” no marco do simbolismo em Direito Penal. Com base na ideia de proteção de bens jurídicos, o estudo define o específico valor de resultado da defesa e formula um critério liberal de mínima eficiência atento às dificuldades do defensor.

Abstract: The article discusses the requirement of “aptness” in self-defense and places the called “symbolic self-defense” in the context of symbolism in Criminal Law. Based on the idea of legal goods protection, the study defines the specific value of the result of defense and formulate a liberal criterion of minimum efficiency aware of the difficulties of defender.

Palavras-chave: Direito Penal – Legítima defesa inidônea – Simbolismo – Comunicação.

Keywords: Criminal Law – Inapt self-defense – Symbolism – Communication.

Sumário: 1. O problema – 2. Os “simbolismos” no Direito (Penal) – 3 A legítima defesa como ato de resistência? – 4. Pormenores sobre a idoneidade defensiva – 5. Conclusão – 6 Referências bibliográficas.

1. O problema[1] -[2]

Como causa justificante de um comportamento à primeira vista ilícito, a legítima defesa (art. 25 do CPB, art. 32 do CPP e § 32 do StGB) é o ato necessário para repelir uma agressão antijurídica atual a bens jurídicos próprios ou alheios.[3] Nas últimas décadas, a dogmática da legítima defesa vivenciou um enérgico debate sobre as “restrições ético-sociais”.[4] Em dias mais recentes, o mesmo ardor reflexivo alcançou a “necessidade” do ato defensivo. Particularmente, as situações nas quais o defensor não dispõe de qualquer possibilidade de defesa eficaz “até hoje não conduziram a qualquer solução satisfatória”.[5] Pois ao contrário da exigência do “meio relativamente mais suave”,[6] o elemento “aptidão” (Eignung) ou “idoneidade” (Geeignetheit)[7] da defesa segue negligenciado na doutrina.[8] Entre nós, o descuido fica ainda mais evidente.[9]

O problema fundamental neste terreno – como revela, mesmode passagem, uma interessante decisão do BGH[10] – reside em saber se o juízo de necessidade pressupõe a aptidão da conduta para repelir a agressão ilícita ou se o efeito justificante deve ser reconhecido quando o defensor estiver em uma situação “sem saída” e recorrer a uma defesa “inútil” ou “em vão”.[11] Ainda hoje, a resposta a esta questão segue “controvertida”.[12] Se afirmada – na trilha do entendimento dominante[13] – a relação de inerência, a tentativa de rechaço carente de aptidão para afastar a agressão ilícita não contará com a cobertura da legítima defesa – nem mesmo com os efeitos dos estados de necessidade justificante e exculpante,[14] embora o autor talvez usufrua analogicamente da desculpa oferecida nos termos da norma do excesso astênico (§ 33 do StGB, art. 33 do CPP e supralegal no CPB).[15] Esta concepção impõe ao “debilitado defensor” uma dura realidade: se não reunir as forças suficientes para a eficaz repulsa da agressão, o agredido deve “suportá-la sem resistência”.[16] Pois, como sugere a central indagação de Kühl, “com qual fundamento o agressor deveria suportar as consequências de uma ação inidônea à conservação do bem jurídico agredido?”[17]

Contra a aparente severidade desta “acrítica implementação do requisito de idoneidade como pressuposto da legítima defesa”,[18] um relevante setor da doutrina recusa[19] a exigência e concede o efeito justificante inclusive ao esforço defensivo desde o início absolutamente “sem esperança” em termos de efetivo afastamento da investida ilícita. Assim, de acordo com Spendel, o defensor está autorizado a “lutar até o fim”: basta que sua conduta esteja “dirigida” contra a agressão.[20] Ou no expressivo questionamento de Samson: “a mulher, vítima de uma tentativa de violência sexual, que desesperançosamente tenta rechaçar a agressão de um homem fisicamente superior através de arranhões e mordidas deve realmente ser punida pelas lesões corporais?”.[21] Também nesta direção caminha a cínica afirmação de Erb: “o agredido que não mais pode se valer da preservação de seus bens simplesmente troca de postura e fica – sob ameaça de pena em face da vítima – à disposição do agressor, para que ao menos os seus bens restem intactos”.[22] Por último, enfatiza Herzog: “não cabe de forma alguma exigir da vítima colocada numa situação de desesperança que permaneça nesta posição quase sem reação e se torne um joguete do agressor”.[23] Em suma: a necessidade da defesa esgota-se numa mera “proibição de excesso”.[24] Fácil será notar que esta compreensão “simbólica”[25] da legítima defesa chega àquele “liberal” resultado – a necessidade oferece apenas o “limite superior”, não o “limite inferior”[26] – por meio de uma operatória intuitiva muito assentada no sentimento de justiça. Na verdade, sua fundamentação dogmática encontra-se no solitário esforço teórico de Alwart.

Entretanto, convém indagar se o próprio abandono da exigência de aptidão defensiva constitui mesmo um meio “idôneo” à obtenção da meta “liberal”. Para fazer frente à tese simbólica, a doutrina dominante – como veremos – escolhe um caminho muito mais interessante e coerente: a idoneidade defensiva deve ser conservada como elemento da legítima defesa, mas seu nível de exigência deve ser minimizado à luz de um critério normativamente sensível às extraordinárias dificuldades enfrentadas pelo autor na situação concreta. Mas antes de testar o rendimento deste modelo e de analisar a teoria de Alwart, urge saber se existe alguma conexão de sentido entre a figura da tentativa de defesa inidônea e o fenômeno do simbolismo jurídico (-penal).

2. Os “simbolismos” no Direito (Penal)

A recente e contínua expansão do âmbito de cobertura da juridicidade criminal no seio das sociedades contemporâneas conduziu ao chamado “Direito Penal simbólico”.[27] Desde o final dos anos 80 do século passado, este conceito ganhou uma ampla divulgação nas ciências jurídico-penais – especialmente na política criminal[28] – e chegou a alcançar a condição de lugar-comum geral – “legislação simbólica” – da crítica ao Direito tout court.[29] Ninguém ignora que os termos “símbolo”, “simbólico” e “simbolismo” – utilizados nas diversas áreas da produção cultural – estão entre os mais ambíguos da semântica social. No Direito Criminal tais categorias sofrem daquilo que talvez seja – como nos mostra Bauman– o traço gnosiológico mais característico da chamada “pós-modernidade”: a ambivalência.[30]

De um lado, os termos assumem um nítido conteúdo axiológico de desvalor, um “sentido censurador”.[31] Nesta acepção crítico-material originária, o “simbólico” busca desmascarar e evitar o avanço de uma forma de desenvolvimento do Direito Penal “não adequada ao princípio da proteção de bens jurídicos”.[32] Trata-se de um juízo de reprovação desde os pontos de vista da política jurídico-criminal. Neste espeque, o “Direito Penal simbólico” – como manifestação da “politização” de sua juridicidade – resulta tanto da dissolução do rigor conceitual e sistemático do núcleo da normatividade jurídico-criminal quanto do afrouxamento de sua relação com o mundo empírico.[33]

Da outra banda, está uma compreensão segundo o “interacionismo simbólico”.[34] Ao assumir um sentido analítico-descritivo, agora o “simbólico” postula uma aproximação desde os pontos de vista da sociologia jurídico-criminal e deseja revelar a imanente dimensão comunicativa do Direito Penal: também interessado no “desempenho comportamental” dos cidadãos, esta área da normatividade sempre foi na práxis mais ou menos edificada na “troca” – “ir” e “voltar”, “emissão” e “recepção”, “discurso” e “compreensão” – entre pessoas. Neste contexto comunicacional, o “Direito Penal simbólico” designa uma abordagem esforçada em tematizar as discursivas relações de mútuo reconhecimento entre os sujeitos criminalmente relevantes (autor, vítima e Estado) no seio da interação social.[35]

Toda esta ambivalência no plano geral do Direito Penal “simbólico” se reflete no marco específico da legítima defesa “simbólica”.[36] Evidentemente, neste último setor não mais está em jogo o fenômeno de expansão do Direito Penal: com a renúncia à exigência de idoneidade, entra em cena o movimento contrário, de retração dos círculos de punibilidade por meio do alargamento do âmbito de justificação. Tampouco cabe encontrar neste âmbito razões político-ideológicas propositalmente ocultas. Mesmo assim, seguem as incertezas, agora sequer amparadas por um esforço diferenciador nos moldes do acima esquadrinhado. Com efeito, não se sabe ao certo se o adjetivo está a criticar o desenvolvimento da legítima defesa também alheia à dimensão empírica – “não adequada ao princípio da proteção de bens jurídicos” – ou a descrever o modo comunicativo da conduta justificada.[37]

Para efeitos de higiene argumentativa tanto no marco geral do Direito Penal quanto no plano específico da legítima defesa, convém reservar o termo “simbólico” ao conceito crítico e utilizar o termo “comunicativo” ao trabalhar a estatura interativa do Direito (Penal) e da conduta juridicamente (jurídico-penalmente) relevante.[38] Pois do contrário estaríamos no terreno da tautologia: se toda produção humana de sentido – inclusive a atividade legiferante e o ato defensivo – merecesse o rótulo do “simbolismo”, a legislação “simbólica” e a legítima defesa “simbólica” deixariam de ser um problema jurídico autônomo.[39] A diferença específica do simbolismo está no chamado “discurso-engano”.[40] Fraude, simulação, burla, engodo e fingimento são seus meios: a “realidade” contida no significado político-ideológico latente ou oculto prevalece sobre a “aparência” fabricada pelo significado jurídico-normativo manifesto ou declarado.[41] Como a tentativa de defesa inidônea não veicula este discurso, melhor será entendê-la por intermédio da lente do “comunicativo”.

3. Legítima defesa como ato de resistência?

Para Alwart, o núcleo do conceito de legítima defesa não está no “(pretendido) afastamento da agressão”, mas na “resistência efetuada como tal”. Este “conceito ampliado”, estranho à “tradicional” dogmática da legítima defesa, convoca uma releitura da necessidade defensiva mediante a exclusão do critério da idoneidade: se o rechaço autorizado deve ser interpretado como “uma espécie de resistência”, não há sentido algum em exigir que o “necessário” ofereça não apenas o irrenunciável limite superior, mas também o limite inferior da intervenção.[42] Com a recusa ao “mínimo de eficiência”, a necessidade esgota-se no princípio do meio relativamente mais suave: o defensor não pode impor ao agressor um dano maior do que o absolutamente imprescindível para o afastamento da agressão, devendo utilizar o modo de defesa menos nocivo possível – mas ainda suficiente para uma imediata e definitiva eliminação do perigo. A “resposta” do defensor será justificada mesmo se o meio de rechaço escolhido for completamente inapto para repelir a agressão.[43]

Na raiz desta “correção do conceito de legítima defesa”[44] está uma visão comunicativa dedicada à “relação de significado” entre o ato defensivo e a agressão, vale dizer, ao “sentido de resistência da reação, cujo potencial será comunicativamente compreendido por todos os agressores”.[45] Segundo Alwart, a “típica imagem”[46] da legítima defesa – “um afortunado e triunfante contra-ataque a uma agressão, a vitória de um, o lado bom, e a derrota de outro, o lado mal” – não vale em todos os casos e deve ser substituída por uma nova imagem, encarregada de tematizar o valor que o mero resistir está em condições de realizar à luz da própria dignidade humana: somente este “amplo direito de legítima defesa” oferece a “margem de jogo” aos “variados subjetivismos dos potenciais defensores”.[47] Assim, merece o rótulo de “necessária” e a cobertura do efeito justificante não apenas a exitosa luta contra a agressão, mas também a tentativa defensiva desde o princípio totalmente sem esperança ou inútil em termos de dissipação do perigo. O decisivo está no “sentido” de recusa à resignação: “a inutilidade do defender-se não pode alterar este significado de resistência, pois sempre deixa suficiente espaço para a capacidade de sentido”. Será irrelevante a consecução do fim ou resultado de afastamento da investida contra o bem jurídico próprio ou alheio: “já a própria resistência como tal basta como fim e resultado”.[48] Em outros termos: a “infrapassagem” não configura um “caso especial da ultrapassagem da legítima defesa”, mas “um caso padrão da própria legítima defesa”. Prova disso estaria no fato de o § 33 do StGB desculpar apenas o excesso defensivo: seria difícil compreender como o autor de uma resistência astênica pode ser tratado de forma mais severa que aquele que exorbita no mesmo estado afetivo os limites da necessidade. Por isso o legislador considera os casos de insuficiência justificados segundo o § 32.[49]

Para ilustrar sua tese, Alwart tenta solucionar os seguintes exemplos de Warda:[50] “D” tranca o convidado “E” no porão de calefação de sua casa. O cômodo não tem janelas, mas apenas uma porta contra incêndios, feita de aço e revestida de madeira. “E” tenta destruir a porta com seu canivete, mas logo alcança seu núcleo e percebe que os esforços de libertação eram inúteis. Apesar disso e independentemente da dogmaticamente complicada questão do erro, o dano material causado à propriedade de “D” está justificado mediante a legítima defesa. O mesmo vale neste outro caso: “F” incita sua matilha a atacar “G”. Devidamente adestrados, os quinze cães acatam a ordem do dono e investem contra a vítima, que dispõe de uma pistola com apenas um projétil. “G” pode disparar somente contra um dos animais e assim o faz, tirando-lhe a vida. Embora não esteja em condições de afastar os outros cães, o dano material causado à propriedade de “F” conta também com o efeito justificante da legítima defesa.[51]

Embora rico em termos de lógica discursiva, este modelo não convence. Pois o ganho discursivo-comunicativo tem lugar à custa de uma intolerável perda empírica. Para Alwart, a visão “tradicional”, ao conceder à “capacidade de imposição física o nível mais elevado da escala de valores”, revela não apenas uma “tendência a uma perigosa ideologia darwinista”, ou seja, um “insustentável atavismo”, mas também uma “inclinação à análise funcional ou teleológica”, em termos de eficiência consequencialista.[52] Mas com isso a teoria desconsidera que o Direito está incontornavelmente subordinado também à racionalidade prática.[53] Com efeito, a relação comunicacional é uma originária inerência do nosso modo-de-ser comunitário. Afinal, qualquer ação é sempre resposta a uma outra ação, vale dizer, situa-se invariavelmente em um encadeamento de interações.[54] Desde o ponto de vista das teorias da comunicação, a troca entre os participantes da interação ocorre por meio da tríade estímulo/reação/reforço.[55] Para evitar um desinteressante regresso ao infinito, cada área da normatividade recorta este “interagir constante” ou “contexto situacional de resposta” à luz de suas específicas demandas axiológicas.[56] No Direito, o recorte tem em mira a tutela de certos bens, transformados em objeto de direitos e obrigações recíprocos.[57] Evidentemente, tal estrutura intersubjetiva ou sinalagmática também caracteriza o direito de legítima defesa e o dever de tolerância do autor da agressão ilícita.[58] Se toda conduta é simultaneamente estímulo, reação e reforço em relação a outras condutas, a agressão será sempre defesa e a defesa sempre agressão.[59] Nesta espiral discursiva reside o “quê” comunicativo da legítima defesa.

Mas tal interação/comunicação molda apenas uma dimensão secundária das coisas, um aspecto referido apenas ao exterior, à forma: “o conteúdo da mensagem e sua materialização na realidade não importa em primeiro lugar”.[60] Como fenômeno da razão prática, o Direito e suas categorias essenciais vão além da mera apresentação de signos comunicativos, pois encontram sua legitimação nos esforços rumo à realização daquela finalidade de tutela de bens. Nesta relação entre meio e fim, a legítima defesa – assim como toda e qualquer outra intervenção na esfera jurídica do cidadão – está invariavelmente sujeita à exigência de idoneidade, um dos pilares do princípio da proporcionalidade em sentido amplo: o meio será inidôneo se for lógica e empiricamente comprovado que o seu emprego não pode obter nenhum efeito em favor da meta de proteção de bens jurídicos ou que os benefícios obtidos são superados pelos prejuízos causados ao objeto de tutela.[61] Curto: “o exame de aptidão baseia-se em dados empíricos da experiência e obedece ao princípio da causa e efeito”.[62]

Isso está a significar – se bem percebemos – que a tarefa jurídico-protetiva – tanto do Direito, quanto da legítima defesa – convoca sempre ainda um substrato empírico mínimo, referido à própria “dimensão existencial”[63] – mais exatamente ôntica[64] – dos bens jurídicos. Ao compreender tal substrato não como realidade em si, mas como comunicação vazia de real-verdadeiro, a teoria de Alwartsubestima a “força normativa do fático”: como nos ensina a cotidiana experiência de sentido comum, somente é possível comunicar sobre certos estados (vida humana, liberdade, integridade corporal, patrimônio etc.) se os mesmos existem previamente.[65] Ao Direito (Penal) e à legítima defesa interessa a conservação destas realidades positivamente valoradas. Se o bem jurídico ocupa lugar central na teoria do ilícito, logicamente também deve iluminar as causas destinadas a justificar uma conduta à primeira vista contrária à ordem jurídica. Para ser coerente, Alwartdeveria reconhecer a legítima defesa também contra a tentativa inidônea, algo hoje unanimemente recusado.[66]

Por isso a teoria contraria o teor literal e a intencionalidade normativa do regime legal da legítima defesa. Como se sabe, o direito de resistência possui um inegável valor intrínseco no marco político-constitucional.[67] Todavia, o art. 25 do CPB, o art. 32 do CPP e o § 32 do StGB – o Direito Positivo trabalhado neste estudo – convocam uma “relação meio-fim” entre uma concreta “ação de defesa” e o pretendido “resultado de defesa”. O rechaço da agressão não está sujeito nem ao “fim em si mesmo”, nem ao “fim e resultado” de resistência como ato de mera afirmação comunicativa.[68] Sua verdadeira finalidade reside ainda no desbaratamento da agressão e o conceito de defesa deve ser compreendido à luz deste específico objetivo.[69] A ofensa ao agressor será justificada apenas quando for necessária para dissipar a investida antijurídica. E o conceito de necessidade também deve ser entendido desde o ponto de vista daquela genuína vocação: a defesa será prescindível ou supérflua quando a agressão puder ser repelida – de modo igualmente eficaz – mediante um meio menos ofensivo à esfera de direitos do agressor, vale dizer, se não configurar uma indispensável – embora ainda talvez não suficiente – condição de repulsa da lesão ameaçada. Mas a necessidade merece ser negada também nos casos de inidoneidade, pois a ausência de aptidão significa que não existe qualquer relação condicional capaz de fazer retroceder a agressão,ou seja, de transformar a lesão do agressor em algo imprescindível. Nesse sentido, falta também uma “condição necessária”. Uma medida é inútil não apenas quando a meta aspirada pode ser de igual modo atingida sem ela, mas também quando o objetivo não pode ser com ela alcançado.[70]

Em segundo termo, o argumento da resistência prefere sucumbir às dificuldades interpretativas e simplesmente renunciar à exigência de idoneidade do que trabalhar seriamente os seus contornos. Claro está que a teoria almeja obter um tratamento mais “liberal”, favorável ao defensor. Trata-se, indubitavelmente, de uma meta em si mesma acertada. Com efeito, o autor se encontra em uma situação muito difícil. Tem o ônus de dissipar da forma mais suave possível uma agressão ilícita cuja intenção e intensidade ele apenas pode adivinhar. Geralmente, ele não conhece o agressor, nem sua força física: isso apenas será conhecido com a própria realização da agressão. Contudo, a legítima defesa autoriza o rechaço mesmo quando a agressão é ainda “iminente”. Mas o defensor tampouco sabe onde está a “iminência”: mais uma vez, algo a ser revelado somente por meio do plano e do poder do agressor. Como o autor tem, nesta medida, o ônus de prever o futuro, os esforços defensivos estão sujeitos a um considerável risco de falha, para mais ou para menos: o defensor pode tanto superestimar a agressão e sobrerreagir (excesso), como subestimá-la e infrarreagir (insuficiência). No que tange a última hipótese, não existe nenhuma razão capaz de impor ao defensor o ônus de suportar total e ilimitadamente o perigo de fracasso do esforço defensivo. Para fins de justa distribuição, o risco deve ser reduzido em seu favor – logo, em desfavor do agressor. Não por acaso, a idoneidade é um verdadeiro “conceito de descarga”.[71]

Mas isso não conduz automaticamente ao abandono do limite de aptidão. A carga do defensor deve ser a “menor possível”,[72] mas nunca igual a zero, pois o agressor, apesar de tudo, segue carente e merecedor de proteção jurídica contra desnecessárias intromissões em sua esfera jurídica.[73] Para a realização daquela meta liberal basta uma exata compreensão do próprio conceito de resultado de defesa – e com isso da exigência de idoneidade. Com efeito, a aptidão defensiva cobre duas questões essenciais. Para qual efeito a ação defensiva deve ser idônea, ou seja, qual espécie de resultado ela deve ser capaz de produzir? E com qual grau de probabilidade este efeito deve ser esperado? Ambas as indagações apenas podem ser respondidas teleologicamente, vale dizer, à luz da específica intencionalidade normativa da legítima defesa.[74] Uma vez assumida a proteção de bens jurídicos individuais como eixo da intervenção na esfera jurídica do agressor,[75] o resultado da defesa passa a residir não somente no completo, imediato e definitivo afastamento da agressão antijurídica,[76] mas também e antes na produção de qualquer melhora da situação do bem jurídico aguda e ilicitamente ameaçado.

Eis o seu denso “valor de cuidado”.[77] Não se exige um “resultado de salvação”.[78] Basta que a conduta do defensor ao menos atenue, dificulte ou atrase a agressão. Quanto ao nível de probabilidade de obtenção deste resultado, não se exige uma ótima chance de repulsa totalmente eficaz. Será suficiente o aproveitamento de toda e qualquer mínima ou vaga oportunidade. Logo, os casos de dúvida sobre esta qualidade não devem onerar o defensor. A tentativa de defesa será inidônea – e por isso desnecessária – apenas quando a possibilidade de afastar ou ao menos – ainda que em reduzida medida – debilitar, estorvar ou retardar a lesão ao bem jurídico for desde o início excluída com total e absoluta segurança.[79]

Isso segundo um juízo objetivo ex ante.[80] Em termos causais, assim como no ilícito o resultado causado reside na “modificação negativa” (prejudicial) de certas “propriedades positivamente valoradas” (bens jurídicos),[81] na exclusão do ilícito o resultado causado reside na “modificação positiva” (favorável) destas mesmas estruturas. Portanto, na legítima defesa – como nas demais causas de justificação – o decisivo está na benéfica alteração do resultado em sua concreta configuração.[82] Em termos volitivos, mesmo se o meio utilizado provavelmente não conseguir obter o efeito desejado, a esperança de sua idoneidade tem o condão de manter a finalidade de defesa como principal motivação do autor e isso ainda permite a tentativa de repelir a agressão.[83]

Aliás, esta “minimalização”[84] – sensível às ingentes dificuldades enfrentadas na concreta situação de defesa – reflete o baixo rigor do critério no âmbito jurídico-constitucional: segundo o entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante neste marco, para a afirmação da idoneidade basta qualquer “aptidão parcial”, vale dizer, que a medida favoreça de alguma forma a obtenção do fim desejado (por exemplo, reduzir o perigo em vez de eliminá-lo).[85] Com isso se obtém um tratamento normativo adequadamente favorável ao defensor.[86]

Se “a medida da ofensa aos bens jurídicos pretendida pelo agressor determina apenas o máximo da defesa, não sua medida mínima”,[87] grande parte das tentativas de defesa que a teoria da resistência considera totalmente desesperançadas ou inúteis na verdade são ainda condutas defensivamente idôneas. Isso fica evidente no caso do estupro. Os arranhões e as mordidas podem não paralisar a agressão. Podem, aliás, inclusive levar o agressor, agora irritado, a uma mais incisiva e brutal realização de sua meta. Mas mesmo tudo isso ainda não exclui desde o início e com segurança uma outra possibilidade de desenvolvimento dos fatos: os esforços da vítima podem sempre teoricamente ainda levar o agressor a abandonar sua investida. A propósito, a experiência cotidiana e forense conhece não raros casos nos quais arranhões e/ou mordidas conduziram o estuprador – por diferentes motivos (porque o incômodo diminuiu sua lascívia ou porque o notório desespero da vítima o chamou à consciência e lhe devolveu a razão etc.) – a renunciar ao seu projeto. Por isso, ao contar com a mínima chance de interromper ou ao menos dificultar/atrasar a agressão ilícita, o esforço defensivo ainda segue idôneo.[88]

Quando, por exemplo, o agredido desfere várias injúrias contra o agressor nada impressionado,[89] não cabe excluir a possibilidade de uma “enxurrada de insultos” fazer o agressor “perder os nervos” e disso resultar uma situação mais favorável ao autor. O mesmo vale se a vítima de um furto arranha a pintura do carro no qual o agressor inicia a fuga com o objeto subtraído, pois o dano à pintura ainda pode fazer com que o ladrão, ao menos por um instante, hesite na fuga e ofereça ao defensor a chance de abrir a porta do carro e recuperar a coisa.[90]

Em terceiro lugar, a teoria incorre numa grave incoerência. Pois na prática, ao prescindir da exigência de idoneidade, acaba por excluir o agressor da relação jurídica: consagra um “quase-retorno” ao estado de natureza, vale dizer, um estado de juridicidade “suspensa”. Isso fica nítido no absurdo de seus resultados. Imaginemos a seguinte situação: “I” deseja encarcerar “J” durante dois dias. Para tanto, “I” sequestra sua vítima e se tranca com ela em um cômodo sem janelas. A trava da única porta obedece a um mecanismo eletrônico que está programado para abri-la somente no final das 48 horas. Uma vez ativado, o processo torna-se irreversível. Logo, também para “I” não há qualquer possibilidade de acelerar o curso dos fatos.[91]

No extremo, o critério da resistência justificaria inclusive o homicídio de “I”.[92] Entretanto, resta indagar: cabe mesmo autorizar “J” a matar “I”, embora tal demonstração moral de resistência não reduza sequer um segundo da privação da liberdade? Mas não só. Mesmo quando se aceita – em razão do especial valor da liberdade de locomoção – esta conclusão, a teoria também se revela demasiado indeterminada, como mostra o seguinte exemplo. O invejoso estudante de artes “K” pulveriza um ácido corrosivo no valiosíssimo quadro do colecionador “L”. Com o processo de destruição iniciado, “L” ainda pode atrasá-lo em alguns minutos, mas não mais impedi-lo. Qual forma de resistência seria permitida? Pode “L” matar “K”? Está autorizado ao menos a lesioná-lo gravemente? Ou talvez apenas a desferir uma terrível injúria? Para estas indagações a teoria da resistência não oferece – sequer o deseja fazer – um critério de determinação e diferenciação da intensidade do rechaço (i)legítimo, ou seja, da resistência juridicamente (in)admissível. Pois, nesta trilha, basta ao efeito justificante uma conduta direcionada contra o agressor, independentemente da medida da intervenção. Ao considerar a ação lesiva como um fim em si mesmo, a teoria cai no mais absoluto vazio. Somente a exigência de mínima “idoneidade” normativamente referida ao objetivo de melhorar a situação de proteção do bem jurídico agredido fornece o limite fático decisivo.[93]

Ademais, o recurso à dignidade humana do agredido não deixa de ser demasiado unilateral. Pois a dignidade humana do agressor também não exige sua proteção contra desnecessárias ofensas à sua esfera jurídica? Para a ponderação exigida neste embate a teoria não oferece qualquer critério.[94] E ao convocar os “variados subjetivismos dos potenciais defensores”,[95] o modelo não apenas contradiz o sentido intersubjetivo da comunicação, mas também confunde distintos níveis de valoração. De fato, “a configuração dogmática dos pressupostos da legítima defesa não pode sobre-exigir psicológica e eticamente o indivíduo”.[96] Aliás, o liberal critério de idoneidade acima formulado está justamente a serviço deste equilíbrio. Mas a afetação psíquico-emocional do defensor – “a legítima defesa como ato de desespero”[97] – é uma questão de imputação em segundo nível[98] e como tal deve ser tematizada não no seio da ilicitude, mas no âmbito do juízo acerca da eventual desculpa do excesso astênico.[99]

Por último, a teoria não consegue explicar o direito de auxílio necessário,[100] vale dizer, a razão pela qual a violenta resistência de um terceiro deve ser autorizada se ela em nada contribui em termos de salvação de bens jurídicos. Pois as pretensas razões de legitimação da resistência – sobretudo a afetação emocional do agredido – geralmente não estão presentes na figura do auxiliador: a justificação seria a mera tolerância da insurreição/rebelião do sujeito não envolvido.[101]

4. Pormenores sobre a idoneidade defensiva

No item anterior o critério de determinação da aptidão defensiva – “melhoria das oportunidades”[102] – foi elaborado à luz da mais básica e típica configuração da agressão ilícita. Resta saber como ele se realiza em situações de fato mais complexas, de investidas antijurídicas mais refinadas. Analisemos, de início, os âmbitos em que a exigência de mínima idoneidade ainda encontra satisfação.

Primeiramente, entram em cena não raras situações nas quais o defensor, vítima de múltiplas e simultâneas agressões ilícitas advindas de diferentes sujeitos, está em condições de dissipar apenas uma ou algumas delas. Basta recorrer à seguinte imagem. Três pessoas furiosamente agridem o desafeto “M”. Embora deixe um dos agressores fora de combate, os esforços defensivos de “M” não o salvam da surra aplicada pelos demais. Certamente, o rechaço desta parcela de investidas antijurídicas não pode ser justificado com o simples argumento de que o agredido não deve ser obrigado a desistir do combate. Por outro lado, também seria insustentável recusar a legítima defesa com base no argumento de que o defensor, no fim das contas, não poderia mesmo evitar a lesão causada por meio dos demais sujeitos.

O relevante, mais uma vez, está na exata compreensão do resultado da defesa. Quem está autorizado a matar o agressor solitário também está autorizado a fazê-lo quando a vítima da intervenção defensiva for somente um de muitos agressores, pois com isso o defensor nada mais faz do que repelir esta específica agressão, anulando o resultado em sua concreta configuração. Em outros termos, assim como no juízo de causalidade não entram em consideração os hipotéticos comportamentos ilícitos alheios, também o efeito defensivo não tem em vista o resultado em relação às demais investidas antijurídicas.[103] Ademais, mesmo se as investidas individuais configurassem normativamente uma única agressão globalmente considerada,[104] o homicídio de um dos agressores teria consideráveis chances de dissuadir aqueles que não sabem que o defensor utilizou sua última munição,[105] assim como as consequências lesivas de uma “agressão” realizada por duas pessoas podem muito bem ser inferiores àquelas derivadas de uma “agressão” cometida por três.[106] Logo, também nestas hipóteses estaríamos diante de uma melhora na situação do bem jurídico. Para o caso julgado na citada decisão do BGH vale a mesma solução.[107]

Mais problemáticos são os casos de agressão com vários meios. Neste marco, o agressor utiliza múltiplos mecanismos de agressão e o defensor está em condições de estorvar somente a atuação de parte – talvez apenas de uma – destas ferramentas – e com isso a capacidade de influência das demais segue intacta. Basta imaginar o seguinte exemplo: “N” fustiga sua matilha a atacar “O”. Devidamente adestrados, os 15 cães acatam a sugestão do dono e investem contra a vítima. “O” dispõe de uma pistola com apenas um projétil. Nestas circunstâncias, pode ele disparar somente contra um dos animais e assim o faz.[108] Bastará a neutralização de apenas um dos meios de agressão?

Para Jakobs, assim como na agressão derivada de vários sujeitos a idoneidade deve ser analisada em relação a cada agressor, também na hipótese de múltiplas ferramentas de uma única agressão a chance de resultado da defesa refere-se ao menos a um dos meios utilizados. Pois “um curso causal ilicitamente deflagrado não necessita ser tolerado apenas porque um outro curso causal (independentemente de quem o tenha colocado) já foi criado”.[109] Mas como bem indica Warda, esta “desmontagem” do acontecimento em diversos “cursos causais” não convence, uma vez que a utilização de vários meios articulados sob a vontade do agressor configura uma unidade não apenas funcional, mas também espaço-temporal. Por outro lado a leitura fragmentária não explica por que um curso causal ilicitamente iniciado não deve ser suportado quando o mesmo não pode ser impedido de modo a reduzir ou postergar a ameaça de lesão ao bem jurídico contida nos demais cursos. Aliás, a concessão da legítima defesa inclusive contradiz o sentido que Jakobsatribui a esta causa justificante.[110] Segundo o autor, “o agressor não se torna indigno de uma mínima medida da defesa, senão a legítima defesa serve à proteção de bens e será inadmissível para além disso”.[111]

Warda acrescenta uma terceira crítica: tal modo de ver as coisas conduziria a inaceitáveis consequências práticas. Como amostra, o autor sugere a seguinte ilustração: “P” está trancado em um cômodo e sob vigilância do armado “Q”. A tranca da porta e a vigilância armada são dois cursos causais ilicitamente deflagrados no contexto da privação da liberdade. Embora “P” surpreendentemente consiga – com o uso de um canivete de bolso – matar “Q” e assim eliminar um dos cursos, seu comportamento não consegue libertá-lo, pois a fechadura está sujeita a um sistema de abertura pela introdução de um desconhecido código secreto, uma exigência que ele –somente a título de argumentação[112] –desde o início conhecia. Deste modo, o golpe mortal foi seguramente inidôneo para obter o resultado de libertação. Este inútil sacrifício da vida humana estará mesmo autorizado por meio da legítima defesa?[113] Mas esta objeção não acerta. A pergunta deve ser respondida afirmativamente, embora fora da lógica de desmontagem: ao matar o vigilante armado, o agredido reduz uma parcela da coação à qual estava ilicitamente submetido[114] e com isso melhora sua situação.[115] Logo, também Warda contradiz seu ponto de partida.

