Boletim - 331- Especial Lei Anticrime
Junho de 2020
Pacote anticrime, lavajatismo e o sono da razão

Editorial de junho com a segunda parte da coletânea de artigos sobre a Lei Anticrime (Lei 13.964/19).

Data: 29/05/2020
Autor: IBCCRIM

Sinuoso, caótico, perigoso e imprevisível são alguns dos adjetivos que cairiam como uma luva para descrever os atuais rumos da política nacional. O antigo “super” Ministro da Justiça e Segurança Pública e ex-Juiz Federal, responsável pela operação Lava Jato, Sérgio Moro, agora é publicamente menosprezado e tratado como inimigo pelo governo a que serviu fielmente até não servir mais. Entre gritos e ofensas, lavajatistas (ou ex-levajatistas?) queimaram com um maçarico camisetas estampadas com seu rosto. “Queima a cara dele”, disse uma das manifestantes.([1]) Cena inimaginável há alguns poucos meses. Em meio à pandemia de COVID-19 e às vésperas de uma das piores crises econômicas da história, a República de Curitiba, numa tensa manhã de sexta-feira, bateu em retirada da Esplanada, deixando para trás os escombros do seu assalto ao poder.

Entre os legados do ex-ministro, com os quais o país deve agora lidar, está o dito “pacote anticrime”. Amálgama de desatino legislativo, desleixo técnico e desapreço pela ciência, as propostas reunidas às pressas pelo Ministério da Justiça estavam vocacionadas a propiciar um aprofundamento sem precedentes do encarceramento em massa, da violência policial e da decomposição dos pilares constitucionais. O pacote, que dizia mirar a alta criminalidade, na verdade, apontava uma arma carregada contra o grosso da clientela da Justiça Criminal: a população pobre, negra e periférica.

Houve, porém, resistência. A campanha “Pacote Anticrime: uma solução FAKE”, da qual o IBCCRIM foi uma das organizações idealizadoras, a luta obstinada da Coalizão Negra por Direitos, bem como as contribuições de parlamentares, acadêmicos, entidades de classe, operadores do Sistema de Justiça, entre tantos outros, foram determinantes para mitigar os efeitos devastadores da investida lavajatista no Congresso. Do Instituto também partiram notas técnicas, publicações especiais e abertas ao público, seminários, debates e diálogos abertos e franco com deputados e senadores. Esse esforço coletivo transformou a blitzkrieg planejada pelo superministro numa custosa batalha de trincheiras, disputada palmo a palmo. Cada dia foi uma oportunidade de remover o verniz anticrime e revelar o caráter antipopular, antipobre e antinegro do projeto.

O Grupo de Trabalho instituído na Câmara dos Deputados, com efeito, contribuiu para a atenuação dos efeitos nefastos sobre o sistema criminal pretendido pela redação original do “pacote”. Incluiu-se a necessária figura do “juiz de garantias” no projeto (posteriormente suspensa por lamentável decisão monocrática do Ministro Luiz Fux), a partir de pré-projeto constante das “16 medida contra o encarceramento em massa”, ação capitaneada pelo IBCCRIM. O Grupo ainda excluiu do projeto a proposta de transplante ao sistema nacional do blea bargain, que se afigurava como um tiro de misericórdia no combalido princípio do devido processo legal.

Mas se há motivos de sobra para celebrar a resistência democrática e a construção de horizontes comuns de luta - algo tão difícil em tempos de atrofia comunicativa e multiplicação de bolhas ideológicas -, em relação ao conjunto de medidas aprovadas pelo Congresso não há tanto a ser comemorado. O projeto aprovado trouxe vedações inconstitucionais à liberdade processual (art. 310, §2º, do CPP), criou hipóteses de imprescritibilidade sem respaldo constitucional (art. 116, III e IV, do CP) e adicionou hipóteses de incidência da odiosa lei dos crimes hediondos (art. 1º, II, da Lei 8.072/90). No que tange à execução penal, como fruto de emenda feita ao projeto original pelo próprio Grupo de Trabalho, aumentaram-se exponencialmente os lapsos aquisitivos da progressão de regime em frações que chegam a 70% da pena. Nos parâmetros adotados pelo STF no HC 82.959, os novos lapsos constituem, materialmente, regime integralmente fechado, na medida em que não se implementará o regime aberto antes do lapso de livramento condicional, ou mesmo do término de cumprimento da pena, diante da extrema morosidade e ineficiência das Varas de Execução pelo país. Assim, lapsos de progressão tão elevados violam a individualização executória da pena por restaurarem a figura do regime integralmente fechado. Não houve qualquer estudo de impacto acerca do incremento do encarceramento em massa gerado por essa mudança legislativa sobre o sistema prisional. Acerca do tema da execução penal, a invisibilidade e o descaso parecem atravessar todos os atores institucionais, que fizeram ouvidos moucos às críticas da academia ao projeto.

O sistema penal brasileiro permanece sendo o reino da exceção, da seletividade contra as populações historicamente vulneráveis, da morte cotidiana, dos processos torturantes e da inflição de sofrimento agudo que ataca em nível físico e psicológico. Disso somos sempre lembrados a cada novo ciclo de massacres e carnificinas prisionais. Nada que venha a agudizar essa situação pode ser comemorado. A simples manutenção cotidiana do atual “estado de coisas inconstitucional” nas masmorras brasileiras - declaração do STF que parece não guardar maiores consequências - já é uma derrota civilizatória pela qual seremos cobrados pelas futuras gerações.

Sacramentado o divórcio entre a República de Curitiba e o Governo Federal, resta permanecermos atentos aos novos arroubos legislativos dos atuais inquilinos do Ministério da Justiça. Resta, ainda, mantermos viva a resistência tão proveitosa da sociedade civil contra os escombros da passagem de Sérgio Moro pelo Ministério da Justiça, apontando a inconstitucionalidade de boa parte daquilo que foi aprovado, e orientando a doutrina e a jurisprudência à tentativa de emprestar alguma racionalidade a essa herança gravosa. A demagogia penal, que hoje mal se esforça em esconder sua faceta necropolítica, há tempos criou raízes profundas nas instituições e no imaginário coletivo do país.

“O sono da razão produz monstros”, escreveu o pintor espanhol Francisco Goya em uma de suas obras, que retrata um homem adormecido assombrado por seres noturnos. Lavajatismos, bolsonarismos e assemelhados são as criaturas que emergiram nos últimos tempos do torpor coletivo em que nos colocamos ou em que fomos colocados. Filhos gêmeos paridos pela mesma desrazão punitivista, que, volta e meia, pretendem nos arrastar para o abismo da barbárie.


“Lei anticrime”: uma leitura possível a partir do garantismo jurídico-penal

Resumo: O artigo objetiva apresentar, de modo geral, o contexto de elaboração e publicação da “Lei Anticrime” para situar suas alterações legislativas no Direito Penal e Processual Penal brasileiros, a fim de investigar os níveis de compatibilidade com o garantismo jurídico-penal proposto por Luigi Ferrajoli por ser uma teoria consistente, comprometida com os direitos e garantias fundamentais e fundada num modelo de Constituição rígida como é a Constituição brasileira de 1988.

Palavras-chave: “Lei anticrime”. Garantismo jurídico-penal. (In)compatibilidades.

Abstract: The article aims to present, in general, the context of elaboration and publication of the “Anti-crime Statute Law” to situate its legislative changes in the brazilian Criminal and Procedural Criminal Law in order to investigate the levels of compatibility with the criminal guaranteeism proposed by Luigi Ferrajoli for being a consistent theory, committed to fundamental rights and guarantees and founded on a rigid Constitution model such as the Brazilian Constitution of 1988.

Keywords: “Anticrime Law”. Criminal guaranteeism. (In)compatibilities.

Data: 29/05/2020
Autor: Ana Cláudia Bastos de Pinho e José Edvaldo Pereira Sales

Que leituras são possíveis fazer do pacote anticrime? Que impactos a agora Lei 13.964, de 24/12/2019, trouxe ao sistema penal, processual penal e de execução penal brasileiros? O que, de fato, a doutrina - seriamente comprometida com o Estado Democrático de Direito, desenhado pela CRFB/88 - tem em mãos para seguir em sua árdua tarefa de crítica e refundação dos alicerces teóricos sólidos para o acertamento dos casos penais e a resolução da vida de pessoas de carne e osso? Como a cultura penalista conservadora (que fez pacto de sangue com os Códigos fascistas de 1940 e 1941) e os atores jurídicos (sobretudo juízes e membros do Ministério Público), que lhes são caudatários, estão recebendo as mudanças, algumas das quais (sobretudo as de cunho processual) tidas por muitos como “garantistas” (as aspas, aqui, são necessárias) e incentivadoras da impunidade?  

Para enfrentar, ainda que brevemente, as questões acima apontadas, o presente artigo optou por uma leitura possível, dentre várias: o garantismo jurídico-penal, de Luigi Ferrajoli. A razão da escolha se assenta, basicamente, em dois pontos: i) trata-se de uma densa formulação teórica, totalmente fundada em bases democráticas e condizente com sistemas de Constituição rígida, como o nosso; ii) o contexto italiano dos anos 70 pode ser ao nosso comparado, já que teve como cenário uma legislação penal e processual penal de emergência (que veio à lume sob a justificativa de “combate ao terrorismo”).([1]) Isso mobilizou a cultura jurídica de orientação progressista, que se empenhou na reafirmação do primado dos direitos individuais em face às pretensões de poder do Estado. Dentre esses juristas se destacou Luigi Ferrajoli, cujo emblemático Diritto e Ragione,([2]) deu conta de formatar um modelo analítico-teórico de Direito e Processo Penal, em resposta ao arbítrio e a qualquer forma de violência (tanto a advinda do crime, quanto a gerada pelas penas, formais ou informais). Nas palavras do professor da Universidade de Roma Tre, Dario Ippolito,“è in tale contesto che la parola garantismo passa a designare la dottrina liberal del diritto penale”.([3])

Os parágrafos que seguem objetivam, ao lado das relevantes publicações já disponíveis a respeito da “Lei Anticrime”, apresentar algumas reflexões em torno das principais mudanças introduzidas pela nova lei, para - a partir do garantismo jurídico-penal - investigar, ainda que sucintamente, o nível ou os níveis de teor garantista por que passam, agora, o Direito Penal e Processual Penal brasileiros. Ou se, do contrário, o SG (Sistema Garantista) continua totalmente comprometido e ameaçado pelas velhas práticas inquisitivas e punitivistas.

É possível iniciar nossa problematização a partir do pano de fundo do “pacote”. Tratou-se de uma proposta de lei emergencial, conjuntural, que pareceu muito mais um arroubo individualista de seu criador (o então - agora ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública e ex-Juiz Federal, Sérgio Fernando Moro) do que propriamente o fruto de um debate qualificado com setores importantes da sociedade, com as Instituições que compõem o sistema de justiça criminal e, sobretudo, com a academia. Em verdade, sequer a lei veio acompanhada de justificativa!

A ideologia do “pacote”, como não poderia deixar de ser, acompanhou a sanha punitivista. Aumento de penas, corte de garantias, mais elasticidade às medidas constritivas. Tudo isso sob o pretexto de “combater a criminalidade” (o próprio “Anticrime” já revela sua pretensão audaciosa; como se a legislação que lhe antecedeu de algum modo tenha sido “a favor do  crime”) e, sobretudo, limpar definitivamente o país da chaga da corrupção, já que - como dito diversas vezes pelo pai do “pacote” - a ideia era, exatamente, ampliar aquilo que ele já havia feito quando ocupava o cargo de Magistrado e conduzia, sob sua batuta, a chamada “Operação Lava Jato”. Em suma: o “pacote” seria a realização legislativa dos desejos pessoais de seu proponente acerca de como deve ser a aplicação da justiça criminal no Brasil. 

Por evidente que nosso sistema de legislação criminal precisa ser revisto! Não é de hoje que a academia aponta fissuras na legislação penal pátria e verbaliza a necessidade urgente de adaptá-la ao projeto democrático inserido pelo sistema de garantias da Constituição. Vozes, infelizmente, inaudíveis, bradam quase no vazio ou para si próprias, eis que todas as alterações pelas quais vêm passando os diplomas legais em matéria penal, desde 1988 (a começar pela emblemática Lei dos Crimes Hediondos, de 1990) caminham no sentido diametralmente oposto, isto é, insistem na adoção de uma política criminal de intervenção máxima, com incremento de penas e amputação de garantias, sempre embalada pelo discurso falacioso da “contenção da criminalidade”.

Como assinalado acima, com o “pacote" não foi diferente! É mais do mesmo. Cria-se a emergência, impõe-se o discurso de necessidade de mais punição e, na sequência, modifica-se a legislação (por todos, Zaffaroni).  Esse é ciclo!

Se em 1990, o grande vilão foi o crime “de rua” - com o tráfico de drogas, o latrocínio e a extorsão mediante sequestro encabeçando a lista -, em 2019 foi a corrupção que ocupou a cena e serviu de privilegiado material retórico para agudizar o discurso do “combate ao inimigo”. Repise-se que a recente alteração legislativa veio da pena solipsista do então (agora ex) Ministro da Justiça que, reiteradamente e sem qualquer pudor, se colocou de forma clara na posição de “combatente”, quando ainda exercia a Magistratura, esquecendo que, num devido processo legal (due process of law) são a acusação (Ministério Público) e a defesa (acusado) que se digladiam. Jamais, o juiz!

Mas, nem tudo seguiu os rumos inicialmente previstos e eis que o “pacote” acabou por sofrer um grave “golpe” no Poder Legislativo: a proposta de um modelo acusatório de Processo Penal tão ansiado pela academia! Ou seja, a “Lei Anticrime” não é de todo condenável, graças aos poucos, embora gigantes, méritos que lhes foram atribuídos por conta das modificações introduzidas no Congresso Nacional, sobretudo nesse ponto do sistema processual penal. De resto, uma parte expressiva do seu texto, continua a manter (e a piorar) o Direito Penal brasileiro no que se refere ao punitivismo e o recrudescimento da intervenção penal.

Porém, apesar desses consideráveis avanços no âmbito processual, a mentalidade inquisitória reinante não deixou por menos… eis que, a nova lei - nesse particular - foi alvo de críticas de entidades de classe representativas da Magistratura e do Ministério Público, e objeto de decisão, de 22 de janeiro de 2020, da lavra do Ministro do STF, Luiz Fux, proferida nas ADIs 6.298 (proposta pela AMB), 6.299, 6.300 e 6.305 (proposta pela CONAMP), que, dentre outros aspectos, suspendeu a implantação do juiz das garantias e seus consectários, a saber, os artigos 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3ª-E, 3º-F, do Código de Processo Penal, e, também, a alteração do procedimento de arquivamento do inquérito policial (28, caput, Código de Processo Penal).

Ou seja, o que de melhor a lei poderia ter trazido, ficou - por enquanto - apenas no papel!

Quanto ao aspecto penal (Código Penal e legislação extravagante), a “Lei Anticrime” trouxe agravamentos, como, por exemplo, a ampliação da hipóteses de legítima defesa (parágrafo único do art. 25 do CP), o tempo de cumprimento da pena, que agora é de 40 (quarenta) anos (art. 75 do CP) e não mais 30 anos, maior restrição para concessão de livramento condicional (Inciso III, art. 83 do CP), restrição para o transcurso do prazo prescricional (art. 116 do CP), hipóteses de majoração da pena no crime de roubo (§ 2º e § 2º-B do art. 157 do CP).

Dessa breve radiografia, conclui-se que seguimos tendo remendos e um amontoado totalmente desconexo de leis em matéria penal. Como pode, uma mesma lei, estabelecer o juiz de garantias e se preocupar com a criação de limites ao decisionismo penal (como, por exemplo, na nova disciplina da prisão preventiva) e, ao mesmo tempo, aumentar para 40 anos o tempo da pena de prisão? Aliás, uma das questões suscitadas e acolhidas na decisão liminar do Ministro Luiz Fux foi a ausência de estudos e impactos orçamentários para despesas que seriam decorrentes da lei como o juiz de garantias, mas, perguntemos, houve algum estudo a respeito dos custos decorrentes da elevação do tempo máximo de prisão em 10 (dez) anos? Certamente não!