Posto isso, nas hipóteses de meios agressivos alternativamente eficazes a anulação da eficácia de ao menos um dos instrumentos altera o resultado em sua concreta configuração, melhorando a situação do agredido no marco geral do desbaratamento da agressão ilícita. No caso da matilha incitada, “O” atua de forma exitosa e deve usufruir do efeito justificante da legítima defesa. Em regra, os cães adestrados cumprem imperturbáveis e sem hesitação as ordens de seu dono. Mas isso não pode ser assegurado sempre, sem exceção. Não cabe excluir de início e com absoluta segurança a possibilidade de que o estampido do disparo contra um dos cães assuste ou intimide os outros animais e os faça recuar definitivamente ou durante um momento. Pode ainda o observador sensato contar – desde um ponto de vista ex ante – com a chance de que o disparo afaste exatamente os animais dianteiros ou aqueles mais fortes e violentos (com piores consequências para o defensor), de modo a proporcionar algum – mesmo tímido – debilitamento ou retardo da agressão. Por último, na mesma perspectiva, nada impede que o dono da matilha – eventualmente preocupado com sua própria integridade física e com o seu patrimônio – chame de volta seus cães e assim suspenda ou atenue a agressão. Como segue em condições de melhorar de alguma forma a situação de proteção do bem jurídico, o disparo mortal contra um dos cachorros (ainda) configura uma conduta idônea (necessária) à defesa e justifica o dano material causado à propriedade alheia. Também neste âmbito o critério liberal – “para baixo” – anteriormente formulado mostra sua validade, incidindo sem qualquer modificação.[116]

Neste contexto de minimização em favor do sujeito ilicitamente agredido, a exclusão da legítima defesa em virtude da ausência de idoneidade será um fenômeno muito raro.[117] Primeiramente, serão inaptas as reações dotadas de um caráter meramente vingativo, no sentido da autojustiça. Nestas ocasiões, por “pura maldade”,[118] o autor não dirige seus esforços “contra” a agressão, mas “em virtude” dela impõe uma represália ao agressor.[119] Quem, v.g., está ilicitamente trancafiado em um cômodo e destrói furiosamente todo o mobiliário do recinto não atua a coberto do efeito justificante, pois em nada melhora a situação de seu bem jurídico.[120]

Em segundo lugar, são também defensivamente inidôneas as condutas desde o início absolutamente sem chances de obter um resultado de afastamento ou ao menos de atenuação, complicação ou adiamento da agressão. Quem, v.g., na ânsia de defender seu direito à própria imagem após ter sido intimamente fotografado sem autorização, toma à força a máquina fotográfica do agressor para retirar e destruir os negativos do filme que na verdade nela não mais se encontram, sendo esta uma circunstância individualmente cognoscível ex ante (porque, v.g., a máquina destruída é substancialmente diferente, no formato ou na cor, da máquina que a vítima avistou no instante da agressão), atua sem a cobertura do manto justificante da legítima defesa – embora possa eventualmente contar com o efeito exonerante do erro de tipo permissivo.[121] O mesmo vale no caso da tentativa de destruição da porta de aço revestida de madeira, pois cabe razoavelmente supor que era cognoscível ao autor a especial resistência da porta contra incêndio do porão de calefação.

Por último, será também inapta a tentativa de defesa se suas vantagens forem inferiores aos prejuízos causados ao próprio interessado, vale dizer, se os esforços defensivos pioram a situação do agredido. Basta imaginar, v.g., na seguinte variação do caso de encarceramento: embora mate o agressor, a vítima não consegue abandonar o recinto e fica solitariamente condenada a morrer de fome.[122]

5. Conclusão

Ao contrário do discurso escamoteador característico do “simbolismo”, o modelo de legítima defesa baseado no argumento da mera resistência busca realizar um fim juridicamente louvável: reduzir a carga do defensor quanto ao risco de falha no desbaratamento da agressão ilícita. Nesse sentido, a teoria cria um importante ganho dogmático em relação à tradicional – rígida ou estrita – formulação do critério da idoneidade defensiva. Contudo, ao dissolver a própria estrutura normativa do direito de legítima defesa, o abandono da exigência de aptidão se revela um meio “inidôneo” em vista da meta almejada.

Se “todo ilícito ofende um bem juridicamente protegido”,[123] uma conduta à primeira vista ilícita só pode ser justificada quando melhorar em certa medida a concreta situação de um bem jurídico. Esta ideia deriva da lógica material dos “lugares inversos”, um raciocínio altamente frutífero no Direito Penal – como nos revela Faria Costa.[124] Mas, mesmo fora do contexto de inversão, o critério decisivo mantém sua força: a relação de meio-fim das causas justificantes corresponde à relação meio-fim da própria ordem jurídica. Por isso a figura da legítima defesa também está teleologicamente vinculada ao sentido de proteção de bens jurídicos.

Embora não deva suportar sozinho o risco de insuficiência, o defensor dele não pode ser totalmente exonerado: também os bens jurídicos do agressor merecem proteção quando as tentativas de defesa são absolutamente inúteis. O meio “idôneo” à obtenção deste árduo equilíbrio está na interpretação liberal-garantista da exigência de idoneidade como “limite-inferior” da necessidade de defesa. Para que um comportamento seja defensivamente apto, basta qualquer alento de chance de afastamento da agressão ilícita. O esforço do defensor não será idôneo somente quando este mínimo restar excluído desde o início e de forma absoluta. Assim como os casos de excesso, as hipóteses de insuficiência ou infrapassagem do limite de mínima idoneidade serão tratadas segundo as regras gerais do erro sobre as circunstâncias justificantes ou por meio da incidência analógica (em relação ao art. 33 do CPP e ao § 33 do StGB) ou supralegal (em relação ao CPB) da norma exculpante do excesso astênico.[125]

A legítima defesa segue como “lado bom” avesso ao “lado mal” contido na ilícita agressão. Mas trata-se de uma carga ético-axiológica definida à luz dos valores juridicamente tutelados. A teoria de Alwarte seus seguidores “nada ganha em favor da proteção do bem jurídico individual agredido”.[126] Por isso ela muito se assemelha àquela imagem – mais folclórica que real – do bem intencionado mas desastrado pai, que ao tentar deitar fora a água da banheira em que higieniza seu filho, acaba deitando fora também a própria criança.[127]

6. Referências bibliográficas

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Bruno Moura

Mestre em Direito Penal na Universidade de Coimbra.

Doutorando na mesma instituição.

[1] Abreviaturas: AT = Allgemeiner Teil; BDF = Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra; BGH = Bundesgerichtshof; CPB = Código Penal Brasileiro; CPP = Código Penal Português; FS = Festschrift; GA = Goltdammer’s Archiv für Strafrecht; Jura = Juristische Ausbildung; JuS = Juristische Schulung; JZ = Juristen Zeitung; KritV = Kritische Vierteljahresschrift für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft; LK = Leipziger Kommentar; MK = Münchener Kommentar; NK = Nomos Kommentar; NStZ = Neue Zeitschrift für Strafrecht; RBCCrim = Revista Brasileira de Ciências Criminais; RCESUC = Revista do Centro de Ensino Superior de Catalão; RLJ = Revista de Legislação e de Jurisprudência; SK = Systematischer Kommentar; StGB = Strafgesetzbuch; ZStW = Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft.

[2] Aos colegas Alaor Leite e Fernanda Sabrinni Pereira agradeço as críticas e sugestões acerca do texto.

[3] Se verificado também o elemento subjetivo (conhecimento da situação justificante).

[4] Por todos e ainda imprescindível: Bitzilekis, Nikolaos. Die neue Tendenz zur Einschränkung des Notwehrrechts. Berlin: Duncker & Humblot, 1984, p. 81 e ss.

[5] Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. § 32. Notwehr. In: Laufhütte, Heinrich Wilhelm et al. (Hrsg.). Strafgesetzbuch. Leipziger Kommentar. 12. Auflage. Zweiter Band. Berlin: de Gruyter, 2007. n.m. 169.

[6] Na hipótese de alternativas defensivas igualmente eficazes, o autor deve escolher a via menos nociva ao agressor (embora não seja obrigado a escolher um meio defensivo incerto, não suficientemente seguro). Assim: Wohlers, Wolfgang. Einschränkungen des Notwehrrechts innerhalb sozialer Näheverhältnisse.JZ 54 (1999), p. 436; Roxin, Claus. Anmerkung zum Urteil des BGH vom 12.2.2003 – 1 StR 403/02. JZ 58 (2003), p. 967; Gropp, Walter. Strafrecht. Allgemeiner Teil. 3. Auflage. Berlin: Springer, 2005, p. 203; Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal. Parte geral. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2007. p. 420.

[7] Além de “idoneidade” ou “aptidão”, na linguagem comum o termo “Geeignetheit” pode ainda significar “adequação”. Não por acaso, Taipa de Carvalho (A legítima defesa. Coimbra: Coimbra Ed., 1995. p. 317-318) refere-se à “adequação do meio de defesa” e ao “meio adequado”. Contudo, como primeiro pilar da proporcionalidade em sentido amplo, a “Geeignetheit” diz respeito apenas à relação meio-fim, ou seja, à capacidade empírica de alcançar a meta desejada. A “adequação” corresponde melhor ao cálculo geral de custos e benefícios no seio da proporcionalidade em sentido estrito, não por acaso também conhecida como “Angemessenheit”. Sobre isso: Greco, Luis. Tem futuro a teoria do bem jurídico? Reflexões a partir da decisão do Tribunal Constitucional Alemão a respeito do crime de incesto. RBCCrim 82 (2010), p. 168.

[8] Sobre esta desatenção: Roxin, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil. 4. Auflage. München: Beck, 2006. p. 674.

[9] O mais completo e profundo estudo sobre legítima defesa publicado em língua portuguesa não trata dos problemas aqui abordados: Taipa de Carvalho, Américo. A legítima defesa, p. 317 e ss., em que considera a questão da idoneidade unicamente no contexto de determinação do “meio mais suave”, vale dizer, na comparação entre diversas vias de defesa à disposição do autor.

[10] Trata-se do acórdão de 12.02.2003 (1StR 403/02). Para não comunicar a ilegal atividade de “A” (fabricação e comercialização de CDs não originais) às autoridades competentes, “B” exigia-lhe o pagamento de consideráveis quantias em dinheiro. No dia do crime, “B” e seu comparsa “C” fazem uma visita à casa de “A”. “B” exige o pagamento de 5.000 marcos alemães e ameaça destruir todo o mobiliário da sala de estar caso “A” não atendesse à extorsão. Para evitar os danos ameaçados na chantagem, “A” oferece a “B” a importância de 1.200 marcos. Insatisfeito, “B” agora ameaça não apenas destruir o mobiliário, mas também retirar da casa objetos no valor da quantia exigida e denunciar imediatamente sua vítima à polícia e à administração fazendária. No momento em que “B” começa a recolher alguns objetos, “A” explica ao chantagista que o montante exigido já estava separado em uma bolsa plástica escondida no banheiro. “A” vai ao local, volta à sala com a bolsa e a entrega nas mãos de “C”. Logo depois, “A” se aproveita do descuido de “B” e surpreendentemente o ataca pelas costas com uma afiada faca de cozinha, realizando vários cortes em sua garganta. Enquanto “B” morre degolado, “C” consegue fugir com o dinheiro. O juízo de primeira instância condenou “A” por assassinato (§ 211 do StGB) – em razão do elemento “malícia” ou “perfídia” – a uma pena de prisão perpétua. Em sede de recurso, o BGH anulou a sentença e reenviou o caso a novo julgamento pela primeira instância. Segundo o acórdão, “A” objetivamente ainda se encontrava em uma situação de legítima defesa, pois a agressão extorsiva contra sua propriedade, embora formalmente consumada com a obtenção do direito por intermédio de “C”, ainda não havia materialmente terminado: em razão da ausência de posse segura, a agressão antijurídica continuava atual. Ao órgão jurisdicional encarregado de julgar novamente os fatos o BGH impôs a questão de saber se o surpreendente recurso à faca de mesa contra “B” era “também promissor quanto à meta de impedir a definitiva perda do dinheiro naquele momento”, uma vez que para evitar a fuga de “C” com a quantia obtida “teria sido necessária uma outra ação defensiva”. Para a análise do caso: Zaczyk, Rainer. Das Mordmerkmal der Heimtücke und die Notwehr gegen eine Erpressung. JuS 44 (2004), p. 750 e 752; Erb, Volker. Aus der Rechtsprechung des BGH zur Notwehr seit 1999. NStZ 24 (2004), p. 370 e 371; Roxin, Claus. JZ 58 (2003), p. 966-969.

[11] Herzog, Felix. § 32. Notwehr. In: Neumann, Ulfrid (Hrsg.). Nomos Kommentar zum Strafgesetzbuch. 1. Auflage. Band I. Baden-Baden: Nomos, 2002. n.m. 63. Para a sistematização: Warda, Günter.Die Eignung der Verteidigung als Rechtfertigungselement bei der Notwehr. Jura 9 (1990), p. 344-352 e 393-400.

[12] Erb, Volker. NStZ 24 (2004), p. 371.

[13] Por todos: Roxin, Claus. JZ 58 (2003), p. 967; Dias, Jorge de Figueiredo.PG2, p. 419; Köhler, Michael. Strafrecht. Allgemeiner Teil. Berlin: Springer, 1997, p. 269; Gropp, Walter. AT 3, p. 203.

[14] Pois também estas figuras exigem que a intervenção seja necessária: Joecks, Wolfgang. Erfolglose Notwehr. In: Samson, Erich et al. (Hrsg.). Festschrift für Gerald Grünwald. Baden-Baden: Nomos, 1999, p. 258.

[15] Jakobs, Günther. Strafrecht. Allgemeiner Teil. 2. Auflage. Berlin: Walter de Gruyter, 1991; Kühl, Kristian. Strafrecht. Allgemeiner Teil. 6. Auflage. München: Franz Vahlen, 2008, p. 147. Sobre o tratamento da do excesso de legítima defesa nos sistemas português, alemão e brasileiro: Moura, Bruno. A não-punibilidade do excesso na legítima defesa. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra, 2011, p. 1 e ss.

[16] Assim: Kühl, Kristian. AT6, p. 147; Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe. Tübigen: Mohr Siebeck, 2008, p. 279; Jakobs, Günther. AT 2, p. 394.

[17] Kühl, Kristian. AT6, p. 147.

[18] Erb, Volker. NStZ 24 (2004), p. 369-376.

[19] Esta exclusão não vale ilimitadamente. Pois o requisito da idoneidade continua vigente em sua função relativa, vale dizer, para efeitos de comparação entre as alternativas de defesa à disposição do autor (o meio idôneo tem preferência em face do meio inidôneo). Informativo: Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 170.

[20] Spendel, Günther. § 32. In: Jähnke, Burkhard (Hrsg.) Strafgesetzbuch. Leipziger Kommentar. 11. Auflage. Berlin: de Gruyter, 1992, n.m. 237.

[21] Samson, Erich. § 32. In: Rudolphi, Hans-Joachim. (Hrsg.) Systematischer Kommentar zum Strafgesetzbuch. Band I. 6. Auflage. Neuwied: Luchterhand, 1995, n.m. 42.

[22] Erb, Volker. § 32.In: Joecks, Wolfgang; Miebach, Klaus (Hrsg.) Münchener Kommentar zum Strafgesetzbuch. Band I. München: Beck, 2003, n.m. 140, onde acrescenta (n.m. 142): basta que a conduta “esteja dirigida a perturbar de alguma forma a agressão”.

[23] Herzog, Felix. NK, n.m. 63.

[24] Descritivo: Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe, p. 279.

[25] Assim rotulada em: Warda, Günter. Die Geeignetheit der Verteidigungshandlung bei der Notwehr. Strittiges in der aktuellen Diskussion. GA 143 (1996), p. 408 e 409; Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 252 e 259; Günther, Hans-Ludwig. § 32. Notwehr. In: Rudolphi, Hans-Joachim (Hrsg.) Systematischer Kommentar zum Strafgesetzbuch. Band I. 8. Auflage. Köln: Luchterhand, 2003, n.m. 94; Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 170.

[26] Alwart, Heiner. Zum Begriff der Notwehr. JuS 36 (1996), p. 953-954.

[27] Por todos: Moura, Bruno. A expansão do direito penal: modelos de (des)legitimação. RCESUC 21 (2009), p. 152-153.

[28] Como em: Amelung, Knut. Strafrechtswissenschaft und Strafgesetzgebung. ZStW 92 (1980), p. 54-57; Hassemer, Winfried. Symbolisches Strafrecht und Rechtsgüterschutz. NStZ 9 (1989), p. 553 e ss.; Seelmann, Kurt. Risikostrafrecht. KritV 75 (1992), p. 460-466.

[29] Paradigmático: Neves, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 24 e ss. Informativo sobre esta evolução: Hassemer, Winfried. Das Symbolische am symbolischen Strafrecht. In: Schünemann, Bernd et al. (Hrsg.). Festschrift für Claus Roxin. Berlin: Walter de Gruyter, 2001. p. 1001-1019. Contudo, não se pode ignorar que o movimento de “juridificação” ou de “vertigem para o Direito” não está sozinho. Ao mesmo tempo, mostra seu rosto uma relevante tendência contrária, no sentido da “desregulação” ou “deslegalização”, vale dizer, do alargamento do chamado “espaço livre do Direito”. Para mais este paradoxo: Costa, José de Faria. Omissão (reflexões em redor da omissão imprópria). BFD 72 (1992), p. 398-399; Idem. A criminalidade em um mundo globalizado: ou plaidoyer por um direito penal não securitário. RLJ 3934 (2005), p. 32.

[30] Moura, Bruno. A sociedade contemporânea: alguns modelos teórico-descritivos relevantes para o direito penal. RCESUC 24 (2011), p. 16-18. No sentido filosófico mais amplo, o “símbolo” designa todo e qualquer mecanismo a serviço da intermediação entre sujeito e realidade. Trata-se de uma aquisição do homem como “animal simbólico”. Para além dos significados do simbolismo na psicanálise, na sociologia e na lógica, convém destacar seu lugar privilegiado na semiótica, a teoria geral dos signos. Diferentemente do ícone (signo em similaridade/semelhança sensorial com o objeto) e do índice (signo em indicação/inferência real-constitutiva do objeto), o símbolo denota o objeto à luz de uma “regra geral” que atua no sentido de fazer com que o signo seja interpretado como sua representação. Neste terreno prático, enquanto forma de produção e interpretação textual, o símbolo pretende ser um instrumento poético de expressão, conhecimento, comunicação e controle. Sobre tudo isso: Neves, Marcelo. A constitucionalização simbólica, p. 11-24.

[31] Seelmann, Kurt. KritV 75 (1992), p. 461.

[32] Hassemer, Winfried. Roxin-FS, p. 1011. No mesmo sentido, antes: Idem. NStZ 9 (1989), p. 556, 557 e 559. Recentemente: Costa, José de Faria. O direito penal, a linguagem e o mundo globalizado (Babel ou esperanto universal?). RLJ 3955 (2009), p. 277: a crise do Direito Penal deriva de neocriminalizações “tantas vezes com um valor meramente simbólico, porquanto é difícil, senão impossível, aí descobrir a proteção de qualquer bem jurídico”.

[33] Hassemer, Winfried. Roxin-FS, p. 1004 e ss. No mesmo sentido, bem antes: Idem. NStZ 9 (1989), p. 554-555; Seelmann, Kurt. KritV 75 (1992), p. 453 e ss. Para as razões políticas do simbolismo no Direito Penal e as razões que fazem deste ramo um terreno especialmente propício à legislação simbólica: Amelung, Knut. ZStW 92 (1980), p. 54-56.

[34] Seelmann, Kurt. KritV 75 (1992), p. 465; Lüderssen, Klaus. Moderne Wege kriminalpolitischen Denkens. In: ______ (Hrsg.) Aufgeklärte Kriminalpolitik oder Kampf gegen das Böse. Band I. Legitimation. Baden-Baden: Nomos, 1998, p. 68 e 69. Para as bases da teoria: Bazilli, Chirley et al. Interacionismo simbólico e teoria dos papéis. Uma aproximação para a psicologia social. São Paulo: EDUC, 1998, p. 20 e ss.

[35] No contexto da prevenção geral positiva: Hassemer, Winfried. Roxin-FS, p. 1011-1013; Roxin, Claus. AT 4, p. 25; Kindhäuser, Urs. Zur Rechtfertigungs von Pflicht- und Obliegenheitsverletzungen im Strafrecht. In: Hruschka, Joachim et al. (Hrsg.). Jahrbuch für Recht und Ethik. Band 2. Berlin: Duncker & Humblot, 1994, p. 341; Jakobs, Günther. AT2, p. 5-10. No contexto neoretribucionista: Seelmann, Kurt. KritV 75 (1992), p. 464 e 465; Lesch, Heiko. Unrecht und Schuld im Strafrecht. JA 34 (2002), p. 608-609.

[36] Embora a legítima defesa esteja autorizada não apenas contra agressões ilícitas descritas em um tipo penal. Por todos: Gropp, Walter. AT 3, p. 200. Contudo, na prática do mundo da vida a esmagadora maioria das investidas antijurídicas é penalmente típica.

[37] Interessa destacar que Alwart em momento algum recorre ao termo “simbólico”.

[38] Hassemer, Winfried. Roxin-FS, p. 1011. Sento certo que o “simbólico-expressivo”, enquanto comunicação, não é um specificum do Direito Penal: Lüderssen, Klaus. Moderne Wege kriminalpolitischen Denkens, p. 67.

[39] Neves, Marcelo. A constitucionalização simbólica, p. 25 e 29.

[40] Seelmann, Kurt. KritV 75 (1992), p. 463.

[41] Idem. Ibidem, p. 461 e 464. Também: Hassemer, Winfried. Roxin-FS, p. 1011 e 1017; Idem. NStZ 9 (1989), p. 556 e 556; Roxin, Claus. AT4, p. 25-26; Amelung, Knut. ZStW 92 (1980), p. 54; Neves, Marcelo. A constitucionalização simbólica, p. 25-32.

[42] Alwart, Heiner. JuS 36 (1996), p. 953.

[43] Idem, p. 954, onde funda a irrenunciabilidade do limite “máximo” no respeito à dignidade da pessoa humana: como o agressor, apesar de sua conduta ilícita, segue como sujeito de direitos, o revide não pode ser um arbitrário e ilimitado uso da violência (a agressão não conduz à recaída no estado de natureza ou de guerra).

[44] Assim: Idem, p. 957.

[45] Idem, p. 958. Informativo sobre este “conteúdo de significado”: Schneble, Christoph. Echo. Zum Begriff der Notwehr (zu Alwart, JuS 1966, 953 ff.). JuS 37 (1997), p. 959.

[46] Desenhada pelos casos mais frequentes, vale dizer, pelo habitual transcurso das coisas.

[47] Alwart, Heiner. JuS 36 (1996), p. 955-956. Com destaque para o lugar da dignidade humana nesta construção: Schneble, Christoph. JuS 37 (1997), p. 959.

[48] Assim: Alwart, Heiner. JuS 36 (1996), p. 956.

[49] Idem, p. 955. Informativos sobre este ponto: Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 170.

[50] Warda, Günter. Jura 9 (1990), p. 351 e 394.

[51] Alwart, Heiner. JuS 36 (1996), p. 955.

[52] Idem, p. 956.

[53] Neves, Antonio Castanheira. Metodologia jurídica. Coimbra: Coimbra Ed., 1993, p. 70-81, 142 e ss. No mesmo sentido: Costa, José de Faria. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra Ed., 2000, p. 160, 161 e 253, onde destaca o “real-normativo prático”.

[54] Costa, José de Faria. O perigo em direito penal, p. 442, onde concebe a ação humana como relatio, vale dizer, como abertura do “eu” ao “outro” (pp. 411, 418, 420, 421 e 425).

[55] Hassemer, Winfried. Die provozierte Provokation oder Über die Zukunft des Notwehrrechts. In: Kaufmann, Arthur et al. (Hrsg.). Festschrift für Paul Bockelmann. München: Beck, 1979, p. 234.

[56] Costa, José de Faria. O perigo em direito penal, p. 442.

[57] Sobre a função protetiva e o bem jurídico enquanto categorias da teoria geral do Direito e do ilícito: Bronze, Fernando José. Lições de introdução ao direito. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2006, p. 285; Günther, Hans-Ludwig. Strafrechtswidrigkeit und Strafunrechtsausschluβ. Köln: Carl Heymanns, 1983, p. 153-155; Dias, Jorge de Figueiredo. PG2, p. 162 e 163. Em todo caso, sobretudo no âmbito do Direito Penal, convém indagar se não será razoável exigir um eixo axiológico-normativo de legitimação prévio à análise consequencialista referida ao bem jurídico. Neste sentido: Greco, Luís. RBCCrim 82 (2010), p. 172 e ss., onde recorre ao critério da autonomia individual ou da esfera nuclear da vida privada e restringe a teoria do bem jurídico (p. 182) à “importante e majoritariamente sequer reconhecida tarefa de distinguir bens jurídicos (coletivos) verdadeiros e falsos com base em critérios claros”.

[58] Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe, p. 68 e ss. No mesmo sentido: Lesch, Heiko. Die Notwehr. In: Widmaier, Gunter et al. (Hrsg.) Festschrift für Hans Dahs. Köln: Otto Schmidt, 2005. p. 88-92. Para a intersubjetividade (através da discursiva relação de reconhecimento recíproco) como cimento da juridicidade e da legítima defesa: Kargl, Walter. Die intersubjektive Begründung und Begrenzung der Notwehr. ZStW 110 (1998), p. 57-63, onde convoca a teoria da justiça de John Rawls, a teoria do discurso de Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas e a teoria do reconhecimento de Axel Honneth.

[59] Nos processos de interação/comunicação, o acontecimento que define a parte das consequências de determinada ação como estímulo à outra conduta enquanto reação chama-se “interponto”. O sistema de interponto subjacente ao regime legal da legítima defesa considera irrelevante todos os eventos anteriores à parte da ação tematizada como “agressão antijurídica atual”, a ser respondida pela parte da ação tida como “defesa”. Assim: Hassemer, Winfried. Bockelmann-FS, p. 442 e 443. No sentido do texto: Mitsch, Wolfgang. Notwehr gegen fahrlässig provozierten Angriff. JuS 41 (2001), p. 755.

[60] Hassemer, Winfried. Roxin-FS, p. 1012.

[61] Günther, Hans-Ludwig. Strafrechtswidrigkeit und Strafunrechtsausschluβ, p. 183-184 e 186.

[62] Idem, p. 184. Destacando o caráter empírico do exame de necessidade da defesa: Bitzilekis, Nikolaos. Die neue Tendenz zur Einschränkung des Notwehrrechtst, p. 94.

[63] D’Avila, Fabio Roberto. Aproximações à teoria da exclusiva proteção de bens jurídicos no direito penal contemporâneo. RBCCrim 80 (2009), p. 18-20, onde assevera (p. 19) que o bem jurídico demanda um “retorno aos fragmentos da realidade” relevantes no caso concreto. E arremata: “isso, entretanto, está longe de significar que o bem não possa ser pensado na forma de um valor. De um valor que, por uma exigência de corporização, deve necessariamente encontrar projeção e concretização no mundo fenomênico, assumindo corpo em realidades suscetíveis de ofensa”.

[64] Sobre a diferença entre o ôntico e o ontológico no âmbito da lógica material: Kaufmann, Arthur. Das Schuldprinzip. Zweite Auflage. Heidelberg: Winter, 1976, p. 32-38, 86 e ss.

[65] Para a importância do mínimo empírico: Moura, Bruno. O normativismo jurídico-penal: consequência do ou resistência ao funcionalismo? BFD 86 (2010), p. 740-745 [estudo também publicado na RBCCrim 90 (2011), p. 13-51]. Antes: Idem. Sobre o sentido da delimitação entre injusto e culpa no direito penal. RBCCrim 87 (2010), p. 21-22.

[66] Por todos: Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe, p. 21.

[67] Como mostram o n. 4 do art. 20 da Constituição Alemã e o art. 21 da Constituição Portuguesa. Aliás, esta última norma diferencia entre o direito “de resistir” e o direito “de repelir pela força qualquer agressão”.

[68] Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe, p. 279. Ainda sobre esta conexão entre meio e fim no terreno da idoneidade defensiva: Zaczyk, Rainer. JuS 44 (2004), p. 752. Para a chamada “redução meio-fim” enquanto argumento empírico, com referências: Moura, Bruno. BFD 86 (2010), p. 716.

[69] Enquanto intervenção nos bens jurídicos alheios, a defesa (através de ação ou omissão) pode assumir três formas diversas. De um lado, a chamada “defesa agressiva” ou “ofensiva” (Trutzwehr) tem um sentido ativo de contra-ataque. De outro, a “defesa protetiva” (Schutzwehr) tem um sentido negativo de mera contenção ou paralisação do golpe. Por último, também constitui defesa o apelo/recurso a terceiros privados ou às instancias estatais competente. Pelo contrário, não há defesa na mera ameaça de intervenção, assim como na fuga e na esquiva. Assim: Günther, Hans-Ludwig. SK6, § 32, n.m. 85; Herzog, Felix. NK, § 32, n.m. 53; Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, § 32, n.m. 53 e 158.

[70] Para o defensor, evidentemente, as consequências variam em cada uma das situações. Na primeira, a agressão pode ainda ser evitada sem prejuízo ao agressor. Na segunda, esta via de solução está excluída. Mas tal diferença segue irrelevante no plano decisivo: em ambos os casos faltam igualmente à lesão do agressor a qualidade de colocar uma condição necessária. Isso fica nítido inclusive fora do nosso específico âmbito de análise: a dolorosa intervenção cirúrgica em um paciente incurável, por exemplo, será um meio tão desnecessário ao fim de cura quanto a operação de um paciente totalmente saudável. Agora no plano da legítima defesa: a lesão do agressor não será um meio necessário à realização do fim de repelir a agressão ilícita se não criar qualquer chance de salvação do bem jurídico ameaçado, tampouco se o perigo puder ser afastado sem ela. Para tudo isso: Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe, p. 279-280.

[71] Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 256, 260 e 264.

[72] Idem, p. 265, em que destaca (p. 260) que esta descarga é apenas “parcial”.

[73] Nem mesmo a compreensão da legítima defesa como critério de imputação objetiva [Müssig, Bernd. Antizipierte Notwehr. Das Prinzip der Abwehr rechtswidriger Angriffe als Kriterium objektiver Zurechnung. In: ZStW 115 (2003), p. 231-234; Jäger, Christian. Zurechnung und Rechtfertigung als Kategorialprinzipien im Strafrecht. Heidelberg: C.F. Müller, 2006, p. 18-21, 31 e 32] chega à radical conclusão de colocar o risco de insuficiência exclusivamente sobre os ombros do ilícito causador do conflito.

[74] Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 406.

[75] O autor “defende-se de uma agressão ao bem jurídico”: Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 265.Por razões de brevidade, não cabe neste marco ingressar no debate sobre o fundamento da legítima defesa. Basta assinalar que a proteção de bens jurídicos está presente, em maior ou menor medida, não apenas nas teorias individualistas e intersubjetivas, mas também na teoria dualista ainda dominante. Somente as teorias supraindividuais a ignoram totalmente. Para o debate atual: Sengbusch, René. Die Subsidiarität der Notwehr. Berlin: Duncker & Humblot, 2008, p. 125-152; Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe, p. 7-98.

[76] A favor desta noção mais estrita de idoneidade: Zaczyk, Rainer. JuS 44 (2004), p. 752; Wohlers, Wolfgang. Einschränkungen des Notwehrrechts innerhalb sozialer Näheverhältnisse. JZ 54 (1999), p. 436; Köhler, Michael. AT, p. 269; Gropp, Walter. AT3, p. 203; Dias, Jorge de Figueiredo. PG2, p. 419; Roxin, Claus. JZ 58 (2003), p. 967.

[77] Para esta categoria: Costa, José de Faria. Ilícito típico, resultado e hermenêutica (ou o retorno à limpidez do essencial). Lisboa: Universidade Lusíada, 2000, p. 24 e 28.

[78] Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 415.

[79] Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 406-407, 410, 412, 420, 422-423. Também: Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 171, onde enfatizam a “melhora da situação do defensor”; Günther, Hans-Ludwig. SK8, n.m. 91; Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe, p. 278 e 279; Kühl, Kristian. AT6, p. 146 e 147; Freund, Georg. Strafrecht. Allgemeiner Teil. 2. Auflage. Berlin: Springer, 2009, p. 111; Kindhäuser, Urs. Strafrecht. Allgemeiner Teil. 3. Auflage. Baden-Baden: Nomos, 2008, p. 146.

[80] Vale dizer, uma prognose desde o ponto de vista de um observador sensato (dotado do conhecimento padrão e dos eventuais conhecimentos especiais do autor real) colocado na posição do defensor no momento da agressão. A equivocada suposição da idoneidade defensiva configura um erro sobre um pressuposto fático da causa justificante (erro de tipo permissivo), excludente do dolo. Se inevitável, afasta também a imputação a título de imprudência. Assim: Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 244-256; Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 406, 410 e 420; Herzog, Felix. NK, § 32, n.m. 60; Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, § 32, n.m. 171. No mesmo sentido, embora desde a interpretação mais rigorosa da idoneidade: GROPP, Walter. AT3, p. 203; Köhler, Michael. AT, p. 269; DIAS, Jorge de Figueiredo. PG2, p. 419. Um setor da doutrina emprega o critério ex ante somente para as circunstâncias futuras (para aquelas já “existentes” ou “dadas” no instante da defesa valeria um juízo ex post): Günther, Hans-Ludwig. SK8, § 32, n.m. 39. Mas isso não convence. Primeiro porque o defensor não deve ser excessivamente onerado com o risco de errônea prognose sobre a idoneidade: o juízo deve abarcar todas as circunstâncias objetivamente “reconhecíveis”, de modo a impedir que o agressor tenha qualquer direito de defesa contra o esforço de rechaço ex post inapto (Kühl, Kristian. AT6, p. 151). Segundo porque tal diferenciação é impraticável: toda futura evolução dos fatos procede de circunstâncias já existentes no momento do fato (Roxin, Claus. AT4, p. 678). A favor de um juízo subjetivo ex ante: Schneble, Christoph. JuS 37 (1997), p. 960; Jakobs, Günther. AT2, p. 395.

[81] Kindhäuser, Urs. Risikoerhöhung und Risikoverringerung. In: ZStW 120 (2008), p. 482-483.

[82] Uma agressão não pressupõe que o agressor tenha tentado cometer um delito. Por isso o resultado da agressão não precisa ser igual ao resultado de um crime. De forma invertida, o resultado da defesa não exige o afastamento do resultado do delito, ou seja, o bem jurídico não precisa ser totalmente salvo: basta que o revide produza qualquer influência no curso da agressão capaz de ao menos reduzir o perigo que ameaça o bem jurídico. Assim: Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 260-261. Logo, Schneble [JuS 37 (1997), p. 959] não acerta ao afirmar que “assim como a tentativa inidônea é em princípio punível, também a tentativa inidônea de legítima defesa deve ser em princípio justificada”. Em adesão ao critério de Joecks: Roxin, Claus. AT4, p. 675: “basta obter uma modificação do resultado no sentido de uma redução da intensidade da agressão ou dificultamento da comissão do fato”. Também por isso, o conceito de “resultado parcial de defesa” [KÜHL, Kristian. AT6, p. 147; Idem. Angriff und Verteidigung bei der Notwehr. Jura 12 (1993), p. 121 e ss.] não tem qualquer valor neste marco.

[83] Schneble, Christoph. JuS 37 (1997), p. 959.

[84] Günther, Hans-Ludwig. SK6, § 32, n.m. 92. Também: Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 166 e 172, onde apontam que a resistência “materialmente equivale à tarefa do princípio da minimalização”.

[85] Günther, Hans-Ludwig. Strafrechtswidrigkeit und Strafunrechtsausschluβ, p. 183 e 184.

[86] Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 406, 407 e 410; Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 259; Kühl, Kristian. AT6, p. 147.

[87] Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 265.

[88] Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 409. No mesmo sentido: Schneble, Christoph. JuS 37 (1997), p. 459. Também reconhecendo a idoneidade: Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 263-264, em que fundamenta sua conclusão, todavia, na concorrência de bens jurídicos ameaçados: como a tentativa de estupro afeta não apenas a liberdade sexual, mas também a honra, a integridade física e a esfera íntima da vítima, a conduta defensiva seria idônea e necessária na perspectiva da proteção da intimidade. Contudo, embora correta a análise “em conjunto”, isso em nada altera o fato de a conduta da vítima melhorar de alguma forma o estado do bem jurídico ameaçado (seja ele qual for).

[89] Justificando as injúrias desde a perspectiva da mera resistência: Alwart, Heiner. JuS 36 (1996), p. 955; Herzog, Felix. NK, § 32, n.m. 63.

[90] Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 171. Recusando a idoneidade no último caso: Günther, Hans-Ludwig. SK6, § 32, n.m. 93; Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 263-265; Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 407; Spendel, Günther. LK11, n.m. 237; Roxin, Claus. AT 4, p. 675.

[91] Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe, p. 281.

[92] Erb, Volker. MK, § 32, n.m. 141, em que considera o homicídio nestas circunstâncias “não escandaloso”.

[93] Para a crítica: Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe, p. 280-282. Também: Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 170.

[94] Para o conflito entre dignidades: Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe, p. 336 e ss.

[95] No sentido da abertura “para seus projetos pessoais, valores e convicções; para seus diferentes temperamentos e seus interesses subjetivos, para sua perspicácia ou estupidez, para sua serenidade, para (segundo as circunstâncias, não heróica) disposição à resistência, inclusive do mesmo modo para o fanatismo (fundamentalismo), o realismo, o idealismo e o pacifismo radical. Também o sentimento de honra pode, caso a caso, indicar uma contrária direção de defesa. Ou o sistema de delito tornou-se tão normativo ao ponto de deixar sem expressão os anseios que não funcionalmente fazem parte da medula da conditio humana e ainda poder ser justo?” Assim: Alwart, Heiner. JuS 36 (1996), p. 956.

[96] Idem, p. 956. Também: Schneble, Christoph. JuS 37 (1997), p. 960.

[97] Herzog, Felix. NK, § 32, n.m. 63.

[98] Moura, Bruno. RBCCrim 87 (2010), p. 24-29.

[99] Art. 33 do CPP, § 33 do StGB e supralegal no CPB. Para isso: Koriath, Heinz. Einige Gedanken zur Notwehr. In: Britz, Guido et al. (Hrsg.). Festschrift für Heinz Müller-Dietz. München: Beck, 2001, p. 381. Também: Moura, Bruno. A não-punibilidade do excesso na legítima defesa, p. 1 e ss.

[100] Evidentemente, não cabe cogitar a hipótese de renúncia à própria figura.

[101] Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe, p. 282.

[102] Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 423.

[103] Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 256 e 262.

[104] Para Spendel (LK11, n.m. 237), nestes casos existe apenas uma agressão. Segundo o autor, na célebre batalha de Termópilas, os 300 espartanos defenderam-se legitimamente do ataque persa, ainda que a resistência heróica à superioridade opressiva tenha sido “inútil” ou “inidônea” para conter o avanço inimigo: “nestas circunstâncias, basta que a comportamento do agredido, embora talvez em vão, esteja dirigida à defesa”. Deixando de lado a inconveniência da ilustração (segue duvidoso se a legalidade da ação de combate deve ser valorada à luz da legítima defesa individual dos envolvidos), a ficção de uma única agressão ignora que cada uma das investidas individuais, mesmo situadas num mesmo contexto comunicativo, configura per se uma autônoma agressão suscetível de legítima defesa. Logo, a conduta defensiva deve ser analisada separadamente em relação a cada agressor, mesmo que todos mirem um único fim: basta o rechaço contra um dos agressores. Por outro lado, o critério do “até o fim” não passa de um slogan ou teorema, carente de toda fundamentação dogmática. Spendel nem mesmo tenta elaborá-la. Ainda que o tentasse, não conseguiria: embora assente a legítima defesa no instinto de autoconservação e na salvaguarda do ordenamento jurídico, nenhuma desta ideias (como mostra a história da discussão sobre sua ratio) pode legitimar o recurso a meios totalmente inidôneos. Para tudo isso: Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 415-417. Ainda sobre a autonomia de cada uma das agressões: Idem. GA 137 (1990), p. 349 e ss.; Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 262, em que agrega: “é irrelevante se os espartanos podiam conter os persas em Termópilas; o importante é que a agressão de um dos combatentes foi defendida”; Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 171; KÜHL, Kristian. AT6, p. 147: o autor “ao menos defende-se, no sentido do § 32, da agressão de um dos agressores”.

[105] Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 171.

[106] Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 262.

[107] Embora ali “B” seja o “agressor principal”, o cúmplice “C” não deixa de ser também um agressor. Contudo, ao considerar inidônea a tentativa defensiva de “A”, o BGH ignora que a idoneidade não deve ser compreendida em “sentido estrito” (pois basta que a conduta do defensor esteja em condições de produzir qualquer efeito debilitador da agressão) e em “conjunto” (pois basta que o defensor produza tais efeitos em uma das diversas agressões): Erb, Volker. NStZ 24 (2004), p. 371. Incursos no mesmo erro do tribunal: Roxin, Claus. JZ 58 (2003), p. 967; Idem. AT4, p. 675; Zaczyk, Reiner. JuS 44 (2004), p. 752, em que entende que a idoneidade só poderia ser afirmada se o homicídio de “B” pudesse impressionar “C” ao ponto deste devolver ou simplesmente abandonar o dinheiro antes da fuga. Mas segundo o autor, “com base nestas considerações indeterminadas não se pode incluir a vida de um ser humano na relação meio-fim de uma defesa”. De qualquer forma, como bem alerta Roxin [JZ 58 (2003), p. 967], segue duvidoso se o meio (facada) e a medida (múltiplos cortes, da esquerda para a direita, na garganta) da defesa não foram excessivos.

[108] Por todos: Warda, Günter. Jura 9 (1990), p. 394 e 395.

[109] Sem maiores detalhes: Jakobs, Günther. AT2, p. 394. Com adesão em: Kühl, Kristian. AT6, p. 147, onde reconhece, todavia, a possibilidade de existir ainda um “resultado parcial” na defesa.

[110] Assim: Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 413 e 414.

[111] Jakobs, Günther. AT2, p. 395.

[112] Uma vez que Jakobs avalia a idoneidade desde um ponto de vista subjetivo ex ante.

[113] Warda, Günther. GA 143 (1996),p. 414. Similar: Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 169

[114] Pois neste caso são afetados não apenas o bem jurídico “liberdade de locomoção”, mas também o bem jurídico “liberdade psíquica”. Aliás, são raros os casos em que a agressão ilícita não ameaça mais de um interesse juridicamente protegido. Sobre isso: Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 264.

[115] Eis o “resultado parcial” do qual nos fala Kühl (AT6, p. 147).

[116] O mesmo vale na seguinte variante. Durante a noite, o agricultor “R” encarcera o empregado “S” em seu armazém, localizado na zona rural. O colega “T” chega ao local e deseja auxiliar “S”. Dois cadeados asseguram, do lado de fora, a trava: um na altura da cabeça de “S” e outro na altura de seus joelhos. “T” não dispõe de ferramentas, mas apenas de um revólver com uma única munição. Ele dispara contra o cadeado superior e consegue rompê-lo, sem reconhecer (em virtude da intensa escuridão do local) o segundo cadeado. A conduta de auxílio não foi suficiente para libertar “S” e tampouco criou neste instante uma melhora na situação do agredido. Todavia, ela favorece as chances de êxito do futuro resgate, na medida em que a intervenção terá que destruir apenas o outro cadeado (a técnica de libertação gastará a metade da força inicial). Há uma melhora das possibilidades de obtenção do resultado, agora através do aumento da eficácia do auxílio de outros sujeitos. Portanto, o dano material à propriedade de “R” será idôneo (necessário) para o resultado de defesa e deve ser justificado. Para tudo isso: Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 419 e 420. Também: Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 262 e 265: assim como o acréscimo de mais um cadeado piora, a destruição de um deles melhora a situação do agredido (a vítima não está mais “tão” presa como antes). Contra, admitindo apenas uma eventual exculpação analógica (§ 33 do StGB): Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 171, onde consideram o exemplo “um típico caso de livro”, dificilmente verificável na prática.

[117] Pois quase nunca estará completamente excluída a chance de entrada do efeito defensivo almejado: Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 171.

[118] Por mais que isso possa ser humanamente compreensível: Schneble, Christoph.JuS 37 (1997), p. 959.

[119] Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 407.

[120] Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 257 e 265; Günther. Hans-Ludwig. SK6, § 32, n.m. 93. Ainda: Spendel, Günther. LK11, n.m. 237. Isso vale ao menos na hipótese de programação eletrônica do encarceramento, ou seja, ali onde o agressor não mais tem influência sobre a duração da privação da liberdade.

[121] Um caso semelhante foi apreciado pelo Tribunal Superior de Düsseldorf em 1993. A lesão corporal unida ao acesso à máquina seguramente de forma alguma poderia realizar o resultado almejado (tomar a posse do filme). Como a errônea suposição de que o filme ainda estava na máquina configurou um erro de tipo permissivo, o Tribunal remeteu a discussão sobre a evitabilidade e a condenação a título de imprudência à primeira instância. Assim: Warda, Günther. GA 143 (1996), p. 405, 407 e 408; Günther, Hans-Ludwig. SK6, § 32, n.m. 93.

[122] Günther, Hans-Ludwig. SK6, § 32, n.m. 93; Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 168.

[123] Dias, Jorge de Figueiredo. PG2, p. 162.

[124] Costa, José de Faria. Noções fundamentais de direito penal (Fragmenta iuris poenalis). 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2009. p. 242-245, onde assenta a responsabilidade jurídico-penal das pessoas jurídicas em um raciocínio inverso àquele que fundamenta a inimputabilidade formal (critério da idade).

[125] Para este tratamento unitário de ambas as formas de inobservância dos limites fáticos da legítima defesa: Joecks, Wolfgang. Grünwald-FS, p. 253 e 254; Rönnau, Thomas; Hohn, Kristian. LK12, n.m. 171. Ainda: Moura, Bruno. A não-punibilidade do excesso na legítima defesa, p. 113 e ss.

[126] Günther, Hans-Ludwig. SK8, n.m. 94.

[127] Para a metáfora, embora em outro contexto: Engländer, Armin. Grund und Grenzen der Nothilfe, p. 345.

ARTIGO
Ressocialização de menores infratores: Considerações críticas sobre as medidas socioeducativas de internação
Data: 24/11/2020
Autores: João de Deus Alves de Lima e Roberto Minadeo

Sumário: 1. Introdução – 2. O tratamento destinado à criança e ao adolescente no ordenamento jurídico brasileiro; 2.1 A infância desassistida; 2.2 Direitos fundamentais das crianças e adolescentes; 2.3 O E.C.A – Estatuto da criança e adolescente; 3. A ressocialização dos jovens infratores e as medidas socioeducativas; 3.1. Ato infracional; 3.2. Medidas socioeducativas; 3.2.1. Natureza; 3.2.2. Fundamento; 4. Conclusão.

Resumo: Este estudo traz uma breve reflexão acerca do delicado tema da ressocialização de menores infratores por via das medidas socioeducativas de internação, fazendo uma análise dos elementos históricos que envolvem a questão da delinquência juvenil no Brasil desde o período colonial até a adoção do Estatuto da Criança e do Adolescente, seus limites, alcance e possibilidades, bem como dos principais fatores que tornam raras as experiências exitosas dessas medidas na consecução de seus objetivos.

Palavras-chave: Ressocialização – Menor infrator – Delinquência juvenil.

1. Introdução

O presente artigo se propõe a fazer algumas considerações críticas sobre os principais fatores que tornam insatisfatórios os resultados alcançados por via das medidas socioeducativas de internação, trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente para a ressocialização de jovens infratores no Distrito Federal.

Seja direta ou indiretamente se tem pretendido cada vez mais (re)inserir, na área da infância e juventude o jovem infrator ao convívio da sociedade. Dessa forma, o regime de internação imposto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente como medida socioeducativa cumpre seu papel?

A questão da delinquência infantojuvenil, suas origens e seus desdobramentos remontam ao passado histórico do Brasil colônia. O Estatuto da Criança e do Adolescente foi inserido em nosso ordenamento jurídico com a proposta de romper com os modelos até então adotados, haja vista que se mostraram infrutíferos aos seus propósitos, notadamente ao mais nobre deles que é a ressocialização do jovem infrator. Contudo, tal como será analisado no presente estudo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, apesar de ser uma legislação avançada, parece ainda não haver produzido os resultados que dela se esperam, posto que as medidas socioeducativas, que na maioria dos casos não foram devidamente desvinculadas da ideia de pena e, por conseguinte, não educam nem regeneram, ou seja, não cumprem seu papel ressocializante, ao contrário, revoltam e aumentam a tendência para o crime.

A metodologia aplicada para alcançar o objetivo proposto foi a pesquisa bibliográfica, apoiada, ainda, em dados oficiais constantes de bancos de dados oficiais, buscando compreender os limites e possibilidades na aplicação da medida socioeducativa de internação como alternativa adequada para reintegrar jovens infratores. Para tanto, o universo da pesquisa se aplica ao Distrito Federal, mais especificamente à Unidade de Internação de Menores Infratores da Asa Norte, não como estudo de caso, mas como pesquisa de caráter social e exploratória para se averiguar a eficácia da medida na atual conjuntura da delinquência juvenil e seu papel na efetiva ressocialização.

Após a introdução do Estatuto da Criança e do Adolescente em nosso ordenamento, o tratamento destinado aos jovens infratores melhorou. Atualmente, não se fala mais em “menor”, mas sim em “criança e adolescente”, novas categorias de pessoas já apresentadas pela Constituição Federal de 1988. Também não se diz mais “infração penal”, mas utiliza-se o termo “ato infracional” (o que inclui crime e contravenção penal[1] ), e, finalmente, não existe mais apenas o “Juiz” como única autoridade competente para atuar perante a prática de ato infracional, sendo a nova autoridade administrativa o “Conselho Tutelar”, o qual possui atribuição de prestar atendimento à criança, pessoa com até 12 anos de idade incompletos. Nota-se, assim, que a criança deixou de ter um atendimento por parte de um ente singular, investido de uma função jurisdicional, para ter atendimento por uma autoridade administrativa (não jurisdicional) e colegiada.

Todavia, há de se destacar que as medidas preconizadas pelo referido diploma não resolvem a maioria dos casos de adolescentes infratores. E, muito embora a infância e a juventude sempre tenha mobilizado especial atenção por apresentar um texto legal considerado dos mais avançados em termos de garantia de direitos e por reconhecer a fase evolutiva de um sujeito em desenvolvimento como merecedora de cuidados específicos, ela também se confronta com uma estrutura social e uma realidade conjuntural que limita significativamente a sua efetiva aplicabilidade. Por isso, em nosso país tem-se acirrado um amplo debate sobre a violência praticada por adolescentes e a suposta impunidade trazida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (“recheado de direitos”), sendo esses os principais fatores que motivaram a presente pesquisa.

2. O tratamento destinado à criança e ao adolescente no ordenamento jurídico brasileiro

2.1  A infância desassistida

Inicialmente, importa trazer um breve histórico do tratamento dado à criança e ao adolescente no Brasil desde o período colonial, contudo, não se pretende levantar exaustivamente as fundações, entidades e serviços, mas sim analisar a legislação quanto às medidas de proteção enunciadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

No período colonial o Brasil assume o modelo português no trato à criança e ao adolescente em que existia a Roda dos Expostos como prática institucionalizada, ao que posteriormente ocasionaria o grande problema do abandono e do aumento de atos infracionais. De origem europeia, este dispositivo engenhoso era composto por um cilindro, fechado por um dos lados, que girava em torno de um eixo e ficava incrustado nos muros dos conventos, com uma campainha a ser acionada quando uma criança era colocada na roda e esta era girada, de modo que o “doador” do recém-nascido não fosse visto. Com as novas formas de vida social e familiar, devidas à intervenção médica e diante da reestruturação do instituto da família, fez com que “o sentimento de família surgisse nas camadas burguesas e nobres do antigo regime, onde se estendeu, posteriormente, através de círculos concêntricos, para todas as classes sociais, inclusive o proletariado do fim do século XIX”.[2] Dessa forma, cria-se nas famílias o sentimento de respeito à vida e à honra familiar, e o dispositivo da Roda veio ao encontro dos anseios da época: rompia, sem escândalos, o vínculo de origem de “produtos” de alianças indesejáveis, depurando as relações sociais das mulheres que transgrediam as leis familiares.

No Brasil, a primeira Roda foi instalada em Salvador, antes do ano de 1700, sendo que o Império Português regulamentou tal prática em 1806, atribuindo às casas de misericórdia a função assistencial aos órfãos e abandonados. Todavia, as Casas dos Expostos, embora fundada com o intuito de proteger a honra da família e a vida da infância, terminou por produzir efeito oposto ao inicialmente previsto, uma vez que, passou a ser um apoio seguro às transgressões sexuais de homens e mulheres, pois estes destinavam seus filhos ilegítimos às casas de misericórdia.

Segundo enfatiza Jurandir Freire Costa, com a “nova política governamental do higienismo não só redefiniu a urbe, como passou a disciplinar a vida privada das famílias pobres, com intuito de discipliná-las”.[3]

Ainda conforme o mesmo autor, “de protetora da honra, a casa tornou-se um incentivo à libertinagem”.[4] Por outro lado, o que realmente gerou críticas às Rodas, principalmente dos higienistas, foi a alta taxa de mortalidade das crianças que eram expostas. Os estudos então realizados demonstravam que a família colonial era funesta à infância. Por meio de uma política de inserção nas famílias, os higienistas buscaram alterar tal postura familiar mediante uma reorganização doméstica. Paralelo a isso, considerando-se o contexto socioeconômico, pode-se perceber que a atuação higienista visava também a que a família colonial acompanhasse as profundas mudanças que passaram a ocorrer no Brasil a partir da segunda metade do século XIX.

Desde o período inicial da República, o legislativo era cobrado para a elaboração de um código de menores que estabelecesse regras àqueles que não se adequassem ao padrão exigido pela sociedade. E no Brasil, segundo Roberto da Silva citado por Daniele Comin Martins, os Códigos de Menores de 1927 e 1979 “adotaram, progressivamente, políticas eminentemente estatais para o atendimento à criança e ao adolescente, concretizando-se um processo de institucionalização responsável por uma trajetória jurídica que quase sempre levava o ‘menor’ à condição de presidiário”.[5]

Havia, pois, a necessidade de um Código de Menores não só pelo fato de que inexistia qualquer lei específica para crianças e adolescentes,[6] mas também pela mentalidade determinista, que prevalecia no período, que entendia que a criminalidade tinha origem na menoridade abandonada. Sob este signo, as discussões extrapolaram a teoria, incidindo no plano prático: os problemas ligados ao abandono e à delinquência fazem com que surjam novos tipos de instituições disciplinares, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Diferentemente das concepções das antigas casas dos expostos, nesta fase, que pode ser “classificada” como filantrópico higienista, as “novas instituições disciplinares visavam não apenas excluir os menores sob sua guarda, mas torná-los política e economicamente produtivos, cidadãos moralizados e trabalhadores”.[7]

Portanto, a criação de instituições de caráter correcional deveu-se às preocupações da sociedade civil articulada em associações filantrópicas para atuar na área de omissão do Estado. Nesse sentido, segundo Maria da Glória Ghon citada por Rosmeri Aparecida Dalazoana Gebeluka, são muito ilustrativas para caracterizar precisamente tal período:

“O Código Penal de 1891 já se preocupava com a questão da infância e da juventude e traz regras de inimputabilidade penal de acordo com as faixas etárias. Em seguida, em 1899 surge no Rio de Janeiro o Instituto de Proteção e Assistência à Infância, entidade filantrópica que atuava diante da omissão do Estado”.[8]

Na virada deste século, a questão da infância no Brasil era entendida como problema social grave e estudada no conjunto dos problemas sociais gerados com o advento da República (abolição dos escravos, imigração de mão de obra europeia etc.); mas nessa época já se apontava a presença de número significativo de crianças na rua.[9]

No início do século XX, mais especificamente ao longo da década de 20, o país teve considerável aumento no número de entidades privadas para atendimento a órfãos, abandonados e delinquentes, sendo a maioria delas vinculadas à Igreja Católica.

Assim, com um crescente movimento em favor da infância abandonada e delinquente e com a criação pioneira de um Juízo de Menores em 1923 por Mello Matos, elaborou-se uma legislação voltada ao menor de 18 (dezoito) anos, que cristalizou um novo projeto de institucionalização. O Código de Menores promulgado em 1927 desenhou uma política assistencialista de responsabilidade do Estado, em que o Poder Judiciário tornou-se ente hegemônico no trato das questões sociais referentes à criança e ao adolescente, de modo a garantir o controle social ao Estado. Para sua época, o Código de Menores de 1927 representou um avanço expressivo no tratamento da criança e do adolescente.

O referido diploma, conforme já frisado anteriormente, cria mecanismos disciplinares de controle da categoria institucional “menor”, ignorando as diversidades que ela abrangia: expostos, abandonados, crianças infratoras etc., o que gerou o estigma desta categoria, uma vez que as instituições eram responsáveis, por uma trajetória jurídica e institucional que, quase inevitavelmente, levava o “menor” à condição de presidiário,[10] de modo que, “para garantir essa trajetória, a lei concebe os parâmetros gerais e as instituições garantem a reprodução concreta do processo de sujeição”.[11]

Entre as décadas de 20 e 70, formou-se no Brasil, sobretudo dentro do Poder Judiciário, uma escola “menorista”, adotando-se a “Doutrina do Direito do Menor” que só seria superada em 1979, quando se promulgou o Código de Menores, que vigeu sob a “Doutrina da Situação Irregular”. A transição entre os Códigos de 27 e de 79 só ocorreu efetivamente com a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor. Assim, somente em dezembro de 1964, com a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar (Funabem), é que se concretizou definitivamente o processo de institucionalização e se transferiu plenamente ao Estado a responsabilidade com crianças e adolescentes. É importante ressaltar que a Funabem foi criada em um momento de ampla reforma, causada pelo Golpe Militar de 1964, que iniciou a outorga de uma nova Constituição Federal e a decretação de vários atos institucionais, como o Ato Institucional 5, cuja intenção era a repressão a qualquer insurgência contra o governo e contra o regime instaurado, de modo que alguns dos direitos fundamentais foram mitigados.

Em contrapartida a tal situação, o governo militar procurou conter a insatisfação popular por meio da criação de mecanismos de cunho social, adotando uma política paternalista e assistencialista que mantivesse o controle social (de maneira implícita). Regida pela ideologia da Segurança Nacional, o campo de trabalho da Funabem era junto a uma parcela de menores ligados ao processo de marginalização. Sua atuação voltava-se ao afastamento da criança do meio em que vivia classificado como “à margem da lei e dos bons costumes”, ou seja, a criança era retirada da família, a quem se atribuía a responsabilidade pela situação em que o menor se encontrava. Tornou-se comum a prática de destituição do pátrio poder e, consequentemente, passara a haver milhares de “sentenças” de abandono que justificavam a internação das crianças até 18 (dezoito) anos, o que gerou a categoria dos “filhos do governo”. Em termos oficiais, a política adotada pela Funabem era assistencialista. Sucedida pela Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), que nada inovou na política adotada anteriormente, todas as atuações dessas instituições tiveram caráter imediatistas, paliativas e embasadas na filantropia cristã. Ademais, no transcorrer do tempo, fugindo de suas propostas originais, a Funabem, assim como sua sucessora Febem, passou a atuar diretamente como agente, desvirtuada dos objetivos inicialmente previstos, em nome de sua finalidade educacional de atendimento em internatos e semi-internatos, conduziu a sua atuação por meio de programas indefinidos, marcados por irregularidades e mesmo regimes carcerários de internação, segundo o autor Norival Acácio Engel que cita a doutrinadora Tânia da Silva Pereira.[12]

Classificadas em dois tipos: assistencialistas (para crianças carentes e abandonadas) e repressoras (para crianças infratoras), as unidades da Febem tiveram seus enfoques de tratamento invertidos, de modo que nas unidades assistencialistas aplicava-se “a disciplina em nome da ordem” e nas unidades repressoras aplicava-se “a disciplina em nome da segurança”.[13] Notoriamente, a realidade por trás dos muros dessas instituições jamais correspondeu às expectativas de reeducação ou ressocialização. Pois, segundo frisa Rosmeri Aparecida Dalazoana Gebeluka, “tais políticas sociais ainda eram compensatórias, assistencialistas e centralizadas, e o tratamento repressor havendo inclusive denúncias de maus tratos dentro das instituições”.[14] Sendo que a bem da verdade, tais instituições serviram e (ainda servem) para esconder “parcela significativa de crianças e jovens em dita situação de irregular”, tal como preceituado pelo art. 2.º do Código de Menores.

É importante ressaltar que, com a entrada em vigor do novo Código de Menores, em 1979, quase nada se modificou em relação ao Código de 1927 e à política adotada em 1964. Em termos gerais, pode-se dizer que o Código de Menores de 1979, baseando-se na mesma política filantrópica e assistencialista das legislações anteriores, tentou manter afastados da sociedade os problemas relacionados com a infância e adolescência. Assim, em todo o período que vai de 1927 a 1990, quando o Código de 1979 é revogado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, prevaleceu a política assistencialista de abrigo aos menores, que ingenuamente pode ser vista pelo caráter de prestação de socorro aos necessitados, mas que, por outro lado, a partir de um enfoque crítico, revela-se que o assistencialismo praticado refletiu não só a necessidade de retirar das ruas crianças e adolescentes que começavam a incomodar a sociedade amedrontada pela crescente marginalidade, mas também uma “ação política de manutenção do status quo do atendido, pois, certamente, esta ação não tem preocupação de alterar as condições em que o miserável vive”.[15]

Segundo Rosmeri Aparecida Dalazoana Gebeluka citando Maria da Glória Gohn:

“A sociedade civil nos anos 60, 70 e 80 começou a elaborar novos programas baseados em premissas de alternativas comunitárias. No final da década de 70 surgiram várias pesquisas sobre o problema do menor abandonado, que concluíram que o tratamento dado à criança e ao adolescente até então, de caráter assistencial, caritativo, com fins correcionais, sempre esteve equivocado”.[16]

A concepção de infância e adolescência é, a partir deste momento, reconstruída sob um novo paradigma, extrapolando aqueles ditados pelo Estado até o momento. Durante os anos 80 a sociedade civil se organizou em torno desta problemática. Movimentos não governamentais passaram a denunciar o tratamento brutal que o Estado dava às crianças, a total falência das entidades de internação e os extermínios de crianças e adolescentes que ocorriam.[17] Norteando-se pelos princípios constitucionais que passaram a vigorar em 1988 e também pela Declaração Universal dos Direitos das Crianças, as organizações mobilizaram toda a sociedade e, de forma mais enfática, a área jurídica (para uma reforma no plano legal relativo à infância e adolescência), culminando com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em junho de 1990.

Baseado nos princípios da cidadania, do bem comum e da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, o ECA positivou inúmeras medidas inovadoras baseadas na Política de Proteção Integral à criança e ao adolescente. No âmbito das instituições, houve a gradativa extinção dos internatos. Elevados à condição de sujeitos de direitos, criança e adolescente receberam inúmeros novos direitos – bem como deveres – que passaram a garantir-lhes um tratamento diferenciado daquele dado até então.

A questão da criança encontra respaldo sem precedentes no tratamento dado à temática infantojuvenil na Constituição Federal de 1988.

Objetiva-se neste item do estudo, ainda, delinear indicadores fundamentais da análise que está sendo desenvolvida neste estudo, demonstrando a trajetória das crianças e adolescentes socialmente desfavorecidos,[18] de “menor infrator” à posterior condição de presidiário, e o papel da família e das instituições utilizadas até hoje como meio de substituição familiar enquanto responsáveis por esta trajetória. Verifica-se que, o tratamento dado à criança e ao adolescente até os dias de hoje é insuficiente para sanar a questão da delinquência juvenil e está enraizado na estrutura da família.

Segundo bem enfatiza Marcela Geske diversos são os elementos responsáveis pelos crimes praticados por jovens, e segundo frisa Orlando Soares, na realidade a questão envolve:

“(...) as causas da criminalidade e fatores criminógenos complexos, tais como a desagregação da família, as difíceis condições econômicas e de existência, o analfabetismo, a miséria, a fome, a escandalosa e insidiosa apologia da violência generalizada, das toxicomanias e aberrações sexuais, propagandas pelos meios de comunicação social, sob o disfarce de críticas e comentários, ou seja, uma propaganda subliminar, tipicamente darwinica, que rende muito dinheiro ao poder econômico e ao crime organizado. Sendo que, dentre eles, os que mais se destacam são: a marginalização social e a desestruturação familiar”.[19]

Muitos defendem que, o delinquente em potencial é sempre aquele que advém das camadas pobres da população, como se o único fator gerador de criminalidade fosse sua condição social. Certo que, não se pode dizer que tal afirmação seja uma mentira completa, mas há que se perceber que existe aí uma verdade distorcida. É evidente que a criminalidade está disseminada em todas as classes sociais. É importante analisar os vários fatores que podem contribuir para a formação de um indivíduo criminoso, o que não é o objeto desse trabalho, uma vez que esse assunto se refere ao campo da criminologia. A proposta deste capítulo é analisar os elementos que têm sido responsáveis pela trajetória de crianças e adolescentes institucionalizados, que desembocam numa permanente reincidência institucional, perpassando o mundo do crime e indo do internato à prisão.