Luigi Ferrajoli propõe a reserva de código como solução para essa crise gerada pela inflação legislativa assistemática, que acaba por comprometer os princípios garantistas e, em última análise, o próprio Estado Democrático de Direito, já que enfraquece a separação de poderes (o legislador não segue qualquer limite racional na fabricação das leis, esquecendo que num modelo constitucional rígido, a lei há de ser condicionada aos princípios da Carta Política) e afrouxa o primado da sujeição do juiz à lei (que não pode ser qualquer lei, mas uma lei qualificada, isto é, constitucionalmente válida), abrindo um espaço ilimitado à discricionariedade judicial.([4])

Dito de outra forma: haveria de ter um princípio, de dignidade constitucional, segundo o qual nenhuma lei poderia ser introduzida em matéria de delitos, penas e processos penais, senão por meio de uma modificação ou uma integração - aprovada com um procedimento qualificado - do texto do Código Penal e do Código de Processo Penal. Isso seria um limite ao arbítrio do legislador.([5])  

À parte esse necessário constrangimento formal, que diz com a exigência qualificada de aprovação de qualquer lei que trate de matéria penal, para que se concentrem todas elas no conjunto dos Códigos Penal e de Processo Penal, subjaz uma outra exigência, mais importante, que diz, com o aspecto material dessa legislação, que deve primar pela coerência interna e sistematização do arcabouço legislativo, sempre em consonância com os princípios liberais/garantistas, que - no Brasil - encontram-se consignados na Constituição (legalidade, ofensividade, materialidade da ação, retributividade, etc).

É bem verdade - e Ferrajoli admite isso, claramente - que o SG é ideal (situa-se no nível do “dever ser”). Isto é, nunca será totalmente realizável. Os sistemas penais são mais ou menos garantistas conforme satisfaçam ou não os requisitos ou pressupostos do Sistema Garantista (SG), que deve sempre ser tido como um modelo ideal, a ser alcançado, tanto no âmbito penal quanto processual penal. Os axiomas garantistas apresentados por Ferrajoli para o Sistema Garantista (SG)([6]) sintetizam, no âmbito penal (os seis primeiros) e no âmbito processual penal (os quatro derradeiros), os parâmetros necessários para a caracterização de um modelo penal ou processual penal mais ou menos garantista.([7])

É certo que o direito penal e processual brasileiros precisariam avançar muito e passar por graves mudanças substanciais, estruturais (quem sabe por meio de uma reserva de código?) para que se libertassem dessa origem autoritária, rumo a um resgate liberal, em direção a um modelo que se aproxime do idealizado por Ferrajoli na sua formulação teórica – o garantismo jurídico-penal.([8])

A “Lei Anticrime” é, claramente, uma lei de emergência, demagógica e conjuntural (como foram muitas de suas antecessoras - por todas, a lei de crimes hediondos). Não corrigiu as assimetrias do nosso sistema, pelo contrário, agudizou-as. Não conferiu coerência ao Direito e ao Processo Penal, pelo contrário, demonstra-se paradoxal em vários aspectos. E, por fim, ficou - em muitos pontos - longe de submeter-se aos ditames da Constituição.

A mentalidade inquistória([9]) é tão presente entre nós, que a parte mais louvável da lei - e que poderia aumentar consideravelmente seu nível de garantismo - foi rechaçada (teve sua eficácia suspensa, indefinidamente) por uma decisão monocrática de um Ministro da Suprema Corte do país! Ao fim e ao cabo, a cultura penalista conservadora e as entidades de classe das Instituições ligadas à Justiça Criminal (sobretudo, Magistratura e Ministério Público), com o beneplácito do STF, conseguiram sufocar a maior tentativa da “Lei Anticrime” de sepultar o modelo autoritário de Processo Penal.

E o mais interessante de se notar é que isso foi feito tendo como discurso de fundo a célebre máxima da “impunidade” e do “garantismo” (mal compreendido e levianamente atacado), como se respeitar as regras do jogo democrático para punir alguém fosse um atentado contra o “combate ao crime”.

Como diz Ferrajoli, o garantismo é um modelo ideal. Há níveis. Quanto mais satisfeitas a estrita legalidade (legalidade material, taxatividade, ofensividade, retribitividade, etc) e a estrita jurisdicionaldiade (imparcialidade do juiz, carga da prova à acusação, presunção de inocência, etc),([10]) mais certeza (ao invés de poder) haverá nas decisões e, consequentemente, mais garantista ela será (cognoscitivismo preponderando ao decisionismo([11])).

De outra banda, quanto menos se observar os princípios, quanto menos se constranger o julgador (constrangimentos formais, materiais, hermenêuticos), quanto menos o Ministério Público assumir seu papel de parte, quanto menos o juiz compreender sua posição imparcial (terzietà), menos garantista será a decisão.

A “Lei Anticrime” pode(ria) ser uma esperança a uma elevação no nível de garantismo legislativo presente no direito processual penal brasileiro. Afinal, vivemos um tempo em que obviedades precisam ser ditas.

Insistimos: há na nova lei importantes modificações, que atingem a espinha dorsal do processo penal brasileiro. E não é preciso dizer muito para chegar a essa conclusão, pois está afirmado claramente que a estrutura do processo penal é acusatória; logo, todo o direito processual penal brasileiro deve (obrigatoriamente, para ser redundante) ser lido a partir do princípio dispositivo e não mais do inquisitivo. Essa mudança é interpretativa (abrangente) e deve produzir de imediato e com efeitos, ao longo do tempo, uma alteração na mentalidade (o modo como é lido, visto e trabalhado) dos que labutam com o direito processual penal, ocasionando a revisão de diversos dispositivos que não foram alcançados (textualmente) pelas recentes mudanças no intuito de compatibilizá-los com o modelo acusatório (leia-se com a CRFB/88).

Porém, a postura arredia do STF, ao suspender a eficácia desse núcleo acusatório do sistema processual, demonstra que não há qualquer interesse em se mover o ponteiro do termômetro garantista.

Leis conjunturais, de emergência e demagógicas nunca foram solução. Pelo contrário, no Brasil, subvertem, comprometem, colocam em risco as poucas conquistas alcançadas depois de mais de trinta anos de redemocratização. A “Lei Anticrime”, ao fim e ao cabo, é mais do mesmo. E nem poderia se esperar muito dela, não é? Desde seu nascedouro, já dizia a que vinha. Passou como um trator sobre as propostas de reforma do Código Penal (PLS 236, de 2012) e do Código de Processo Penal (PL 8.045/2010), que, provavelmente, continuarão esquecidas, aguardando mais outro “coelho da cartola” lhes furar a fila… 

A nossa velha desculpa de que “não adianta mudar a lei, se a mentalidade de quem opera com ela não mudar” precisa ser repensada. Não podemos depender e ficar à mercê das mentalidades de uns e outros. Não podemos estar sujeitos a posturas voluntaristas, ao “querer" ou “não querer”. Num modelo em que a Constituição impõe princípios (que são, pois, normativos e vinculativos), a lei - para além de condicionante - há de ser condicionada. E ela, somente ela, pode constranger voluntarismos. Por evidente, não pode evitar, mas pode, e pode muito, limitar. Tanto isso é verdade, que estamos - a essas alturas do campeonato - implorando que as coisas estejam na lei, com todos as letras! E, sobre isso, o garantismo jurídico tem toda a razão e tem muito a nos dizer… basta ter ouvidos para ouvir! 

REFERÊNCIAS

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, ano 30, n. 30, 1998.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os sistemas processuais penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018.

FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. Edición de Miguel Carbonell. Madrid: Trotta, 2008.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2000.

FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione: teoria del garantismo penale. 10. ed. Roma: Gius. Laterza & Figli, 2011.

FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. 2. Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2011.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro, v. 1. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.

IPPOLITO, Dario. Lo spirito del garantismo: Montesquieu e il potere di punire. Roma: Donzelli editore, 2016.

PINHO, Ana Cláudia Bastos de; ALBUQUERQUE, Fernando da Silva; SALES, José Edvaldo Pereira. O garantismo (penal) de Luigi Ferrajoli: apontamentos (des)necessários a certas ‘críticas’ Made in Brazil. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Belo Horizonte/MG, Ed. Fórum, ano 17, n. 26, p. 155-186, jul./dez. 2019.


Notas de rodapé

([1]) FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2000. p. 815.

([2]) FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione: teoria del garantismo penale. 10. ed. Roma: Gius. Laterza & Figli. 2011.

([3]) “É em tal contexto que a palavra garantismo passa a designar a doutrina liberal do direito penal”(tradução livre). IPPOLITO, Dario. Lo spirito del garantismo: Montesquieu e il potere di punire. Roma: Donzelli editore, 2016. p. 10.

([4]) FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. Edición de Miguel Carbonell. Madrid: Trotta, 2008. p. 225-226; FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. 2. Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2011. p. 375-379.

([5]) FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. Edición de Miguel Carbonell. Madrid: Trotta, 2008, p. 227.

([6]) “A1 Nulla poena sine crimine, o principio de retributividad. A2 Nullum crimen sine lege, o principio de estricta legalidad. A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate, o principio de economía. A4 Nulla necessitas sine iniuria, o principio de lesividad. A5 Nulla iniuria sine actione, o principio de materialidad. A6 Nulla actio sine culpa, o principio de culpabilidad. A7 Nulla culpa sine iudicio, o principio de jurisdiccionalidad. A8 Nullum iudicium sine accusatione, o principio acusatorio. A9 Nulla accusatio sine probatione, o principio de la carga de la prueba. A10 Nulla probatio sine defensione, o principio de contradicción” FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. 2. Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2011. p. 351.

([7]) FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2000. p. 98.

([8]) Deixamos aqui de fazer críticas a supostas formulações teóricas distorcidas, como a do pretenso “garantismo penal integral”, o que já fizemos em outra ocasião e para onde remetemos o leitor. O garantismo a que nos referimos ao longo do texto é o de Luigi Ferrajoli, que pode ser lido e estudado a partir de suas obras, algumas das quais indicadas nas referências, e não a “arremedos à brasileira”. PINHO, Ana Cláudia Bastos de; ALBUQUERQUE, Fernando da Silva; SALES, José Edvaldo Pereira. O garantismo (penal) de Luigi Ferrajoli: apontamentos (des)necessários a certas ‘críticas’ Made in Brazil. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Belo Horizonte/MG, Ed. Fórum, ano 17, n. 26, p. 155-186, jul./dez. 2019.

([9]) Vide COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os sistemas processuais penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018.

([10]) FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2000. p. 696.

([11]) FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2000. p. 42-43.


Ana Cláudia Bastos de Pinho

Doutora e Mestre  em Direito pela UFPA. Professora da UFPA. Promotora de Justiça.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3470653249189577

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5050-2840

acpinho9@gmail.com

José Edvaldo Pereira Sales

Doutor e Mestre em Direito pela UFPA. Promotor de Justiça.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4628324395457354

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4329-7292

joseepsales@gmail.com

Autores(as) convidados(as)

A cadeia de custódia é condição necessária para a redução dos riscos de condenações de inocentes

Resumo: O tema do presente artigo é a cadeia de custódia da prova. A introdução do instituto na Lei 13.964/19 reflete o reconhecimento de que a fiabilidade constitui uma importante característica dos elementos que comporão o conjunto probatório a ser valorado pelo juiz para a determinação dos fatos juridicamente relevantes. A função da cadeia de custódia da prova, definida como documentação cronológica do vestígio (que deve ser entendido de modo amplo), é justamente a de garantir que o elemento probatório que o juiz recebe na fase de instrução é confiável foi colhido, catalogado, manipulado, condicionado e transportado adequadamente até ser ingressado ao juízo. Por isso, pode ser usado como ponto de partida às inferências probatórias. Na omissão da lei, defendo que a fase adequada ao exame da cadeia de custódia é a fase de admissão da prova; e, em segundo lugar, que a consequência da quebra da cadeia de custódia deverá ser a exclusão do vestígio, sem que este possa ser valorado. A qualidade epistêmica da fase investigatória é condição necessária, ainda que não suficiente, para um processo penal seriamente comprometido com a redução do risco de condenação de inocentes.

Palavras-chave: cadeia de custódia, fiabilidade, determinação dos fatos, redução de riscos, epistemologia jurídica.

Abstract: The subject of this paper is chain of custody of evidence. The introduction of this institute in Statute 13.964/19 reflects the recognition that reliability is an important characteristic of the pieces of evidence that will compose the set of evidence to be valued by the judge for the determination of the legally relevant facts. The function of the chain of custody of evidence, defined as the chronological documentation of the evidence (which must be understood broadly), is precisely to guarantee that the piece of evidence which the judge received in the phase of investigation is reliable, was collected, cataloged, manipulated, conditioned, and transported properly until it was brought to court; therefore, it can be used as a starting point for evidentiary inferences. In the absence of legislation, I argue that the appropriate phase for examining the chain of custody is the phase of admissibility; and, second, that the consequence of breaking the chain of custody should be the exclusion of the piece of evidence, avoiding its evaluation. The epistemic quality of the investigative phase is a necessary, albeit not sufficient, condition for a criminal trial seriously committed to the reduction of the risk of convicting innocents.

Keywords: chain of custody; reliability; fact-finding; risk-reduction; legal epistemology.

Data: 29/05/2020
Autor: Janaina Matida

No dia 24 de dezembro de 2019, fomos surpreendidos pela sanção presidencial da Lei 13.964, apelidada pelo então Ministro da Justiça como “Pacote Anticrime”. Ainda que não seja possível ignorar a presença de contundentes retrocessos na legislação em questão, a surpresa a que me refiro foi sobre alguns aspectos positivos: de certo modo, a chegada do juiz de garantias,([1]) a eficaz blindagem ao plea bargaining e, finalmente, a previsão legislativa da cadeia de custódia das provas renovaram o fôlego dos que anseiam por um sistema de justiça genuinamente acusatório. Enquanto não podemos festejar a integral substituição de um sistema com flagrante raiz inquisitorial por um sistema de justiça verdadeiramente sintonizado com a Carta Constitucional de 1988,([2]) resta-nos dirigir esforços a otimizar os efeitos destas mudanças que chegam a conta-gotas.

Assim, o presente artigo pretende oferecer uma análise da cadeia de custódia das provas vista como ferramenta útil a uma determinação dos fatos adequada aos compromissos de um processo penal democrático. Contornos democráticos implicam que a redução dos riscos de se condenar inocentes deva servir como norte regulatório: ao lado de um standard probatório robusto para a condenação, de protocolos para a produção de provas em específico, do genuíno respeito à presunção de inocência, de critérios racionais de valoração, a cadeia de custódia deve funcionar como um expediente probatório que, de fato, possa contribuir à redução dos riscos de se condenar inocentes. Para tanto, aqui pretendo contribuir a preencher os silêncios que a legislação em comento deixou, sem deixar de reconhecer aspectos positivos nela presentes. Adiantando a tese principal, defenderei que a efetividade da cadeia de custódia depende diretamente de que se entenda que o efeito da não preservação deve ser a exclusão deste elemento. Serão estas as ideias presentes neste artigo. Vejamos. 

Da leitura atenta dos artigos que agora prestam tratamento à temática ora em exame, é possível constatar que, ao dispor sobre cadeia de custódia, pretendeu-se destacar a importância da documentação da história cronológica daquilo que eventualmente pode vir a servir de prova em determinado processo criminal.([3]) Em realidade, a redação é um tanto mais restrita, uma vez que os dispositivos legais determinam que a cadeia de custodia recai sobre ‘vestígios’. Vestígios são, por sua vez, definidos tecnicamente como “todo objeto ou material bruto, visível ou latente, constatado ou recolhido, que se relaciona à infração penal” (art. 158, §3o). Essa definição merece críticas: não há por que assumir definição jurídica tão estreita quando o que importa é que seja capaz de auxiliar na determinação da infração penal. Inegável que coisas que podemos pegar são qualificáveis como vestígios, mas não há razão para deixar-se de reconhecer que uma troca de e-mails, uma interceptação telefônica, ou mesmo a memória de alguém também apresentam potencial de reconstruir fatos juridicamente relevantes. Por que objetos mereceriam custódia e a memória não?([4]) Por que deve ser combatida a contaminação da cena do crime, mas não a manipulação da memória daqueles que contribuirão à determinação dos fatos? 

Feito o ajuste quanto ao alcance conceitual do vestígio para abarcar também elementos imateriais, podemos voltar às disposições legais concernentes à cadeia de custódia, vê-se que o objetivo é de assegurar que os elementos mostrados ao juiz (i) sejam os mesmos encontrados na cena do crime e que, além disso, (ii) não tenham sofrido adulterações. Neste passo, é relevante garantir, respectivamente, a mesmidade([5]) e a integridade, porque são estas as características que tornam o elemento probatório confiável. Só a partir do asseguramento da fiabilidade (ou confiabilidade), que ele poderá integrar o raciocínio probatório por meio do qual, por sua vez, o juiz buscará determinar a ocorrência dos fatos considerados relevantes para aquele processo. Faz sentido: sem a cadeia de custódia, como confiar, por exemplo, que o resultado de DNA trazido ao processo corresponde, de fato, ao material colhido na cena do crime (mesmidade em xeque)? Se não há documentação cronológica do DNA, omitindo-se de que maneira foi coletado, manipulado e conservado, como confiar que seu resultado não foi adulterado (integridade em xeque)? Em suma, se a utilidade do material que é trazido ao processo é no sentido de acercar o juiz de uma reconstrução dos fatos o mais próxima possível da realidade, o risco de interferências irregulares sobre os materiais representa o próprio risco de que estes objetos venham a se prestar a uma reconstrução deturpada dos fatos.