Segundo Rosa Maria Fischer Ferreira “pode-se apontar a marginalização social de amplas camadas da população de baixa renda como um dos fatores responsáveis por esta trágica história social de meninos institucionalizados”.[20] Mas, há que se fazer a ressalva de que tais grupos marginalizados não estão nesta condição marginal por sua essência, mas, sim, pela forma e grau de inserção no sistema capitalista, que cada vez mais diminui o custo da força de trabalho ou a exclui por completo, com vistas à acumulação de capital e manutenção de sua reprodução ampliada, sem que, todavia, este fator seja exclusivamente responsável pela institucionalização ou mesmo marginalização de todos aqueles que estão em condições de exclusão. Fator de cunho econômico, a marginalização resulta do desenvolvimento desenfreado e perverso do capital ao lado do crescimento desestruturado das cidades, garantindo-se, assim, a exclusão de grande parte da população do sistema educacional e, consequentemente, do próprio mundo do trabalho, em face da falta de perspectiva de inserção no mesmo.

Segundo Daniele Comin Martins, citada por Marcela Geske: “a marginalização ocorre pela forma e grau de inserção de crianças e adolescentes no sistema capitalista, o qual cada vez mais reduz o custo da força de trabalho”.[21] E hoje grande contingente da população do nosso país sofrem, como resultado imediato da exclusão social de que são vítimas, uma total impossibilidade de ascensão social e até mesmo de automanutenção no sistema capitalista. As famílias que sofrem a marginalização são, de fato, muitas vezes, levadas a permitir a saída para as ruas em busca de trabalho ou institucionalização de suas crianças, uma vez que não possuem mecanismos para viabilizar a sociabilidade, educação, enfim, a criação e desenvolvimento pleno de seus filhos. Contudo, em paralelo ao fator econômico da marginalização e, consequentes problemas em torno da infância e adolescência desassistidas, outro fator, também de grande relevância, na institucionalização dos meninos de rua é a desagregação familiar ou mesmo sua total ausência.

A categoria “infância” aparece como sujeito diferenciado no mundo dos adultos depois do século XVI, quando a nova organização familiar consagra a centralidade da infância na família. Apesar disso, a família, a escola e a igreja têm se mostrado incapazes de dar conta do pleno processo de sociabilização da criança e do adolescente, sem que isso signifique que a ordem econômica e social é o fator responsável pela falência da instituição familiar. Contrariamente, estudos têm evidenciado que é a desestruturação familiar geradora de negligência ou abandono do tratamento a ser dado às crianças e adolescentes que tem sido a grande responsável pelo fatídico rumo de institucionalização.

Ainda segundo Daniele Comin citada por Marcela Geske, a “desestruturação ocorre ante a ausência de experiência afetiva, falta de laços parentais e abandono moral, dificultando, assim, a sociabilização dos jovens”.[22]

A prática de criminalizar a juventude pobre é antiga em nosso país e visível desde a criação do Juízo de Menores em 1923 bem como mantido até nos dias de hoje, após o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei federal 8.069/1990, e cria “uma classe potencialmente criminosa, mantendo desta forma a sociedade desatenta às violações dos direitos de crianças e adolescentes das classes populares”.[ref23] Assim, os processos de institucionalização de crianças e adolescentes surgiram como um dispositivo jurídico policial com o objetivo de proteger e sociabilizar a infância e adolescência, mas que, na realidade, significaram apenas o afastamento de crianças e adolescentes marginalizados pela desestruturação familiar do convívio social.

Segundo a doutrinadora Irene Rizzini citada por Rita de Cássia Oenning: “as técnicas e os saberes científicos passam a ser usados para justificar as necessidades de reforma deste menor, resultando numa prática excludente e discriminadora – colocando-os em reclusão, sem direito à defesa”.[24] Essa prática ainda vigente em nossos dias é resquício do modo como a Justiça para crianças e adolescentes se desenvolveu em décadas de disciplina, de repressão e de punição daqueles que tinham a infelicidade de não poder conviver no meio familiar.

Por trás de um discurso recuperador, pedagógico e não punitivo, a Justiça para “menores” transformou as práticas de poder punitivas em práticas de poderes disciplinares.[25] O menor, sempre visto como matriz do futuro criminoso, apareceu com destaque na concretização das novas relações de poder e conhecimento.

Foucault, em sua obra Vigiar e punir, ao relatar a forma como eram aplicadas as sanções normalizadoras, mostrou que não só em orfanatos, mas em todos os sistemas disciplinares, na essência, “funciona um mecanismo penal”.[26] A disciplina imposta nas instituições de atendimento à criança e ao adolescente cria a subordinação irreversível de uns em relação a outros, impedindo qualquer desenvolvimento de personalidade ou identidade, ao mesmo tempo em que, assim como a punição, ela “vem aplicar-se seletivamente a certos indivíduos e sempre os mesmos”.[27]

A institucionalização e seu poder disciplinar funcionam, portanto, como preparação para a posterior inserção no sistema prisional. Dentro das instituições, meninos e meninas aprendem a usar a violência como elemento mediador de suas relações e passam a identificar a instituição como sua protetora e a sociedade como sua inimiga, como aquela que os rejeitou. No que diz respeito à reação a todo este sistema elencado, o fato de se tornar infrator foi à resposta comportamental do menino à violência peculiar com que se defrontou na sociedade e com a qual ele não estava preparado para lidar.

Assim, a saída dessas crianças e adolescentes das instituições está gravada com o retorno a outro ambiente disciplinar ou punitivo, já que eles foram condicionados a viver dentro de uma instituição e não dentro de uma sociedade livre e competitiva que os tinha excluído anteriormente.

Logo, as instituições, embora criadas para proteger e educar crianças e adolescentes acabaram se tornando verdadeiras “fábricas” de delinquentes. Estas “fábricas” têm o mesmo tipo de funcionamento que as prisões, cuja realidade também é a de perpetuação do indivíduo encarcerado no crime. Importa frisar que, as instituições prisionais, as quais foram concebidas para aplicação da pena e com o objetivo da ressocialização do indivíduo criminoso, têm um fracasso notório em todos os lugares do mundo quando se busca este objetivo, em especial no que tange o objetivo da ressocialização.

Prova disso é que o índice de reincidência dos jovens infratores é muito alto, em que atualmente, no Brasil temos:

23,1 milhões de crianças entre 0 a 6 anos;

27,2 milhões de crianças e adolescentes entre 7 a 14 anos; e

10,7 milhões de adolescentes entre 15 e 17 anos.[28]

Sendo que, ainda segundo a Fundação Abrinq, citada por Ermenegilda de Fátima Dias Perino:

“A grande maioria das crianças e adolescentes são moradores na região Sudeste (23,5 milhões) e Nordeste (19,2 milhões) do Brasil. As regiões Norte e Centro-Oeste têm 5,7 milhões e 4,2 milhões de adolescentes. No Brasil, 35,9% da população total é constituída por crianças e adolescentes. Nas regiões Norte e Nordeste, este percentual aumenta para 44,5 e 44,1%, respectivamente”.[29]

Estudos comprovam, pois, que instituições fechadas como as prisões e os internatos para menores não conseguem realizar qualquer ressocialização do indivíduo pelo simples motivo de que o estado de isolamento social humilha o institucionalizado, que passa a viver não mais sob as normas sociais, mas sob uma sistemática endurecida voltada a uma forma de socialização intramuros, de modo que o interno se adapta, paulatinamente, aos padrões e à moral da prisão/internato, ocorrendo na prisão fechada e internatos. A lógica dos internatos voltados aos menores (Febem e Funabem) é a mesma das prisões voltadas aos imputáveis, de onde se depreende que a sistemática repressiva e segregatória de funcionamento de ambas é fator de grande influência na trajetória de criminalidade daqueles que acabam institucionalizados.

2.2  Direitos fundamentais das crianças e adolescentes

Conforme já mencionado, a questão da criança encontra respaldo sem precedentes no tratamento dado à temática infanto-juvenil na Constituição Federal de 1988. Muitos dispositivos exprimem a obrigatoriedade de proteger os direitos da criança e do adolescente, e, especialmente, destaca-se o art. 227, que define:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

A expressão real do compromisso do Estado, como promotor dos direitos infantojuvenis, está prevista no art. 227, § 1.º, ao dispor que “o Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida à participação de entidades não governamentais”. Tal assistência é corroborada pelo art. 203, II, o qual prevê a sua prestação a quem dela necessitar, involuntariamente de contribuição à seguridade social, com ênfase no amparo às crianças e adolescentes carentes.

O dispositivo mencionado define a idade mínima de 14 anos para a admissão ao trabalho, ressalvado o disposto no art. 7.º, XXXIII, ainda proíbe expressamente “o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito e de qualquer trabalho aos menores de quatorze anos, salvo na condição de aprendiz”.

2.3  O ECA – Estatuto da Criança e Adolescente

O ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado pela Lei 8.069, de 13.07.1990 regra as conquistas da Constituição Federal em benefício da infância e da juventude, e ademais promove a defesa jurídica e social de crianças e adolescentes.

Vale lembrar o que frisa Daniele Comin Martins:

“O Estatuto da Criança e do Adolescente positivou uma política funcional voltada à proteção integral da criança e do adolescente baseada em mecanismos não mais repressivos, mas pedagógicos e de respeito à condição peculiar de desenvolvimento dos sujeitos de direitos que tutela. Fixou-se uma Justiça de caráter preventivo, nos termos do artigo 4.º, caput, do ECA, que prevê como dever do Poder Público assegurar-se o direito da criança e do jovem à convivência e desenvolvimento no meio familiar”.[30]

No âmbito do atendimento a crianças e adolescentes em condições de risco pessoal e social, o referido Estatuto renuncia as técnicas subjetivas e discricionárias do direito tutelar tradicional e insere salvaguardas jurídicas, atribuindo à criança e ao adolescente a condição de sujeitos de direitos perante a administração da justiça.

Ainda segundo Daniele Comin Martins citando Munir Cury: “Portanto, Política de Atendimento prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente extrapola o assistencialismo paliativo e a filantropia, consagrados nos diplomas menoristas anteriores. Assim sendo, é pertinente dizer-se que a política de atendimento prevê ações que, historicamente, nunca fizeram parte dos programas dinamizados pelas políticas públicas brasileiras. E as prevê exatamente em razão dessa histórica ausência”.[31]

Verifica-se que referido estatuto cria e prevê em seu art. 131 os Conselhos Tutelares, os quais visam garantir a aplicação eficaz das propostas estatutárias. Tais conselhos são órgãos permanentes e autônomos e não jurisdicionais, ou seja, incumbidos pela sociedade de cuidar do cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes. Assim, toda vez que os direitos e garantias forem violados, por ação ou omissão do Estado ou da sociedade, competirá aos Conselhos Tutelares tomar as medidas de proteção cabíveis, ajuizando, quando necessário, uma representação junto à autoridade judiciária competente.

Além disso, o ECA constitui um marco normativo excepcional na temática da criança e do adolescente, pois acima de tudo visa assegurar às crianças e aos adolescentes seu total desenvolvimento físico, mental e social, com liberdade e dignidade. Ainda prevê o Estatuto o entendimento de que as crianças e adolescentes devem ter a primazia na prestação de socorros, a preferência de atendimento nos serviços públicos, a preferência na formulação e execução de políticas sociais e, finalmente, a prerrogativa da destinação de recursos públicos para a proteção infantojuvenil. Tais primazias corroboram com os preceitos constitucionais mencionados anteriormente.

Ao definir no art. 86 do ECA, que "a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios", no bojo de uma política de atendimento descentralizada, cria os conselhos municipais, estaduais e nacionais de defesa dos direitos da criança e do adolescente. Referidos Conselhos de Direitos, formados de forma paritária em conjunto Governo e sociedade, agem como órgãos deliberativos e controladores das ações relativas ao domínio infantojuvenil, em todos os níveis de governo. Não obstante lhes sejam cominadas funções normatizadoras e formuladoras de políticas, os Conselhos de Direitos não possuem a função executiva, vez que, esta fica adstrita à competência governamental.

Verifica-se que o Estatuto ajusta-se aos princípios da descentralização política e administrativa e pela participação de organizações da sociedade. E, assim, alarga as atribuições do Município e da comunidade, e também diminui as responsabilidades da União e dos Estados, pois, à primeira cabe, unicamente, a emissão de normas gerais e a coordenação geral da política. Enfatizando-se, assim, a função do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), órgão colegiado deliberativo de composição paritária e função controladora das políticas públicas.

3. A ressocialização dos jovens infratores e as medidas socioeducativas

3.1  Ato infracional

Primeiramente, importa frisar a observação de Norival Acácio Engel, no sentido de que as legislações anteriores não conceituavam a conduta ilícita praticada pela criança ou adolescente, apenas se referia a ela como infração penal.[32]

Antes do Estatuto da Criança e do Adolescente o Código de Menores – Lei Federal 6.697 – rezava em seu art. 99, que: “O menor de dezoito anos, a que se atribua autoria de infração penal, será, desde logo, encaminhado à autoridade judiciária”, ou seja, a pessoa até dezoito anos de idade que cometia a infração penal deveria receber uma prestação jurisdicional.

Segundo dispõe o art. 103 da Lei 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente – o ato infracional é “a condutadescrita como crime ou contravenção penal”. Assim, referido dispositivo restaura o preceito constitucional contido no art. 228, reafirmando, desse modo, a inimputabilidade penal das pessoas com idade inferior a 18 (dezoito) anos, advertindo, pois, que continuam sendo sujeitos às medidas previstas naquela legislação especial. Dessa forma, metodicamente, restringe-se o poder de polícia, ou seja, o poder intervencionista do Estado, em que se limita formal e materialmente às opções políticas tomadas por efeito do alinhamento nacional às diretrizes internacionais dos Direitos Humanos, nesse caso, os intrínsecos às crianças e adolescentes. Não obstante, verifica-se que tanto a criança quanto o adolescente podem cometer ações conflitantes com a lei – então, designadas de atos infracionais – contudo, o tratamento legal será diverso, pois, como se pode verificar do teor do art. 105 do ECA, ao ato infracional praticado por criança, apenas corresponderão às medidas específicas de proteção, então, previstas no art. 101, da legislação especial.[33]

Importante ainda frisar que, a atribuição para aplicação de tais medidas compete ao Conselho Tutelar, e, não, diversamente, de competência do Juiz de Direito, conforme o inc. I do art. 136 do ECA. Pois, conforme já frisado, o teor do art. 103 dispõe que: “considera-se atoinfracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”, concluindo-se que, houve apenas a equiparação do fundamento fático do ato infracional ao que é considerado relevante e, por isso, também serve para a especificação do tipo penal, ou seja, a conduta legalmente expressa na lei (ação ou omissão), e, não, variavelmente, aos demais critérios que são utilizados para valoração negativa, tal como a antijuridicidade e culpabilidade, e, constitutiva que denota a conduta como delituosa, vale dizer, como crime para, assim, cominar responsabilização penal.

Para entender o conceito do ato infracional, importa antes analisar o conceito de crime e de contravenção penal. Sendo que, o crime, segundo Júlio Fabbrini Mirabete:

“Em consequência do caráter dogmático do Direito Penal, o conceito de crime é essencialmente jurídico. Contudo, ao contrário das antigas leis, o Código Penal vigente não contém uma definição de crime, que é deixada a cargo da doutrina. E assim, procura-se definir o ilícito penal sob três aspectos. Atendendo-se ao aspecto externo, puramente nominal do fato, obtém-se uma definição formal; observando-se o conteúdo do fato punível, consegue-se uma definição material ou substancial; e examinando-se as características ou aspectos do crime, chega-se a um conceito, também formal, mas analítico da infração penal”.[34]

Ainda segundo Mirabete, sob o prisma formal (aspecto externo) o crime é conceituado como: “fato humano contrário à lei”.[35]

No que tange ao aspecto material, conforme assevera Mirabete, não se construiu ainda um conceito material inatacável de crime, mas pode-se caracterizá-lo como “a conduta humana que lesa ou expõe a perigo um bem jurídico protegido pela lei penal”.[36]

Por fim, quanto ao conceito analítico de crime: “fato típico, antijurídico e culpável”. Consoante Norival Acácio Engel, segundo dispõe o art. 1.º da Lei de Introdução ao Código Penal – Dec.- Lei 3.914/1941, crime e contravenção penal são assim definidos:

“Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativamente ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal que a lei comina, isoladamente pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”.[37]

Assim, não se pode legitimamente dizer que a diferença entre ato infracional e crime reside tão somente na nomenclatura ou mesmo nas consequências jurídicas que são ao mesmo tempo cominadas legalmente e aplicadas judicialmente. Isso porque, o conteúdo normativo dos institutos jurídicos legais e o seu âmbito de aplicação, uma vez que, destinam-se a objetos e finalidades particularmente próprias, assim como as demais estruturas das respectivas consequências jurídicas, isso é, as medidas socioeducativas e as sanções penais também não podem ser confundidas, pois enquanto as primeiras possuem caráter essencialmente sociopedagógico, as segundas destinam-se primordialmente à retribuição (tempo) e prevenção, até porque a reeducação, ressocialização e reintegração são finalidades que parecem estar “esquecidas”.

Dessa forma, alguns doutrinadores apontam a importância de não confundir a conduta tida como fundamento fático (material) do tipo penal com o próprio crime, para, assim, nivelar idêntica dimensão comportamental (ação ou omissão humana) do ato infracional com um crime ou mesmo com uma contravenção penal, visto que apenas se equiparou o fundamento fático, isto é, a conduta descrita legalmente (tipicidade penal) como uma das espécies de “crime” ou de “contravenção penal”.

A doutrina se divide, e para Wilson Donizeti Liberati “não existe diferença entre o conceito de ato infracional e crime, pois de qualquer forma ambos caracterizam condutas contrárias ao direito e situam-se na categoria de ato ilícito”.[38]

Já segundo Norival Acácio Engel duas são as correntes, sendo que: “Uma, embora a conduta praticada pela criança ou adolescente esteja revestida dos elementos caracterizadores do crime ou contravenção penal, estes não se aperfeiçoam ante a imputabilidade daqueles, limitando-se aos fatos apenas os atos infracionais. Outra corrente que, não vislumbra diferenças entre o ato infracional e a contravenção, porque todos constituem condutas contrárias ao direito positivo, se situando na categoria de ilícito jurídico”.[39]

Diferenças que para o autor supracitado é meramente conceitual.

Por fim, importa lembrar que o referido Diploma Legal manifesta um conjunto de medidas que devem ser aplicadas mediante a autoria de ato infracional. Assim, conforme adverte Maria Aparecida Pereira Martins, às crianças, “cabe ao Conselho Tutelar as providências e encaminhamentos, aplicando as medidas de proteção”.[40] Já aos adolescentes, após efetuar o devido encaminhamento ao Ministério Publico, “a quem compete conceder remissão ou representar para a instauração de processo judicial, será aplicada a medida socioeducativa mais adequada, pelo Juiz da Infância e da Juventude”.[41] Consequentemente, cometido o ato infracional pelo adolescente, após o devido processo judicial, o mesmo está sujeito a medida socioeducativa mais adequada prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, expressando em verdadeiro chamamento a responsabilidade.

3.2  Medidas socioeducativas

Inicialmente, cumpre relatar que o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/1990, trata o adolescente, independentemente de ser ele infrator ou não, como uma pessoa em condições especiais de desenvolvimento, tanto que a eles destina legislação específica.

Segundo o referido diploma legal, em seu art. 2.º, o adolescente é aquele que “possui entre doze e dezoito anos de idade”. Pois, conforme o preceito constitucional e as normas infraconstitucionais nessa idade o adolescente é considerado penalmente inimputável.

Então, por conta da determinação legal o adolescente infrator sofre medida socioeducativa e não pena, até porque, ambas são distintas, sendo a primeira de cunho fundamentalmente pedagógico, porquanto a segunda de cunho predominantemente retributivo e sancionador. Mas, isso não quer dizer que o adolescente infrator fique impune. Este recebe sanção que condiz com sua idade e desenvolvimento psicológico que poderá suportar sem sequelas.

Todavia, aqui, o assunto também não é pacífico, pois segundo Norival Acácio Engel, parte da doutrina sustenta que as medidas socioeducativas “têm cunho unicamente educativo e ressocializador com o propósito de reabilitar o adolescente, enquanto outra corrente sustenta que muito embora visem à reeducação, guardam também caráter punitivo e retributivo”, entre elas citam as que restringem a liberdade, tal como a semiliberdade e a internação.[42]

Para Wilson Donizeti Liberati as medidas socioeducativas podem ser conceituadas como: “aquelas atividades impostas aos adolescentes quando considerados autores de ato infracional. Destinam-se a formação do tratamento tutelar empreendido, a fim de reestruturar o adolescente para atingir a normalidade da integração social”.[43]

Mas, o que importa é que muito embora haja divergências, primordial é a aplicação de medida socioeducativa com propósito de ressocializar e reeducar, pois, conforme já dito anteriormente, o adolescente se encontra em desenvolvimento psicológico e mental.

Dessa forma, as medidas socioeducativas devem ser aplicadas aos adolescentes infratores pelo Juiz da Infância e da Juventude, e importa considerar: “(...) a gravidade da situação, o grau de participação e as circunstâncias em que ocorreu o ato; sua personalidade, a capacidade física e psicológica para cumprir a medida e as oportunidades de reflexão sobre seu comportamento visando mudança de atitude”.[44] Ressaltando-se que, todo o procedimento tem participação obrigatória e fiscalização do Ministério Público.

O art. 112 do ECA prevê as medidas socioeducativas em conformidade com a gravidade do ato infracional aplicado, e estas são:

1. Advertência – consiste na admoestação verbal, reduzida a termo e assinada, em que o juiz da infância e da juventude procurará repercutir positivamente no íntimo do infrator circunstancial e sobre seus familiares, aos quais também se destina indiretamente a medida.

2. Obrigação de reparar o dano – medida que poderá ser aplicada quando o ato infracional repercutir patrimonialmente. Esta medida poderá trazer um ressarcimento útil à vítima.

3. Prestação de serviços à comunidade – é medida socioeducativa alternativa à internação, em que o adolescente infrator realizará serviços gratuitos e de interesse geral à comunidade. O período de seu serviço não poderá ser superior a seis meses e nem a oito horas semanais, sendo prestado aos sábados, domingos, feriados, ou mesmo durante a semana, desde que não afete sua frequência escolar ou sua jornada de trabalho. Com intento preventivo, pedagógico e repressivo, determina a legislação pertinente que o jovem prestará seus serviços em entidades assistenciais, escolas, hospitais, creches, asilos e estabelecimentos congêneres, desde que sejam entidades filantrópicas. Tal medida será aplicada ao jovem infrator, quando presentes a materialidade e os indícios suficientes de autoria da prática de ato infracional.

4. Liberdade assistida – medida de caráter educativo e preventivo de fundamental importância, em que o adolescente infrator será atendido em meio aberto. É dirigida, de regra, a adolescentes reincidentes, que terão um programa especial de atendimento e que serão supervisionados por autoridade competente, para serem reintegrados à comunidade, à escola e ao mercado de trabalho.

5. Semiliberdade – esta medida socioeducativa objetiva reintegrar o adolescente à sociedade, de forma gradual, fazendo que ele trabalhe e estude durante o dia e recolha-se ao estabelecimento de atendimento no período noturno. Cabível, de regra, aos adolescentes que não possuem responsáveis por si e aos que apresentam um âmbito familiar inadequado para o auxílio a sua reinserção.

6. Internação – realça o aspecto pedagógico, mas também surte efeito punitivo, principalmente nas medidas restritivas de liberdade.

3.2.1 Natureza

No que tange à natureza das medidas socioeducativas, novamente volta-se às discussões intermináveis, uma vez que, parte da doutrina, especialmente a defensora do Direito Infracional,[45] afirma seu caráter pedagógico, contrariamente, os defensores do Direito Penal Juvenil sopesam uma dúplice natureza: pedagógica e retributiva (ainda que se possa discutir lato sensu a natureza das penas no sistema como um todo).[46] Resultado disso: os defensores da primeira corrente, por repudiarem a utilização das normas do Código Penal, acabam não raras vezes, mitigando o gozo de garantias constitucionais e de princípios do diploma repressivo por parte dos adolescentes e os defensores da segunda corrente de pensamento,[47] ao contrário, defendem a disponibilização ao adolescente infrator do “garantismo penal e de todos os princípios norteadores do sistema penal enquanto instrumento de cidadania, fundado nos princípios do Direito Penal Mínimo”.[48]

Segundo Fabiana Schmidt, a medida socioeducativa remete a um controle social exercido de forma repressiva pelo Estado, trazendo diferentes significados para o adolescente, sobre os quais é possível referir: “A medida socioeducativa, seja pena, ou seja, sanção, significa, para seu destinatário, a reprovação pela conduta ilícita, providência subsequente que carrega em si, seja a consequência restritiva ou privativa de liberdade, ou até mesmo modalidade de simples admoestação, o peso da aflição, porque sinal de reprovação, sinônimo de sofrimento porque segrega do indivíduo um de seus bens naturais mais valiosos, a plena disposição e exercício da liberdade”.[49]

Assim, no âmbito dos defensores do Direito Penal Juvenil, segundo Mário Volpi citado por Mauro Ferrandin, as medidas socioeducativas “comportam aspectos de natureza coercitiva, vez que são punitivas aos infratores, e aspectos educativos no sentido da proteção integral e oportunização e do acesso à formação e informação, sendo que, em cada medida, esses elementos apresentam graduação, de acordo com a gravidade do delito cometido e/ou sua reiteração”.

Assim, segundo essa corrente, o Estatuto da Criança e do Adolescente mudou paradigmas e rompeu, sim, com a lógica do Código de Menores passando a estabelecer um mecanismo de sancionamento, de caráter pedagógico em sua concepção e conteúdo, mas evidentemente retributivo em sua forma, “articulado sob o fundamento do garantismo penal e de todos os princípios norteadores do sistema penal enquanto instrumento de cidadania, fundado nos princípios do Direito Penal Mínimo”.[50]

Sobre o assunto ainda é importante levar em consideração a edição da Súmula 338 do STJ, segundo a qual “a prescrição penal é aplicável nas medidas socioeducativas”,[51] em que claramente se verifica o avanço do Direito Penal Juvenil, uma vez que, tal assertiva despiu não somente o caráter penal da medida, como deu fundamento à pretensão da corrente de doutrinadores que sustenta a dúplice natureza da medida socioeducativa.

3.2.2 Fundamento

Mauro Ferrandin citando Martha Toledo Machado consegue explanar o fundamento das medidas socioeducativas:

“As sanções cominadas ao adolescente infrator possuem natureza jurídica diversa da penal criminal, desta forma, são aplicadas numa sistemática totalmente diversa. Não há fixação rígida de parâmetro de apenação, baseado tão-somente no arbítrio objetivo da gravidade da infração como no sistema de penas mínimas e máximas do Código Penal. Ao contrário ao julgador se confere a possibilidade de escolha de qualquer das medidas socioeducativas previstas no art. 112 da Lei Especial, consideradas as circunstâncias objetivas e subjetivas do fato e a condição pessoal do autor, nos termos do caput e parágrafo primeiro do referido artigo. Mais do que isso, em respeito à Constituição Federal foram fixadas no art. 122 as hipóteses excepcionais de aplicação da sanção privativa de liberdade, estabelecendo-se que, a internação tão-somente é possível nos casos de fato cometido com violência ou grave ameaça a pessoa ou não reiteração ao cometimento de outras infrações penais mais graves”.[52]

Verifica-se que na sua fundamentação se pugna pela sanção proporcional não somente às circunstâncias e gravidade do ilícito praticado, mas também às necessidades do jovem e da sociedade; para que a medida de privação de liberdade seja aplicada realmente em casos excepcionais visando à promoção do bem-estar do menor.

Segundo Fabiana Schmidt um estudo e levantamento elaborado pela Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, “no período de 01/08/2006 a 15/08/2006 o número total de internos no sistema socioeducativo de meio fechado no Brasil é de 15.426 adolescentes, sendo a maioria (10.446) na internação (...)”;[53] outros estão em internação provisória aguardando a resolução do processo, e outros, em semiliberdade.

Ainda segundo o estudo citado pela autora, houve “um aumento expressivo na taxa de crescimento da lotação do meio fechado no país entre os anos de 2002 – 2006, correspondendo a 28%”,[54] em que se destaca que:

“Esse crescimento nacional da utilização dos regimes de meio fechado – que implicou na continuidade do quadro de superlotação das unidades apesar da ampliação significativa no número de vagas, resultado da construção e reforma de unidades em todo o país – nos traz a obrigação de reforçar a primazia das medidas de meio aberto, preconizada pelo SINASE. Destaca-se a necessidade de um mapeamento nacional dessas medidas, mapeamento até então inexistente”.[55]

Relata Fabiana Schmidt que a “implantação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) busca romper com a lógica punitiva que insiste em estabelecer-se na efetivação das medidas socioeducativas, com uma proposta parte da realidade atual, onde é analisada a situação atual dos jovens autores de atos infracionais”.[56]

Ainda segundo o documento em comento, cita-se os seguintes elementos referentes às medidas socioeducativas:

Foco nas medidas de meio fechado, mas sem reverter a tendência à crescente prisionalização, acompanhada da criminalização da adolescência pobre; Privação de liberdade nem sempre tem sido usada em situação de excepcionalidade e por breve duração;Privação de liberdade tem se constituído em privação de direitos dos adolescentes;Nomeação de estabelecimento educacional se torna, muitas vezes um eufemismo.[57]

E entre os princípios básicos apontados pelo documento do Sinase, pode-se destacar os mais importantes:

Marco legal em normativas internacionais de direitos humanos e o adolescente como sujeito de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento; Respeito à diversidade étnico-racial, gênero e orientação sexual; Garantia de atendimento especializado para adolescentes com deficiência e em sofrimento psíquico; Afirmação da natureza pedagógica e sancionatória da medida socioeducativa; Primazia das medidas socioeducativas em meio aberto; Reordenamento das unidades mediante parâmetros pedagógicos e arquitetônicos.[58]

4. Conclusões

Analisando o exposto anteriormente, o Direito da Criança e do Adolescente almeja sim a proteção integral, definindo seu conteúdo os objetivos do desenvolvimento saudável e da integridade e seus instrumentos genéricos de garantia estão materializados nos princípios do respeito à condição peculiar de pessoa em processo de desenvolvimento e de prioridade absoluta – e como sujeito de futuro exercício pleno de cidadania.

Os três elementos, já citados anteriormente – capacidade do adolescente para cumprir a medida, circunstâncias e gravidade da infração – apresentam-se como instrumentos de ponderação para a aplicação das medidas socioeducativas, que devem ser compatíveis com a ótica da proteção integral na medida em que projetam na escolha da medida adequada, instrumento de pacificação social baseado na expectativa de construção e desenvolvimento de valores que permitam ao adolescente enfrentar os desafios do convívio social sem que para isso tenha que recorrer ao uso da violência e da ilicitude.

Assim, quando apurada a prática de ato infracional, o adolescente deverá ser encaminhado à autoridade competente; esta, após propiciar-lhe o devido processo legal, deverá cominar alguma das medidas socioeducativas elencadas no art. 112 da Lei Especial. Ressalva-se que, a expressão “autoridade competente” já foi alvo de acirradas discussões, posicionando-se a maior parte da doutrina pela prerrogativa de aplicação da medida ser tanto do Magistrado, quanto do Promotor de Justiça. Mas, tal impasse se acertou com a edição da Súmula 108 do STJ, a qual dispôs que “a aplicação de medidas socioeducativas ao adolescente, pela prática de ato infracional é de competência exclusiva do juiz”.[59] Contudo, remanescem ao Ministério Público as competências, no sentido de promover o arquivamento, representação ou concessão de remissão[60] ao adolescente infrator, sendo que a remissão condiciona-se à presença de defensor, pois, muito embora seja omisso o art. 126 do ECA, com fulcro nas garantias processuais indicadas no art. 111, III, do próprio Estatuto, é inconcebível aprovar que o adolescente infrator, desconhecendo as consequências da aceitação ou recusa da proposta, fique em situação de desamparo e, consequentemente, indefeso no sentido processual.[61]

Mauro Ferrandin bem ilustra sua contrariedade ao argumento, pois acredita ser desnecessário um defensor na ocasião da proposta de remissão ofertada pelo Ministério Público, “por ser meramente fase pré-processual – já que é anterior ao procedimento de apuração de ato infracional – além de considerar a principiologia do ECA quanto à premência da assistência de advogado, pode-se, no mínimo, equipará-lo ao que ocorre com o instituto da transação penal”.[62] Mas, se na fase de transação penal se faz imperiosa a presença do advogado na audiência preliminar, resta, por conseguinte, incoerente impor ao adolescente o gravame de não ter um advogado ao seu lado, posto que nem mesmo os adultos são submetidos a tal procedimento.

Cumpre assinalar aqui que a remissão poderá ser concedida ao adolescente infrator tanto na fase anterior à processual, quanto na fase posterior à instauração da relação processual, motivo pelo qual não procede a nulidade a ser arguida na hipótese de oitiva informal disposta no art. 179 do ECA.[63]

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João de Deus Alves de Lima

Mestrando em Ciência Política.

advogado

Professor de Direito Penal e Processual Penal.

Especialista em Direito do Estado.

Roberto Minadeo

Doutor em Engenharia de Produção.