Buscando salvaguardar o potencial epistêmico do processo penal, a Lei disciplina uma série de providências que concretizam o desenvolvimento técnico-jurídico da cadeia de custódia: (i) o artigo 158-B detalha as diversas etapas de rastreamento do vestígio: reconhecimento, isolamento, fixação, coleta, acondicionamento, transporte, recebimento, processamento, armazenamento e descarte; (ii) o artigo 158-C dispõe o perito oficial como sujeito preferencial a coletá-lo, bem como o lugar para onde deve ser encaminhado (central de custódia); (iii) o §2o proíbe a interferência na cena do crime antes que haja a sua liberação por parte do perito, sendo a conduta tipificada como fraude processual; (i) já o artigo 158-D disciplina como os vestígios devem ser acondicionados, com necessidade de lacre, numeração individualizada, “de forma a garantir a inviolabilidade e a idoneidade do vestígio”. A partir destes dispositivos, já é possível realizar algumas considerações:

Em primeiro lugar, fica fácil enxergar que não são suficientes mais a realização de meras rotinas de cuidado, criadas ad hoc. Não basta que se realize uma “custódia fática” a qual reflita o menor ou maior cuidado que agentes que guardem a posse do objeto, individualmente, julguem ser devidos à sua preservação. Os novos dispositivos assentam que a confiabilidade dependerá do necessário oferecimento de um detalhado rastreio, nos moldes definidos normativamente. Há a prévia estipulação do sujeito responsável, para onde o vestígio deve ser encaminhado, o detalhamento das fases e das condições que devem ser observadas para que se possa dizer que o vestígio foi regularmente custodiado. Isso significa, em outras palavras, que ficam ultrapassadas de vez quaisquer discussões sobre a boa ou má-fé do agente responsável pelo vestígio.([6]) Neste aspecto, a legislação avança positivamente rumo à determinação dos fatos adequada a um processo penal democrático.

Mas também é importante notar que a lei é silente quanto ao efeito da não preservação da cadeia de custódia. Isto é, embora seus artigos detalhem aspectos, sem dúvida, importantes, inexiste qualquer determinação legislativa quanto ao momento processual apropriado para o exame da regularidade ou irregularidade da cadeia de custódia; tampouco qualquer explicitação quanto às consequências que devem ser atribuíveis aos elementos probatórios cuja custódia haja passado por rupturas. Sobre o assunto, a dogmática penal divide-se entre os que entendem que a ruptura da cadeia de custódia deve implicar em sua inafastável exclusão e os que afirmam que caberá ao juiz, em cada caso, valorar e decidir sobre o peso a ser concedido a elemento probatório cuja custódia tenha sido irregular.

No que refere às etapas probatórias, os processualistas que defendem a exclusão entendem que o exame da cadeia deve ocorrer na fase de admissão. Desse modo, o elemento probatório que tenha a sua cadeia de custódia quebrada terá interrompido o trânsito para integrar o conjunto probatório sobre o qual o processo circundará.([7]) Já para os que entendem que a quebra não necessariamente deve acarretar a exclusão, é na fase de valoração que cabe proceder-se a exame da cadeia de custódia.([8]) Para estes, o comprometimento da fiabilidade do elemento probatório consiste em uma questão de grau e, sendo assim, o juiz pode chegar a aproveitar o elemento irregularmente custodiado. Quem sustenta este entendimento busca evitar a exclusão de elementos probatórios, que seriam capazes de auxiliar na determinação de fatos juridicamente relevantes. Eles partem da diretiva segunda a qual “quanto mais rico o conjunto de elementos probatórios, mais perto de determinar adequadamente os fatos ficamos”.

No entanto, é preciso considerar profícuas as limitações ao filtro da relevância. Ainda que em princípio toda prova sobre fato relevante deva ser admitida, há boas razões para impor limites à formação do conjunto probatório, mesmo que isso implique perdas ao conjunto. Um elemento probatório não custodiado como deveria tem o lesivo potencial de dar suporte a uma hipótese fática possivelmente falsa, conferindo-lhe injustificados contornos persuasivos. Na hipótese de que receba valor probatório indevido, o elemento probatório não custodiado terá contribuído a prestar apoio à narrativa a uma primeira vista coerente porém falsa.([9]) Pense-se, por exemplo, em uma interceptação telefônica que teve o trecho favorável à hipótese defensiva cortado.([10]) A admissão de elementos relevantes, porém não confiáveis, de modo a que futuramente possam ser (super)valorados pelo juiz, representa um flerte desnecessário com o risco de condenação de inocentes.

Uma ida aos desenvolvimentos do processo penal brasileiro, entre seus trancos e barrancos, basta para se constatar a mentalidade inquisitorial partilhada pelo grosso de nossa magistratura. O juiz brasileiro entende que é seu dever “combater a criminalidade”([11]); custa-lhe enxergar nesta inspiração qualquer ameaça à imparcialidade e à racionalidade de que suas decisões deveriam estar dotadas. Não é segredo: o juiz brasileiro encontrou conforto na retórica ofertada por um desenho institucional de matriz autoritária. Longe de se preocupar com a aplicação de ferramentas e técnicas capazes de reconstruir os fatos tal como ocorreram, a partir do emprego retórico de termos como “verdade real”, “livre convencimento” e “liberdade de provas”, o juiz de mentalidade inquisitorial tenta conservar caminho aberto([12]) à predisposição pela tese da acusação.([13])

Ora, se o que pretendemos a partir dos movimentos de reforma é substituir o sistema inquisitorial por um sistema acusatório, é necessário avançar. E avançar implica não menosprezar a realidade de uma cultura jurídica profundamente autoritária. Logo, é preciso reconhecer que desenhos institucionais inspirados no juiz que deveria ser simplesmente não oferecerão limites suficientes ao juiz que é; ao juiz que concretamente temos e que ainda responde a uma lógica inquisitorial por meio da qual reforça o primado da hipótese sobre os fatos.([14]) No que refere à cadeia de custódia das provas, é necessário construí-la, enquanto categoria conceitual, de modo a que efetivamente represente constrangimentos epistêmicos a este juiz predisposto a considerar suficiente a parca corroboração construída à hipótese acusatória. Não temos razões para concluir que o juiz brasileiro saberá ser firme quanto à debilidade probatória de elementos de prova relevantes, porém não confiáveis.

Além disso, uma perspectiva conceitual analítica também favorece a tese de que se trata de exame a ser feito na fase de admissão, pois uma coisa é determinar a fiabilidade de certo elemento, outra bem diferente é atribuir-lhe valor. Como explica Prado, “são coisas diversas saber se um determinado elemento probatório está em condições de ser avaliado, ou seja, se o elemento probatório pode ser objeto de avaliação, e em caso de ser avaliável, saber que valor o juiz lhe atribui”.([15]) Não se deve, portanto, misturar a etapa na qual se examina a sua avaliabilidade à etapa posterior em que se realiza a sua avaliação propriamente dita. A distinção de etapas feita conceitualmente auxilia na redução dos riscos de raciocínios probatórios equivocados pelo juiz, dado que se elimina de plano aquilo que não lhe poderá servir de premissa.

Finalmente, não se pode perder de vista os perniciosos efeitos advindos da cultura do aproveitamento de irregularidades. O entendimento de que dever-se-ia admitir como elementos probatórios vestígios cujas cadeias de custódia tenham sido quebradas gera incentivo indesejável aos agentes responsáveis pela investigação preliminar. A mensagem seria de que é desnecessário modificar a forma como investigam; que as reformas sistêmicas poderiam continuar a ser ignoradas. Num cenário em que a opção é pelo aproveitamento das irregularidades, cabe reconhecer que o que se preserva é a ânsia por condenações - esta sim, custodiada da investigação à decisão de mérito. O giro comportamental([16]) dos que atuam na fase de investigação só será conseguido à medida em que se exclua elemento probatório não confiável.

De modo sucinto, pois já ultrapasso os limites deste artigo, é preciso que a cadeia de custódia das provas não se reduza à cadeia de aproveitamento de irregularidades. A promessa de um processo penal acusatório seriamente comprometido com a presunção de inocência só pode ser satisfeita quando o que acontece em investigação preliminar também seja objeto de nossas reflexões.([17]) A determinação adequadamente fatos, considerando o compromisso com a redução dos riscos de se condenar inocentes próprio do processo penal, não pode ser atingida enquanto a investigação preliminar seja conservada como um reino de arbitrariedades e surpresas contra a defesa, favores e condescendências para a acusação. É preciso maximizar a eficiência epistêmica do processo([18]) e isso só pode ser feito com a genuína implementação da cadeia de custódia. A refundação de um processo acusatório, que preza a equidistância entre as partes e o Estado, só pode ser alcançada a partir do respeito à cadeia de custódia da prova penal.

Referências

AMB - Associação dos Magistrados Brasileiros. Pesquisa AMB 2015: Resultados. Disponível em:  <https://www.conjur.com.br/dl/pesquisa-amb.pdf>. Acesso em: 9 maio 2020.

BADARÓ, Gustavo. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

BADARÓ, Gustavo. A cadeia de custódia e sua relevância para o processo penal. In: SIDI, Ricardo; LOPES, Anderson B. Temas atuais da investigação preliminar no processo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.

CASARA, Rubens R. R. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os sistemas processuais: Escritos do Prof. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, vol. 1. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória. 2018.

CORDERO, Franco. Guida alla Procedura Penale. Torino: Utet, 1986.

DALLAGNOL, D, M.; CÂMARA, J. de A.S.R. A cadeia de custódia da prova. In: RESENDE, Daniel Salgado (Orgs.).  A prova no enfrentamento à macrocriminalidade. Salvador: Juspodivm, 2016.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideais autoritárias no processo penal brasileiro. São Paulo: Tirant Brasil, 2018.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Prisões cautelares, confirmation bias e o direito fundamental à devida cognição no processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 117, ano 23, nov./dez. 2015.

IDDD - Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Relatório Anual 'O fim da liberdade',  2019.

JESUS, Maria Gorete Marques de. Verdade policial como verdade jurídica: narrativas do tráfico de drogas no sistema de justiça. Revista Brasileira de Ciências Sociais,  São Paulo,  v. 35, n. 102, 2020 . Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0102-69092020000100501&lng=en&nrm=iso >. Acesso em:  9 maio 2020.

JESUS, Maria Gorete de. O que está no mundo não está nos autos: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. 2016. 276 p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2016. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-03112016-162557/publico/2016_MariaGoreteMarquesDeJesus_VCorr.pdf>. Acesso em: 9 maio 2020.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019.

MACHADO, Leonardo Marcondes. Investigação criminal exige base epistemológica e fundamento democrático. Conjur, 7 abr. 2020. Disponível em:  <https://www.conjur.com.br/2020-abr-07/academia-policia-investigacao-criminal-exige-base-epistemologica-democratica>. Acesso em: 9 maio 2020.

MATIDA, Janaina. Epistemologia jurídica aplicada ao processo penal. In: LIMA, Joel Correa; CASARA, Rubens R.R. (Org.). Temas para uma perspectiva crítica do direito: homenagem ao Professor Geraldo Prado. São Paulo: Contracorrente. No prelo. (previsão jun./2020).

MATIDA, Janaina. O valor probatório da palavra do policial”. Boletim bimestral Trincheira Democrática do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, Salvador, ano 3, n. 8, abr./2020.

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: Emais Editora, 2019.

PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019.

TARUFFO, Michele. Narrativas Judiciales (Anexo 2). In: TARUFFO, Michele. La prueba, Madrid: Marcial Pons, 2008.

SEMER, Marcelo. Sentenciando tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento. São Paulo: Tirant lo blanch Brasil, 2019.

VIEIRA, Antonio. A cadeia de custódia da prova no processo penal: algumas notas sobre as alterações promovidas pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Boletim bimestral Trincheira Democrática do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, Salvador, ano 3, n. 7, fev./2020.


Notas de rodapé

([1]) Como já é de conhecimento notório, o instituto do juiz de garantias teve sua eficácia suspensa por decisão acautelatória proferida pelo Supremo Tribunal Federal no bojo de ADI’s 6298, 6299, 6300 e 6305. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=435253&ori=1>.  Acesso em: 9 maio 2020.

([2]) Sobre a necessidade de uma Reforma Global, ver Coutinho, 2018.

([3]) “Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte”. A formulação final do dispositivo passou por um tortuoso caminho, dado que o tratamento inicial era precisamente de esvaziamento do que seja cadeia de custódia. Como esclarece Vieira (p. 29, 2020), “A expressão ‘cadeia de custódia’ constava da redação proposta para o §2o do art. 3oA da Lei 12.850/13, afirmando-se que, nos casos em que houvesse atuação de equipes conjuntas de investigação, o compartilhamento ou transferência de provas dispensaria formalização ou autenticação especiais, exigindo-se apenas a demonstração da cadeia de custódia”. (grifei)

([4]) Trato da temática da memória como elemento probatório a ter sua cadeia de custódia preservada em uma teleconferência para o Instituto Peruano de Razonamiento Probatorio, ocorrida em abril de 2020. Disponível em:  <https://www.youtube.com/watch?v=Sr1OOht-Ea4&feature=youtu.be>. Acesso em: 9 maio 2020.

([5]) Sobre “mesmidade”, ver Prado, 2019, p. 95.

([6]) Prado, 2019: “No caso da quebra da cadeia de custódia não se cogita de perquirir sobre a boa ou má-fé dos que manusearam o produto da atividade de investigação dos meios de prova”.

([7]) Prado (2014, 2019), Lopes Jr. (2019), Morais da Rosa (2019) entendem que a quebra acarreta necessária exclusão.

([8]) Para Badaró (2017) e Dalagnol e Câmara (2016), a consequência da quebra da cadeia de custódia deve ser considerada pelo juiz no momento da valoração.

([9]) Sobre boas (porém falsas) narrativas, ver Taruffo, 2008.  

([10]) Prado, 2019: “A constatação em um processo concreto de que houve supressão de elementos informativos colhidos nestas circunstâncias fundamenta a supressão sobre a infidelidade dos registros remanescentes e realça a ineficácia resultante da quebra da cadeia de custódia (...)”.

([11]) AMB, 2015. 69,5% dos entrevistados são favoráveis à elevação do limite máximo do cumprimento de pena privativa de liberdade, 71,7% concordam com o aumento da punição mínima para delitos de tráfico de drogas, e 94,8% defendem penas mais severas para agentes políticos em casos de corrupção e improbidade.

([12]) Sobre o papel retórico da tríade “verdade real, livre convencimento e liberdade das provas”, ver Gloeckner, 2018, p. 415-ss.

([13]) Até porque, como explica Casara (2015, p. 152), “Ao acreditar na imparcialidade do Ministério Público, desaparece a equidistância do Magistrado em relação às partes e, em consequência, a própria imparcialidade da Agência Judicial”. Ademais, entre as pesquisas que confirmam a predisposição do juiz a decidir com base na tese da acusação. Ver Semer (2019), Gloeckner (2015), Jesus (2016), Jesus (2020) e IDDD (2019).

([14]) A denúncia do “il primato dell ipotesi sui fatto” feita por Cordero (1986, p.51) recebeu merecida atenção por parte da processualística penal brasileira. Entre eles, Coutinho, (2018, p. 43), Aury Lopes Jr. (2019, p. 346) e Morais da Rosa (2019, p. 719).

([15]) Prado, 2019, p.88.

([16]) Vieira, p. 31.

([17]) Machado, 2019.

([18]) Vieira, 2020, p. 28.


 Janaina Matida

Doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha). Professora de Direito da Universidad Alberto Hurtado (Chile).

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0963-1848

jmatida@uahurtado.cl

Autora convidada

Acordo de não persecução: um novo começo de era (?)

Resumo: O artigo analisa o aparato hierárquico e burocrático do sistema de justiça romano-germânico e a estrutura horizontal e paritária anglo-saxã. Procura entender a racionalidade dos processos de tomada de decisão em cada modelo e verifica se ao implementar a justiça consensual, o Brasil adotou uma cultura jurídica menos dependente do pronunciamento oficial do Estado. Essa avaliação permitiu conhecer as condições em que receberemos o acordo de não persecução, bem como promover uma leitura mais crítica da nova legislação (Lei 13.964/19).

Palavras-chave: Justiça Consensual. Acordo de Não Persecução Penal. Lei 13.964/19

Abstract: The article analyzes the hierarchical and bureaucratic apparatus of the Roman-Germanic justice system and the Anglo-Saxon horizontal and parity structure. It seeks to understand the rationality of decision-making processes in each model and verifies if when implementing consensual justice, Brazil has adopted a legal culture that is less dependent on the official pronouncement of the State. This evaluation allowed knowledge of the conditions under which we will receive the non-persecution agreement, as well as to promote a more critical reading of the new legislation.