Analista em C&T do CNPq.

Professor do Mestrado em Ciências Políticas do Centro Universitário Euro Americano – UNIEURO.

[1]    Art. 104 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”.

[2]    Martins, Daniele Comin. O Estatuto da Criança e do Adolescente e a política de atendimento a partir de uma perspectiva sócio-jurídica. Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 4, n. 1, 2004.Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2011.

[3]    Costa, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998.

[4]    Idem, ibidem.

[5]    Martins, Daniele Comin. Op. cit., p. 65.

[6]    Até a positivação do primeiro Código de Menores, em 1927, a criança e o adolescente, nos casos de delinquência, ou até mesmo de abandono, eram tratados como criminosos comuns.

[7]    Apud Martins, Daniele Comin. Op. cit., p. 65.

[8]    Gebeluka, Rosmeri Aparecida Dalazoana. Configuração e atribuições do Conselho Tutelar e sua expressão na realidade pontagrossense. Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual de Ponta Grossa. Disponível em: <www.bicen-tede.uepg.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=272>. Acesso em: 20 ago. 2011.

[9]    Idem, ibidem.

[10]   Apud Martins, Daniele Comin. Op. cit., p. 65.

[11]   Idem, p. 66.

[12]   Apud Engel, Norival Acácio. Prática de ato infracional e as medidas socioeducativas: uma leitura a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente e dos princípios constitucionais. Dissertação(Mestrado). Univali – Universidade do Vale do Itajaí. Itajaí, SC, 2006. Disponível em: <http://siaibib01.univali.br/pdf/Norival%20Ac%C3%A1cio%20Engel.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2011.

[13]   Martins, José de Souza (coord.). O massacre dos inocentes. A criança sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1993.

[14]   Gebeluka, Rosmeri Aparecida Dalazoana. Op. cit., p. 46.

[15]   Freitas, Bruno Rodrigues de. Redução da maioridade penal: inimputabilidade não pode ser confundida com imputabilidade. Monografia(Graduação). Universidade Católica de Goiás. Disponível em:

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[16]   Apud Gebeluka, Rosmeri Aparecida Dalazoana. Op. cit., p. 46.

[17]   Gebeluka, Rosmeri Aparecida Dalazoana. Op. cit., p. 46.

[18]   Entenda-se “crianças e adolescentes desfavorecidos socialmente” como aqueles que têm difícil acesso à escola, moradia, lazer, alimentação, saúde, bens de consumo e que, muitas vezes, são vítimas de violência física ou moral, ao sofrer abandono físico ou até abandono moral de suas famílias.

[19]   Geske, Marcela. Imputabilidade do adolescente no direito penal. Revista da ESMESC, v. 14, n. 20, 2007. Disponível em: <www.esmesc.com.br/upload/arquivos/3-1247227699.PDF>. Acesso em: 20 ago. 2011.

[20]   Apud Lordelo, E. R.; Carvalho, A. M.; Koller, S. H. (org.). Infância brasileira e contextos de desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. Disponível em: <www.msmidia.com/ceprua/site_cap.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2011.

[21]   Geske, Marcela. Op. cit., p. 218.

[22]   Geske, Marcela. Op. cit., p. 221.

[23]   Rizzini, Irene (org.) A criança no Brasil hoje – Desafio para o terceiro milênio.Apud Silva, Marília Márcia Cunha da. Sendo um adolescente delinquente. Disponível em: <www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/bh/marilia_marcia_cunha_da_silva.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2011.

[24]   Silva, Rita de Cácia Oenning da. O sujeito na infância: quando a visibilidade produz exclusão. Disponível em: <www.antropologia.com.br/tribo/infancia/SUJEIT~1.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2011.

[25]   Foucault, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1996.

[26]   Foucault, Michel. Op. cit., p. 145.

[27]   Idem, ibidem.

[28]   Abrinq. Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente. Apud Perino, Ermenegilda de Fátima Dias. A violência entre adolescentes no conjunto habitacional Orlando Quagliato no Município de Ourinhos: realidade ou mito?. Dissertação(Pós-Graduação). Universidade Estadual Paulista. Disponível em: . Acesso em 20 ago. 2011.

[29]   Perino, Ermenegilda de Fátima Dias. Op. cit., p. 22.

[30]   Martins, Daniele Comin. Op. cit., p. 67.

[31]   Martins, Daniele Comin. Op. cit., p. 67.

[32]   Engel, Norival Acácio. Op. cit., p. 36.

[33]   Brasil. Lei Federal 8.069, de 13.07.1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. “Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: I – encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II – orientação, apoio e acompanhamento temporários; III – matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV – inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII – abrigo em entidade; VIII – colocação em família substituta. Parágrafo único. O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade”.

[34]   Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. Parte 1. São Paulo: Atlas, 2001.

[35]   Ibidem, p. 95.

[36]   Ibidem, p. 96.

[37]   Engel, Norival Acácio. Op. cit., p. 38.

[38]   Liberati, Wilson Donizeti. Adolescente e ato infracional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.

[39]   Engel, Norival Acácio. Op. cit., p. 42.

[40]   Martins, Maria Aparecida Pereira. Medida socioeducativa de internação. Secretaria de Cidadania e Trabalho Superintendência da Criança, do Adolescente e da Integração do Deficiente do Estado de Goiás, 2000. Disponível em: <www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/8/docs/medida_socio_educativa.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2011.

[41]   Idem, p. 5.

[42]   Engel, Norival Acácio. Op. cit., p. 76.

[43]   Apud idem, ibidem.

[44]   Martins, Maria Aparecida Pereira. Op. cit., p. 6.

[45]   Segundo Mauro Ferrandin, dentre os defensores do Direito Infracional, estão: Alexandre Morais da Rosa, Paulo Afonso Garrido de Paula e Mário Luiz Ramidoff. Em suma, pretendem os doutrinadores do Direito Infracional demonstrar que o Direito Penal Juvenil em nada contribuirá para reenquadrar a distorcida visão sobre a política de implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, vez que o que merece ser sopesado são as medidas que visem coibir arbitrariedades por parte do Estado (Ferrandin, Mauro. Princípio constitucional da proteção integral e direito penal juvenil: possibilidade conveniência de aplicação dos princípios e garantias do direito penal aos procedimentos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. Dissertação (Mestrado). Universidade do Vale do Itajaí, 2008. Disponível em: <https://www6.univali.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=562>. Acesso em: 20 ago. 2011).

[46]   Alexandre Morais da Rosa revela que a medida socioeducativa não melhora, nem piora o adolescente: é agnóstica, tendo em vista ser avessa a de qualquer fundamentação jurídica, satisfazendo-se em refletir mero ato de força estatal (Apud Ferrandin, Mario Luis. Op. cit., p. 42).

[47]   Saraiva, João Batista Costa. Desconstruindo o mito da impunidade: um ensaio do direito (penal) juvenil. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2011.

[48]   O Direito Penal Mínimo reconhece a necessidade de prisão para determinadas situações e propõe a construção de penas alternativas, reservando a privação de liberdade para casos de risco efetivo social. Busca nortear a privação de liberdade por princípios como o da brevidade e o da excepcionalidade, havendo clareza que existem circunstâncias em que a prisão se constitui em uma necessidade de retribuição e educação que o Estado deve impor a seus cidadãos que infringirem certas regras de conduta (Apud. Ferrandin, Mario Luis. Op. cit., p. 42).

[49]   Schmidt, Fabiana. Adolescentes privados de liberdade: a dialética dos direitos conquistados e violados. Dissertação (Pós-graduação). Faculdade de Serviço Social da PUC-RS. Porto Alegre, 2007. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=870>. Acesso em: 20 ago. 2011.

[50]   Ferrandin, Mario Luis. Op. cit., p. 43.

[51]   Idem, ibidem.

[52]   Ferrandin, Mario Luis. Op. cit., p. 49.

[53]   Schmidt, Fabiana. Op. cit., p. 26.

[54]   Idem, ibidem.

[55]   Ibidem.

[56]   Schmidt, Fabiana. Op. cit., p. 26.

[57]   Idem, ibidem.

[58]   Schmidt, Fabiana. Op. cit., p. 27.

[59]   STJ – Superior Tribunal de Justiça. Súmula 108. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2011.

[60]   Poderá ocorrer a remissão em dois instantes: antes do recebimento da representação contra o adolescente, quando terá o intuito de excluir o procedimento de apuração do ato infracional e no decorrer do processo, onde terá o intuito de excluir ou suspender o procedimento iniciado a partir da representação (Ferrandin, Mario Luis. Op. cit., p. 49).

[61]   Idem, ibidem.

[62]   Ibidem.

[63]   Segundo dispõe o art. 179 do ECA: “Apresentado o adolescente, o representante do Ministério Público, no mesmo dia e à vista do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial, devidamente autuados pelo cartório judicial e com informação sobre os antecedentes do adolescente, procederá a imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais ou responsável, vítima e testemunhas. Parágrafo único: Em caso de não-apresentação, o representante do Ministério público notificará os pais ou responsável para apresentação do adolescente, podendo requisitar o concurso das Polícias Civil e Militar” (Brasil. Lei 8.069, de 13.07.1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm>. Acesso em: 20 de ago. 2011).

ARTIGO
Um estudo acerca das relações entre a política criminal da sociedade de risco e a mídia: Abordagens críticas de suas influências em face da tutela penal da dignidade sexual infanto-juvenil
Data: 24/11/2020
Autores: Pedro Paulo da Cunha Ferreira

La liberdad del hombre, cualesquiera que sean sus limítes y el sentido en que se entienda, constituye la primera condición fundamental del ser ético, el presupuesto de ética y derecho

Armin Kaufmann

Sumário: 1.Introdução – 2. Cultura do medo, sociedade de risco e a ordem securitária na tutela penal da dignidade sexual de crianças e adolescentes – 3. A sociedade de risco e a vitimização sexual potencial de crianças e adolescentes – 4. A influência da mídia na determinação político-criminal de tutela penal da dignidade sexual infanto-juvenil – 5. Conclusão – Referências bibliográficas.

1. Introdução

O exame acerca do modelo de organização social vigente não se encerra como atividade crítica e apenas como objeto de um único ramo do conhecimento. As peculiaridades, sobre as quais se traçam as características que individualizam o atual arquétipo cultural, ensejam uma releitura à luz dos sistemas e subsistemas que coexistem às mudanças de paradigma. As alterações que rompem com as estruturas sociais e políticas de ontem inauguram com a pós-modernidade um novo cenário, cuja complexidade acentua o sentimento de medo.

A acentuação da tensão social, hodiernamente, é apenas um dos vetores que sinalizam e apontam para o fenômeno social estrutural da chamada “sociedade de risco”. Aliás, a expressão, já estigmatizada na Sociologia e apropriada, nos últimos tempos, pela Ciência Jurídica, comporta variações que sintetizam a representação da temibilidade pelo incerto, o que possibilita entendê-la também como “sociedade do risco, pelo risco e para o risco”.

Os sistemas sociais e seus subsistemas – o Direito, em sua generalidade, e o Direito Penal, particularmente – têm sofrido forte influência da inserção da cultura do medo. A ansiedade individual, construída e trabalhada a partir de dados comuns, passa a integrar no seio comunitário a mesma sensação, porém, doravante, experimentada coletivamente. Somada à histeria de massa, noticiada amiúde de modo dantesco, fragiliza o ânimo social, que consente e não dificilmente reclama pela (sensação de) segurança.

Como afirmado supra, este quadro permite cortes epistemológicos que detalham com clareza as causas e efeitos, em particular, bem como as interações entre cada um dos elementos que o compõe. Desse modo, elegem-se aqui relações entre o plano político-criminal das agências de criminalização e as agências informativas. Estas últimas, dotadas da retórica da insegurança e do medo, formatam a imagem da potencial vitimização sexual infanto-juvenil como a pauta de política penal a culminar, por fim, na reorganização dogmática, cujas consequências diretas não são outras senão o embaraço de construção do injusto penal.

Por essa razão, far-se-á uma análise dessa tessitura, ao considerar, contemporaneamente, ao contrário do proposto por Liszt, que o Direito Penal não é a insuperável barreira da política criminal, e, por isso, de superlativo relevo são as incursões da política criminal (parte do programa político do Estado) na dogmática penal, nas propostas de lege ferenda e, por fim, nas leis penais.

2. Cultura do medo, sociedade de risco e a ordem securitária na tutela penal da dignidade sexual de crianças e adolescentes

A organização comunitária ou a reunião de indivíduos em uma mesma unidade espacial representa a configuração organizacional originária do embrião social. A constituição natural de um grupo, inicialmente ligado por laços de parentesco e que posteriormente se desconstitui para criar um grupo maior, revela um processo evolutivo[1] que empresta à complexidade o elemento que denota essa diferenciação ou que influencia quase obrigatoriamente essa e outras alterações.

À medida que se entrecortam as fases dessa ruptura entre o antigo e o superveniente modelo social, a sistematização e o delineamento deste são marcados pela nítida identificação de elementos que contribuíam na configuração da transformação.[2]

A premente necessidade de aperfeiçoamento das técnicas de cultivo, métodos de contagem, construção de ferramentas e habitações, entre outras atividades cotidianas, geravam dividendos conducentes à agregação de valores em cada um desses campos. Muitas vezes essa busca pelo aperfeiçoamento decorria da necessidade de assegurar o homem dos efeitos dos incertos e inesperados riscos.[3] O perigo, como manifestação do risco, desenvolvia-se nas comunidades humanas anteriores à Revolução Industrial de uma forma bastante diferenciada, com características muito próprias. De forma redutoramente simplista, é possível afirmar que o risco era experimentado pela consciência comunitária como algo exterior à própria comunidade.[4]

O perigo tinha sua origem exógena ao em torno comunitário, tendo suas causas identificáveis no influxo do poder externo. As situações perigosas advinham de forças naturais ou estranhas como raios, tempestades, tufões, maremotos, epidemias, pragas, entre outras convulsões.

Em outros casos, as atividades internas que envolviam riscos, como a extração mineral, queimada e caça, eram inicialmente desempenhadas por aqueles vinculados a relações de subserviência escravagista. “O escravo, como res, podia ser posto em perigo,[5] pois o seu perecimento não determinava o desaparecimento de um membro da comunidade, implicava tão-só uma contabilização de custos e benefícios”.[6]

Nesse contexto, a preocupação geral com relação ao perigo consignava-o refratário, já que ora as causas do dano se originavam em bases naturais inevitáveis – e às vezes previsíveis[7] –, ora quando decorrentes de causas artificiais se tornavam irrelevantes, vez que não repercutia em perdas sensivelmente perceptíveis.

Dessa forma, a suscetibilidade ao dano era predominante, se comparada à sujeição temerária ao risco, o que implicava ultrarrelevância imediata dos resultados,[8] em detrimento do improvável ou eventual.

Denota-se, nesse sentido, um quadrante no qual se observa uma relação proporcional entre a necessidade de defesa e a forma utilizada para viabilizá-la. Assim, todo e qualquer mecanismo protetivo – mecânico, físico, natural ou artificial – compatibilizava-se com a intensidade do dano e da subtração de valores[9] que o mesmo acarretava.

Esse equilíbrio se modifica à medida que as novas situações perigosas de origem interna encontravam potencialidade lesiva cada vez mais significativa. O surgimento de novas técnicas afastou a temeridade dos riscos naturais, que passaram a ter uma margem mínima de antevisão,[10] justamente pelo desenvolvimento vertiginoso da tecnologia.

As revoluções tecnológicas, compreendidas desde a Primeira Revolução Industrial[11] até o advento da robótica, propiciaram meios que auxiliaram e continuam a auxiliar o encurtamento das barreiras entre o desenvolvimento e o estágio humano de evolução.[12] Por outro lado, congrega uma série de efeitos que, muitas vezes, ainda que previsíveis, não comportam, paralelamente, nenhuma estratégia que obstaculize as suas consequências deletérias, o que permite a perene manutenção do risco.

Daí o aspecto cíclico do espectro de perigo que, mesmo que não seja reflexo de fenômenos naturais, advém de comportamentos humanos. Nesse diapasão, busca-se conciliar os acima referendados mecanismos de defesa contra a realidade fenomênica, sendo a tutela jurídica uma fisionomia artificial da defesa e proteção contra os riscos, em momento[13] anterior e ulterior à sua projeção.

Assim, o Direito, concebido como um sistema aberto, segue dependendo em grande medida de seu entorno, sendo, de outro lado, completamente autônomo no âmbito de suas operações, quando admitido como sistema fechado.[14]

O Direito Penal tem sido reconstruído em virtude do gerenciamento paliativo dos riscos já permanentemente existentes e também dos riscos condicionados às alterações tecnológicas.

Os primeiros constituem fatores presentes na trivialidade criminal clássica, referente à tendência natural das pessoas de delinquirem,[15] comportando-se, assim, como sujeitos ativos de diversas condutas delitivas. Os segundos são os denominadores comuns resultantes da interação[16] entre a criminalidade habitual – presente no tecido social, como um dado automático de existência corriqueira – e a tecnologia a serviço quase que exclusivo de suas funções atípicas.

Desse ponto nodal surgem novos modos de operação delitiva, como frutificação da face negativa, porém não inimagináveis do desenvolvimento sociocultural, o que engessa o surgimento e manutenção da “nova criminalidade”,[17] e, claro, da denominada sociedade de risco.[18]

O extraordinário desenvolvimento tecnológico teve e continua tendo, obviamente, grandes repercussões diretas no incremento do bem-estar individual e social. Entre essas repercussões, ressaltam-se algumas dinâmicas, de consequências negativas, como a configuração do risco de procedência humana, como fenômeno social estrutural.[19]

Essa organização social está imersa em uma ontologia de incerteza e insegurança institucional que, no mais das vezes, apenas permite a identificação concreta ou abstrata do risco, sem, contudo, autorizar a visualização de sua origem, destino e intensidade.[20]

O desconhecimento acerca de seus elementos intrínsecos e das consequências exteriores acarreta um paralelismo entre o risco, a sensação de insegurança e o medo, como sentimento de receio ou desconforto psicológico, referente à sorte de algum acontecimento ou à contingência do comportamento de terceiros que conduza à ameaça pela inexatidão de seus efeitos.

“O medo,[21] -[22] como sentimento natural, tem um objeto determinado, mas que, multiplicado e vivido coletivamente, gera a angústia, diante da qual o perigo se torna tanto mais temível quanto menos claramente identificado”.[23]

A fobia pelo incerto ocasiona a urgência e a emergência dos sistemas formais e informais de segurança,[24] gerando o incremento geométrico das formas de alcance tanto da segurança considerada, como garantia de salvaguarda e proteção efetiva, quanto da busca pela sensação subjetiva de amparo e resguardo, para fazer frente ao receio da expectativa – remota e mediata – da vitimização. O quadro de pânico, que vitimiza a sociedade ante a espera do perigo iminente, faz com que as vítimas potenciais aceitem facilmente sugestões práticas de extermínio preventivo do perigo e de sua proveniência.[25]

Nessa esteia, o Direito Penal tem sua função primordial de exclusiva proteção de bens jurídicos transmudada para um aspecto profilático e saneador de “comportamentos considerados altamente reprováveis ou danosos ao organismo social”[26] que afetem – ou não – gravosamente a intangibilidade dos valores[27] positivos imprescindíveis à conservação e progresso social.

No plano resultante, essa alteração estrutural do Direito Penal tende a justificar a presença de medidas[28] – penas[29] – com fins primordiais de arrostar o perigo, gerando e conservando inominadas funções da pena alheias à prevenção em seu clássico sentido.

O campo do chamado Direito Penal sexual e, mais especificamente, do Direito Penal sexual infanto-juvenil, encontra uma sensibilidade maior a essa reorganização político-criminal de combate ao perigo. Por um lado, porque se trabalha com a tutela de bem jurídico-penal de natureza peculiar, marcada pela vulnerabilidade e também pela ductibilidade entre as clássicas formas de comissão delitiva; por outro, em razão do incremento das novas tecnologias que corroboraram na execução dos delitos.

A dualidade entre a fragmentariedade[30] e incriminação abriu caminho para a prevalência excessiva desta na diretiva de combate à criminalidade sexual infanto-juvenil. Afirma-se combate, pois o que se evidencia é o pan-penalismo tendente a erradicar não a vitimização sexual de crianças e adolescentes, e muito menos a primar pela tutela penal do bem jurídico dignidade sexual infanto-juvenil, mas sim neutralizar, a qualquer custo, as variantes que possam ensejar a quebra de um padrão institucionalizado de comportamento.

Talvez o dado mais problemático nesse contexto seja a forte influência da moral social no campo do Direito Penal sexual, dando vazão à origem de conceitos normativos da moral social, sobretudo em zonas limites, o que oportuniza a adoção de exigências de um dever-ser advindo dessa moral social, por meio da imposição coercitiva do Direito.[31]

A inserção desenfreada do moralismo funda um conteúdo jurídico baseado na espontaneidade insuscetível de coação, que dispensa a rigorosa tipicidade de seus imperativos, gerando a possibilidade de um Direito não mais disciplinado pela lúcida categoria normativa, mas sim por elementos abstratos e cambiantes à mercê da sistematização do que é estabelecido como moral.[32]

Conquanto exista um amplo rol de comportamentos moralmente condenáveis[33] do qual o Direito não se ocupa, há outros tantos que deontologicamente deveriam se encontrar externos ao âmbito de apreensão cognitiva do Direito, sobretudo do Direito Penal. É aqui que reside uma das preponderantes tarefas da política jurídico-penal, materializada na persecução dos limites fixados para evitar a transposição da moral ao Direito Penal e a sua posterior perda de legitimidade.[34]

“Neste sentido no Direito Penal em geral e muito especialmente no Direito Penal sexual, o legislador só deve intervir positivamente quando seja imprescindível para a proteção de bens jurídicos por todos reconhecidos, e assim também deve evitar incluir proibições ou termos de uma determinada moral sexual, sobretudo, porque há que se reconhecer, desde o plano sociológico, que há uma profunda mudança no comportamento e mentalidade sexual dos homens, que tem desprezado valores sexuais que a moral ou religião de antemão impunham”.[35]

Imperioso salientar que a moral, ora referida, não se encerra exclusivamente na manifestação de expressões ou elementos descritivos[36] do tipo carreados de valoração normativa, necessários à construção da tipicidade objetiva do injusto. A crítica, neste caso, vai além da formalidade normológico-estrutural, para se perder na gênese dos pressupostos político-criminais do Direito Penal sexual infanto-juvenil.

A penetração demasiada de elementos estranhos à normatividade penal gera, no campo específico da tutela penal da dignidade sexual de crianças e adolescentes, um exercício reflexivo e obrigatório na confirmação do bem jurídico tutelado nos casos em sejam alvos de abusos sexuais.

A dignidade transportada à exegese jurídica condensa grande riqueza de conteúdo referente à singularidade humana.[37] A sua espécie – dignidade sexual infanto-juvenil – representa a íntegra “formação física”[38] e psíquica da pessoa em peculiar estágio de desenvolvimento humano.[39] Refere-se à intangibilidade de ordem sexual característica daquele que, por circunstâncias ontológicas, não se encontra em condições de dispor volitiva e conscientemente acerca da sua maturidade sexual.

Desse modo “a dignidade sexual é o estado ou situação da criança e/ou adolescente em ver-se livre de danos concretos ou potenciais prejuízos à sua intangibilidade[40] sexual”.[41]

Desta feita, não é possível conceber, à luz do moderno Direito Penal sexual, outro bem jurídico que não a dignidade sexual infanto-juvenil naquelas incriminações em que o mote seja a tutela da inviolabilidade sexual de crianças e adolescentes. A nova denominação tenta afastar por completo as presunções[42] – relativas e absolutas – de vulnerabilidade concernente à sexualidade infanto-juvenil, gerando, na contramão da ofensividade penal, a concepção de que todo e qualquer comportamento que se insira no contexto (aparente) de vitimização sexual infanto-juvenil mereça a intervenção penal.

Associado a isso, advêm, concomitantemente, as medidas administrativas e judiciais, como as Comissões Parlamentares de Inquérito[43] -[44] e as diversas operações policiais empenhadas na investigação dos atos de pedofilia e de produção e divulgação de pornografia infantil.

É nessa conjectura que há a perniciosa fusão ou confusão de conceitos que massificam e unificam condutas reais e potencialmente lesivas à dignidade sexual de crianças e adolescentes em um mesmo delta. Este destoa sempre na repressão descontrolada de condutas excessivamente carentes de “antijuridicidade material”[45] na qual não se vislumbra uma autêntica lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico em epígrafe.

Como causa não unitária desse expansionismo, Silva Sánchez apontou, por meio da identificação da “maioria com a vítima do delito”,[46] um fator que fomenta o fenômeno da vitimização potencial ou virtual, completamente observável, outrossim, no campo ora objeto de análise.

3. A sociedade de risco e a vitimização sexual potencial de crianças e adolescentes

Viu-se do exposto linhas atrás que, da transição do modelo clássico de sociedade ao modelo contemporâneo, é possível observar o rompimento da temeridade dos riscos tradicionais que cede espaço à ubiquidade dos novos riscos[47] e instrumentos de perigo.

Tal dado, transferido ao Direito Penal, verticaliza modificações em seu interior, variáveis na subversão de sua finalidade, como expressão de sistema positivo. O Direito Penal afasta-se, pari passu, da função de tutela de ultima ratio de bens jurídicos para servir de instrumento de proteção da vítima.[48]

Essa condição, a seu turno, autoriza a (des)estruturação da teoria do bem jurídico, esvaziando-o de suas funções primordiais, mormente a função de garantia e “limite da dimensão material da norma penal”,[49] o que compromete a atividade legislativa jurídico-penal com a construção de estruturas típicas que apenas “lesionem ou coloquem em perigo autênticos bens jurídicos”.[50]

A discussão não gira em torno da incerteza acerca da relevância penal da dignidade sexual infanto-juvenil. Entende-se e concorda-se com a sua consagração[51] como objeto imprescindível de tutela penal.

O risco e a insegurança acerca da extensão do perigo no âmbito da criminalidade sexual infantil modulam uma sociedade cujos membros consentem nas respostas agressivas das “normas penais e das políticas simbólicas irresponsáveis, não raro (sub)produto do fenômeno medo do crime”.[52]

Ao conhecimento de cada novo caso de vitimização sexual de uma criança ou adolescente exsurge um sentimento coletivo de solidariedade para com a vítima, quer porque já constitui este um comportamento natural, quer por aqueles, já de antemão, colocam-se na posição de vítimas potenciais do fato protagonizado pelas vítimas reais.

“Essa identificação com a vítima conduz também, no panorama proposto por alguns autores, a entender a própria instituição da pena como mecanismo de ajuda à superação por parte da vítima do trauma gerado pelo delito (na denominada ‘viktimologische Straftheorie’)”.[53]

Esta reação constitui, ao lado da redescoberta da vítima, um dos fatores que potencializam a denominada “criminalização primária”.[54] O Direito Penal, concebido como um instrumento subsidiário de tutela, protege valores que são essenciais à comunidade, o que implica, necessariamente, seu valor global e generalizante, como um dado de interesse social e não exclusivo da vítima.

Desta feita, em que pese a sobreposição que se evidencia, nos últimos tempos, da figura da vítima aos bens jurídicos alvos de tutela, não pode essa inversão implicar no abandono dos princípios[55] constitucionais-penais. É possível a convivência harmônica entre os fins primordiais do Direito Penal e o papel de relevo conferido à vítima, mormente no que se refere às respostas punitivas e sua compatibilidade com o sentimento de justiça desta e da própria sociedade.

Essa revalorização da figura da vítima no cenário da criminalidade e na própria criminalização, como atividade de construção de novas condutas típicas, representa resquícios da herança da própria origem do sistema penal vigente.

Vera Regina Pereira de Andrade ensina que esse sistema punitivo deita raízes na escolástica medieval, assentada no ideário maniqueísta do dualismo bem e mal, na provecta e arcaica visão expiatória da pena como castigo pelo mal,[56] opondo, numa relação adversativa, autor e vítima, mantendo, assim, a sociedade numa relação de polarização.[57]

Essa divisão gera uma perceptível potencialização do medo e insegurança que, associada à ideia de vulnerabilidade ou fragilidade, dá origem a um terreno fértil a toda sorte de medo e instabilidade emocional e psicossocial.

O fenômeno da potencialização do medo não pode ser encarado apenas como o aumento significativo desse sentimento, mas também como a maximização da sensação de latência do perigo. No específico campo da vitimização sexual de crianças e adolescentes essa condição é agravada por dois fatores principais, dos quais é possível estabelecer uma relação quase que necessária de causa e consequência.

Refere-se à antecipação da ideia de fragilidade ou vulnerabilidade da criança ou adolescente, cujo peculiar estado de pessoa em desenvolvimento conduz a uma – correta e útil – presunção de especialidade se comparado aos adultos.

Todavia, o dado preocupante não se encerra nessa consagração principiológica, mas sim na sua malversação no campo da tutela penal da dignidade sexual infanto-juvenil. A sua consequência imediata na organização interna da dogmática penal revela um embaraço de construção do injusto típico, no qual sempre, ou na maioria das vezes, há uma confusão entre o resguardo do objeto material da conduta e o bem jurídico merecedor de tutela.

Entende-se aí um defeito de elaboração normológica, na qual a visualização legislativa passa ao concreto[58] sem se preocupar com a abstração indispensável à origem normativa penal, em que há a captação do bem jurídico e sua relação com a conduta a ser criminalizada.

Veja-se, por exemplo, o caso da denominada pornografia simulada infantil[59] cujo afã punitivista cede lugar a uma construção que ganhou espaço em algumas legislações, a exemplo da uruguaia, espanhola[60] e brasileira. Neste caso, no âmbito do tipo objetivo do ilícito, o objeto da ação aparece como manifestação real da noção de abstração e se projeta não a partir dessa ideia, mas sobre a noção mesma do bem jurídico.[61]

O objeto material parece ser a razão da incriminação e não mais a proteção efetiva do bem jurídico. Objeto jurídico e objeto material passam a perder a diferenciação semântica e conteudística, prejudicando a perspectiva da noção de que nem toda lesão ao objeto material constitua real ofensa ao bem jurídico.[62]

A incriminação da fabricação e/ou divulgação do simulacro de pornografia infantil baseia-se na repressão do estímulo da intenção e do ânimo. A produção do material não gera nenhuma margem de risco à dignidade sexual infanto-juvenil. O que existe é o aumento potencial do risco, vez que a previsão futura, incerta e inexata da ameaça ou lesão do bem jurídico é o fundamento da incriminação.

Daí uma característica constante dessa sociedade do risco, na qual cada vez mais inadmissível torna-se a espera pela concretude do perigo, ignorando o ulterior limite político-criminal do jus puniendi materializado na intervenção mínima[63] -[64] do Direito Penal.

Hodiernamente, com a profusão do risco social e o advento do novo modelo de organização social,[65] identifica-se também, no campo da tutela penal sexual de crianças e adolescentes, a utilização cada vez maior de medidas típicas de Estados de exceção como técnica de enfrentamento desse tipo específico de criminalidade.[66]

Por fim, inquestionável a existência de uma predominância do risco e do medo no concernente à vitimização de crianças e adolescentes no âmbito das ameaças sexuais. Esta predisposição ocorre, em especial, no campo analisado pela contribuição advinda da pressão dos setores de comunicação, que, invariavelmente, atuam direta e indiretamente no curso legislativo penal da tutela da dignidade sexual infanto-juvenil.

4. A influência da mídia na determinação político-criminal de tutela penal da dignidade sexual infanto-juvenil

A informação,[67] do latim, informatio ou informare[68] (instruir, esboçar, dar forma), está diretamente vinculada à ideia de um concatenamento de dados que, interligados, representam uma alteração – geralmente um acréscimo – tanto qualitativo quanto quantitativo no conhecimento do homem.

No mundo da globalização, dos negócios, transações, produções, e demais atividades econômicas e sociais, a informação constitui fator indispensável à própria existência e sobrevivência do homem. Não raro, nem sempre a informação se presta à sua função típica de conforto pelo conhecimento dos atos e fatos, mas também pelo incremento do medo e do desconforto psicológico advindo de seu conteúdo ou da forma como é repassada.

“A notícia sobre crime fascina a população desde há muitos séculos. Na Idade Média os bárbaros percorriam povoados difundindo seus romances, os quais, em sua maior parte, narravam histórias de assassinatos. As execuções eram públicas e se constituíam em um espetáculo em que se acendia a violência. O desaparecimento do suplício, a partir do final do século XVIII e começo do XIX, a despeito de espetáculos dantescos ainda isolados, marca o fim da festa da punição que tanto fascinava as pessoas”.[69]

Ainda que atualmente a informação, mormente a midiática, não atraia pura e simplesmente no tocante à exasperação das desgraças, sofrimentos e dores da vítima e de seus familiares, é patente a influência negativa que os noticiários policiais tem para o comportamento das pessoas.