Keywords: Consensual Justice. Non-Prosecution Agreement. Law 13.964/19

Data: 29/05/2020
Autor: Leonardo Augusto Marinho Marques

Como todo país de cultura romano-germânica, concebemos um sistema justiça dependente do aparato estatal. O nosso processo de tomada de decisão exige o cumprimento de rotinas especializadas, executadas por funcionários públicos que ostentam formação técnica. Adotamos uma estrutura hierárquica piramidal, que fomenta a produção verticalizada do Direito, a revisão do conteúdo produzido nas fases antecedentes e o controle dos atos praticados nos níveis inferiores.

O acordo para se evitar o julgamento pressupõe a compreensão de uma lógica jurídica radicalmente diferente. Na tradição anglo-saxã, o Direito não está sujeito a uma leitura especializada do Estado. Ele se faz presente em diversas situações concretas da vida, o que lhe torna igualmente apreensível para funcionários públicos e cidadãos.

Os anglo-saxões construíram, ao longo de muitos séculos, um sistema judiciário descentralizado. Eles reconhecem a legitimidade de soluções jurídicas obtidas em julgamentos conduzidos por juízes leigos ou que tenham sido negociadas, diretamente, pelas partes.  Perceba que, em ambas as hipóteses, a construção do Direito prescinde da intromissão do Estado. O acordo é compreendido como uma oportunidade qualificada de resolução de conflitos.([1])

Esse modelo de administração judicial tem uma característica importante: os órgãos de persecução não gozam do status de representantes do Estado. Na Inglaterra, os promotores são tratados como funcionários públicos civis;([2]) nos Estados Unidos, assumem a função transitória de promover a acusação.([3]) Importante dizer que eles não são vistos, em nenhum dos dois Países, como membros de uma instituição. O cinema retrata muito bem essa realidade ao demonstrar que, nas audiências, o promotor se senta de frente para o juiz, ao lado do advogado.

Na cultura anglo-saxã, portanto, os promotores são recrutados para atuar junto com os defensores, em uma plataforma jurídica horizontal e paritária, que consente que ambos interpretem os precedentes e desenvolvam argumentos na busca de uma solução consensual.

Essas informações iniciais revelam que não bastaria importar o modelo de decisão negociada, próprio de uma tradição que dispensa a tutela jurídica do Estado, e incorporá-lo, indiferentemente, às nossas práticas judiciárias. Se desejássemos contemplar a justiça consensual funcionando, efetivamente, entre nós, teríamos que rever, obrigatoriamente, o culto à autoridade que contamina o nosso processo de tomada de decisão.

Aliás, não poderíamos realizar essa importação sem antes promover alguma reflexão crítica: (a) as soluções transacionais são isentas de crítica nos países de origem? (b) não o sendo, como enfrentar possíveis vulnerabilidades? (c) o modelo de justiça consensual que experimentamos nos Juizados Especiais Criminais formou uma cultura jurídica menos dependente da tutela do Estado? (d) os acordos estão sendo negociados em uma plataforma horizontal e paritária?

Essa reflexão nos permite constatar se estamos iniciando uma nova era, em que o Direito tende a se desvincular da leitura especializada do Estado para se converter em progressivas transações, conduzidas com muita elegância e habilidade, por profissionais públicos e privados, suficientemente preparados para dizer mais sim do que não.([4])       

Pois bem, o acordo nunca foi uma unanimidade na tradição anglo-americana. Há pessoas que adotam uma visão essencialmente prática para conseguir defendê-lo e outras que o enxergam como um mal necessário; há quem o considere incompatível com a presunção de inocência e se preocupe com o risco de inocentes serem compelidos a se declararem culpados e a aceitarem a pena, para não ter que enfrentar o julgamento.([5])

Depois de experimentar a justiça consensual durante duas décadas e meia, não seria difícil perceber que os meios de conciliação que disponibilizamos para o enfrentamento das infrações de menor potencial ofensivo não se mostraram capazes de implantar um novo padrão cultural.

Nosso processo de tomada de decisão, no âmbito dos Juizados Especiais Criminas, continua vinculado ao cumprimento de rotinas burocráticas. Diretrizes criadas em instâncias superiores têm condicionado as práticas conciliatórias. O Estado inspeciona os acordos. Acabamos por adotar um modelo sui generis de justiça consensual que, supreendentemente, não concede às partes a liberdade necessária para construir soluções jurídicas.

Veja que a composição civil, embora firmada pelo autor e pela vítima, precisa passar pelo crivo do promotor e do juiz para ser homologada. Em regra, essa revisão extrapola o que deveria ser um controle ínfimo de legalidade. Não são raras as vezes em que um deles insere, compulsoriamente, no pacto, alguma cláusula específica do direito das obrigações. Regra que não havia sido combinada pelas partes e cuja ausência não conduz a ilicitude alguma. Essa atitude comprova a ingerência do Estado.

Nota-se, porém, que a intervenção estatal não se manifesta apenas como condição para se homologar o acordo civil. Dois anos após os Juizados entrarem em atividade, foi instituído o Fórum Nacional de Juizados Especiais (FONAJE) com o objetivo de aprimorar os serviços judiciais e padronizar procedimentos em todo o território nacional. Como resultado desse “aprimoramento” e “padronização” surgiram enunciados que passaram a regulamentar a conciliação.    

Ficou prescrito, por exemplo, que a composição civil poderia versar sobre qualquer valor ou matéria (Enunciado 37) e que deveria conter cláusula penal quando consistisse em obrigação de fazer ou não fazer (Enunciado 43). Na transação penal, tornou-se lícito propor pena restritiva de direitos quando o tipo em abstrato só comportasse pena de multa (Enunciado 20), assim como inserir cláusula de renúncia à propriedade de objeto apreendido (Enunciado 58).([6])

Essas referências, que estabelecem condições para a realização dos acordos, são condizentes com a ideia de um Direito que é pensado no topo da estrutura para ser aplicado pela base da pirâmide (produção verticalizada). Nada mais distante da uma justiça programada para se guiar pela simplicidade, informalidade e oralidade, incentivando as partes a resolverem, diretamente, os seus conflitos.

É, entretanto, no momento em que a promotoria oferece a proposta de transação penal que se percebe, com clareza, que o Brasil não conseguiu absorver a lógica da justiça consensual. A prática da transação penal não fez despertar a consciência de que as partes precisariam negociar em uma plataforma horizontal e paritária.

Agindo como representantes do aparato estatal e não como partes, os promotores acabam realçando as balizas que distinguem a função pública da atividade privada. Nessa conjuntura, a proposição de pena se caracteriza como um ato reservado. E, quem não desempenha uma função burocrática, não tem legitimidade para discutir a adequação da medida; tem apenas a faculdade de aceitá-la ou recusá-la. Havendo objeção do defensor, o desconforto será inevitável.

A audiência preliminar consegue nos fornecer uma amostra objetiva da realidade. Habitualmente, o promotor permanece fora da sala de conciliação, enquanto autor e vítima tentam chegar a um acordo. Frustrada a composição civil, o comum é o conciliador se dirigir à sala da promotoria e retornar com a proposta já formalizada. Na maioria das vezes, aceita-se ou recusa-se a pena restritiva sem que se desenvolva um diálogo com o órgão de persecução.

A ideia de justiça está tão vinculada à burocracia do Estado, que se fez necessário esperar por quinze anos, para que o Fórum Nacional de Juizados Especiais, enfim, declarasse o óbvio: a ampla defesa, princípio constitucional, deveria incidir na transação penal (Enunciado 111).

Se os Juizados Especiais Criminais obtiveram sucesso ao reduzir drasticamente o número de casos submetidos a julgamento, houve também a geração de um saldo negativo que não pode ser ignorado. A quantidade de penas restritivas de direitos impostas sem observância dos princípios da individualização e da proporcionalidade.

Reconhecendo excessos, o Fórum Nacional de Juizados Especiais reiterou, em 2007, a necessidade de se adequar a proposta de transação penal e as condições da suspensão do processo às circunstâncias pessoais do beneficiário (Enunciado 92). Salve a Constituição.

Essas evidências demonstram que nós sobrepusemos o nosso decisionismo dirigente sobre a técnica negocial. E, ao retirar a autonomia das partes, impedimo-las de resolver seus conflitos, de acordo com o que bem entendem como justo.

A experiência fracassada dos Juizados Especiais nos obriga a receber o acordo de não persecução penal com preocupação. A rotina imposta às infrações de menor ofensividade já estava enraizada quando se alertou para o déficit de constitucionalidade. Se não instituirmos uma cultura de negociação e se não concedermos liberdade às partes, vamos replicar, na Justiça Comum, as práticas distorcidas que desnaturaram o projeto de justiça consensual.

Se tivermos uma nova safra autocrática de penas excessivas e desajustadas às condições pessoais, o que deveria ser um acordo tende a se transformar, em muito pouco tempo, em instrumento de pressão para que imputados assumam a culpa e não enfrentem a justiça. A confirmar esse cenário, não haverá como explicar a afetação à presunção de inocência.

Feitas as ressalvas, resta-nos analisar as novidades introduzidas pelo Pacote Anticrime.

A Lei 13.964/19 preveniu que o acordo de não persecução penal somente poderia ser proposto quando não fosse recomendado o arquivamento da investigação. Essa condicionante obriga o promotor a realizar uma análise jurídica preambular sobre a viabilidade da acusação: ele terá que confirmar indícios de autoria e de participação, averiguar sumariamente tipicidade, ilicitude e culpabilidade, afastar a incidência de causas extintivas de punibilidades, para conseguir superar, objetivamente, a possibilidade de sobrestamento.

Estando seguro de que não haverá arquivamento, compete-lhe delinear a hipótese acusatória. A delimitação da imputação é importante para conferir transparência ao raciocínio desenvolvido. O imputado precisa entender os termos de uma proposta ofertada ou os motivos que ensejaram a formalização da acusação.

A negociação está prevista, como alternativa à instauração do processo, para as infrações com pena mínima inferior a quatro anos, praticadas sem violência ou grave ameaça, desde que não seja cabível a transação penal para aquela hipótese.

Para se chegar à conclusão de que a conciliação é factível, o órgão de persecução deve avaliar a incidência de causas de aumento e de diminuição de pena. Se o processo for a julgamento, indevidamente, o excesso acusatório não passará despercebido.

A reincidência, assim como a existência de elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, são fatores que também impedem a realização do pacto, exceto se as infrações penais pretéritas forem insignificantes.

Essa última restrição diz respeito a um conjunto de condutas expressivas que foram apuradas na mesma investigação, mas cuja reiteração não se apresenta como condição para a configuração de determinado crime que exige habitualidade. A simples menção a ilícitos, que nunca foram investigados e submetidos a julgamento, não pode ser invocada como impedimento, porque conflitaria com a presunção de inocência.

Não será oferecida a proposta para quem tenha celebrado acordo de não persecução penal, transação penal e suspensão condicional do processo nos últimos cinco anos. Essa restrição precisa ser reavaliada. Importante levar em consideração que a realização de uma transação inviabiliza uma nova composição de pena com a promotoria, no próximo quinquênio, mas não retira do beneficiado o direito à suspensão do processo.

Além dessa permissividade, é preciso lembrar que nenhuma das duas medidas contidas na Lei 9.099/95 gera presunção de responsabilidade. Ocorrendo a extinção da punibilidade, em razão do cumprimento das condições impostas, o beneficiado preserva a primariedade, os bons antecedentes e o status de inocente. Nessa condição, seria necessária muita intransigência para se negar a oportunidade de um acordo, simplesmente porque não decorreram cinco anos contados a partir da concessão do último benefício.    

Por fim, a nova legislação destacou que os crimes relacionados à violência doméstica ou familiar e os crimes praticados contra a mulher, por razões correlatas ao sexo feminino, não estão sujeitos à solução consensual.

O Pacote Anticrime foi infeliz em condicionar o acordo à proposição de uma pena necessária e suficiente para reprovar e prevenir o crime. Essa análise depende da valoração dos argumentos e provas confrontados no processo. Por conseguinte, só pode acontecer no desfecho do julgamento.

A renúncia ao processo e o sacrifício imposto à presunção de inocência só conseguem ser justificados se a negociação proporcionar condições efetivamente melhores do que as que seriam impostas em uma sentença. O foco, portanto, não pode ser a pena tecnicamente adequada à reprovação e prevenção do crime, senão a busca de uma pena que atenue a agressividade do sistema punitivo.

Imaginemos a situação de dois sujeitos que tenham agido em concurso, possuam as mesmas condições pessoais e recebam idêntica proposta de acordo. Suponhamos que apenas um a aceite, dispondo-se a cumprir dezoito meses de serviços comunitários e a reparar o dano; o segundo venha a ser condenado à pena mínima de três anos, sendo a prisão substituída por penas restritivas. Duas penas tão distintas não poderiam reprovar e prevenir, na mesma medida, esse crime. Está claro que o acordo precisa atenuar a violência primitiva da punição. 

Nos países anglo-saxões, a busca de uma solução melhor conta com possibilidades mais flexíveis. A barganha abrange diminuição de pena, arquivamento de um dos crimes e delimitação de uma hipótese diferente da que seria efetivamente sustentada no julgamento[7].

No nosso caso, alterar a tipicidade do fato, desconsiderar uma causa de aumento e arquivar um dos crimes, lamentavelmente, não foi permitido. Só se autorizou uma pena inferior à oficial. A pena mínima precisará servir de parâmetro para o acordo, considerando que uma pena média exigiria a valoração judicial. Se a alternativa é a diminuição de pena, deve-se propor algo melhor do que o mínimo legal.

Nesse sentido, merece elogio a sugestão de se aplicar a prestação de serviços pelo período correspondente ao mínimo da pena cominada, reduzido de um a dois terços. O ponto negativo é a possibilidade de cumulação com a prestação pecuniária e com outra condição imposta pela promotoria. Não seria razoável inserir três penas no acordo.

A exigência de reparação do dano (salvo impossibilidade) se mostra coerente com os objetivos da justiça consensual e com os requisitos da sentença condenatória (vide artigo 387, IV do Código de Processo Penal).

A imposição da renúncia a bens indicados a instrumentos, produto ou proveito do crime pode, por outro lado, se mostrar abusiva, se não tiver lastreada em evidências minimamente seguras.

A lei prescreve que o acordo seja proposto somente ao investigado que tenha confessado formal e circunstancialmente a prática de infração. Há, nesse ponto, uma diferença significativa com os requisitos das soluções consensuais dos Juizados Especiais Criminais. O acordo de não persecução seguiu a lógica das barganhas anglo-saxãs, ao exigir a declaração de culpa, mas manteve o velho fetiche inquisitório de registrar as minúcias do pecado.  

Naturalmente, a negociação não está restrita à confissão realizada no curso da investigação. Nesse momento, não se tem certeza de que será formulada uma proposta de acordo e não se justifica o sacrifício do direito ao silêncio.  

Finalmente, merece destaque negativo a insistência em submeter o acordo à tutela jurídica do Estado. A nova legislação permite que o juiz devolva o acordo, para que seja reformulado, se considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições ajustadas. A necessidade de revisar o conteúdo produzido nas fases antecedentes e de controlar os atos praticados é um sinal inequívoco de que não compreendemos a racionalidade da justiça consensual. Nos países anglo-saxões, o magistrado verifica apenas se o acordo atendeu os requisitos mínimos.

Referências

DAMASKA, Mirjan R. Las caras de la justicia y el poder del Estado: análisis comparada del proceso legal. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 2000.

DELMAS-MARTY, Meirelle. Processos Penais da Europa. Trad. Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de Processo Penal norte-americano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

THAMAN, Stephen C. Aspectos adversariales, acusatorios e inquisitivos en el Proceso Penal de los Estados Unidos. In: WINTER, Lorena Bachmaier (Coord.). Proceso penal y sistemas acusatórios. Marcial Pons: Madrid, 2008.


Notas de rodapé

([1]) DAMASKA, Mirjan R. Las caras de la justicia y el poder del Estado: análisis comparada del proceso legal. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 2000.

([2]) DELMAS-MARTY, Meirelle. Processos Penais da Europa. Trad. Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 256.

([3]) RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de Processo Penal norte-americano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 104.

([4]) Em alusão à música Tempos Modernos de Lulu Santos (1982).

([5]) DELMAS-MARTY, Meirelle. Processos Penais da Europa. Trad. Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 292. THAMAN, Stephen C. Aspectos adversariales, acusatorios e inquisitivos en el Proceso Penal de los Estados Unidos. In: WINTER, Lorena Bachmaier (Coord.). Proceso penal y sistemas acusatórios. Marcial Pons: Madrid, 2008. p.171.

([6]) Veja a lista completa de Enunciados do FONAJE em: <https://www.amb.com.br/fonaje/?p=32>. Acesso em: 30 abr. 2020.

([7] DELMAS-MARTY, Meirelle. Processos Penais da Europa. Trad. Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 292. RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de Processo Penal norte-americano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 188.


Leonardo Augusto Marinho Marques

Doutor em Ciências Penais pela UFMG.

Professor de Processo Penal de UFMG.

Advogado.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/5388381867392010

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9687-8405

leonardo@leonardomarinho.com.br


Autor convidado

O “Pacote Anticrime” e o recrudescimento punitivo para os já penalizados: uma análise sobre a reincidência e a habitualidade criminosa

Resumo: O presente artigo trata da alteração legislativa “Pacote Anticrime”, com foco nas mudanças acerca da reincidência e da habitualidade criminosa. Busca-se aferir como o diferente tratamento desses temas pode influir no sistema de justiça criminal do Brasil, considerando os efeitos negativos que a punição estatal inflige sobre os penalizados, e atentando-se às falhas técnicas apresentadas tanto pelo projeto de lei quanto pelas figuras jurídicas estudadas.

Palavras-chave: Pacote Anticrime. Reincidência. Habitualidade criminosa. Estigmatização. Exame criminológico. Princípios constitucionais.

Abstract: This article discuss the legislative amendment “Anticrime Package”, focusing on changes about recidivism and criminal habituality. It seeks to assess how the different treatment of these topics can influence the Brazilian penal system, considering the negative effects that state punishment has on penalized citizens, as well as the technical flaws presented by both the bill and the studied legal concepts.

Keywords: Anticrime Package. Recidivism. Criminal habit. Stigmatization. Criminological exam. Constitutional principles.

Data: 29/05/2020
Autor: Antonio Macruz de Sá e Marianna Haug

1. Introdução

Logo nos primeiros meses de governo Bolsonaro, em um contexto de ascensão do populismo penal, o então Ministro da Justiça, Sérgio Moro, apresentou o anteprojeto de lei denominado “Pacote Anticrime”. Aprovado pelo Congresso Nacional e, em dezembro de 2019, sancionado pelo presidente, o pacote traz um recrudescimento das punições do Direito Penal brasileiro. Com isso, consolidam-se várias alterações na legislação penal, tendo como um dos principais objetos o recrudescimento no tratamento daqueles que apresentam condutas criminais repetidas, trazendo a eles maior dificuldade para a progressão de regime e vedando a concessão de liberdade provisória. Passaremos então a analisar essas mudanças, considerando seus efeitos potenciais.

2. Desenvolvimento

2.1 Funções da pena

O cárcere nos é apresentado como um espaço de ressocialização, com a função também de prevenir crimes e de proteger as vítimas. Contudo, as finalidades reais da pena não coincidem com aquelas em geral anunciadas, afinal, conforme indica Nilo Batista (1999), a proteção do bem jurídico, tida de maneira geral como objetivo do Direito Penal, será impregnada pela organização social da sociedade que produz o ordenamento criminal. Em decorrência de uma estrutura estratificada de sociedade, o bem jurídico alvo da tutela estatal apresenta caráter de classe, refletindo os valores das camadas dominantes.([1]) Assim, o fim buscado pelo Direito Penal e, consequentemente, pela pena, se torna a proteção dos interesses de tais estratos sociais, e não do bem jurídico de maneira geral, o que torna a ressocialização, a prevenção de crimes e a proteção de vítimas um mero discurso oficial para que se legitime a punição.

Destaca-se a incoerência de propor a ressocialização ao mesmo tempo em que se afasta o preso do convívio com a sociedade, sendo que a permanência no cárcere produz apenas estigmas e marginalização social sobre o mesmo:

A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. A prisão não cumpre a sua função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da estrutura social de dominação” (MIRABETE, 2002, p. 24).

 As promessas de prevenção e de retribuição também não se cumprem, uma vez que estamos em um contexto nacional de encarceramento sem precedentes, e mesmo assim as taxas de criminalidade não diminuem. Tomam-se de exemplo crimes que resultam em mortes violentas, que representam 14%([2]) das prisões no caso dos homens e 7% no caso das mulheres. De acordo com dados do IPEA,([3]) entre o período de 2013 a 2016 houve um aumento de 25% no número de mortes violentas intencionais, ao passo que, no mesmo período, houve uma expansão da população carcerária em 10%.([4]) Nesse sentido, não há que se falar em relação de causa e efeito entre aumento do encarceramento e diminuição das taxas de criminalidade, já que ambos estão em pleno crescimento.

Portanto, percebe-se que o cárcere não evita crimes futuros, nem protege eventuais vítimas, mas existe a fim de garantir controle e enriquecimento sobre os corpos encarcerados. Com isso, qualquer proposta de expansão do Direito Penal apenas aprofunda a prevalência de tais interesses, resultando no aumento do encarceramento em massa, da tortura e do estado calamitoso do cárcere no cenário brasileiro, que já apresenta a terceira maior população encarcerada do mundo.([5])

2.2 Mercados ilegais e a produção do estigma de “ex-presidiário”

A reincidência no crime é tratada como um desvio de conduta individual, de insistência em comportamento criminoso e não como adequação a um padrão de trabalho precário, no cenário em que o Estado penal vem se expandindo e sendo usado como estratégia de exploração de novos nichos do mercado precarizado da força de trabalho (CERNEKA, 2010). No entanto, trata-se de algo produzido e reproduzido pela própria lógica do sistema de justiça criminal. As pessoas que entram nesse sistema passam por processos de estigmatização e marginalização social, sendo tratadas como “ex-presidiários” pelo resto da vida. Esse aparente detalhe legislativo é, então, uma estratégia de normatização de comportamentos.

Desse modo, o mercado de trabalho formal apenas recebe essa mão de obra em postos mais precários, de modo que, diante de necessidades econômicas e materiais das pessoas, é comum que elas voltem a se inserir na dinâmica dos mercados ilegais.([6]) Assim, esses mercados se alimentam a partir da  discriminação produzida pelo próprio Estado, mobilizando mão de obra marginalizada.

Cabe apontar que não se trata apenas da reincidência em si, mas de quem a realiza, vez que a seletividade não é apenas perversão, mas marca da própria estrutura do sistema de justiça criminal (ZAFFARONI, 1993, p. 6). Nesse sentido, a reincidência como agravante e como fator significativo para decisão acerca do tempo de prisão é algo que recai majoritariamente sobre pessoas negras([7]) e pobres. Portanto, as noções de reincidente e de criminoso habitual são sintoma da seletividade do sistema penal, na medida em que reforça a punição para aqueles que já passaram por ele. E é nesse cenário que um em cada quatro condenados vem a reincidir.([8])

Isso se alia ao chamado populismo penal, em que “símbolos são vendidos como soluções para a criminalidade e o constante estímulo ao medo que a mídia, dentre outros agentes ativos, impõe a nosso cotidiano”.([9]) É nesse contexto, no qual a primeira resposta a qualquer problema social é punição e equipamentos de vigilância, que nasce o dito “Pacote Anticrime”, ao passo que se cria uma associação quase imediata entre negritude e periculosidade. A seletividade garante que sempre os mesmos agentes sejam o alvo desses instrumentos penalizantes, de forma que a reincidência reforce isso.

Com a alteração da lei, dificulta-se a progressão de regime e o livramento condicional para reincidentes, além de negar-lhes a possibilidade de liberdade provisória. Essa seletividade tende a se aprofundar ainda mais, uma vez que cria tendências para que essas pessoas fiquem mais tempo presas, o que gera consequências diretas para o estigma e a marginalização sofridos pelos condenados.

2.3 Inconstitucionalidade da reincidência

Uma das principais falhas da reincidência enquanto agravante da pena é justamente ampliar a punição com base em conduta criminosa pela qual o agente já foi condenado e penalizado, o que gera bis in idem. O agente apenas pode ser responsabilizado pelas ações que não geraram sanção, caso contrário, seria possível penalizar os indivíduos ao longo de períodos indeterminados, configurando-se uma incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito. Esse é o entendimento de Juarez Cirino dos Santos, que descreve a reincidência como uma dupla punição do delito anterior.([10]) Zaffaroni e Pierangeli expressam o mesmo entendimento, apontando que a majoração da pena baseada no cometimento de um crime anterior irá sempre configurar bis in idem.([11])

Ainda, a figura jurídica em questão apresenta outros problemas. Conforme aponta Leonardo Yarochewsky (2005), a reincidência é uma agravante que se baseia no agente, e não no ato criminoso. Como reincidir em conduta delituosa não gera prejuízo maior ao bem jurídico atingido, o aumento da punição decorre não daquilo que o indivíduo fez, mas daquilo que ele é. A reincidência não pode se adequar ao Direito Penal do fato, mantendo-se próxima a uma criminalização motivada pela personalidade do agente, pois “o fato criminoso não se torna mais grave quando é praticado por um reincidente”.([12])

Dessa forma, são graves as proposições acerca da reincidência trazidas pelo Pacote em questão, pois ampliam a dupla penalização citada, acentuando o já existente problema da figura jurídica da reincidência.

2.4 O prejuízo ao princípio da presunção de inocência

O “Pacote Anticrime” também fere constantemente a presunção de inocência. O principal exemplo para tanto é a própria possibilidade de se classificar o agente como criminoso habitual, reiterado ou profissional.

No novo artigo 28-A, § 2º, inciso II do Código de Processo Penal, é previsto que a habitualidade, reiteração ou profissionalidade serão verificadas a partir de “elementos probatórios que indiquem” a sua existência. Uma vez constatadas tais características, o investigado estaria impedido de firmar um acordo de não persecução penal com o Ministério Público. Ou seja, o mero indício estaria justificando o recrudescimento em prejuízo dos supostos agentes, em desrespeito à presunção de inocência.

Essa problemática se revela ainda mais preocupante ao considerarmos que o supracitado artigo 28-A é referente a momentos anteriores à condenação. Em resumo, o simples sinal de criminalidade habitual, reiterada ou profissional, geraria um tratamento mais duro para com o suposto agente, mesmo que ele não tenha sido condenado, em nenhuma instância judicial, por qualquer crime. Como o referido artigo também faze menção aos recidivos, destaca-se que seriam compreendidos como reincidentes indivíduos que sequer tiveram sua segunda condenação. Ainda, a indeterminação do que seria “conduta criminal habitual, reiterada ou profissional”, que infringe o princípio da legalidade, permite que a desconsideração da presunção de inocência ocorra de maneira arbitrária.

Um problema similar se verifica com a proposição do parágrafo segundo do artigo 310 do Código de Processo Penal. Ao afirmar que os condenados reincidentes devam ter sua liberdade provisória negada após prisão em flagrante, se considera esses presumidos agentes como culpados do novo fato criminoso, sem uma devida condenação. Assim, para esses agentes deve ser decretada a prisão preventiva mesmo que seus fundamentos, constantes no artigo 312 do Código de Processo Penal, não estejam presentes, o que abre margem para que as pessoas sejam presas sem qualquer amparo legal.

3 Conclusões

A alteração legislativa que o Pacote trouxe pode levar a resultados práticos bastante graves, aprofundando um estado alarmante de encarceramento em massa e não propondo qualquer política de segurança pública comprovadamente efetiva. As mudanças no que diz respeito à reincidência e habitualidade criminosa, além de carregarem a inconstitucionalidade dessas figuras jurídicas, também tendem a fortalecer o grave estado de encarceramento ao dificultar a progressão de regime e ampliar a parcela da pena cumprida em regimes mais duros.

Ainda, o “Pacote Anticrime” também traz redação que desrespeita frontalmente o princípio da presunção de inocência, contrariando o dispositivo constitucional do art. 5º, LVII, ao estabelecer que não haverá concessão de liberdade provisória em casos de suspeita de reincidência.

Diante disso, os acusados de reincidência ou habitualidade criminosa, ou que supostamente iriam reincidir, poderão ficar muito mais tempo presos, em regime fechado e diante de maior arbitrariedade do judiciário. Isso gera diretamente um aumento significativo da população carcerária e, consequentemente, uma piora nas condições de insalubridade do cárcere. Os possíveis resultados de aplicação dessas alterações legislativas apontam, portanto, para um cenário em que a seletividade do sistema de justiça criminal se aprofunda ainda mais, punindo novamente os já penalizados.

Referências

BARROS, Carmen Silvia de Moraes. A individualização da pena na execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

CERNEKA, H. A. Encarceramento em massa: lembrando que a massa tem nomes, famílias e histórias. São Paulo: Revista PUCVIVA, 2010.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução penal. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

ROXIN, Claus. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña et al. Derecho penal: parte general - tomo I. Fundamentos: las estructuras de la teoria del delito. Madrid: Civitas, 1997.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca de las penas perdidas. Bogotá: Editorial Temis, 1993.


Notas de rodapé

[1]BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 116.

[2]() INFOPEN. Relatório Junho 2016–. p. 43. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil/relatorio_2016_junho.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2019.

[3]() IPEA. Atlas da violência: mortes violentas. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/link/7/crimes-violentos-contra-a-pessoa-registros-policiais>. Acesso em: 12 fev. 2019.

[4]() INFOPEN, op. cit., p. 9. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil/relatorio_2016_junho.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2019.

[5]() Idem, ibidem, p. 7.

[6]() KEMP, V. H.; MACHADO, M. N. M.; TOLEDO, I. d’A. Os sentidos do trabalho para egressos do sistema prisional inseridos no mercado formal de trabalho. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, v. 17, n. 1, p.85-99, 2014. DOI: 10.11606/issn.1981-.0490.v17n1p85-99

[7]() INFOPEN, op. cit., p. 32. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil/relatorio_2016_junho.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2019.

[8]() CNJ. Um em cada quatro condenados reincide no crime. Disponível em: <http://cnj.jus.br/noticias/cnj/79883-um-em-cada-quatro-condenados-reincide-no-crime-aponta-pesquisa> Acesso em: 15 fev. 2019.

[9]() SEMER, Marcelo. Populismo e seletividade forjam um sistema carcerário injusto e falido. In: SILVA, Givanildo, Manoel da (org.). Quebrando as grades: liberdade incondicional. São Paulo: Sefras, Amparar, 2017. p. 78.

[10]() SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 6. ed. ampl. e atual. Curitiba: ICPC Cursos e Edições, 2014. p. 541.

[11]() ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 750.

[12]() YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Da reincidência criminal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005. p. 143.


Antonio Macruz de Sá

Graduado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2018).

Advogado Criminalista.

ORCID: 0000-0001-9223-0732

amacruzdesa@gmail.com

Marianna Haug

Mestranda  na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2020-2022) e graduada na mesma instituição (2018).

Advogada no Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).

ORCID: 0000-0002-2014-8331

marianna.haug@alumni.usp.br

Recebido em: 26.02.2019

Aprovado em: 10.09.2019

Versão final: 13.08.2019 

Das inconstitucionalidades do artigo 122, § 2º, da LEP, com a redação dada pela lei 13.964/2019

Resumo: Este ensaio tem por intuito analisar o artigo 122, § 2º, da Lei de Execução Penal, o qual foi objeto de alteração por meio da edição da Lei 13.964/2019, o chamado Pacote anticrime, que, nesse ponto, veda a concessão da saída temporária ao condenado que cumpre pena por crime hediondo com resultado morte. Tencionamos demonstrar a inconstitucionalidade e inconvencionalidade da medida, reunindo aporte doutrinário, jurisprudencial e documental, o qual questiona a eficácia do dispositivo, concluindo que também diante à ausência de estudo de impacto legislativo, econômico e orçamentário, a alteração revela apenas a adoção de uma política criminal de cunho meramente punitivo e populista, desconforme a ordem constitucional vigente.

Palavras-chave: Constituição Federal. Lei de Execução Penal. Pacote anticrime. Saída temporária.

Abstract: This essay aims to analyze article 122, § 2, of the Criminal Execution Law, which was subject to change through the edition of Law 13.964/2019, the so-called anti-crime package, which, at this point, prohibits the concession from the temporary departure to the convict serving time for a heinous crime resulting in death. We intend to demonstrate the unconstitutionality and unconventionality of the measure, bringing together doctrinal, jurisprudential and documentary contributions, which question the effectiveness of the device, concluding that also in the absence of a study of legislative, economic and budgetary impact, the amendment reveals only the adoption of a policy criminal of a purely punitive and populist nature, does not conform to the current constitutional order.

Keywords: Federal Constitution. Penal Execution Law. Anti-crime package. Temporary exit.

Data: 29/05/2020
Autor: Mariana Py Muniz Cappellari

Considerações iniciais

Com a edição da Lei 13.964/2019, diversos diplomas e dispositivos legais restaram alterados, sendo que, no âmbito da Lei de Execução Penal, um deles foi o artigo 122, que trata da saída temporária. No caso, a legislação referida tratou de inserir o § 2º ao artigo de lei, vedando a saída temporária ao condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo com resultado morte.