Neste sentido, obtemperam acertadamente Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Júnior que o fascínio que o crime e o criminoso exercem tem duas funções para o ser humano. A primeira é a de diferenciação entre o “homem de bem” e o criminoso. O reforço desse estereótipo possibilita não restar dúvidas quanto à condição de pessoas honestas que cada um atribui a si próprio. Por outro lado, esse cenário serve à manifestação de incompreensibilidade da natureza humana; deve-se ver o crime mais do que uma fraqueza ou uma doença, uma energia que se segue, um brilhante protesto de individualidade humana quanto àquilo que não se compreende com perfeição na natureza humana e que escapa aos domínios do homem.[70]

A informação, lato sensu, em especial aquela carreada de sensacionalismo, maximizando o sofrimento, revivendo diuturnamente os detalhes do delito, reprisando a cena de agressão e explorando os protagonistas do crime, possui inquestionável poder. Poder este de deliberação, ação e mandamento; vigor, potência, domínio, influência e forma; recursos e meios.

Nessa senda, Nilo Batista afirma que a especial vinculação entre a mídia e o sistema penal constitui, por si mesma, importante característica dos sistemas penais do capitalismo tardio. Tal vinculação, marcada por militante legitimação do sistema penal – parceria na qual as fórmulas bisonhas do editorial ou do espaço cedido ao especialista concorde são menos importantes do que as mensagens implícitas, que transitam na mídia –, levou Zaffaroni a incluir, em seu rol de “agências de sistema penal”, as “agências de comunicação social”.[71]

O consenso comunitário – formado, sobretudo, pelos meios de comunicação social[72] – fomenta na consciência popular a ideia de uma situação de ruptura e, em função desta, determina, então, medidas alternativas de natureza emergencial que nem sempre correspondem a uma realidade tangível que justifique verdadeiramente essa intervenção.[73] Essa emergência[74] tem como base o fruto de recrudescimento da criminalidade e – que real ou irreal este fator – é aproveitado para se formar na consciência coletiva a referida ideia de ruptura, que determina nos legisladores e nos operadores do direito medidas caracterizadas como de emergência.

Nos dizeres de Cuerda Riezu, a capacidade que tem a mídia de alcance de suas mensagens até grande parte da sociedade permite-lhe desenvolver uma função didática com relação aos valores sociais, bem como com aqueles ligados ao interesse público. Esta função didática pode ser tanto positiva quanto negativa.[75]

A mídia promove a transmissão de imagens (de)codificadas da realidade, capacidade esta que se funda na alteração do conteúdo e significado dessa mesma realidade. A comunicação,[76] então, em suas várias formas, insere-se no conjunto de fatores que compõe o processo de socialização do sujeito cujo seguimento, a médio e longo prazo, faz integrar a maneira de ser da população que está submetida à sua influência.[77]

“A valorização da violência, o interesse pelo crime e pela justiça penal é uma prática enraizada na mídia, que encontra seu melhor representante no jornalismo sensacionalista. Utilizando-se de um modo próprio da linguagem discursiva, ágil, coloquial e do impacto da imagem, promove uma banalização e espetacularização da violência”.[78]

A grande maioria da população é constituída por aqueles que têm medo de vir a ser vítimas dessa violência, e que, em números praticamente insuscetíveis de serem conhecidos, provavelmente maiores do que os que aparecem, vêm efetivamente a sê-los, ou que, em números por sua vez calculáveis, estão sendo, ao mesmo tempo, sujeitos ativos e passivos de uma espécie de elaboração do seu medo, o qual pode levá-los a serem, eles mesmos, autores da violência.[79] -[80]

Todavia, insta delimitar a diferenciação da denominada opinião pública da chamada opinião da população. Ainda que a similaridade do termo conduza a uma identidade semântica, calha estabelecer alguma diferenciação substancial.

A opinião pública, como erroneamente se entende, não sintetiza a noção majoritária da sociedade acerca de uma dada realidade, muito menos reflete o espectro de opiniões existentes no seio social sobre os fatos isoladamente ou conjunto deles.

“Por outra parte, tampouco se deve exigir que a opinião pública[81] assim definida seja uniforme ou unânime, mas deve sim representar maiorias inequívocas ou tendências significativas”.[82]

Dessa forma, irrenunciável não aceitar a opinião pública como a concepção conjunta dos profissionais[83] (especialistas), mas não de qualquer deles, porém sim daqueles que podem difundir suas opiniões em razão da faculdade (possibilidade) de sua reiteração e de forte adesão por parte de muitos que – ainda que de maneira superficial – comunguem dos mesmos pontos de vista.[84]

Já a opinião popular ou opinião da população é, aqui, melhor entendida como os dividendos que os resultados da opinião popular causam na conformação da opinião particular de cada indivíduo. A partir dessa ponderação, invoca-se o respeitável entendimento de Díez Ripollés acerca da opinião popular ao afirmar que esta, como estado de opinião, não costuma ser um programa de ação, e, nesse sentido, não tem capacidade por si só de ascender à fase pré-legislativa.[85]

De outro turno, pela própria tessitura de Estado que se configura por intermédio do princípio democrático, expresso na análise literal de seu significado – como a revelação da supremacia da preferência do governo escolhido pelo povo, cujas vontades por meio deste se manifestam[86] –, é possível compartir de que, se a opinião popular não conjuga repercussões na atividade legiferante, o mesmo não se afirma a respeito da opinião do povo.

A opinião do povo sim congloba pressão que, recepcionada pelos meios de comunicação de massa,[87] especialmente mediante as chamadas pesquisas de opinião, consegue provocar propostas ou consentem no fomento das já existentes, tendentes à consecução do utópico[88] estágio de segurança plena – “libelo social e promessa casuística de governantes”[89] e parlamentares.

Essa, contudo, não é uma realidade político-social exclusivamente brasileira. Revela Cerezo Mir, em estudo sobre o incremento do rigorismo penal, que, nos últimos anos, observa-se em muitos países europeus uma preocupação crescente pela segurança[90] cidadã, que tem dado lugar à introdução de diversas reformas penais na direção do aperfeiçoamento da eficácia das penas, desde o ponto de vista da reafirmação do ordenamento jurídico (retribuição).[91]

Em termos de resultados práticos, quando no fluxo de retroalimentação entre sociedade e mídia,[92] encontram-se manchetes, anúncios, chamadas de telejornais, notas informativas ou outros enunciados com mensagens como: “Brasil o país da pedofilia”,[93] ou então recortes em letras garrafais: “Cresce assustadoramente o número de casos de pedofilia virtual”.

O sentimento de inquietude e revolta social ganha espaço, quando essas notícias chegam aos interlocutores, na voz de um inflamado comentador ou jornalista que tem a missão de contornar os fatos com sua espetacular capacidade de causar pavor e revolta naqueles que o vê e escuta, terminando, na maioria das vezes, seu diabólico discurso com jargões que sintetizam justamente aquilo que a população já amedrontada quer (e precisa) ouvir, dizendo todos quase que uníssonos: “isso é uma vergonha”. O crime e o criminoso são, para muitos desses, vergonhas, em especial aqueles que “ousam” praticar qualquer ato de violência sexual contra crianças e adolescentes.

Nos últimos tempos, nunca se ouviu falar tanto em pedofilia, pedófilos, pornografia infantil e abusos sexuais envolvendo crianças e adolescentes. Não obstante, não há razão para crer que os crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes estejam espalhados pelo país, até porque não se têm dados estatísticos que representem fielmente essa realidade. O que ocorre é um aumento das denúncias em consequência da maior atenção da mídia em relação a este tipo de criminalidade.[94]

O curso natural do alarme[95] como observa García-Pablos de Molina, é a desconfiança da população com relação ao sistema e suas instituições. Isso fomenta a autoproteção da vítima à margem da lei, com risco de notórios excessos defensivos, modificando estilos de vida de amplos setores da população, gerando contínuos comportamentos solidários para com outras vítimas e desencadeia, logicamente, uma política criminal[96] passional, baseada em um rigorismo desmedido de apelo à pena, pondo em perigo as conquistas racionais e humanitárias do presente.[97]

Salienta-se que, na tutela emergencial[98] da dignidade sexual de crianças e adolescentes, o apelo não se circunscreve apenas à pena, mas também a outras inominadas formas de punição, ou melhor, neutralização da potencialidade delitiva na qual se fundamenta a maior parte desses expedientes. Suas finalidades latentes são geralmente diversas, mas centram-se na “busca pela tranqüilidade, ainda que aparente, ao cidadão, apaziguar a opinião pública exaltada, exercer enfim uma função meramente simbólica”.[99]

O senso comum transmitido pelos meios de comunicação, especialmente pelos programas televisivos, contribui incondicionalmente para que o imaginário[100] popular creia na indiferenciação entre o pedófilo e o delinquente sexual ocasional ou habitual. A notícia não busca identificar em seus holofotes as particularidades de cada suspeito[101] de violência sexual infanto-juvenil. O já indiciado padrasto que, teoricamente, molesta a enteada na ausência da mãe funde-se e confunde-se com a figura do sujeito que atrai propositadamente meninos e/ou meninas, dando-lhes quaisquer atrativos para, em troca poder, com eles manter relações sexuais, movido por um desejo incontrolável de satisfação da lascívia, pois apenas assim consegue atingir sua realização sexual.

Idêntico enfoque tem aquele que, surpreendido com inesgotável quantidade de material pornográfico infantil, já de imediato é apontado como o idealizador ou produtor da referida pornografia.

Essa padronização da questão da vitimização sexual de crianças e adolescentes – ou a massificação do estado ou condição dos suspeitos dos atos de pedofilia – engrossa a política criminal de tutela penal da dignidade sexual de crianças e adolescentes, o que conduz à desordem metodológica na construção de estratégias duradouras de tutela efetiva do referido bem jurídico.

5. Conclusão

Cuidou-se, linhas atrás, inicialmente, da contextualização entre o atual paradigma social do risco e a sensação subjetiva (individual e coletiva) do medo em (des)acordo com os dados (ir)reais de vitimização sexual de crianças e adolescentes. A temática suscitada traz à baila o sempre presente e atual aspecto jurídico e político-criminal da função do Direito Penal e sua missão de tutela de bens jurídicos – neste caso, a dignidade sexual infanto-juvenil – e sua atípica, inominada e deturpada função de proteção à figura da vítima, real ou potencial, do delito.

A aceitação de que a recorrente forma de organização social incrementa a formatação anímica do medo surge como dado invariável à investigação dos fatores que contribuem na manutenção e mesmo aperfeiçoamento do quadro de expectativa, mediata e imediata, da vitimização sexual de crianças e adolescentes. O paralelo que se estabelece, a partir desse quadrante e a informação midiática, revela uma histeria de massa, cujo sentimento de insegurança, nem sempre calcado em experiências verdadeiramente concretas de periclitação, exigem respostas institucionais que façam frente à face objetiva de apreensão social.

Esse percurso se desenvolve no âmbito da propalada e utópica propaganda de segurança cidadã, como estágio ideal a ser alcançado, sendo oferecido como estratégia política de adesão popular aos planos de combate à representação de potencial ofensa à dignidade sexual infanto-juvenil. Daí surge a mais variada sorte de propostas legislativas inspiradas irracionalmente nos movimentos de pressão que, recepcionados pelas agências de informação, difundem o discurso punitivista como exclusiva alternativa de estabilização psicossocial e, falaciosamente, de evitação do aumento das cifras de violência sexual perpetrada contra crianças e adolescentes.

A informação midiática, ao revés de seu autêntico e fiel papel com a narração descompromissada dos fatos, busca, particularmente nestes casos, colorir a notícia com a retórica de que a prevenção negativa (geral e especial) é instrumento único do qual deve lançar mão o legislador – sem quaisquer reservas – para a consecução eficaz de combate à criminalidade sexual infantil. Ademais, no âmbito específico da criminalidade sexual infantil, a mídia tem movido notórios esforços em divulgar a deturpada “notícia” de que inexiste distinções consideráveis e relevantes, sobretudo no campo da responsabilidade penal, entre o delinquente sexual ocasional e/ou habitual e aquele cuja idiossincrasia o repute portador da parafilia pedofilia.

Essa padronização repercute perniciosamente nos pressupostos de conveniência e oportunidade – fundamentos da política criminal – que, transferida ao Direito Penal, mormente quando da atividade legiferativa, dá vazão a construções típicas flagrantemente em desacordo com a exclusiva proteção da dignidade sexual de crianças e adolescentes.

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Pedro Paulo da Cunha Ferreira

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR).

Especialista em Ciências Penais pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

[1] A expressão “evolutivo” não se refere a um sentido qualitativo de transformação, pois estar-se-ia admitindo uma classificação que descaracterizaria a organização social inicial, em prejuízo do reconhecimento de predicativos que conduzissem a valorações positivas e negativas, respectivamente, acerca da organização social de hoje e de ontem.

[2] Beck, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Daniel Jiménez, Jorge Navarro e Mª Rosa Borrás. Barcelona: Paidós, 1998. p. 32 e ss.

[3] Risco e perigo abarcam conceitos diferentes, mas ambos expressam situações supervenientes de dano ou lesão. O perigo refere-se à abstração do risco, como percepção sensorial. Transportado ao âmbito particular do sistema penal, a ideia de risco se mostra, como elucida Velludo Salvador, como um dos variados produtos da reflexão cultural (cf. Salvador Neto, Alamiro Velludo. Tipicidade penal e sociedade de risco. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 131).

[4] Costa, José Francisco de Faria. O perigo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 321.

[5] Dano e perigo se  classificam como conceitos normativos, já que não têm realidade física, dado serem ambos resultado de juízos valorativos. Paulo José da Costa Jr. chama atenção para a disputa de duas teorias na conceituação – divergente – do conceito de perigo. A primeira, de natureza subjetiva, sustenta que o perigo não é uma entidade concreta, mas sim uma representação (alegoria) da mente humana. Para os partidários dessa postura, o perigo não tem existência real e concreta. Já a contraposta teoria, denominada objetivista, apregoa que o perigo consiste em um trecho da realidade, não sendo apenas simples fruto do imperfeito conhecimento humano. Estaria, neste caso, o perigo ancorado nas experiências cotidianas. O mesmo penalista atenta para a irrelevância da disputa de cunho meramente filosófico das duas tendências supraexpostas, afirmando que, hoje, o posicionamento mais moderno tende a enxergar no perigo uma face objetiva manifesta pelas circunstâncias que podem provocar o dano e, também, por um aspecto subjetivo expresso no juízo de probabilidade de superveniência do dano (cf. Costa Júnior, Paulo José da. Nexo causal. 4. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 59 e ss).

[6] Costa, José Francisco de Faria. Op. cit., p. 322.

[7] Os riscos das catástrofes naturais como tempestades, terremotos e outros fenômenos eram incertos na medida em que não era possível antecipar-se ao seu advento, o que acabava por causar dificuldades na contenção de seus efeitos e consequências mediatas e imediatas.

[8] Faria Costa chama atenção para a consagrada fórmula de “die Tat tötet den Man”, para a qual o fato é o evento ou a modificação do mundo exterior que se consolida no tempo e no espaço na forma de um dano ou lesão. Tal fato ganha a imediatidade das coisas apreensíveis por meios dos sentidos (cf. Costa, José Francisco de Faria. Op. cit., p. 322).

[9] Refere-se aqui na redução dos valores inerentes a coisas. Estas revestem os valores à maneira pela qual o seu conteúdo ganha maior relevo expresso da utilidade.

[10] Nesse mesmo sentido: “A idéia de sociedade do risco conduz-nos, assim, a um mundo em que os riscos naturais apresentam-se cada vez mais previsíveis e controláveis, e por isso mesmo passíveis de serem reduzidas as possibilidades de concretização do perigo; de outro lado revela-nos uma catadupa de novos ricos, de inusitada dimensão, riscos incomensuráveis (...)”, vide: Câmara, Guilherme Costa. Programa de política criminal: orientado para a vítima de crime. São Paulo: RT/Coimbra: Coimbra, 2008. p. 130.

[11] Mesmo se comparada à Revolução Neolítica, que a antecedeu, ou à Revolução Energética, que se desenrolou na esteira de suas transformações, até a propalada Revolução Cibernética dos diais atuais, a Revolução Industrial foi uma das mais importantes entre todas as revoluções verificadas no decurso do processo histórico. Isto porque transformou radicalmente a história mundial (cf. Arruda, José Jobson de Andrade. Revolução industrial e capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 7-29).

[12] “A aparição do risco como fenômeno recorrente no cotidiano, e como elemento necessário à manutenção do sistema produtivo, caracteriza o modelo de organização social atual como uma sociedade de riscos. Os discursos produzidos neste modelo de sociedade passam a incorporar o risco como elemento central. O risco é ao mesmo tempo o elemento essencial para a sobrevivência do sistema de produção atual e figura assustadora que se quer reduzir ou limitar, a fim de preservar a segurança necessária para a manutenção de expectativas de preservação de bens jurídicos”. Sobre a nota, vide: Bottini, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo: RT, 2007. p. 22.

[13] Algumas circunstâncias permitem uma chancela a posteriori da ação potencialmente degradante. Em outros casos, não é permitida a suportabilidade efetiva dos efeitos da ação, o que exige a necessidade de proteção antecipada, quer pela gravidade da ação, quer pela suscetibilidade ou vulnerabilidade do bem alvo de proteção.

[14] Luhmann, Niklas. El derecho como sistema social. In: Gómez-Jara Díez, Carlos. Teoría de sistemas y derecho penal: fundamentos y posibilidad de aplicación. Lima: Ara, 2007. p. 104. Sobre a interação Direito Penal e sociedade, vide as considerações feitas por: Batista, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 22.

[15] Serrano Maíllo aponta que as teorias do controle social têm, na verdade, uma antiga tradição, que costuma remontar à Durkheim, ainda que seja esse um dado controvertido. Essas teorias baseiam-se na consideração de que as pessoas têm uma tendência (e não predisposição) a delinquir que se consumará, salvo a existência de motivações que a impeçam. Tais motivos detêm natureza de controles sociais informais (cf. Serrano Maíllo, Alfonso. Introdução à criminologia. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: RT, 2008. p. 232).

[16] A criminalidade vinculada às Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) é, indiscutivelmente, cada vez mais crescente e variada. As formas de surgimento concreto desses fenômenos são alvos de alterações com o passar do tempo, diante da adaptação das novas possibilidades ofertadas por essa categoria tecnológica. Tem-se nessa classificação a telemática – em especial a Internet –, podendo ser considerada como uma expressão da globalização ou, em um sentido inverso, considerar o mundo globalizado como fator-condição à origem desse sistema de comunicação (cf. Romeo Casabona, Carlos María. Dos delitos informáticos ao crime cibernético. Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, São Paulo, v. 4, p. 84-87, jan.-jul. 2006).

[17] Silva Júnior, Délio Lins. Crimes informáticos: sua vitimização e a questão do tipo objetivo. In: D’Avila, Fábio Roberto; Souza, Paulo Vinícius Sporleder de. Direito Penal secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: RT/Coimbra: Coimbra, 2006. p. 312.

[18] Para uma análise acurada da sociedade de risco e sua relação com o Direito Penal, indica-se a leitura de uma obra de referência no assunto, vide: Fernandes, Paulo Silva. Globalização, sociedade de risco e o futuro do Direito Penal: panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001.

[19] Silva Sánchez, Jesús-María. La expansión del Derecho Penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2. ed. Madrid: Civitas, 2001. p. 28. O mesmo autor ainda afirma: “A criminalidade, associada aos meios informáticos e à Internet (a chamada ciber delinquencia) é seguramente o maior exemplo dessa evolução. Nessa medida, acresce-se, inegavelmente a vinculação do progresso técnico e o desenvolvimento das formas de criminalidade organizada (...)”.

[20] “O cidadão anônimo diz: ‘estão nos matando, mas não conseguimos ainda saber com certeza nem quem, nem como, nem a que ritmo’. Essa é a análise feita por Silva Sánchez, ao tratar da institucionalização da segurança ao examinar a reação comportamental do indivíduo inserido nessa conjuntura social”. Para o autor, a sociedade pós-industrial, além de configurar uma sociedade de risco, cumula outra característica individualizadora, como uma objetiva insegurança ou ainda sensação de insegurança. Sobre a nota e os comentários do autor, vide: Silva Sánchez, Jesús-María. Op. cit., p. 28.

[21] “(...) ao mesmo tempo manifestação externa e experiência exterior, a emoção do medo, libera, portanto, uma energia desusada e a difunde por todo o organismo. Essa descarga é em si uma reação utilitária de legítima defesa, mas que o indivíduo, sobretudo sob o efeito das agressões repetidas de nossa época, nem sempre emprega com discernimento”. Sobre a nota vide: Delumeau, Jean. História do medo no ocidente. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. p. 23.

[22] O medo, como sentimento, foi, em tempos atrás, considerado como uma sensação menos nobre, típica dos mais humildes e pobres. O medo e a miséria eram faces da mesma moeda. Um vergonhoso quinhão que apenas uma parcela desprivilegiada da sociedade carregava consigo (cf. Sica, Leonardo. Direito Penal de emergência e alternativas à prisão. São Paulo: RT, 2002. p. 79).

[23] Idem, p. 80.

[24] A segurança urgente e necessária que pode existir em uma dada situação se localiza, em sentido positivo, em um arranjo cotidiano da expectativa, ou seja, sobre sua estabilização, e, em sentido negativo, sobre a punição no âmbito da defraudação de expectativas (cf. Hassemer, Winfried. Por qué no debe suprimirse el Derecho Penal. México: Instituto Nacional de Ciencias Penales, 2003. p. 12).

[25] Sica, Leonardo. Op. cit., p. 79.

[26] Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro: parte geral. 7. ed. São Paulo: RT, 2007. p.53.

[27] “A relevância axiológica do bem jurídico a rigor não só exerce reflexo no plano normológico do ordenamento positivo, mas também assume eficácia positiva na ordem e na precisa delimitação entre a respectiva essência conceitual de ordem moral”. Sobre a nota, vide: Polaino Navarrete, Miguel. El bien jurídico en el Derecho Penal. Sevilla: Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 1974. p. 292. O destaque excessivo da importância dos fundamentos ético-sociais na estrutura própria do conteúdo substancial do delito, sem a contrapartida de maneira proporcional de elementos de natureza essencial ao ordenamento jurídico penal, representa um caminho extensivo para a imprecisa delimitação dos âmbitos normativos do moral e do jurídico. Essa inversão geral, outrossim, gera uma equívoca compreensão acerca dos objetos de valoração penalmente tutelados.

Em alguns casos específicos, evidencia-se uma desordem na simetria entre os aspectos jurídicos e morais das condutas merecedoras de reprovação. Claramente, essa desorganização deságua no próprio afastamento do Direito Penal, como instrumento de tutela de bens jurídicos, para assumir a função de combate não apenas da criminalidade, mas também dos comportamentos amorais, ainda que estejam estes alijados da secante existente entre a moral e o direito, em especial o Direito Penal (cf. Henkel, Heinrich. Introducción a la filosofia del derecho: fundamentos del derecho. Trad. Enrique Gimbernat Ordeig. Madrid: Taurus, 1968. p.244.

[28] Cf. Ferreira, Pedro Paulo da Cunha. A castração química como alternativa no combate à pedofilia; algumas palavras acerca do Projeto de Lei n. 552/2007 e o modelo político-criminal emergencial. Ciências Sociais Aplicadas em Revista, Marechal Cândido Rondon, v. 9, n. 17, p. 113-125, 2009.

[29] Sobre essa concepção, recomenda-se o exame da obra de: Jakobs, Günther. Sobre la teoría de la pena. Trad. Manuel Cancio Meliá. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1998.

[30] “Esclareça-se que a fragmentariedade não quer dizer, obviamente, deliberada lacunosidade na tutela de certos bens e valores e na busca de certos fins, mas antes limite necessário a um totalitarismo de tutela, de modo pernicioso para a liberdade”. Sobre a nota vide: Prado, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: RT, 2003. p. 70.

[31] Greco, Alessandra Orcesi Pedro; Rassi, João Daniel. Crimes contra a dignidade sexual. São Paulo: Atlas, 2010. p. 36-37.

[32] Reale, Miguel. Filosofia do direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 710.

[33] “Efetivamente, não pode o direito prescindir de um fundo moral, de uma moral mínima, de um mínimo ético, sob pena de se instrumentalizar, em nome de um desmedido utilitarismo, o abuso e a tirania” (vide: Queiroz, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do Direito Penal: lineamentos para um Direito Penal mínimo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 74). Ademais, a imoralidade, contida num dado comportamento, apenas deve preocupar aos interesses do Direito Penal quando para muito além da violação de normas de cunho moral encerre uma autêntica e insuportável agressão particular a bem jurídico alheio. A moralidade, despida de concomitante violação a substratos jurídicos, não se serve, assim, de per se, aos requisitos indispensáveis e autônomos que lhes reconheça dignidade jurídica de bem penalmente relevante.

De outro turno, chama atenção Paulo Queiroz que “pode-se dizer que há imoralidades toleráveis, penalmente indiferentes, e as há intoleráveis em face dos danos sociais que produzem, e por isso, e, sobretudo por isso, são dignas de assumir significado penal. A imoralidade, enfim, é condição necessária, porém jamais condição por si suficiente para justificar politicamente a intervenção coativa do Estado na vida dos cidadãos” (cf. Queiroz, Paulo de Souza. Op. cit., p. 76). Ou seja, o recurso ao Direito Penal e, em particular, à pena criminal em um contexto de moralização social alijado, desse sentido de ofensividade a bens jurídicos, engendra apenas uma função inominada e atípica ao Direito Penal referente à disciplina de valores e virtudes aos destinatários da norma penal.

[34] Acerca da dicotomia moral e direito no contexto político-criminal, vide: Greco, Alessandra Orcesi Pedro; Rassi, João Daniel. Op. cit., p. 36.

[35] Chocano Rodríguez, Reiner. La violación sexual y los actos contra el pudor de menores. Revista Peruana de Ciencias Penales, Lima, n. 2, p. 758, 1994.

[36] Citem-se como exemplos expressões como: mulher honesta, bons costumes, atos obscenos, e outros termos vagos e imprecisos correlatos ao Direito Penal sexual.

[37] Costa, Helena Regina Lobo da. A dignidade humana: teorias de prevenção geral positiva. São Paulo: RT, 2008. p.33.

[38] Capano, Evandro Fabini. Dignidade sexual: comentários aos novos crimes do Título VI do Código Penal (arts. 213 a 234-B) alterados pela Lei 12.015/2009. São Paulo: RT, 2009. p. 65.

[39] Acerca dos princípios reitores do Estatuto da Criança e do Adolescente, em especial o princípio da peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, vide: Amin, Andréa Rodrigues. Princípios orientadores do direito da criança e do adolescente. In: Maciel, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 19-30.

[40] “Grande é a discussão no campo doutrinário sobre qual seria o bem jurídico tutelado nas incriminações que envolvam abuso sexual de crianças e adolescentes. As principais teses defendidas são no sentido de tratar-se da autodeterminação sexual, da liberdade sexual, do livre desenvolvimento, da dignidade sexual (posição aqui adotada) e da indemnidad sexual”. Sobre a nota, vide: Ferreira, Pedro Paulo da Cunha. Artigo 241-C da Lei n. 11.829/2008: a pornografia simulada e a questão da ofensividade penal na sociedade de risco. Boletim IBCCRIM, ano 17, n. 208, p. 19, São Paulo: IBCCRIM, mar. 2010.

[41] Idem, p. 18.

[42] Souza Nucci afirma que ainda paira na penumbra o resultado final do debate doutrinário e jurisprudencial referente ao caráter relativo ou absoluto da anterior ideia de presunção de violência. O autor promove críticas de que os tipos penais, na insistente violação do princípio da intervenção mínima, recusam a se adaptar aos dados da realidade social. “A lei não poderá, jamais, modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação (...) do princípio da ofensividade”. O legislador brasileiro se encontra travado em uma margem etária que não acompanha a evolução dos comportamentos humanos sociais. Sobre a nota e acerca do tema, vide: Nucci, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009, p. 37-38.

[43] Sobre a estrutura, funcionamento e finalidade das CPIs, vide por tudo: Frota, Hindemberg Alves da. Teoria geral das Comissões Parlamentares de Inquérito brasileiras, México, Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano, n. 20061, tomo I, 2006. 

[44] Cite-se, como exemplo, a CPI da pedofilia instaurada no início do ano de 2008, com vistas a investigar o uso da Internet na prática de atos de pedofilia. A Comissão foi iniciada a pedido do senador Magno Malta (PL-ES), com base nos resultados colhidos na Operação Carrossel da Polícia Federal, deflagrada em 2007, que contou com a participação de mais de 400 agentes da política incumbidos de cumprirem mais de cem mandados de busca e apreensão, em diversas cidades e diferentes Estados, relacionados à produção de pornografia infantil.

[45] Reale Júnior, Miguel. Teoria do delito. 2. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 89-117. Nesse mesmo sentido, Cf. Mir Puig, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. Trad. Cláudia Viana Garcia e José Carlos Nobre Porciúcula Neto. São Paulo: RT, 2007. p. 128-129.

[46] Cf. Silva Sánchez, Jesús-María. Op. cit., p. 52-60.

[47] Embora nítida a distinção entre as duas esferas de risco; tem-se que os riscos oriundos da sociedade hodierna caracterizam-se por atingir um número indeterminado de indivíduos, pois produzem macrovitimizações de mesma amplitude se comparado aos resultantes das catástrofes naturais (riscos tradicionais). A sazonalidade é outro predicado específico dos riscos clássicos, encontrando seu contraponto na ubiquidade dos novos riscos (cf. Câmara, Guilherme Costa. Op. cit., p. 133).

[48] À revelia das digressões existentes acerca do conceito e definição de vítima, adota-se aqui a posição proposta por Alessandra Greco, ao considerar, de forma mais acertada, como vítima àquela que sofre as consequências (diretas e indiretas, mediatas e imediatas) do crime. Não se entende como melhor concepção aquela que identifica sujeito passivo, vítima e titular do bem jurídico em uma mesma denominação. Todo e qualquer delito, mesmo os uniofensivos, repercutem não só ao titular do bem lesionado, mas também ao Estado enquanto sociedade política e, por conseguinte, à própria sociedade. Não é, nesse sentido, errôneo considerar que a vítima, figurada como elemento central de tutela do Direito Penal, ocasiona mácula à sua finalidade precípua. O Direito Penal não se serve da proteção da vítima, ou seja, de todos aqueles que sofrem os efeitos do delito. O Direito Penal se presta à tutela dos bens jurídicos que, com seus titulares, guardem uma relação de dependência. A licença para a utilização do Direito Penal como forma de gestão dos danos auferidos pela vítima implica no coerente ímpeto de otimizar essa gestão, já que se terão diversas vítimas para uma mesma ofensa ao bem jurídico. É o caso particular, por exemplo, dos abusos sexuais reais e simulados de crianças e adolescentes. Mesmo sendo a dignidade sexual infanto-juvenil o bem violado, os consectários desta lesão são sofridos pela cultura familiar, como os pais da criança vitimizada. Este conceito abrangente de vítima permite a visualização de uma sociedade majoritariamente amedrontada (cf. Greco, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: RT, 2004. p. 15-38).

[49] Prado, Luiz Regis. Bem jurídico-penal... cit., p. 60.

[50] Idem, ibidem.

[51] Sobre o reconhecimento do bem jurídico em tela, vide, as considerações, Barba Àlvarez, Rogelio. La indeminidad como bien jurídico en el entorno sexual del menor e incapaz. Revista do Instituto de Pesquisa e Estudo, Bauru, n. 42, p. 13-28, jan.-abr. 2005.

[52] Câmara, Guilherme Costa. Op. cit., p. 137. Na atual sociedade (alcunhada “sociedade de risco”), vê-se a difusão de um exagerado sentimento de insegurança que não parece guardar exclusiva correspondência com tais riscos, mas sim que se vê potencializado pela intensa cobertura midiática da sorte perigosa ou lesiva dos fatos e pelas dificuldades nas quais esbarra o cidadão comum para compreender o acelerado avanço tecnológico adequar sua vida a esta transformação. Acrescenta-se a isso a percepção social de que a moderna sociedade tecnológica conduz a notáveis alterações nas relações e valores sociais, além de uma significativa diminuição da solidariedade coletiva que resulta na perniciosa intolerância de uns para com os outros. Nesse sentido, vide: Díez Ripollés, José Luis. La política criminal en la encrucijada. Buenos Aires: B de F, 2007. p. 133.

[53] Silva Sánchez, Jesús-María. Op. cit., p. 55.

[54] A criminalização primária ou produção de leis penais traz à lume a questão do minimalismo, do abolicionismo e também do totalitarismo de tutela, sobretudo no campo de um estudo político-criminal. Essas concepções não se referem ao objeto específico do Direito Penal, enquanto o fim da expansão ou contração, mas trabalha com a própria cultura punitiva em si mesma considerada. O objeto, neste campo, é o próprio sistema penal em que se institucionaliza o poder punitivo estatal. Embora tais posturas sejam sempre trabalhadas de forma contraditória, em especial as duas primeiras, não constituem uma a antítese da outra. A contrariedade teleológica do abolicionismo não é o minimalismo, mas sim o eficientismo, que, por sua vez, guarda traços ideológicos com o denominado totalitarismo de tutela, já que ambos convergem para o aperfeiçoamento da engenharia punitiva, ignorando amiúde os postulados constitucionais e o ideal republicano de Estado de Direito. Como já afirmado anteriormente, alguns campos da política criminal são mais sensíveis à busca pela eficiência de tutela e a consequente legitimidade do totalitarismo punitivo. Exemplifica-se, neste caso, o específico conteúdo de tutela penal da dignidade sexual infanto-juvenil e/ou sua confusão com o combate da vitimização sexual de crianças e adolescentes. Acerca das posturas expostas, vide as considerações de: Andrade, Vera Regina Pereira. Minimalismo e abolicionismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Revista Ultima Ratio, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 397-415, 2007.