A ideia do nosso artigo, portanto, é demonstrar, por meio de aporte doutrinário, jurisprudencial e documental, a incompatibilidade desse dispositivo legal ao texto constitucional e também convencional, considerando nesse último caso os Tratados Internacionais de proteção dos Direitos Humanos, os quais o Brasil se obrigou a dar cumprimento e efetividade.

Por que o artigo 122, § 2º, da LEP viola dispositivos constitucionais e convencionais?

Por primeiro, para o desenvolvimento do nosso raciocínio, pensamos ser importante  referir que a saída temporária é espécie de autorização de saída, sendo medida de caráter humanitário, a qual se coaduna com o sistema progressivo adotado pela Lei de Execução Penal brasileira.

A saída temporária, dessa forma, se constitui em uma autorização dada aos que cumprem pena em regime semiaberto, a fim de que possam sair do estabelecimento penal, sem vigilância direta, e com possibilidade do uso do monitoramento eletrônico, em casos de visita à família, frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução e para participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social (ROIG, 2014).

Exatamente porque a Constituição Federal veda a pena de prisão perpétua, e com o intuito de se atentar aos objetivos da execução penal nos termos do artigo 1º da LEP, ou seja, para além de executar a sentença penal condenatória, promover a efetiva reinserção social do sentenciado. A lei estabelece essa modalidade de autorização de saída em regime intermediário de cumprimento de pena, qual seja, o semiaberto, por prazo não superior a 7 dias, podendo ser renovada por mais 4 vezes durante o ano (art. 124 da LEP).

Nesse sentido, vale lembrar que o Código Penal, nos termos do artigo 33, adota enquanto sistema penitenciário o progressivo, ou seja, as penas privativas de liberdade devem ser executadas progressivamente, de acordo com o mérito do condenado, observados alguns critérios, por meio de estágios graduais de liberação (BRITO, 2013).

De acordo com Brito (2013, p. 266-267), a saída temporária, enquanto instrumento da execução penal, revela-se como um meio efetivo de se atingir as finalidades da execução, que, conforme expõe o mesmo autor, está na execução da pena de forma eficaz, ou seja, do título executivo que é a sentença condenatória, bem como na garantia de que essa execução se paute pelo devido processo legal e respeito à dignidade humana, enquanto possibilidade de efetiva reintegração social.([1])

Até a edição da Lei 13.964/2019, todos os condenados, independentemente da natureza do crime cometido, tinham direito à saída temporária, a qual, aliás, diga-se de passagem, é direito subjetivo do sentenciado atendido os seus requisitos legais (tempo e condições subjetivas).

Nesse sentido, entendemos porque partimos do pressuposto de que a natureza jurídica da execução penal é jurisdicional, logo, o sentenciado e a sentenciada são sujeitos de direito, razão pela qual devem desfrutar de todos os direitos que lhe são conferidos pelo ordenamento jurídico, bem como suas garantias, restringido apenas e temporariamente o direito à liberdade nos termos do que também prescreve o artigo 3º da LEP.

O estabelecimento, no entanto, da vedação do direito à saída temporária aos condenados por crime hediondo com resultado morte nos parece inconstitucional e inconvencional - nesse último, em caso de controle de convencionalidade, dada a ratificação pelo Brasil de inúmeros tratados de proteção dos direitos humanos, os quais repisam esses mesmos direitos. Vejamos.

Sinale-se que, no ano de 2006, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade do regime integral fechado estabelecido pela Lei dos Crimes Hediondos, no HC 82959/SP,([2]) exatamente pela violação dos princípios constitucionais da individualização e da humanidade das penas.

Os princípios constitucionais da individualização e da humanidade das penas, os quais se encontram no artigo 5º, incisos XLVI, III, XLVII e XLIX da Constituição Federal, para além de se tratarem de direitos fundamentais, cláusulas pétreas, encontram correspondência integral em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, documentos ratificados pelo Brasil e internalizados em sua ordem jurídica.

Nesse ponto, o estabelecimento do § 2º no artigo 122 da LEP viola os preceitos constitucionais e convencionais, havendo incompatibilidade constitucional e convencional.

Pode-se asseverar que o princípio da humanidade é aquele que, de forma mais próxima, encontra-se com o princípio da dignidade da pessoa humana, pois dele deduz-se a proscrição das penas cruéis e de qualquer pena que desconsidere o homem como pessoa (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2006).

Para Zaffaroni e Pierangeli (2006), o princípio da humanidade tem vigência absoluta, razão pela qual dita a inconstitucionalidade de qualquer pena ou consequência do delito que crie um impedimento físico permanente, como também qualquer consequência jurídica indelével do delito.

Por isso, Batista (2007, p. 99) vai dizer, com as palavras de Fragoso, que a pena nem “visa fazer sofrer o condenado”, nem pode desconhecer o réu enquanto pessoa humana, como assinalam Zaffaroni e Pierangeli (2006), segundo eles, sendo este o fundamento do princípio da humanidade, na sua acertada visão.

Por outro lado, tem-se que a individualização da pena é corolário lógico da isonomia (MESQUITA JÚNIOR, 2010), parecendo certo afirmar que o princípio da igualdade ou da isonomia, no que diz com a execução da pena, veda qualquer forma de discriminação ou diferenciação entre os sentenciados, proibindo, inclusive, qualquer diferenciação no tratamento dispensado aos presos (SANTOS, 1998). Entretanto, a isonomia não equivale à simples equiparação de todos os condenados, o que, evidentemente, entraria em conflito com a individualização da pena.([3]) É que, com isonomia, pretende-se assegurar que privilégios e restrições não serão reconhecimentos indiscriminadamente, seja por motivos de raça, origem social ou política (BRITO, 2013).

Afora isso, não se observa qual seria o objetivo da legislação ao vetar a saída temporária aos condenados por crime hediondo com resultado morte. Primeiro porque se desconhece qualquer estudo de impacto nesse sentido, ou seja, a medida quer evitar o quê? Uma vez que na ausência de um estudo de impacto legislativo, econômico ou orçamentário, passa-se a sensação de que a edição da norma se traduz em mera dureza e punição desmedida, contrária ao ordenamento jurídico vigente.

Aliás, Ferreira (2017) já nos teria demonstrado, ao tentar evidenciar a importância do Estudo de Impacto Legislativo nos moldes utilizados pela União Europeia através da análise dos discursos, das discussões e das justificativas presentes nas leis que alteraram a Lei de Execução Penal brasileira no período de 1984 e 2015, a falta de fundamentação, o pouco uso de argumentos econômicos e orçamentários para a discussão de alterações estruturais na execução penal brasileira, bem como a grande influência midiática nos discursos, que dizem com casos pontuais e locais, com forte conteúdo populista, que através da manipulação da figura da ‘vítima’ - que fique claro, não de qualquer ‘vítima’’ -, lançava bases para toda a realidade carcerária brasileira.

A autora, assim, nos revela o flerte dos parlamentares para com políticas criminais expansionistas, ainda que o Congresso Nacional, enquanto arena política, possa representar os mais diferentes interesses (FERREIRA, 2017).

Ao depois, quais crimes são, de fato, alcançados pelo dispositivo legal? Ao olharmos para a lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90), veremos que os delitos ali estabelecidos com resultado morte são os seguintes: homicídio simples, apenas quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio; homicídio qualificado; lesão corporal seguida de morte, quando praticada contra autoridade ou agente descrito nos artigos 142 e 144 da CF, integrante do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau em razão dessa condição; no roubo qualificado pelo resultado morte; na extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima na ocorrência de morte; na extorsão mediante sequestro com resultado morte; na epidemia com resultado morte e no genocídio.

Por exigir a lei 13.964/2019 o resultado morte, temos que, no caso da tentativa de homicídio qualificado, por exemplo, mesmo sendo crime hediondo, tal dispositivo não poderá lhe alcançar, uma vez que o resultado morte não ocorreu.

Ao depois, questionamos se há algum dado que possa informar a quantidade de pessoas presas no sistema penitenciário brasileiro pelos delitos referidos, haja vista a seletividade penal operada, bem como o índice baixíssimo de elucidação de mortes violentas no Brasil - vide todas as condenações do nosso Estado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos enquanto exemplo.

Em publicação do ano de 2019 do Infopen([4]), que compila dados referentes ao ano de 2017 do sistema prisional brasileiro, verificamos que, em relação ao encarceramento por tipo penal, o relatório dá conta de que o grupo drogas (Lei 6.368/76 e Lei 11.343/06) registra um total de 156.749 pessoas detidas por crimes desta natureza. Os crimes contra o patrimônio somam 234.866 incidências e os crimes contra a vida representam 64.048. Tais dados não discriminam se nesse interior encontramos, e em que percentual, condenados por crime hediondo com resultado morte.

Na sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil denominada “Caso Favela Nova Brasília” - primeira condenação do país por violência policial - se reconhece que a violência policial representa um problema de Direitos Humanos no Brasil, uma vez que relatório divulgado pela Anistia Internacional, em fevereiro de 2015, colocava o Brasil no topo dos países mais violentos do mundo, pois seriam pelo menos 130 homicídios por dia, sendo que a sensação de impunidade seria incentivadora, uma vez que 85% dos homicídios não seriam solucionados no Brasil, citando como os principais fatores para a crise no Brasil a violência policial, registros de tortura e a falência do sistema prisional.([5])

Também, sinale-se que, por se tratar de norma penal mais maléfica, impõe-se a aplicação do disposto no artigo 5º, XL da Constituição Federal, ou seja, a norma penal somente retroage se mais benéfica ao acusado, o que não se vê na espécie. Assim, criar-se-á, na realidade fática, uma desproporcionalidade e uma diferenciação de tratamento não justificável entre os presos e as presas que se encontram cumprindo pena por crime hediondo com resultado morte em estabelecimentos penais de regime semiaberto, uma vez que alguns ou algumas sairão em saída temporária e outros e outras não, isso sem qualquer justificativa mínima que aponte para a eficácia e justeza da medida.

Por fim, mais uma vez, o Supremo Tribunal Federal, nos autos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 347,([6]) reconhece o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, e tem-se que a simples vedação da saída temporária aos condenados e às condenadas por crime hediondo com resultado morte, sem justificativa técnica, legal, social ou preventiva, vai de encontro ao sustentado e declarado pela Suprema Corte, denotando uma política criminal meramente punitivista, populista e americanizada,([7]) ilusória e que não fornece qualquer proteção à sociedade, tampouco produz redução da violência, pelo contrário, apenas a retroalimenta e fortalece os coletivos criminais que na atualidade dominam a cena carcerária.

Considerações finais

A Lei 13.964/2019 operou na alteração de diversos diplomas legais brasileiros, bem como em suas legislações esparsas. Embora pensamos que a referida legislação não logrou alterar a raiz que estrutura o Código de Processo Penal brasileiro, quanto mais diante da suspensão parcial dos efeitos e dos dispositivos legais inseridos pela Lei Anticrime por ato do Supremo Tribunal Federal, não desprezamos, por outro lado, a tentativa de se coadunar ao modelo acusatório de processo estabelecido no texto constitucional, com a inserção no CPP da cadeia de custódia da prova, da audiência de custódia, entre outros dispositivos e institutos.

Entretanto, pensamos que a referida legislação exige cuidado na sua aplicação e remete à necessidade de uma análise mais acurada para verificar a sua compatibilidade com o texto constitucional. Não por menos, encontramos tramitando junto ao STF diversas ações de inconstitucionalidade, que questionam vários dispositivos legais alterados ou inseridos por esta legislação, bem como em relação ao texto convencional, em caso de controle de convencionalidade, considerando o disposto nos Tratados Internacionais de proteção dos Direitos Humanos, cujos dispositivos, em muitos casos, encontram correspondência integral no nosso texto constitucional.   

Nesse sentido é que tencionamos demonstrar a incompatibilidade constitucional e convencional de uma das alterações produzidas pela Lei Anticrime, com a inserção do parágrafo 2º ao artigo 122 da LEP, que veda a concessão do direito à saída temporária ao preso ou à presa condenada por crime hediondo com resultado morte.

Entendemos que, no âmbito da Lei de Execuções Penais, muitas das alterações promovidas pela Lei Anticrime não encontram amparo no texto constitucional e convencional, e também não se sustentam, porque desprovidas de justificativas técnicas, legais, sociais ou preventivas.

Assim é que, nesse ponto, suscitamos o questionamento acerca de quais sejam os propósitos que ensejaram a inserção do parágrafo 2º ao artigo 122 da LEP, uma vez que para nós a sua incompatibilidade com o texto constitucional e convencional, conforme se demonstrou, bem como a sua carência de outras justificativas, estão apenas a nos indicar a formulação de mais uma entre outras políticas criminais punitivistas e populistas, as quais não conseguem operar de fato no controle do crime e da violência, servindo apenas ao simbolismo da ilusão do controle, que, nesse caso, tende a se aproximar da irracionalidade.

Referências

BRASIL. [Constituição, (1988)]. Constituição Federal de 1988. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. Lei nº 7.210/1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7210.htm >. Acesso em: 10 jan. 2020.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848/1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 10 jan. 2020.

BRASIL. Lei nº 8.072/1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8072.htm >. Acesso em: 12 mar. 2020.

BRASIL. Lei nº 13.964/2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato 2019-2022/2019/lei/L13964.htm>. Acesso em: 24 jan. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 82959, Brasília. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79206>. Acesso em: 08 mar. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347. Brasília, 09/09/2015.  Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/ documento/informativo798.htm >. Acesso em: 06 mar. 2020.

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica do Direito Penal Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

BRITO, Alexis Couto de. Execução Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

CAPPELLARI, Mariana Py Muniz. A chacina na favela Nova Brasília e a condenação do Brasil em corte da OEA. Jusbrasil, Canal Ciências Criminais. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/462189374/a-chacina-na-favela-nova-brasilia-e-a-condenacao-do-brasil-em-corte-da-oea>. Acesso em: 18 mar. 2020.

DE SÁ, Alvino Augusto; BRAGA, Ana Gabriela Mendes; BRETAN, Maria Emília Accioli Nobre; CALDERONI, Vivian. (Coord.). GDUCC Grupo de Diálogo Universidade – Cárcere – Comunidade: uma experiência de integração entre a sociedade e o cárcere. Brasília: Ministério da Justiça, 2013.

FERREIRA, Carolina Costa. A política criminal no processo legislativo. Belo Horizonte: D´ Plácido, 2017.

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execuç/ão Criminal Teoria e Prática. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

MOURA, Marcos Vinícius (Org.). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, Departamento Penitenciário Nacional, 2019. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf >. Acesso em: 10 ago. 2019.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal. Teoria crítica. São Paulo: Saraiva, 2014.

SANTOS, Paulo Fernando dos. Aspectos Práticos de Execução Penal. São Paulo: LEUD, 1998.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro V. 1. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

WUNDERLICH, Alexandre; REALE JÚNIOR, Miguel. Justiça negocial e o vazio do Projeto Anticrime. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, Edição Especial, São Paulo, Ano 27, n. 318, maio/2019. pp. 06-08.


Notas de rodapé

([1]) DE SÁ, Alvino Augusto; BRAGA, Ana Gabriela Mendes; BRETAN, Maria Emília Accioli Nobre; CALDERONI, Vivian. (Coord.). GDUCC Grupo de Diálogo Universidade – Cárcere – Comunidade: uma experiência de integração entre a sociedade e o cárcere. Brasília: Ministério da Justiça, 2013.

([2]) BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 82959, Brasília. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79206>. Acesso em: 08 mar. 2020.

([3]) Nas palavras de Mesquita Júnior (2010, p. 10): “(...) A isonomia é relativa, à medida que os desiguais não podem receber o mesmo tratamento durante a execução da pena. Daí decorre a individualização da pena (...)”.

([4]) Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf>. Acesso em: mar. 2020.

([5]) CAPPELLARI, Mariana Py Muniz. A chacina na favela Nova Brasília e a condenação do Brasil em corte da OEA. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/462189374/a-chacina-na-favela-nova-brasilia-e-a-condenacao-do-brasil-em-corte-da-oea>. Acesso em: mar. 2020.

([6]) BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347. Brasília, 09/09/2015.  Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/ documento/informativo798.htm >. Acesso em: 06 mar. 2020.

([7]) WUNDERLICH, Alexandre; REALE JÚNIOR, Miguel. Justiça negocial e o vazio do Projeto Anticrime. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, Edição Especial, São Paulo, Ano 27, n. 318, maio/2019. pp. 06-08.

Mariana Py Muniz Cappellari

Doutoranda em Ciências Sociais PUCRS. Mestra em Ciências Criminais PUCRS. Especialista em Direito Privado pela UNISINOS e em Ciências Penais PUCRS. Professora da Pós-graduação Especialização em Direito Penal e Processo Penal da FEEVALE

Defensora Pública do Rio Grande do Sul desde 2006

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3599-1890

Lattes: lattes.cnpq.br

mpymuniz@hotmail.com


Recebido em: 02.03.2020

Aprovado em: 08.05.2020

Versão final: 15.05.2020

O aumento da violência na execução penal pela lei 13.964/14

Resumo: O cumprimento de pena no Brasil é uma mazela estrutural do ordenamento jurídico e da sociedade, e sua situação caótica tem se agravado ininterruptamente nas últimas décadas. Por outro lado, a recente Lei 13.964/19 encabeçou projeto que visava um aperfeiçoamento na legislação penal, focando também em um aprimoramento das condições da execução penal. Ocorre, contudo, que as alterações realizadas na Lei de Execução Penal não só deixam a desejar sob um ponto de vista de melhoria, como também impactam de forma negativa o funcionamento do sistema penitenciário. Entre as mudanças, há um severo endurecimento da disciplina do Regime Disciplinar Diferenciado e um complexo remodelamento no sistema de benefícios da progressão de regime. Tais mudanças, quando encaradas sob um olhar crítico, convergem para uma provável e indesejável piora no cumprimento de pena.

Palavras-chave: Sistema Carcerário. Prisão. Execução Penal. Disciplina.

Abstract: Serving time on Brazil is a structural malfunction of the society and the legal system, and its chaotic situation has steadily worsened on the last decades. On the other way, the recent Law 13.964/19 headed project that aimed an improvement on the criminal legislation, also aiming on an enhancement of penal execution. However, the changes made to the Penal Execution Law not only fall short in terms of improvement, but also have a negative impact on functioning of the penitentiary system. In the changes, there is a severe hardening of discipline in the Differentiated Disciplinary Regime, and a complex remodeling on the system of regime progression benefits. These changes, when stared by a critical look, converge to a probable and unwanted worsening in the prison sentence.

Keywords: Prison System. Prison. Penal Execution. Discipline.

Data: 29/05/2020
Autor: Rafael de Lazari e Alison Andreus Gama

Introdução

O “pacote anticrime”, assim denominado o projeto que culminou na Lei 13.964/19, é considerado por muitos como a mais significativa reforma na legislação penal da década, e protagoniza discussões jurídicas desde sua apresentação pelo então já Ministro da Justiça Sérgio Moro. Alterações radicalmente polêmicas - e fundamentalmente questionáveis - atingiram parcela do Código Penal, boa parte do Código de Processo Penal, além de mudanças pontuais na legislação extravagante. O que ora se apresenta são as mudanças que a referida legislação provocou na Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal), ao passo que se argumenta até que ponto tais modificações implicam em um aumento da violência que hoje é inerente ao cumprimento de pena privativa de liberdade nas penitenciárias brasileiras.

De proêmio, deve-se ter como gênese desta discussão o raciocínio de que todo o pacote anticrime contribui para uma expansão do sistema penal. Ora aumentando o tempo de cumprimento de pena privativa de liberdade, ora prevendo a possibilidade de execução antecipada da pena (questão recentemente reconfirmada como inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal na problemática envolvendo a presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória), a Lei 13.964/19 representa em diversos pontos, uma formal concretização do populismo penal, que deslegitima há décadas o exercício do poder punitivo.

A consequência lógica é uma premissa há muito tempo conhecida e aqui apenas analisada sob um viés crítico: as atuais condições pelas quais é exercido o poder punitivo no Brasil nos últimos anos contribui para um agravamento exponencial da situação carcerária, implicando principalmente em um aumento do número de presos, o que, na contramão, torna ainda mais robusto o desrespeito aos direitos fundamentais de tais indivíduos.

Em condições ideais, uma proposta de reforma que logo de início dispõe ter por objetivo “aperfeiçoar a legislação penal” (art. 1º da Lei 13.964/19) caminharia no sentido de, primeiramente, diminuir o grau de seletividade e de incidência do sistema penal na sociedade (discussão para outro tópico) e, de maneira não menos importante, deveria agir na diminuição da violência estatal no âmbito carcerário. Salta aos olhos, contudo, a infeliz conclusão de que o pacote anticrime parece ter caminhado em sentido contrário.

1. O cárcere: um velho problema no Estado brasileiro

Para além de uma tecnologia punitiva altamente eficiente em sociedades capitalistas (KARAM, 2009, p. 09), o conceito da prisão é uma materialização do poder do Estado em proporções de assustadora magnitude. O mesmo ambiente permite retirar da circulação social sujeitos ali indesejados, individualizá-los, examiná-los, melhor conhecê-los e feri-los de todas as maneiras possíveis e até inimagináveis. Tudo isto sob a argumentação de que o Estado, como regulador da vida em sociedade e detentor exclusivo do poder punitivo, goza de legitimidade para utilizar de tal poder, argumento este levado a cabo pela criminologia crítica e assim severamente criticado (BARATTA, 2002, p. 42).

No Brasil, o fenômeno da prisão supera limites físicos e desrespeita barreiras juridicamente consideradas como intransponíveis, como a dignidade da pessoa humana e a equivalente necessidade de dignidade no cumprimento da pena. Em verdade, os argumentos convergentes em torno dos pontos negativos do sistema carcerário brasileiro chegam a ser repetitivos diante da reiterada denúncia realizada por todos os setores das ciências sociais sobre como este sistema viola direitos fundamentais.

Nesta esteira, frise-se que o Conselho Nacional do Ministério Público disponibilizou em endereço na internet o “Sistema Prisional em Números”, plataforma que permite aos usuários acessar informações acerca das penitenciárias brasileiras. Como norte, impende destacar que a última atualização da plataforma, no segundo trimestre de 2019, atesta que a população carcerária gira em torno de 728.229 detentos, sendo que mais de 230 mil estão presos na região Sudeste do país.

A isto se soma o fato de que as condições materiais das penitenciárias brasileiras são, em sua grande maioria, absolutamente precárias. A contradição entre os fatos e a legislação penal chega a ser irônica: enquanto a Lei de Execuções Penais determina o respeito à integridade física e moral dos detentos, no ambiente carcerário, os detentos lidam diariamente com falta de higiene básica, alimentação deficitária, ausência de saneamento para necessidades pessoais, proliferação de moléstias, entre outros fatores que vão além de uma privação da liberdade (ZAFFARONI, 2001, p. 135).

Evidentemente que os fatores que contribuem para o aumento desta população devem ser mitigados na raiz dos problemas. Mas, de outra banda, faz-se igualmente importante a atuação na faceta interna da execução penal, tanto para diminuir a violência que domina os muros destas instituições, quanto para prevenir o reingresso de sujeitos uma vez selecionados pelo sistema penal e que não conseguiram se desentranhar de suas garras.

Desta feita, apresenta-se desde logo o posicionamento crítico, que é tomado em face às alterações realizadas pela Lei 13.964/19, porquanto a referida Lei reformadora, ao invés de atuar no aprimoramento das condições para o cumprimento de pena, empreendeu esforços desnecessários no endurecimento das medidas disciplinares, dificultou de forma inconsequente a obtenção de benefícios que auxiliariam na reinserção do condenado na sociedade, além de ferir de morte a privacidade e a dignidade dos detentos conforme se verá adiante.

2. O negativo impacto do pacote anticrime na execução penal – disciplina e violações

Como dito, o potencial reformador da Lei 13.964/19 foi desnecessariamente gasto no sentido de encrudescer ainda mais as condições do sistema carcerário brasileiro que, como se sabe, há muito tempo não eram boas (vide ADPF 347, em trâmite pelo STF). Referidas modificações surtem efeitos diretamente sobre a própria pessoa do condenado e sobre seus direitos.

Pois bem. Desde 2012, em virtude da Lei 12.654, os condenados por crimes dolosos com violência ou ameaça contra pessoa ou por aqueles previstos na Lei de Crimes Hediondos, ao ingressarem o estabelecimento prisional, passaram a ser submetidos a procedimento de extração do DNA para a construção de perfis genéticos que auxiliassem na identificação do condenado. Nem é preciso dizer que há nisto a finalidade latente de, nos casos de reincidência, ser possível identificar e construir de forma muito mais fácil a “carreira criminosa” (BARATTA, 2002, p. 167) do agente.

Com o advento da Lei 13.964/19, todo aquele que já vinha cumprindo pena por delito que exigisse a identificação de perfil genético, sem ter sido submetido à extração do DNA, passou a ser obrigado a realizá-la durante o cumprimento da pena. Isto é: inclusive aqueles que cumpriam pena muito antes da criação do perfil de dados genéticos, com a vigência do pacote anticrime passam a ser, literalmente, obrigados à identificação.

A utilização ora empregada do termo “obrigado” não se faz levianamente. Com a Lei 13.964/19, a recusa do condenado em submeter-se à extração do material genético passa a constituir falta grave, sujeitando o infrator às penalidades previstas nos incisos III a V do artigo 53 da LEP.

Com isso, ainda que inconscientemente, o pacote anticrime estabelece imbricada conexão entre a individualização do condenado e sua forçosa disciplina dentro do ambiente carcerário. Com o novo texto da LEP, ou o condenado submete-se à extração do DNA e integra o banco de dados genéticos, ou é obrigatoriamente penalizado com alguma das sanções disciplinares previstas na legislação. A estrutura carcerária se aproxima cada vez mais do Panóptico, que, no inesquecível estudo de Michel Foucault, representa a melhor e mais eficiente forma de disciplinar e examinar um detento em todas as dimensões que o controle permite (FOUCAULT, 2004, p. 210).

No que tange às sanções disciplinares, a alteração promovida pela Lei 13.964/19, que recaiu sobre o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), é uma das mais violentas e quiçá até mesmo inconstitucional em todo o projeto. Antes da Lei 13.964/19, o RDD ostentava as seguintes características: a) duração máxima de 360 dias, prorrogável até o máximo de um sexto da pena; b) recolhimento em cela individual; c) visitas semanais de duas pessoas com duração de duas horas; d) direito a saída da cela por duas horas diárias para banho de sol.

Certo é que sob um ponto de vista garantista, as condições anteriores do RDD já eram demasiadamente violentas e questionáveis, considerando as finalidades de reeducação da pena e dignidade em seu cumprimento. Ocorre, contudo, que o pacote anticrime conseguiu agravar assustadoramente o panorama.

A nova redação dada ao art. 52 da Lei de Execução Penal passa a prever que o RDD terá as seguintes características: a) duração máxima de até 2 anos, repetível por nova falta grave da mesma espécie; b) visita quinzenais em instalações que impeçam o contato físico; c) entrevistas sempre monitoradas, exceto as com o defensor, em instalações que igualmente impeçam o contato físico; d) fiscalização do conteúdo das correspondências; e) participação em audiências judiciais preferencialmente por videoconferência.

Analisando-se superficialmente, podem ser observadas as profundas alterações de caráter violento, repressivo e intimidador, que terão única e exclusivamente a função de agravar o sofrimento daqueles que cumprem pena e em hipótese alguma auxiliarão no alcance da finalidade de reintegração. Inclusive, vale ressaltar que estas características do RDD se assemelham com a conhecida Walnut Street Jail, situada na Filadélfia durante o século XIX, temida pela confinação dos detentos em celas individuais, sem contato com o mundo exterior (TASSE, 2003, p. 106-107).

Para uma melhor compreensão dos pontos em que a reforma agravou a violência no Regime Disciplinar Diferenciado, basta um rápido elencar de “antes e depois” da Lei 13.964/19: a) antes, o tempo máximo no RDD seria de 360 dias, repetíveis até o limite de um sexto da pena; depois, passou a ser de 2 anos, sem limite de repetições; b) antes, as visitas eram semanais; depois,  passaram a ser quinzenais; c) antes, a privacidade e o sigilo de correspondência deviam ser respeitados; depois, o detento penalizado com o RDD passa a ter suas correspondências fiscalizadas.

E ainda mais: o §6º do artigo 52, introduzido pelo pacote anticrime, dispõe que as visitas a que o condenado tem direito (sejam familiares, de amigos, parentes) passam a ser gravadas em sistema audiovisual, e, em última hipótese, sob a égide de autorização judicial, fiscalizadas por agente penitenciário.

Eis a última pá-de-terra sobre os diversos direitos do condenado que não deveriam ser afetados com a privação de sua liberdade. Com o pacote anticrime, no ambiente carcerário o detento se verá despido de sua inviolável intimidade e arrancado de sua privacidade. A mesma intimidade e privacidade que constituem, aliás, o núcleo de proteção dos direitos da personalidade previstos na Constituição Federal (LAZARI, OLIVEIRA, 2018, p. 353-356).

Na mesma medida, a inserção no RDD, a partir da reforma, representa não só uma simples violação, mas uma verdadeira atribuição institucionalizada de caráter cruel à pena de prisão, contrariando-se vedação lógica igualmente imposta pela Constituição Federal.

Ademais, a Lei 13.964/19 também alterou dispositivos que preveem direitos do condenado no cumprimento da pena, direitos estes que auxiliam na finalidade preventiva e ressocializadora da pena, e são conquistados com requisitos objetivos e subjetivos cumulativamente considerados. Com relação à progressão de regime, o pacote anticrime tornou mais complexo o cálculo dos requisitos objetivos, distribuindo a tabela de tempo de cumprimento de pena em porcentagens para determinados tipos de condenados. Para se ter um exemplo, antes da reforma, o condenado reincidente em homicídio qualificado deveria cumprir 3/5 do total da pena para fazer jus à progressão; após a reforma, este mesmo condenado deve cumprir 70% da pena.

Supondo que ao condenado seja imposta uma pena de 30 anos: no caso anterior, teria de cumprir 18 anos para fazer jus à progressão, enquanto atualmente terá de cumprir 21 anos, ou seja, mais de duas décadas de cumprimento de pena em regime fechado. Isso sem contar as eventuais faltas graves e novas condenações que cada detento suporta já dentro do ambiente carcerário em virtude da própria natureza da prisão.

Não se pode esquecer que a progressão de regime é oriunda do sistema progressivo de cumprimento de pena adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, e corresponde à finalidade de ressocialização do condenado (PRADO, 2010, p. 526-527).

E, por fim, a saída temporária, instituto jurídico rotineiramente bombardeado pelo senso comum e pela mídia, também sofreu restrições, de forma que não fará mais jus à saída temporária o condenado por crime hediondo com resultado morte, conforme redação do §2º do artigo 122 da LEP, incluído pelo pacote anticrime.

Considerações finais 

Como dito, a Lei 13.964/19 fulminou a LEP de alterações que inevitavelmente irão contribuir para um intenso agravamento da tensão existente nas relações internas do sistema carcerário, além de representar um novo rombo na tênue linha que separa uma legítima execução penal da crueldade arbitrária. O novo modelo de Regime Disciplinar Diferenciado e suas consequências conseguirão tornar ainda mais impossível que o sujeito inserido na prisão possa sair apto ao convívio social.

Do mesmo modo, dificultar ou tornar mais complexo o acesso dos condenados aos benefícios inerentes ao cumprimento da pena é uma medida peculiar e que pode surtir efeitos negativos. Vale repisar, finalizando, que o previsível efeito negativo que a reforma da LEP ocasionará no ambiente carcerário não demanda experiências empíricas profundas. Basta a compreensão das experiências anteriores à reforma, igualmente negativas. A Lei 13.964/19 tratou com os medicamentos errados uma velha moléstia, piorando-a e eivando-a de sequelas para piorá-la cada vez mais.

Referências

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

BRASIL. Lei 7.210 de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em:  <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 27 fev. 2020.

BRASIL. Lei 13.964 de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm. Acesso em: 27 fev. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 347. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID =10300665>.  Acesso em: 28 de fev. 2020.

CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Sistema prisional em números. Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-prisional-em-numeros.> Acesso em: 27 fev. 2020.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

KARAM, Maria Lúcia. A privação da liberdade: o violento, danoso, doloroso e inútil sofrimento da pena. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

LAZARI, Rafael José Nadim de; OLIVEIRA, Bruna Pinotti Garcia. Manual de direitos humanos. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2018.

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral, arts. 1º a 120. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

TASSE, Adel El. Teoria da pena. Curitiba: Juruá, 2003.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. 


Notas de rodapé

Rafael de Lazari

Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Portugal. Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professor da Graduação, do Mestrado e do Doutorado em Direito da UNIMAR. Coordenador da Pós-Graduação em Direito Constitucional da Rede LFG de Ensino. Professor convidado da Escola Superior de Advocacia e de Cursos preparatórios para concursos e Exame da OAB Advogado e consultor jurídico.

ORCID 0000-0002-9808-8631.

Lattes: lattes.cnpq.br

prof.rafaeldelazari@hotmail.com

Alison Andreus Gama

Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade REGES de Dracena - SP (2015-2019).