[55] “A correta visualização do Direito Penal só é possível, portanto, no horizonte do modelo de Estado social e democrático de direito, sintetizado em um arquétipo valorativo jurídico-constitucional. Esse o próprio paradigma de sustentação do direito punitivo: o modelo de Estado referido, em que Estado de direito está associado à necessidade de intervenção penal e o Estado democrático se identifica com a ideia de pôr o Estado a serviço da defesa dos interesses dos cidadãos”, materializados nos bens essenciais à sua sobrevivência. Sobre a nota, vide, Dias, Fábio Freitas. O princípio da intervenção mínima no contexto de um Estado social e democrático de direito. Direito e Democracia Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA, v. 9, n. 1, p. 207, jan.-jun. 2008.

[56] Nota-se presente, ainda, a explicitação dos fins retributivos da pena, em detrimento dos preventivos. A finalidade da pena, no campo da retribuição, esteve por longo tempo ligada à religiosidade, que sempre concebeu a sanção-pena como um castigo pelo mal anteriormente feito. A execução da pena criminal retributiva já foi tida como a realização pena da justiça divina (cf. Santos, Juarez Cirino dos. Política criminal: realidade e ilusões do discurso penal. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, v. 7, n. 12, p. 54, 2002).

[57] Andrade, Vera Regina Pereira. Op. cit., p. 404.

[58] “Segundo Engisch, a ação típica decorre de uma passagem do concreto ao concreto por meio do abstrato, ou seja, o legislador da realidade constrói o modelo, o qual se amolda ao comportamento futuro, pela presença no concreto dos dados elementares invariáveis que ele descreve. A construção normativa é, contudo, sempre orientada na direção do significado da ação, cuja positividade afirma-se ou nega-se”. Sobre a nota, vide, Reale Júnior. M. Teoria... cit., p.136.

[59] O tipo da pornografia simulada infantil está previsto no art. 241-C da Lei 11.829/2008, que reformou o Título VII (seção II – Dos crimes em espécie) da Lei 8.069/1990 (ECA), cuja redação é: “Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo”. Novamente, impende invocar as observações acerca do conteúdo moral da política criminal, ora esposada. A tipificação figura como comportamento condenável nos limites estritos da moral e da ética social eleitas. A criminalização da pornografia infanto-juvenil simulada realizou-se por meio de um superficial juízo de censura a um comportamento moralmente danoso. O exercício legislativo de construção da norma penal, aqui, careceu de uma verticalização exaustiva a investigar em quais pontos a conduta descrita coaduna-se com a tutela do bem jurídico a que se propõe proteger, subsistindo, por fim, um valor negativo de natureza ética e não jurídico-penal e, por isso, insuficiente à legitima criminalização.

Ante essas pontuações, vê-se que, nos dizeres de Ferrajoli, o tipo em epígrafe classifica-se como um tipo ético ou terapêutico, posto que o pretendido é um tratamento legislativo pedagógico social de reeducação moral (cf. Ferrajoli, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Trad. Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mohino,Juan Terradillos Basoco, Rocío Cantarero Bandrés. Madrid: Trotta, 1995, p. 223-224).

[60] Precisamente a doutrina que se dedica ao estudo do assunto impende alguma diferenciação entre a pornografia infantil simulada e a pornografia virtual. A primeira seria a criação artificial de meios tecnológicos de manipulação de imagens ou técnicas com a participação de adultos caracterizados como crianças e adolescentes. Já a chamada pornografia virtual infato-juvenil consiste em imagens fictas criadas parcialmente mediante fotografias de crianças ou adolescentes reais. De uma maneira ou de outra, a criminalização da produção de uma e de outra está em vistas, segundo Valverde Esquinas, a evitar os efeitos de estímulo que possam ter a difusão pública dos referidos tipos de materiais pornográficos (cf. Valverde Esquinas, Patricia. El tipo de mera posesión de pornografía infantil en el Código Penal español (art. 189.2): razones para su destipificación. Revista de Derecho Penal y Criminología, Madrid, n. 18, 2006. p. 177.

[61] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: questões fundamentais – a doutrina geral do crime. São Paulo: RT/Coimbra: Coimbra, 2007. p. 308.

[62] Vide, Prado, Luiz Regis. Curso de direito penal... cit., p. 259-264.

[63] O princípio da intervenção mínima, ensina Luiz Regis Prado, decorre da síntese do pensamento iluminista, e advém da ideia de necessidade e utilidade da intervenção penal. Por meio do princípio, estabelece-se que o Direito Penal deve manifestar-se, enquanto mecanismo de tutela, apenas na defesa de bens jurídicos indispensáveis para a coexistência pacífica dos homens e que não podem ser protegidos de forma eficaz por outros instrumentos menos gravosos (cf. Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal... cit., p. 143).

[64] “(...) o princípio sob foco, (...), parece envolto em profunda crise, quando confrontado a dados reais. O núcleo mínimo da moral passível de tutela penal tem sido alvo de substancial dilatação. Assim o revela a torrencial edição de leis penais, ocorrência cosmopolita. Novos tipos são concebidos, os existentes são incrementados, novos setores são alcançados (novos bens jurídicos), alargam-se os espaços de riscos juridicamente relevantes, flexibilizam-se as regras de imputação e garantias processuais são reinterpretadas. Hoje, soa duvidoso falar de ‘núcleo mínimo’, tamanho o espectro de abrangência do Direito repressivo. Vale dizer, o minimalismo doutrinário é severamente colocado em xeque pelas tendências de maximização da legislação penal” (cf. Arruda, Élcio. Intervenção mínima: um princípio em crise. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 192, p. 13, nov. 2008).

[65] Interessantes as observações feitas neste sentido por Morrilas Cueva, ao afirmar que nenhuma outra parcela do ordenamento jurídico é tão mais sensível às variações ideológicas que o Direito Penal. Inclui-se aqui não só a ideologia (cf. Morrilas Cueva, Lorenzo. Reflexiones sobre el Derecho Penal del futuro. Revista Electrónica de Derecho Penal y Criminología, Granada, v. 4, p. 1-23, 2002).

[66] Cordeiro, Marcelo Lucchesi; Marinho Júnior, Inezil Penna. Aproximações ao controle penal do inimigo na política criminal brasileira. Revista Transdisciplinar de Ciências Penais, Pelotas, v. 5, n. 1, jan.-dez, 2006, p. 85.

[67] Rita de Cássia aduz que o termo “informação” designa um conteúdo de tudo o que é permutado com o mundo exterior. A autora explicita que a informação tem importância, na medida em que reflete de maneira direta a capacidade das sociedades de se sobreporem umas as outras, estabelecendo uma hierarquia, em uma relação proporcional de quanto maior a informação, maior o poder e maior a segurança (cf. SILVA, Rita de Cássia Lopes da. Direito Penal e sistema informático. São Paulo: RT, 2003, p. 27).

[68] Silva, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 739.

[69] Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Júnior, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002. p. 375.

[70] Idem, ibidem.

[71] Batista, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos sediciosos, Rio de Janeiro, v. 12, n. 12, p. 271, 2002.

[72] “Países muito democráticos tem um severo controle sobre as mensagens violentas da televisão, (como por exemplo, a Grã Bretanha e Suécia), pois em geral os psicológicos crêem que os meios de comunicação refletem negativamente na questão e influi também na forma negativa a respeito dos temas geradores de violência. De todos os modos, as mensagens dos meios de comunicação não alcançam um estágio suficiente para explicar o fenômeno em si. A violência é um fenômeno extremamente complexo, relacionado com a educação, com fatores políticos, sociais”. Sobre a nota, vide: María Desimoni, Luis. El derecho a la dignidad humana: orígenes y evolución – la problemática posmoderna; la contención de la violencia en el tercer milenio. Buenos Aires: Depalma, 1999. p. 164.

[73] Fuentes Osório, em denso exame acerca das relações entre os meios de comunicação de massa e o Direito Penal, afirma que aqueles insistem na relevância social que tem o fenômeno delitivo, bem como na gravidade de dada situação atual, qual seja, aquela sobre a qual recaem as atenções em razão dos frequentes noticiários. A atividade desempenhada pelos meios de comunicação, nestes termos, favorece o desenvolvimento e reforço de uma inquietude no âmbito pessoal e social e que, desde logo, permite consolidar o tema do medo dentro da agenda pública e a ser inserida na pauta político-criminal. (cf. Fuentes Osorio, Juan Luis. Los medio de comunicación y el Derecho Penal. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, Granda, v. 7, p. 16-23, 2005).

[74] Fábio D’Ávila corretamente observa que, desnecessário afirmar, já que muitas são as evidencias que falam por si, ao pontuar que a ciência conjunta do Direito Penal vive, como nunca antes, dias de forte ascensão da política, de uma política expansionista e irresponsável, vide: D’Ávila, Fábio Roberto. O espaço do Direito Penal no século XXI: sobre os limites normativos da política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 15, jan.-fev, p. 86, 2007.

[75] Cuerda Riezu, Antonio. Los medios de comunicación y el Derecho Penal. In: Arroyo Zapatero, Luiz; Gómez de la Torre, Ignácio Berdugo (org.). Libro homenaje a Marino Barbero Santos – In memoriam. Cuenca: Ediciones de la Universidad Castilla La-Mancha, 2001. p. 196-197.

[76] A informação, em específico as “edições de sangue” e o discurso punitivista, saúdam o mito da utopia urbana da paz, que referenda, por conseguinte, o discurso de lei e ordem como saber politicamente correto e pragmaticamente eficaz. Neste, sendo conferir, Batista, Nilo. Mídia e sistema... cit., p. 276.

[77] “O mero enunciado das principais funções que cumprem os meios de comunicação de massa, como aparato de propaganda do sistema penal e sua dedicação quase exclusiva a tal propaganda, revela o alto grau de empenho da civilização industrial e dos albores da civilização tecnocientífica para preservar a ilusão e fabricar a realidade do sistema penal e a função-chave que este sistema cumpre na manutenção do poder planetário da civilização industrial”. Sobre a nota, vide: Zaffaroni, Eugênio Raul. En busca de las penas perdidas: deslegitimación y dogmatica jurídico-penal. Buenos Aires. Ediar, 1998. p. 137.

[78] Vieira, Ana Lúcia Mendes. Processo penal e mídia. São Paulo: RT, 2003, p. 55. Igualmente conferir a exposição de CERVINI, Raúl. Nuevas reflexiones sobre extravictimización mediática de los operadores de la justicia. Revista CEJ, Brasília, v. 7, n.20, jan./mar. 2003, p. 31 e ss.

[79] Anyar Castro, Lola. Prevención del delito y medios de comunicación: entre la vaguedad y lo imposible. Derecho Penal y Criminología, Bogotá, v. 9, p. 121, 1989.

[80] Refere-se, aqui, aos específicos casos popularmente conhecidos como “justiça com as próprias mãos”, nos quais a população, inconformada com as respostas estatais em relação ao crime, ou valendo-se da torpeza, distração, momento de fragilidade ou impotência do agressor, retribui-lhe a violência sofrida.

[81] Valiosa a lição de Ana Lúcia Menezes Viera acerca do tema, ao tratar dos aspectos midiáticos no processo penal, quando expõe certos conceitos atinentes à própria ideia de opinião. Assim dispõe que, “é possível entender a opinião pública como a expressão de modos de pensar de determinados grupos sociais ou da sociedade como um todo, a respeito de assuntos de interesse comum em um dado momento. Consiste a opinião pública (...) nas opiniões sustentadas por um público em um certo momento; nas crenças acerca de temas controvertidos ou relacionados com a interpretação valorativa ou o significado moral de certos fatos”. Sobre a nota, vide: Vieira, Ana Lúcia Mendes. Op. cit., p. 56.

[82] Díez Ripollés, José Luis. A racionalidade das leis penais: teoria e prática. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: RT, 2005. p. 30.

[83] No expressivo campo da mídia, seja falada, televisionada ou escrita, apontam-se, como exemplos, o conjunto de redatores, editores, articulistas, jornalistas, debatedores e comentadores.

[84] Díez Ripollés, José Luis. Op. cit., p. 31.

[85] Idem, ibidem.

[86] Acerca das observações detalhadas do aludido princípio conferir em específico o estudo: Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 145 e ss.

[87] Shecaira, em excelente artigo, leciona que os meios de comunicação de massa desencadeiam campanhas seletivas com a fabricação de esteriótipos de fatos e de crimes. As campanhas da lei e da ordem sempre descrevem a impunidade total, falam da “política que prende e o juiz que solta” (cf. Shecaira, Sérgio Salomão. A mídia e o direito penal. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 45, p. 16, ago. 1996).

[88] A utopia centra-se, verdadeiramente, na ideia de segurança plena conectada à mídia no sentido de que a violência, em especial a violência urbana em suas múltiplas formas, não irá jamais desaparecer, pois será sempre tema recorrente e de fácil utilização para a política contingente e para o sensacionalismo dos meios de comunicação de massa (cf. Bustos Ramírez, Juan. Seguridad ciudadana y seguridad jurídica. In. Pérez Álvarez, Fernando. Universitas vitae: homenaje a Ruperto Núñez Barbero. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2007, p. 96).

[89] Reale Júnior, Miguel. Qual deve ser a política prioritária de segurança pública no Brasil? Getúlio, São Paulo. v. 3,p. 32,  2007.

[90] “O Estado de segurança, ademais, substitui as políticas sociais, econômicas e culturais por política criminal, outorgando-a um papel que não pode cumprir e que se converte em uma simples miragem frente à sociedade, a qual, por conseguinte, ao comprovar sua ineficácia, reage pedindo mais segurança, e o Estado de segurança responde, acentuando uma política criminal cada vez mais repressiva. Dentro desta linha de pensamento chega-se à atividade operativa da repressão e da tolerância zero – ou melhor dizendo – da intolerância absoluta e nas abordagens doutrinária ao Direito Penal do inimigo e, por conseguinte, ao abandono dos fundamentos básicos de um Estado Social e Democrático de Direito”. Sobre a nota, vide, Bustos Ramírez, Juan. Op. cit., p. 96.

[91] Cerezo Mir, José. Reflexiones críticas sobre algunas manifestaciones de la moderna tendencia a incrementar el rigor en la exigencia de responsabilidad criminal.Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, São Paulo, v. 9, p. 10, jul.-dez, 2008.

[92] Aproveita-se essa ocasião para manifestar que não se busca, com essas observações, questionar ou relativizar, de forma alguma, a consagração da liberdade de imprensa. Esta é conquista inafastável do Estado Democrático de Direito. Sustenta-se sim sua legitimação, mas contesta-se, de outra parte, os meios e recursos através dela empregados para instrumentalizar a informação (opinião), que, à sua maneira, vem primando pela simples exposição banal, alienação do indivíduo e, o mais preocupante, como identifica Marcel Figueiredo, a própria política criminal. Vide, neste sentido: Gonçalves, Marcel Figueiredo. Mídia, imagem e poder na democracia. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 209, ano 209, p. 1, abr. 2010.

[93] Gilberto Rentz traz em sua obra sobre pedofilia justamente esta como a frase-jargão, utilizada inúmeras vezes pelo apresentador de telejornal transmito na rede aberta de televisão (cf. Périas, Gilberto Rentz. Pedofilia. Santa Cruz da Conceição: Vale do Mogi Ed., 2009.p. 81).

[94] Idem, ibidem.

[95] É em razão disso que a característica sobresaliente do Direito Penal do risco, pelo risco e para o risco, é a excessiva antecipação da tutela. Isso é notadamente perceptível tanto quando da eleição de bens jurídicos vagos quanto in casu, embora seja visível sua autonomia penal, divisa-se preocupante indeterminação no instante da construção que legitime o injusto culpável. É nesse sentido que o referencial do bem jurídico tem perdido significativamente sua função limitadora à precipitada normatividade penal e, claro, das convulsões político-criminais. Sobre os comentários, vide: Sousa, Susana Aires de. Sociedade do risco: réquiem pelo bem jurídico? Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 86, v. 19, p. 236, 2010.

[96] O Direito Penal é um instrumento da política criminal e esta é parte da política geral do Estado. Isso posto nestes termos, conduz à ideia de que o Direito Penal é um instrumento político (ideológico). Assim pode ser e é usada – a política criminal – para atingir os programas políticos do governo, embora suas principais características (...) teimam em fazer uso e abuso da força. Nesse sentido, a política criminal consente no ancorado plano de apelação à proibição e punição. A proibição neste sentido reside no tema em epígrafe da caracterizada e insistente interdição do ânimo, do desejo, enfim, do estilo interno de vida do sujeito. Claro que aqui refere-se àquele que, à mercê de suas intenções imorais, não dá materialidade ao conteudo de seu imaginário. O que se afirmar é que não pode, dessa forma, sua conduta de vida servir de sustentáculo à incriminação pelo improvável fato de estimular condutas outras que ,efetivamente, coloquem em situação de risco ou efetivo dano o bem jurídico dignidade sexual de crianças e adolescentes. Denomina-se aqui esta tendência de crescente moralização do Direito Penal. Nesse sentido, vide: Carbonell Mateu, Juan Carlos. Reflexiones sobre el abuso del Derecho Penal y la banalización de la legalidad. In: Arroyo Zapatero, Luiz; Gómez de la Torre, Ignácio Berdugo (org.). Libro homenaje a Marino Barbero Santos In memoriam. Cuenca: Ediciones de la Universidad Castilla La-Mancha, 2001. p. 135.

[97] García-Pablos de Molina, Antônio. Hacia una “redefinición” del rol de la víctima en la criminología y en el sistema legal. Estudios penales en memoria del Profesor Augustin Fernandez-Albor. Santiago de Compostela: Universidad de Santiago de Compostela, 1989. p. 328.

[98] O emergencialismo penal surge ao lado do efeito sedativo, cuja função é perpassar na opinião pública a sensação de tranquilidade diante da insegurança urbana. “Em suma, faz-se uso do Direito Penal (...) de uma forma promocional, difusora de ideologia, pois, abrandando a ansiedade em torno da (in)segurança, acarreta o induzimento da população a acreditar que inexistem riscos em todos nas medidas adotadas. Trata-se de um deliberado fortalecimento do Estado de Polícia em, prejuízo das conquistas democráticas do Estado de Direito”. Sobre a nota, vide: Silveira Filho, Sylvio Lourenço da. Neoliberalismo, mídia e movimento da lei e da ordem: rumo ao estado de polícia. Revista da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais: Ciências Penais, São Paulo, n. 2, ano 2, p. 263, jan.-jun. 2005.

[99] Franco, Alberto Silva. Crimes hediondos. 6.ed. São Paulo: RT, 2007. p. 86.

[100] Observa Romero Vázquez que, lamentavelmente, a opinião pública está permeada pelo sentido comum imposto pelos discursos oficiais e dos meios de comunicação, segundo os quais a melhor alternativa para conservar a ordem, e neste caso a intangibilidade sexual de crianças e adolescentes, é a suspensão das garantias e o aumento das medidas repressivas (cf. Romero Vázquez, Bernardo. Las estrategias de seguridad pública en los regímenes de excepción: el caso de la política de tolerancia cero. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 29, v. 8, p. 104, 2000).

[101] Reporta-se, neste ponto, ao princípio da presunção de inocência (princípio do estado de inocência ou presunção de não culpabilidade). Não restam questionamentos de que a norma em apreço é a que é alvo do maior número de violações, mormente por parte da sociedade, ao considerar o status de réu condição válida para penalizar o indivíduo. Não raro a imprensa dá ao processo penal verdadeiro aspecto de espetáculo público, envolvendo o acusado de tal forma que, ainda que, a posteriori, alcance o réu a absolvição, tornam-se irremediáveis os efeitos já impostos com o assédio oriundo das especulações dirigidas ao sujeito. Nessa esteira, vide: Bedê Júnior, Américo; Senna, Gustavo. Princípios do processo penal: entre o garantismo e a efetividade da sanção. São Paulo: RT, 2009. p. 66.

RESENHA
A casa dos mortos
Data: 24/11/2020
Autores: Giancarlo Silkunas Vay e Milene Maurício

Sumário: 1. Introdução – 2. Do comportamento agressivo de Jaime e as condições que o levaram a cometer suicídio – 3. A falta de tratamento específico de cada caso e o ciclo vicioso – 4. Da situação jurídica de Almerindo – Estudo do caso – 5. Dos destinos reservados aos deficientes mentais e dos índices das internações nos hospitais de custódia e tratamento – 6. Sobre Bubu, o autor do poema “A casa dos mortos” – 7. Referências bibliográficas – Poema.

Resumo: “A casa dos mortos” é um documentário curta-metragem brasileiro de 2009, cuja direção e roteiro couberam à antropóloga, documentarista, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS) Debora Diniz, produzido pela produtora de filmes sobre direitos humanos Imagenslivres. Esta obra de apenas 24 minutos mostra uma faceta da vivência entre os muros do Hospital de Custódia e Tratamento (HCT) de Salvador-BA, acompanhada pela poesia de Bubu: um poeta que já contava com doze internações neste tipo de estabelecimento e “desafiava o sentido dos hospitais-presídios, instituições híbridas que sentenciam a loucura à prisão perpétua”.[1] O curta contou com grande repercussão e reconhecimento nacional e internacional, tendo recebido, entre diversas honrarias, os prêmios de melhor curta-metragem no I Festival de Documentários Pan-Amazônicos – Amazônia DOC (Belém-PA, 2009); Melhor Vídeo (pelo júri popular) no 16.º Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá-MT (2009); melhor documentário internacional no International Izmir Short Film Festival (Izmir-Turquia, 2009); melhor documentário (Prêmio do Júri) no 6.º Amazonas Film Festival (Manaus-AM, 2009); Lousa de Ouro – melhor filme no Arouca Film Festival (Arouca-Portugal, 2009); melhor documentário no Arouca Film Festival (Arouca-Portugal, 2009); melhor documentário no Certamen Internacional de Cortos Ciudad de Soria (Soria-Espanha, 2009); 1.º lugar – melhor documentário na 8.ª Mostra de Vídeos Universitários em Mato Grosso Cuiabá-MT, 2009); melhor filme na I Mostra Juliette de Cinema (Curitiba-PR, 2009); melhor documentário no Fest Cine Amazônia (Porto Velho-RO, 2009); e projeto mais criativo no DocBsAs 2008 pela ARTEFrance.

Palavras-chave: 1. Casa dos mortos – 2. Medida de segurança – 3. Inimputabilidade – 4. Hospital de custódia e tratamento psiquiátrico – 5. Lei antimanicomial

1. Introdução

Utilizando-nos das palavras de Bubu, o filme-documentário é dividido em três cenas em que se retratam três caminhos diversos entre os muros dos manicômios judiciais: o suicídio, o ciclo interminável de internações e a sobrevivência tal quanto uma prisão perpétua lhe pode proporcionar. Tais caminhos são personificados, respectivamente, nas pessoas de Jaime, Antônio e Almerindo que, mais cedo ou mais tarde, perceberiam seus papéis de mortos, na Casa que lhes leva o nome.

O primeiro caminho, a que se refere à primeira cena, é aquele destinado aos que não suportam a situação em que se encontram, preferido a morte a permanecer em tal lugar. O curta traz Jaime, um dos internos do HCT, descrito por seus colegas de internação como usuário de drogas e uma pessoa muito agressiva tanto fora do HCT quanto em suas dependências. Segundo Jaime nos conta, estava ele em sua segunda passagem pelo manicômio judicial, tendo anteriormente ido para lá em decorrência de um homicídio praticado enquanto esteve “descompassado”. Após ter “cumprido sua pena” por este fato, Jaime teria voltado para a rua, onde deixou de tomar os remédios que lhe eram necessários, passou a consumir álcool e entorpecentes, razão pela qual veio a cometer outro homicídio. No HCT, dois meses após sua segunda internação, teria ele novamente praticado um homicídio, agora contra um de seus colegas de internação, como reação a uma provocação que a vítima lhe teria feito, consistente em chamar Jaime de “viado”, mostrando-lhe o pênis e seu esperma. Jaime diz que nesta última situação também estava sem tomar os seus remédios. Cinco dias após esta entrevista, alguns internos nos contam que Jaime teria cometido suicídio na ala em que se encontrava dormindo sozinho, separado dos outros. Teria ele amarrado uma das pontas do lençol na grade da porta, passado o restante por cima dela e, com esta outra ponta, feito o laço onde colocaria sua cabeça. Feito isso, teria Jaime subido na cama e se jogado ao ar, não dando espaço para os pés alcançarem ao chão. Pelo que contam, Jaime teria dito, antes de se suicidar, que estava injuriado por estar chovendo no dia em que se matou, sendo que precisaria conversar com a assistente social, pois pretendia se aposentar no próximo dia. Longe de ser esse um ato isolado, um dos colegas de internação de Jaime nos revela que a maioria dos suicídios que acontecem naquele lugar é feito por meio de asfixiamento, mas neste caso o pescoço de Jaime teria se quebrado antes, impossibilitando qualquer tipo de socorro prestado pelos agentes.

A segunda cena retrata a situação de Antônio, reincidente em passagens por manicômios judiciais. Em uma cena interessante, a funcionária do HCT sugeriu que Antônio fosse para sua ala para tomar banho e cortar as unhas (que eram realmente grandes), ao que ele parece não concordar, respondendo que pintaria as unhas. A funcionária, aparentemente indignada, respondeu que ali homem não pintava unha, ao que Antônio argumentou que não teria nenhum problema, pois que se os funcionários fossem homens também, ele também poderia pintar as suas unhas, pegar o esmalte, batom, passar em sua boca. Diante disso a funcionária pergunta ironicamente: “Você usa batom, é?” e Antônio: “Eu tenho a capacidade de usar batom, por que não?”. Na tomada seguinte, o curta retrata os internos convivendo na parte externa do HCT em meio a pregações religiosas, rodas de canto e em busca de um espaço diante das câmeras em que, ao que parece, buscam um espaço onde possam se expressar.

Por final, o último caminho na Casa dos Mortos é o traçado por Almerindo, interno do HCT, que ali se encontrava em virtude de, no dia 22 de setembro de 1981, por volta das nove horas da manhã, supostamente ter atirado uma pedra contra um menino de 14 anos que andava de bicicleta, fazendo-o cair ao chão sangrando, bem como, ato contínuo, ter pego a referida bicicleta e a lançado em cima do garoto, tendo, após isso, saído correndo. Segundo a Defensora Pública Dra. Auxiliadora, o fato delituoso imputado a Almerindo na sentença absolutória imprópria foi de lesões corporais leves (art. 129, caput, do CP), tendo ele sido internado em 02.11.1981 e o laudo que atestara sua incapacidade mental realizado apenas em 12.05.1982; a sentença teria sido proferida em 1984, determinando o internamento mínimo de Almerindo por dois anos, quando a este tempo ele já havia cumprido a muito este prazo. Conforme ainda explica a Defensora Pública para o documentário, tratando-se de lesões corporais leves de um fato apenado com detenção, a medida de segurança aplicada não deveria ser necessariamente de internação, podendo ser realizada em tratamento ambulatorial. Em decorrência disso, ele perdeu todos os vínculos familiares, de amigos e ora está abandonado e o seu destino a Deus pertence. Questionado pela funcionária do HCT acerca de seu nome, Almerindo disse ser o presidente dos Estados Unidos. Questionado sobre se ele gostaria que encontrassem uma casa para Almerindo morar, respondeu que não, pois Almerindo já morreu. Na última imagem do filme, um dos companheiros de internação de Almerindo pergunta a ele e a outro interno como havia sido a visita deles ao zoológico, ao que este terceiro passa a descrever os animais que viram, enquanto Almerindo permanece fixamente com seus olhos fundos em lugar algum, pendulando seu corpo para os lados, até que, indiferente ao que o colega dizia, esboça um sorriso e começa a cantarolar uma cantiga irreconhecível.

2. Do comportamento agressivo de Jaime e as condições que o levaram a cometer suicídio

Primeiramente, deve-se explicar de que formas as medidas de segurança podem ser aplicadas. Conforme doutrina de Alexis Couto de Brito, poderão decorrer de sentença absolutória imprópria, sentença condenatória ou de aparecimento de insanidade mental durante o cumprimento da pena. Durante o inquérito policial ou durante a instrução processual, sempre que houver dúvida quanto à sanidade mental do acusado, poderá ser instaurado um Incidente de Insanidade Mental em que o acusado será submetido a um exame médico técnico e ficará em observação por 45 dias. Se o exame constatar que ele era incapaz no momento da prática da conduta que lhe acusam, o juiz irá proferir uma sentença absolutória (que por impor uma privação ou restrição da liberdade do réu recebe o nome de absolutória imprópria) e lhe impor uma medida de segurança. Se for semi-imputável, o juiz irá proferir uma sentença condenatória, podendo reduzir sua pena ou substituí-la por medida de segurança. Se durante o cumprimento da pena sobrevier ao réu uma doença mental, este deverá ser transferido ao estabelecimento adequado para seu devido tratamento.[2]

Na primeira cena, a principal crítica que podemos visualizar é a falta de vigilância nos Hospitais de Custódia e Tratamento, o que se verifica, por exemplo, da morte causada por Jaime contra um de seus colegas de internação nas dependências do HCT, bem como da concretização do seu suicídio em sua “cela”, tudo isso em desatenção ao dever de cuidado e de vigilância que tais estabelecimentos devem ter com os internados (art. 13, § 2.º, a, do CP). Por se prestarem a tratar de indivíduos inimputáveis ou semi-imputáveis, os responsáveis pelo estabelecimento e todos os que nele trabalham deveriam zelar e agir com muito mais cautela, pois a necessidade na atenção é muito maior. Aliás, como o vídeo nos traz, longe de tal situação se caracterizar como um evento isolado, os suicídios parecem ocorrer em tais estabelecimentos com certa frequência, sendo eles, em sua maioria, por asfixiamento. Para chegar a tal ponto, os indivíduos, provavelmente, devem experimentar toda a sorte de situações extremas em que a morte, infelizmente, parece ser utilizada como alívio ao que não se consegue repelir: a solidão, a ausência de relacionamentos familiares e afetivos com os antigos amigos, bem como a situação de ter sido retirado da sociedade e trancafiado com pessoas por vezes agressivas.

Diante desse fato, chama-nos a atenção para os funcionários do Hospital de Custódia. Em razão da função desempenhada, devem eles ser aptos a executar a atividade que lhe é destinada. Ocorre que, pelo que o curta-metragem nos traz, em dois pontos os funcionários não honraram com o papel que lhes incumbia, a saber: quanto à guarda dos internados, a fim de que não causem danos a eles próprios e a terceiros, o que plenamente não foi levado a cabo tendo em vista ocorrerem assassinatos e suicídios dentro do HCT; bem como quanto à falta de tolerância e respeito às peculiaridades de cada indivíduo, como melhor se demonstrará na segunda cena, quando a funcionária do estabelecimento agiu de forma debochada, quiçá preconceituosa, com relação ao internado que, ao que parece, era homossexual.

No que diz respeito às acomodações do HCT, as pessoas costumam ficar indignadas ao assistir o curta-metragem, pois o local não conta com higiene adequada e sequer com conforto condizente com alguém que está sendo privado de liberdade tão somente em decorrência de uma necessidade para fins terapêuticos e não com viés punitivo. São seres humanos mais uma vez excluídos da sociedade, contrariando suas esperanças de que um dia poderão sair e se ver livres de cumprir “pena” por um ato que não compreendia. Além de, de fato, ficarem trancados, sem poder livremente se comunicar com familiares e amigos, por vezes, como o vídeo nos mostra, os internos acabam por dormir no chão e em corredores, ou em qualquer outro canto que couber (ressaltemos que o interno ainda é um ser humano e que, quando do cometimento do injusto, não tinha ele capacidade de entender completamente se aquela conduta era proibida, ou mesmo se posicionar de acordo com tal situação, razão pela qual a internação não deveria ser sofrida – uma vez que não se trata de pena –, mas sim complementar ao tratamento desenvolvido, restringindo direitos apenas nesses limites).

Com a reforma de 1984 do Código Penal, substituiu-se a expressão “manicômio judiciário”, constante no art. 83 da antiga parte geral do referido Código, por “hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado”, o que já demonstrava um viés em se modificar a situação com a qual os deficientes mentais eram tratados na execução das medidas de segurança. Com o advento da Lei antimanicomial (Lei 10.216/2001), a política adotada foi a de que a internação, em qualquer de suas modalidades, só deveria se dar quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes (art. 4.º da referida Lei), preferindo-se às internações os tratamentos em instituições como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Por esta nova ótica, os inimputáveis seriam submetidos não só a um tratamento médico, mas teriam a oportunidade de realizar as atividades necessárias sem serem privados do convívio social. No entanto, o que deveria ser não acompanhou a realidade social e, novamente, os esquecidos foram deixados, e os Hospitais de Custódia continuaram com ares de manicômio judicial.

Os locais destinados ao tratamento das pessoas com necessidades deveriam oferecer tratamentos que não se resumissem somente a remédios, dando a oportunidade de o indivíduo não se sentir esquecido pela sociedade e, consequentemente, entregando-lhe a vida novamente e a esperança de que efetivamente um dia sairá daquele lugar. Devemos lembrar que toda e qualquer medida adotada pelo Estado deve, senão fazer com que o sujeito a ela submetida melhore, ao menos não lhe ser prejudicial (que não traga mais malefícios do que a sua não aplicação). Caso a medida não cumpra com tal função, deve ela deixar de ser aplicada, pois caso contrário estar-se-ia chancelando a legalidade na violação de direitos fundamentais e, mais cedo ou mais tarde, empurrando os submetidos a tais medidas à destruição.

3. A falta de tratamento específico de cada caso e o ciclo vicioso

Com base no art. 97 do CP, pode-se compreender que a internação do inimputável que pratica uma ação ilícita é obrigatória nos crimes apenados com reclusão, mas este preceito é injusto, pois nos entendimentos do professor Guilherme Nucci, é um sistema que “padroniza a aplicação da sanção penal e não resolve o drama de muitos doentes mentais que poderiam ter suas internações evitadas”[3] . Muitas vezes tornar-se-ia mais eficaz se o indivíduo possuísse um suporte alternativo à medida de segurança como, por exemplo, uma família com totais condições de cuidar do inimputável. Essa crítica encontra ainda respaldo nas respeitáveis doutrinas de execução penal de Alexis Couto de Brito[4] e de Gustavo Junqueira,[5] para quem “não há qualquer relação entre a necessidade de recuperação do sujeito, e mesmo sua periculosidade, com a espécie de pena cominada. O fato de o crime ser punido com reclusão não pode resultar em intervenção inadequada ou desnecessária. A espécie de medida de segurança deve(ria) variar de acordo com a necessidade do sujeito, e não conforme a espécie de pena privativa de liberdade cominada”. Veja-se, ademais, que conforme Gustavo Junqueira, a Lei 10.216/2001 (antimanicomial) teria tacitamente revogada essa obrigação de submissão ao inimputável que praticou conduta apenada com reclusão, tendo em vista o seu art. 4.º dispor que “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”.

Os HCTs deveriam disponibilizar o tratamento adequado para cada inimputável ou semi-imputável, na medida do seu comportamento e da sua necessidade, pois medicar o indivíduo e privá-lo de sua liberdade tão somente para controlar seus atos, sem que se atente para a necessidade da realização de atividades que efetivamente possibilitem o seu retorno ao convívio social, traz um tratamento totalmente ineficaz de tal monta que não haveria necessidade da existência de um Hospital de Custódia e Tratamento, bastando uma prisão perpétua para controlar os inimputáveis. Importante ressaltar que a medida de segurança apresenta uma função de uma certeza jurídica inicial como hipótese futura, e não uma certeza jurídica integral. São aplicadas em razão de um juízo composto, integrando elemento fato juntamente com elemento hipotético.[6]

Antônio, o protagonista da segunda cena, é inimputável e obteve várias medidas de segurança aplicadas, tornando as idas aos Hospitais de Custódia em um “ciclo vicioso”. Observa-se que, uma vez que o indivíduo ingressa pela primeira vez no HCT, submetendo-se a um tratamento psiquiátrico, poderá obter sua desinternação diante de duas situações (antes do tempo máximo de permanência): a primeira quando o laudo pericial lhe for favorável cessando a periculosidade e, consequentemente, extinguindo a medida de segurança; a segunda como uma forma progredida em que ainda não se verificou a cessação da periculosidade por completo, sendo submetido a um tratamento ambulatorial. Ocorre que, muitas vezes, esse procedimento em meio aberto – tratamento ambulatorial – é descumprido pelo inimputável por falta de alguém (por exemplo, da família e amigos) que o auxilie, interrompendo o tratamento que lhe foi imposto como condição obrigatória. Nesses casos, onde o descumprimento do tratamento parece inevitável, muitos juízes entendem que a reinternação é a única solução, acabando por punir novamente o sujeito, dessa vez por não ser ele um “privilegiado” por contar com laços familiares e afetivos que poderiam lhe proporcionar o fiel cumprimento do tratamento. Desta forma, percebemos que as indas e vindas desses indivíduos pelo HCT acabam se tornando um verdadeiro “ciclo vicioso” em que nunca será assegurado ao indivíduo a capacidade de se autodeterminar para sair de tal situação. Nessa situação o indivíduo que deveria ser melhorado poderá ter o seu quadro psicológico piorado, podendo, quiçá, desembocar na fatalidade mencionada na primeira cena: o suicídio.

Temos ainda que os próprios internados relataram que, caso questionassem acerca dos seus direitos de sair da internação, imediatamente retornariam com um laudo apresentando problemas e indicando que deveriam ficar mais algum tempo.[7] Acontece que, como o Judiciário toma por base o laudo médico pericial para verificar as possibilidades de extinguir a medida de segurança mediante a cessação da periculosidade – em que pese a regra do art. 182 do CPP, a qual entendemos que deva ser utilizada com extrema parcimônia em razão de não possuir o juiz conhecimentos técnicos específicos sobre a matéria da perícia –, a responsabilidade pela liberdade do interno (ou de sua privação) recai sobre o “prudente juízo” do perito, pessoa que não está isenta de subjetivismos que podem ser determinantes à produção de um laudo imparcialmente desfavorável, uma vez que nada do que é humano pode lhe ser estranho.

Como alternativa a isso, tem-se por interessante ressaltar o que dispõe o art. 43 da LEP, na qual garante a liberdade de contratar médico particular aos internados para acompanhar o tratamento e, caso os laudos sejam divergentes, o juiz da execução poderá entre eles optar. Esse médico particular também poderá auxiliar no tratamento específico, porém, muitas vezes, os internados não possuem a possibilidade de contratar um medido particular para tal atividade.

No mais, a nosso ver, o ponto mais marcante da cena 2 acabou sendo o diálogo entre a funcionária do HCT e Antônio. Tendo a funcionária sugerido que ele fosse para sua ala tomar banho e cortasse as suas unhas, mostrou-se ele contrariado, desejando mantê-las como estavam, uma vez que pretendia pintá-las. Para a funcionária, tal reação causou espanto, razão pela qual respondeu que ali homem não pintava unha, ao que Antônio argumentou que não teria nenhum problema, pois que se os funcionários fossem homens também, ele também poderia pintar as suas unhas, pegar o esmalte, batom, passar em sua boca. Em tom de deboche, a funcionária ainda chegou a perguntar: “Você usa batom, é?” e Antônio prontamente respondeu: “Eu tenho a capacidade de usar batom, por que não?”.

Conforme disposição do art. 3.º, caput, da LEP, “ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Nada mais justo, afinal, em razão do princípio da taxatividade das penas, não se pode restringir mais direitos além daqueles previamente cominados como resposta à violação à ordem jurídica (nulla poena sine praevia lege), independentemente se pena em stricto sensu ou medida de segurança.

Ocorre que, no caso do documentário, a regra de comportamento imposta pela funcionária do HCT a Antônio, de que “ali homem não pintava unha” (o que também se pode dizer em relação ao deboche quando o interno disse usar batom), extrapola os limites da medida de segurança imposta, a qual se presta exclusivamente a tratar o interno em ambiente institucionalizado (privado de liberdade), não podendo impor restrições que não essas. O desrespeito à condição pessoal do interno (tal qual acontece com os condenados), verificada na situação referida, impõe uma lesão aos direitos da personalidade no que diz respeito à livre manifestação da sua sexualidade,[8] consubstanciada na exteriorização de uma situação já internalizada. A orientação sexual de cada indivíduo integra o complexo subjetivo inerente à sua personalidade, principalmente no que concerne à identidade pessoal e a integridade física e psíquica, tratando-se de elemento intrínseco ao ser humano.[9]

No mês de março do corrente ano o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) veiculou em seu site notícia[10] do site “G1”, cujo tema se referia a uma penitenciária em Cuiabá/MT em que presos gays – que assumissem esta opção sexual – teriam uma ala especial, separada dos demais, na qual se respeitaria este direito de escolha e se possibilitaria uma execução da pena em consonância com tal peculiaridade, em atenção ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Ademais, pelo que consta da iniciativa, tal inovação surgiu como uma alternativa ao combate à violência e discriminação contra este setor mais vulnerável da população carcerária. Conforme depoimento da gerente da unidade, constante da referida notícia, a criação de tal ala foi feita a pedido do Centro de Referência de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, da Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh), tendo sido o Mato Grosso o segundo Estado a criar uma ala especial para o público LGBT, algo já existente desde 2009 em um presídio de Belo Horizonte/MG. Como consequência dessa implementação, os reeducandos teriam mudado o comportamento dentro da unidade, passando a ser menos agressivos e, relatam, sentindo-se mais respeitados, razão pela qual passaram a aderir a todos os projetos oferecidos pelo sistema prisional. Segundo expõe a coordenadora regional do Centro de Referência LGBT, a ideia é retirar os reeducandos homossexuais da situação de risco e de violência, uma vez que se trata de pessoas que já lutam contra a violência sexual e psicológica sendo que, com esse espaço, eles podem ter a oportunidade de apresentar a sexualidade e não são mais obrigados a se vestir, por exemplo, como homens, da forma como as outras alas masculinas exigem.

Mutatis mutandis, igual raciocínio deveria ser aplicado nos HCTPs (bem como nos demais presídios do país) uma vez que, repita-se, o que se restringe no cumprimento da medida de segurança de internação é tão somente a liberdade (por mais que imbuída de uma função terapêutica) e não todos os demais direitos fundamentais da pessoa humana, tais quais os aqui expostos e desenvolvidos.

4. Da situação jurídica de Almerindo – Estudo do caso

Conforme nos é mostrado pelo documentário, Almerindo, o protagonista da última cena do filme, estava no HCT em razão de um processo criminal em que fora acusado de, no dia 22 de setembro de 1981, ter atirado uma pedra contra um menino de 14 anos que andava de bicicleta, fazendo-o cair ao chão sangrando, bem como, ato contínuo, ter pegado a referida bicicleta e a lançado em cima do garoto, tendo, após isso, saído correndo. Conforme relato da Defensora Pública que ora acompanhava o caso, a sentença absolutória imprópria teria destacado que Almerindo havia cometido conduta descrita no tipo penal do art. 129, caput,do CP (lesões corporais leves), motivo pelo qual teve sua internação provisória decretada em 02.11.1981, tendo o laudo que atestara sua incapacidade mental sido realizado apenas em 12.05.1982. A sentença, segundo consta, fora proferida em 1984, determinando o internamento mínimo de Almerindo por 2 anos. No entanto, Almerindo ainda encontrava-se no HCT quando da elaboração do documentário, ou seja: 2009.

A situação de Almerindo é uma daquelas em que podemos fazer coro à tantas vezes repetida frase de Alexandra Lebelson Szafir[11] de que a situação poderia muito bem ter sido diferente se o acusado tivesse um advogado (ou se na época houvesse uma Defensoria Pública bem aparelhada) que estivesse a cada momento acompanhando o caso.

Tomando por verdadeiros os fatos narrados pela referida Defensora Pública no documentário, o juiz do processo de conhecimento de Almerindo aplicou-lhe medida de segurança sem sequer a existência prévia de laudo médico pericial que atestasse a inimputabilidade do acusado, afinal fora ele internado provisoriamente em 02.11.1981, mas o laudo saíra apenas em 12.05.1982. Ora, mesmo na redação anterior à reforma de 1984, para o Código Penal, a regra era a de que as pessoas seriam presumidamente (iuris tantum)imputáveis, não podendo, portanto, virem a ser submetidas à internação em ambiente destinado a inimputáveis sem o devido laudo que atestasse a sua incapacidade em compreender a ilicitude do fato e/ou em se posicionar no sentido da norma. Ademais, a inexistência do laudo impossibilitava ao magistrado um juízo elevado de convicção de que a restrição absoluta da liberdade do acusado era mesmo medida que se fazia necessária no caso em concreto, tendo em vista que, por vezes, o acompanhamento em meio aberto se faria suficiente para os fins cautelares a que as medida cautelar se propõe. Aliás, nesse aspecto, tendo-se em vista que não se pode cumprir pena antes do findar do processo, o mesmo raciocínio deve ser considerado para as medidas de segurança, pois, afinal, não se podem aplicar tais medidas se não houver decisão judicial atestando pela periculosidade do agente, bem como pela efetiva prática de um injusto penal (o que se verifica por meio da instrução processual). Assim sendo, fazia-se necessário justificar o por que estaria a se impor tal medida coercitiva de direitos ao Almerindo, uma vez que essa imposição só poderia se dar, em tal momento, a título de medida cautelar. Ocorre que, se inexistia laudo médico pericial do acusado, como apontar pela necessidade na medida de segurança se não havia comprovação da existência de periculosidade? No mais, se de fato houvesse alguma necessidade de cautela, que se respeitassem as regras contidas nos arts. 312 e 313 do CPP, com a redação de 1977, ou, caso não estivessem preenchidos os requisitos legais, Almerindo deveria ter respondido ao processo em liberdade até que sobreviesse o laudo médico pericial que, apontando para a sua inimputabilidade e para a necessidade imperiosa em extirpá-lo do meio social, justificasse a aplicação da medida cautelar segregacionista.

Ainda no que concerne à internação provisória, cabe mais uma crítica: tendo em vista a cautelaridade da medida aplicada, deveria ela durar indefinidamente até que sobreviesse a decisão final que (quem sabe?) a converteria em medida de segurança definitiva? Para os imputáveis sempre se entendeu que o excesso de prazo não atribuível à defesa seria causa para o relaxamento do flagrante, ou mesmo para a revogação da prisão preventiva, uma vez que a cautelaridade da medida não pode ceifar durante longo tempo a liberdade do indivíduo. De outro turno, no que concerne à medida cautelar destinada aos inimputáveis, por vezes não se argumenta nesse sentido, uma vez que a medida de segurança teria por base fins terapêuticos e a cautelaridade se pautaria em análise de periculosidade do agente. Todavia, mesmo se a instrução durasse anos sem que a defesa tivesse dado razão a isso, seria tal entendimento razoável? Cremos que não, pois uma vez cautelar a medida, em que pese a eventual periculosidade do agente, não se pode anteceder medida de segurança sem um juízo de certeza sobre o cometimento do injusto penal: esta a verdadeira razão pela qual se aplica a medida, uma vez que pessoas “perigosas” em decorrência de distúrbios mentais não podem ser alvo de tal constrição judicial sem que tenham praticado uma conduta típica e antijurídica. No caso em tela, a sentença de Almerindo foi proferida apenas em 1984, ou seja: três anos após o cometimento da infração e da aplicação da internação cautelar. Não parece razoável que ele tivesse que passar tanto tempo por tal privação de liberdade, em razão de o Judiciário levar tanto tempo para constatar a prática de injusto referente a lesões corporais leves.

Sobrevindo sentença, foi aplicada a Almerindo a medida de segurança de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico por período mínimo de dois anos (nos moldes dos arts. 96, I e 97, § 1.º do CP). Como primeiro apontamento, podemos verificar, como a própria Defensora Pública aduziu no filme, que da data de início da internação provisória até a aplicação da internação definitiva já havia transcorrido tempo superior ao lapso temporal referido, permitindo com que Almerindo, a depender de novo laudo que atestasse a cessação da sua periculosidade, desde aquele momento fosse posto em liberdade. Como segundo apontamento, verificamos do art. 97, caput,do CP, que nos casos em que o fato praticado seja previsto como punível com detenção, poderá o juiz submeter o impropriamente absolvido à medida de segurança de tratamento ambulatorial, não sendo necessária a internação do inimputável, bastando o tratamento em meio aberto. Do que se verifica, o preceito secundário do tipo penal de lesão corporal leve (art. 129, caput, do CP) tem como sanção a pena de três meses a um ano de detenção, o que, como visto, permitiria o tratamento em meio aberto, o que não foi concedido. Ademais, ressalte-se que mesmo que a sentença tivesse sido proferida antes da reforma de 1984 do Código Penal, mera petição endereçada ao juiz das execuções penais poderia regularizar a situação, o que ou não foi feito ou não foi deferido. Como terceiro apontamento, decorrente dos demais, Almerindo permaneceu internado por mais de 28 anos no HCT, algo que poderia ter sido evitado se não fosse a grande divergência doutrinária e, principalmente, jurisprudencial. Atualmente são três os entendimentos acerca da duração máxima das medidas de segurança: prevalece no STF ser de 30 anos em atenção ao art. 5.º, XLVII, b, da CF (HC 107.432/RS); prevalece no STJ que não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada no tipo penal a que se amolda a conduta praticada (HC 143.315/RS); e há um terceiro posicionamento no sentido de que seria indeterminada.

Verificado esse cenário, é interessante apontar a existência da Lei 10.216/2001 (Lei Antimanicomial) que é fruto das incessantes batalhas entre os atuantes das áreas médicas acerca da busca por outros tratamentos aos portadores de deficiências mentais que não o internamento, tendo em vista este ser prejudicial ao sujeito, uma vez que rompe com os vínculos familiares e sociais que poderiam ajuda-lo. Conforme dispõe o art. 4.º dessa Lei, “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”, aduzindo o seu § 1.º que “o tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio”. Veja-se, ainda, do art. 5.º que “o paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário”, o que demonstra claramente a preocupação com a permanência do indivíduo perante a sociedade, na qual terá melhores oportunidades.

Atento a tal legislação, vários são os atos infralegais que indicam pela aplicação desta lei às medidas de segurança, a mencionar a Resolução 4/2010 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) sobre as Diretrizes Nacionais de Atenção aos Pacientes Judiciários e Execução da Medida de Segurança; a Resolução 113/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ); e a Recomendação 35/2011 do CNJ que dispõe sobre as diretrizes a serem adotadas em atenção aos pacientes judiciários e a execução da medida de segurança. Em conformidade com o que aqui se expõe, é da lavra do Min. Cezar Peluso o seguinte trecho constante de voto realizado nos autos do HC 85.401/RS, julgado em 04.12.2009: “Como se sabe, a Lei n. 10.216/01 determinou a revisão do tratamento dos portadores de transtornos psíquicos à luz das já não tão recentes posturas da ciência psiquiátrica que questionam a efetividade da custódia dos doentes mentais. Nesse contexto, a desativação dos hospitais psiquiátricos é uma das etapas da política pública de reforma psiquiátrica, o que torna ainda mais injusta e desaconselhável a internação do paciente em hospital psiquiátrico judicial. (...) Rigidez do sistema jurídico-penal significa, em alguns casos, aplicação de medida de segurança totalmente incompatível com o seu propósito terapêutico”.

Assim, do que pudemos expor, Almerindo teve em seu processo inúmeras razões e/ou oportunidades para ser colocado em liberdade ao longo dos 28 (pelo menos) anos que permaneceu internado no HCT, inclusive em razão das alterações advindas com a reforma de 1984 do Código Penal, com o advento da Constituição e com a entrada em vigor da Lei antimanicomial, o que não aconteceu. Nesse momento, parece necessário lembrar uma passagem da obra de Amilton Bueno de Carvalho[12] em que ele nos revela, perplexo, acerca de um sujeito declarado inimputável que, em razão de urinar em frente a uma residência (ato obsceno) permanecera internado em Instituto Psiquiátrico por 26 anos. Amilton de Carvalho aponta que tal sujeito, tal qual Almerindo, mesmo tendo sido extirpado do meio social por mais de duas décadas e meia, curado não ficou. Aliás, como poderiam se curar em instituições como estas? Envelheceram em suas “celas”, perderam contato com familiares, amigos, conhecidos e, ao final, praticamente vegetavam, assim como se observa da cena final em que Almerindo, cujos olhos permaneciam fixados em lugar algum, com seu corpo a pendular de um lado para o outro, cantarolava uma cantiga irreconhecível, tal qual um corpo sem vida a que se esqueceram de dizer que morreu. Conforme o citado autor menciona em sua obra, “por quantas décadas permitimos conceitualmente [...], a partir de leitura do Código Penal, que a medida de segurança imposta a inimputáveis o fosse por tempo indeterminado, ou seja, com a fixação unicamente de tempo mínimo, mas não de tempo máximo [...], sem ‘perceber’ (ou talvez pior: ‘bem percebendo’) que a exegese agride a Constituição Federal ao possibilitar o ‘encarceramento perpétuo’. [...] para nós, juristas, tudo é simples debate, mas para os condenados representa o ‘tudo’, a ‘vida’ – o continente ‘moral’ da nossa interpretação é violento: alcança a vida do outro”.

A partir desses apontamentos, restam as seguintes questões: Qual o papel que o Estado teve na vida de Almerindo ao confina-lo durante mais de 28 anos no HCT, além de acabar com todos os vínculos sociais que ele possuía e de torná-lo, assim como ele mesmo se referiu, em um lampejo de lucidez do qual sequer nós sabemos se ele estava ciente, alguém que já morreu? Cumpriu a sua função declarada de tratar o inimputável? Cumpriu a sua função real de defesa social? Qual a razão de ainda se conceber a medida de segurança como ela é tida hoje?

5. Dos destinos reservados aos deficientes mentais e dos índices das internações nos hospitais de custódia e tratamento

O documentário apresentou os problemas ocasionados com a medida de segurança, e consequentemente, alguns dos destinos que acompanham os inimputáveis submetidos ao HCT: suicídio, ciclos viciosos de internações e submissão à “prisão perpétua”, seja física ou psíquica.

Apenas a título ilustrativo, conforme apontamentos estatísticos realizados por especialistas, no Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso de Porto Alegre,[13] dos 20 casos de suicídio ocorridos entre 1985 a 2004, 70% cumpriam medida de segurança, 70% eram réus primários, 80% dos crimes era contra a pessoa; 45% dos suicídios foram cometidos durante a madrugada e 40% dos casos ocorreram com internos que estavam de 1 a 9 anos na instituição; 90% eram do sexo masculino, 55% tinham idade entre 20 e 39 anos, 70% eram solteiros, 60% não tinham filhos, 85% eram naturais do interior do Rio Grande do Sul, 25% não tinham profissão, 84,2% tinham até o Ensino Fundamental; 55% dos casos tinham diagnóstico de esquizofrenia. A dependência por álcool e drogas foi constatada em 50%. E também 55% já haviam tentado um suicídio, mas em 75% dos casos a morte ocorreu por enforcamento.

Por sua vez, no que concerne às situações que levam o indivíduo a ser taxado inimputável, vale reproduzir apontamento realizado por Guilherme Nucci acerca das principais hipóteses verificadas: epilepsia; histeria; neurastenia; psicose maníaco-depressiva; melancolia; paranoia; alcoolismo; esquizofrenia; demência; psicose carcerária; e senilidade.[14]

6. Sobre Bubu, o autor do poema “A casa dos mortos”

João Pereira e Oliveira Junior, conhecido como Bubu, também foi mais uma “vítima” do ciclo vicioso das medidas de seguranças.

Conforme informações que extraímos de matéria noticiada no site do “Estadão”,[15] sua primeira internação foi feita aos 27 anos (em 1995), atualmente constando ele com 10 internações no HCT. As primeiras condutas por ele praticadas que receberam atenção do sistema penal foram as tipificadas nos arts. 147 e 165 do CP (ameaça e dano). Do que se depreende, tendo em vista que a pena para ameaça é de detenção de um a seis meses ou multa e a de dano é também de detenção de seis meses a dois anos e multa, no caso em concreto poderia ter sido imposto a ele, em vez de internação em hospital psiquiátrico, tratamento ambulatorial, o que não se verificou. Entre as condutas mais graves praticadas por Bubu ao longo encontram-se as tipificadas como tentativa de homicídio e lesões corporais.

Segundo consta da referida matéria, o caso de Bubu é muito peculiar, pois ele “expõe suas ideias com uma clareza perturbadora. Fala de filosofia e política com propriedade – prefere as escolas filosóficas alemã e francesa à grega e se define como um adepto do capitalismo popular, do filósofo austríaco Friedrich von Hayek. Sempre carregando uma sacola de pano amarelo-encardido, com seus escritos e seu tabaco dentro, recorre a palavras difíceis e neologismos surpreendentes, tudo para fundamentar sua convicção de que é um perseguido político por ter ideais revolucionários”. Os laudos periciais, realizados pelos psiquiatras peritos, atestam que ele está apto a viver em sociedade, com condição de trabalhar, mas, no entanto, deveria prosseguir com o tratamento. O problema aparece quando Bubu deixa de cumprir tais condições, uma vez que acredita que nunca esteve doente, vindo a cometer outras condutas tipificadas e ilícitas, retornando, consequentemente, para a internação. Segundo o próprio Bubu, ele “não namora desde 2002 e acha até que tem um filho que também já teria um filho, mas não tem certeza se é seu. ‘O homem que antropologicamente aguenta viver sem mulher, tanto sexualmente quanto emocionalmente, é mais do que homem. É o super-homem, de Nietzsche.’ [...] A teoria 39 de seu livro é sobre ‘a ancestralidade analítica do mártir’, em que disseca as histórias de ‘Che Guevara, o Cristo do comunismo; Jesus Cristo, o Guevara do cristianismo; e Sócrates, o Cristo-Guevara da Grécia’. No braço esquerdo, carrega uma tatuagem: duas linhas com um ponto no meio, que representam o bem e o mal e o ser humano, no caso ele, dividido entre os caminhos”.

Bubu diz que todas as suas condutas cometidas foram praticados com lucidez, que sabia o que estava fazendo, e desafia a psiquiatria (a qual ele renega, em prol da psicologia) a provar o contrário: da sua capacidade no ato dos crimes cometidos.

7. Referências bibliográficas

Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva: 2010. v. 1.

Brito, Alexis Augusto Couto de. Execução penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2011.

Carvalho, Amilton Bueno de. Eles, os juízes criminais, vistos por nós, os juízes criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

Coelho, Elizabete Rodrigues; Azevedo, Fernanda; Gauer, Gabriel José Chittó; Cataldo Neto, Alfredo. Suicídio de internos em um hospital de custódia e tratamento. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/jbpsiq/v58n2/v58n2a04.pdf>, acesso em 21/04/2012.

Costa Jr., Paulo José da. Curso de direito penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

Ferré Olivé, Juan Carlos; Núñez Paz, Miguel Ángel; Oliveira, William Terra de; Brito, Alexis Couto de. Direito penal brasileiro: parte geral: princípios fundamentais e sistema. São Paulo: RT, 2011.

Junqueira, Gustavo Octaviano Diniz; Füller, Paulo Henrique Aranda. Legislação penal especial. São Paulo: Saraiva, 2010.

Nucci, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 2. ed. São Paulo: RT, 2007.

______. Manual de direito penal. 7. ed. São Paulo: RT, 2011.

Prado, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. v. 1.

Simão, Rosana Barbosa Cipriano. Direitos humanos e orientação sexual: a efetividade do princípio da dignidade. Disponível em: . IBDFAM, 2004.

Szafir, Alexandra Lebelson. Descasos: uma advogada às voltas com o direito dos excluídos. São Paulo: Saraiva, 2010.

Documentário “a casa dos mortos”. Disponível em: <http://www.acasadosmortos.org.br>, acesso em 21/04/2012.

Notícia. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,mais-louco-e-quem-me-diz,350136,0.htm>, acesso em 21/04/2012.

Notícia. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?clippings&clipping=5571>, acesso em 21/04/2012.

Poema:

A casa dos mortos

das mortes sem batidas de sino.

– Cena 1 deste filme-documentário

do mesmo destino de sempre;

é que aqui é a casa dos mortos!

***

A casa dos mortos

das overdoses usuais e ditas legais.

– Cena 2 deste filme-documentário

do mesmo destino de sempre;

é que aqui é a casa dos mortos!

***

A casa dos mortos

das vidas sem câmbios lá fora.

– Cena 3 deste filme-documentário

do mesmo destino de sempre;

é que aqui é a casa dos mortos!

***

Prá começo de conversa, são 3 cenas,

são 3 cenas anteriores e posteriores

às minhas 12 passagens

pelas casas dos mortos,

que são os manicômios;

– tenho – digamos assim ! -

surtos de loucura existencial brejinhótica,

relativos à minha cidade natal,

Oliveira dos Brejinhos – Bahia – Brasil;

voltando às cenas:

... cenas que, por si sós,

deveriam envergonhar os ditames legais

das processualísticas penais e manicomiais;

mas, aqui é a realidade manicomial!

***

Pois, bem: são 3 cenas,

são três cenas repetidas e repetitivas

de um ritual satânico-sacro

com poucos equivalentes comparados de terror,

cujo estoque self-made in world

é o medicamentoso entupir de remédios,

o qual se esquece de que

A Era Prozac

das pílulas da felicidade

não produz A Era da Felicidade

da nossa almática essência de liberdade;

mas, aqui é a realidade manicomial!

***

E, ainda sobre as 3 cenas:

são 3 cenas de um mesmo filme-documentário:

Cena 1, das mortes sem batidas de sino;

Cena 2, das overdoses usuais e ditas legais;

Cena 3, das vidas sem câmbios lá fora

– que se reescrevam, então,

Os Infernos de Dante Alighieri;

mas, aqui é a realidade manicomial!

***

Reporto-me às palavras de um douto inconteste,

um doutor que rompeu o silêncio,

o jornalista Jânio de Freitas,

do jornal A Folha de São Paulo:

"A psiquiatria é a mais atrasada das ciências"

– Parafraseio Jânio de Freitas

porque a casa dos mortos,

que é a metáfora arquitetônica

pela qual designo a psiquiatria,

pede que se fale

contra si mesma!

***

E, por falar, também, em lucidez,

sou lúcido e translúcido:

a colunista-articulista Danuza Leão,

no jornal baiano A Tarde, explica:

"Lucidez é reconhecer

a sua própria realidade,

mesmo que isso lhe traga sofrimentos."

Mas, qual, ó Bubu!:

isto aqui é a casa dos mortos,

e, na casa dos mortos,

quem tem um olho é rei,

porque esta é a máxima e a práxis

da casa dos mortos.

***

Hospital São Vicente de Paulo /

Taguatinga – Distrito Federal – Brasil, abril de 1995:

o laudo a meu respeito (eu Bubu)

é categórico e afirma sinteticamente:

"O senhor Bubu é perfeita e plenamente lúcido!".

Mas, é que lá a psiquiatria é Psiquiatria Federal,

com P maiúsculo,

de propriedade patenteada

e de panteão da civilização;

enquanto que, aqui na Bahia,

a psiquiatria é psiquiatria estadual,

com p minúsculo,

de pôrra-louquice

e de prostíbulo do conceito clínico

(não custa nada afirmar:

eu Bubu fui absolvido

pela Psiquiatria Federal,

e eu Bubu fui condenado

pela psiquiatria estadual

– eis o mote da minha história!)

***

Isto é um veredicto!

– tomara que fosse um ultimatum

à casa dos mortos!

Giancarlo Silkunas VayBacharel pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo).

Membro do grupo de estudos Modernas Tendências da Teoria do Delito (MTTD).

Professor tutor de Direito Penal e Processo Penal no Complexo Educacional Damásio de Jesus.

Milene Maurício

Bacharelanda de Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo).

Membro do grupo de estudos Modernas Tendências da Teoria do Delito (MTTD).

Integrante do laboratório de ciências criminais – IBCCRIM.

[1] Disponível em: <http://www.acasadosmortos.org.br>, acesso em 21/04/2012.

[2] Brito, Alexis Augusto Couto de. Execução penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2011.

[3] Nucci, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 7. ed. São Paulo: RT, 2011.

[4] Brito, Alexis Augusto Couto de. Op. et loc. cits.

[5] Junqueira, Gustavo Octaviano Diniz; Füller, Paulo Henrique Aranda. Legislação penal especial. São Paulo: Saraiva, 2010.

[6] Costa Jr., Paulo José da. Curso de direito penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

[7] Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,mais-louco-e-quem-me-diz,350136,0.htm>, acesso em 21/04/2012.

[8] Conforme Declaração Universal dos Direitos Sexuais, elaborada durante o XV Congresso Mundial de Sexologia, ocorrido em Hong Kong (China), perante a Assembleia Geral da World Association for Sexual Health (WAS) que aprovou as emendas para a Declaração de Direitos Sexuais, decidida em Valência, no XIII Congresso Mundial de Sexologia, em 1997. Disponível em: , acesso em 21/04/2012.

[9] Simão, Rosana Barbosa Cipriano. Direitos humanos e orientação sexual: a efetividade do princípio da dignidade. Disponível em: . IBDFAM, 2004.

[10] Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?clippings&clipping=5571>, acesso em 21/04/2012.

[11] Szafir, Alexandra Lebelson. Descasos: uma advogada às voltas com o direito dos excluídos. São Paulo: Saraiva, 2010.

[12] Carvalho, Amilton Bueno de. Eles, os juízes criminais, vistos por nós, os juízes criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

[13] Coelho, Elizabete Rodrigues; Azevedo, Fernanda; Gauer, Gabriel José Chittó; Cataldo Neto, Alfredo. Suicídio de internos em um hospital de custódia e tratamento. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/jbpsiq/v58n2/v58n2a04.pdf>, acesso em 21/04/2012.

[14] Nucci, Guilherme de Souza. Manual... cit.

[15] Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,mais-louco-e-quem-me-diz,350136,0.htm>, acesso em 21/04/2012.

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