ORCID 0000-0002-4540-2308.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/0988183981279463

alisonagama@hotmail.com


Recebido em: 02.03.2020

Aprovado em: 08.05.2020

Versão final: 14.05.2020 

A mitigação do duplo grau de jurisdição no pacote anticrime – comentários ao art. 492 do CPP

Resumo: Em dezembro de 2019 surgiu no ordenamento jurídico nacional um conjunto de leis denominado como Pacote Anticrime. Esta novel legislação promoveu alterações em leis penais e processuais penais, que atingirão sensivelmente o funcionamento do sistema de justiça criminal. O artigo visa abordar especificamente alguns dos reflexos desta recente legislação no âmbito do Tribunal do Júri, principalmente no que se refere à violação do duplo grau de jurisdição e à presunção de inocência.

Palavras-chave: Tribunal do JúriPresunção de Inocência. Soberania dos Veredictos. Apelação Criminal.

Abstract: In December 2019, a set of laws called the Anti Crime Set of Law emerged in the national legal system. This new legislation has promoted changes in the criminal law area that will significantly affect the functioning of the criminal justice system. This article aim to specifically address some of the reflexes of this recent legislation within the scope of the Jury Trial, and the violation of the right to appeal to higher court as a principle and the presumption of innocence.

Keywords: Jury Trial. Presumption of Innocence. Sovereignty of Verdicts. Criminal Appeal.

Data: 29/05/2020
Autor: Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Yuri Felix

Entrou em vigor, no final de janeiro de 2020, a Lei 13.964/2019 que alterou diversos artigos do Código Penal, do Código de Processo Penal, da Lei de Execuções Penais dentre outras leis. Infelizmente alguns dispositivos alterados, que fariam o Brasil finalmente caminhar para implementação do sistema acusatório, foram suspensos em decisão do Ministro Luiz Fux, relator da ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305.

Contudo, o pacote também alterou a redação do artigo 492 do CPP, especificamente instituindo a letra “e”, no inciso “I”, além dos parágrafos 3o, 4o, 5o e 6o.

Foi criada, com a alteração legislativa, uma nova modalidade de execução da pena antes do trânsito em julgado, a qual valerá para aqueles condenados a pena igual ou superior a 15 anos de reclusão (conforme interpretação literal da letra “e” do art. 492).

Desde já, ressalta-se que tal criação ataca dispositivos da Constituição Federal e do próprio Código de Processo Penal. Para melhor análise da novel redação, faremos a análise a partir de três recortes: (1) violação do princípio da presunção de inocência ao instituir execução da pena a partir de decisão em primeiro grau de jurisdição; (2) mitigação do princípio do duplo grau de jurisdição; e (3) exceções à execução antecipada para as penas iguais ou superiores a 15 anos.

(1) Sobre o primeiro aspecto, recentemente a comunidade jurídica acompanhou as acaloradas discussões no STF no julgamento das ADCs 43, 44 e 54. Naquela oportunidade, o Supremo reconheceu a constitucionalidade do art. 283 do CPP, que previa a necessidade de sentença transitada em julgado para o início da execução da pena. Desta forma, em respeito ao art. LVII da Constituição Federal, não se admite a prisão antes do trânsito em julgado, excetuando-se a prisão processual cautelar.

Com a Lei 13.964/2019, a redação do art. 283 foi alterada, determinando que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado”. Isto é, manteve-se o sentido da norma, mas a redação foi reorganizada, deixando-a mais clara. Reafirmou-se que, fora a prisão cautelar, ninguém poderá ser preso sem sentença condenatória com trânsito em julgado.

Perceba-se que não há margens para interpretações. Soa até mesmo repetitivo. Contudo, nota-se que aquela celeuma se deu no âmbito de discussão da possibilidade de execução da pena a partir da condenação de segunda instância. Ou seja, o conflito de teses se relacionava sobre a admissão de prisão após a condenação em segunda instância ou após o trânsito em julgado.

No entanto, a inovação legislativa, justificada na necessidade de acabar com a impunidade, institui a execução da pena a partir de decisão do Tribunal do Júri, instituto competente para o julgamento de crimes dolosos contra a vida em PRIMEIRA INSTÂNCIA. Ora, tal dispositivo não subsiste frente a uma interpretação literal da Constituição, quiçá dos princípios fundantes do Processo Penal atinentes ao Tribunal Popular.([1]) A previsão de antecipação de pena na prática implementa uma nova modalidade de permissão legal de execução de pena antes do trânsito em julgado, sendo incompatível com a ordem constitucional (incisos LVII e LIV do art. 5º) e conflitante com a novel normativa específica do próprio CPP (art. 283).

Destarte, a execução antecipada da pena viola frontalmente o princípio da presunção da inocência. Isso porque o aludido princípio tem como “marco claramente demarcado”([2]) o trânsito em julgado para que o acusado possa ser considerado culpado e, consequentemente, iniciar o cumprimento da pena.

(2) No aspecto da antecipação da pena, a nova lei também infringe o princípio do duplo grau de jurisdição, expresso como garantia judicial mínima no Pacto de San José da Costa Rica([3]) no artigo 8, II, h (“direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”). A todos os condenados é assegurado o direito à reanálise do seu processo por um órgão jurisdicional diferente daquele que proferiu a sentença.

Conjuntamente, o fundamento fático inerente ao recurso é o inconformismo. Isto é, caso o condenado não concorde com a sentença, eis que a considere injusta, excessiva, errônea, ou por qualquer outro motivo esteja insatisfeito, ao jurisdicionado é facultado amplo acesso ao segundo grau de jurisdição para reapreciação do caso.

Há, ainda, um fundamento político, pois as decisões judiciais devem estar sujeitas à reanálise. De acordo com BADARÓ, “a ausência de controle daria ao titular de tal decisão um poder ilimitado e absoluto, o que não pode ser aceito em um Estado de Direito”.([4])

Sendo assim, o princípio do duplo grau de jurisdição assume papel fundamental na ordem jurídica, não podendo ser mitigado, principalmente, por lei infraconstitucional ordinária. Perceba-se que, ao prever o início da execução da pena imediatamente a partir de decisão do Tribunal do Júri, o duplo grau resta enfraquecido, vez que sujeita o condenado ao cumprimento de uma pena, mesmo havendo possibilidade de que o julgamento seja anulado ou a sentença reformada.

(3) A partir do parágrafo terceiro do art. 492, a lei previu e explicou as hipóteses de exclusão da regra de prisão automática para as penas iguais ou superiores a 15 anos. Em vista disso, o parágrafo 3o assevera que o juiz presidente poderá deixar de executar imediatamente a pena caso haja “questão substancial cuja resolução pelo tribunal ao qual competir o julgamento possa plausivelmente levar à revisão da condenação”.

Por mais que a redação comporte alto teor de subjetividade, o entendimento constitucional deve ser da não determinação da execução antecipada da pena quando seja sustentado, durante a sessão em plenário, qualquer questão que possa ser arguida em sede de apelação. Isto é, caso a defesa tenha consignado em ata ter ocorrido alguma nulidade durante o julgamento, o juiz presidente deve possibilitar ao acusado recorrer em liberdade; eis que é possível uma decisão de anulação da sessão pela superior instância.

Já o parágrafo 4o reforça o entendimento de execução imediata da pena, eis que extingue o efeito suspensivo de apelações interpostas de decisões condenatórias do Júri cujas penas forem iguais ou superiores a 15 anos. Entretanto, a Lei prevê, no parágrafo seguinte, que (a) se o recurso de apelação não tiver caráter meramente protelatório e (b) se este recurso levantar “questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão”, o relator terá a faculdade de conceder efeito suspensivo.

Posto isto, a alteração legislativa do parágrafo 4o retira o efeito suspensivo do recurso de apelação das decisões do Tribunal Popular quando as penas aplicadas sejam iguais ou superiores a 15 anos, mas entrega ao relator da apelação a decisão de conceder esse efeito se entender que a apelação não é protelatória, o que despreza o fundamento do próprio recurso. Isso porque o art. 593, inc. III, do CPP, traz as hipóteses de cabimento da apelação, as quais estão associadas ao inconformismo da decisão do júri e/ou da ocorrência de eventuais nulidades. Ou seja, prevê requisitos que precisam ser apontados e fundamentados para que o recurso seja válido. Desse modo, a “questão substancial”, que pode resultar em absolvição, anulação ou novo julgamento, é intrínseca a todos os recursos de apelação. Portanto, em uma interpretação sistemática, a não concessão de efeito suspensivo deverá ser restrita apenas aos recursos que sequer sejam conhecidos.

Frise-se, não há como certificar que a apelação seja protelatória quando se fundamenta no inconformismo do resultado; eis que é um instrumento legalmente previsto para alcançar seus fins, calcado no duplo grau de jurisdição e no devido processo legal. Isto posto, o acusado tem o direito de recorrer caso não concorde com sua condenação sem que isso seja interpretado como “protelatório” ou “abusivo”. Erros judiciais inexoravelmente ocorrem e o acusado precisa de um instrumento jurídico hábil para não se manter exposto a arbitrariedades.

Por derradeiro, o parágrafo 6o do art. 492 estipula que o pedido de concessão do efeito suspensivo deverá ser requerido na própria petição ou em separado (existiria outra forma?), e que o recorrente deve instruir o pedido com “cópias da sentença condenatória, das razões da apelação e de prova da tempestividade, das contrarrazões e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia”. Trata-se de dispositivo dispensável, até mesmo porque, por conta do processo eletrônico, normalmente todas as peças estão à disposição do órgão julgador e das partes. Para mais, a juntada de documentos essenciais à petição não é uma novidade para qualquer peticionante.

Considerações finais

Com o advento da lei, chamaram atenção algumas opiniões que recorrem ao princípio da soberania dos veredictos para defender a execução imediata das condenações decididas em sede do Júri.

Sem embargo, jamais se pode esquecer a localização sistemática do instituto do Tribunal do Júri e, consequentemente, do princípio da soberania do veredicto na Constituição Federal, os quais estão inseridos no título referente aos direitos e garantias fundamentais do cidadão. A soberania, portanto, deve ser considerada exatamente como um direito e uma garantia de cada cidadão, tendo que ser interpretada de maneira ampla, como um instrumento de proteção.

O conceito de soberania se relaciona à impossibilidade de revisão de mérito das decisões do Tribunal do Júri, não podendo, jamais, servir para impedir que o condenado tenha acesso ao duplo grau de jurisdição. Ademais, perceber que a votação do Conselho de Sentença é secreta, individual e não fundamentada, inviabiliza expressar que se trate de um órgão coletivo (mais) imparcial ou (mais) garantidor - pelo contrário.([5])

Com efeito, caracteriza-se como uma blasfêmia democrática sustentar a soberania dos veredictos como fundamento da execução instantânea da pena, pois desconsidera-se a soberania como garantia e violam-se outros princípios fundamentais de igual hierarquia, como o princípio da plenitude de defesa, o da presunção da inocência e do devido processo legal.

Ainda, pelo prisma do direito material, viola-se o princípio da igualdade e da proporcionalidade, uma vez que os crimes dolosos contra a vida não se distinguem em desvalor de gravidade, a crimes como o de latrocínio, genocídio, estupro com resultado morte, dentre outros que não são de competência do júri e não estarão sujeitos a esta nova modalidade de prisão sem o trânsito em julgado a partir da primeira instância.

Enfim, continua-se a atacar os princípios democráticos em uma tentativa vil e populista, que faz com que, como sociedade, retrocedamos em conquistas históricas. Acertadas são as palavras de COUTINHO([6]) ao lecionar que não se deve "esquecer, porém, antes de tudo, que não se volta atrás nas conquistas democráticas de direitos e garantias constitucionais, sob pena de se perder a própria democracia”.

Referências

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 4. ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2016.

COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. Temas de direito penal e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

FFELIX, Yuri; LEONEL, Juliano Oliveira. Tribunal do Júri: Aspectos processuais. 1. ed. Florianópolis: EMais, 2017.

GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2015.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. Saraiva, São Paulo, 2020.

SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Tribunal do Júri: incompatibilidades com o sistema acusatório. In: POSTIGO, Leonel González (Dir.); BALLESTEROS, Paula R. (Coord.). Desafiando a Inquisição: Ideias e propostas para a Reforma Processual Penal no Brasil. Centro de Estudios de Justicia de las Américas: Chile. 2017. p. 237-250.


Notas de rodapé

([1]) FELIX, Yuri; LEONEL, Juliano Oliveira. Tribunal do Júri: Aspectos processuais. 1. ed. Florianópolis: EMais, 2017. p. 41-42.

([2]) LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17 ed. Saraiva: São Paulo, 2020. p. 140.

([3]) GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2015, p. 13.

([4]) BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 4. ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2016. p. 816.

([5]) SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Tribunal do Júri: incompatibilidades com o sistema acusatório. In: POSTIGO, Leonel González (Dir.); BALLESTEROS, Paula R. (Coord.). Desafiando a Inquisição: Ideias e propostas para a Reforma Processual Penal no Brasil. Centro de Estudios de Justicia de las Américas: Chile. 2017. p. 237-250.

[6] COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. Temas de direito penal e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 16-17.


Rodrigo Faucz Pereira e Silva

Doutor em Neurociências pela UFMG e mestre em Direito pela UniBrasil.

Professor de Processo Penal da FAE. Professor do Programa de Mestrado em Psicologia Forense da UTP. Advogado Criminal.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7940-9316

rodrigo@faucz.com.br

Yuri Felix

Doutor em Ciências Criminais pela PUCRS. Advogado e Professor de Processo Penal ABDConst (RJ), EPD (SP), UCS (RS) e CERS. Advogado Criminal.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1494-9535

advyuri@gmail.com


Recebido em: 13.03.2020

Aprovado em: 16.04.2020

Versão final: 11.05.2020 

Acordo de não persecução penal – A retroatividade da lei penal mista e a possibilidade dos acordos após a instrução processual

Resumo: A presente pesquisa busca dar um breve panorama sobre a expansão dos espaços de negociação, tanto no Brasil quanto em alguns exemplos internacionais. Mais especificamente, na legislação brasileira será analisado o mais novo mecanismo de consenso inserido no Código de Processo Penal pela Lei 13.964/2019, qual seja: o Acordo de Não Persecução Penal. Fugindo meramente da formalidade e da mera explanação sobre o instituto em si, esse trabalho objetiva solucionar duas importantes questões que surgem com a sua implementação: o instituto se aplica aos processos já em curso?; em relação aos crimes cometidos após a sua entrada em vigor, que porventura não façam jus ao acordo no início da persecução, mas que vierem a preencher os requisitos no curso da ação penal, terão direito ao acordo?

Palavras-chave: Justiça Penal Negocial; Retroatividade; Lei Penal; Lei Processual.

Abstract: This research seeks to provide a brief overview of the expansion of negotiation spaces, both in Brazil and in some international examples. More specifically in Brazilian law, the newest negotiation mechanism inserted in the Criminal Procedure Code by Law No. 13.964/2019 will be analyzed, namely: the Non-Criminal Persecution Agreement. Escaping merely from formality and a mere explanation of the institute itself, this work aims to solve two important questions that arise with its implementation: does the institute apply to processes already underway ?; in relation to crimes committed after its entry into force, which perhaps do not live up to the agreement at the beginning of the prosecution, but which come to fulfill the requirements in the course of the criminal action, will they be entitled to the agreement?

Keywords: Negotiating Criminal Justice; Retroactivity; Penal Law; Procedural Law.

Data: 31/05/2020
Autor: Pedro Faraco Neto e Vinicius Basso Lopes

1      Breves apontamento sobre a Justiça Penal negocial e seus paradigmas internacionais

No Brasil, poder-se-ia dizer que o Processo Penal vigorava sob a luz de um sistema adversarial, litigioso e pretensamente acusatório; hoje, talvez, não seja essa a melhor concepção. A Carta Magna de 1988 consagrou, diante da frágil e jovem democracia brasileira, um sistema processual penal democrático, acusatório, e baseado nos Direitos e Garantias Fundamentais.

O Código de Processo Penal, por sua vez, oriundo de 1941, parte de um movimento fascista, e tendo como paradigma o Código Rocco, da Itália. Diante disso, restou evidente o choque entre o modelo imposto pela atual Constituição e o adotado pelo Código de Processo Penal, o que veio a acarretar, 20 anos depois, na reforma parcial do CPP. Reforma essa que, na opinião de boa parte da doutrina, apesar de trazer evoluções importantes, não consolidou de uma vez por todas o sistema acusatório no processo brasileiro, uma vez que permitia a iniciativa probatória do julgador. Assim ensina Jacinto Coutinho (2010): “A escolha do sistema é política: ou se permite ao juiz buscar o conhecimento ou faz com que as partes levem o conhecimento ao juiz. Esta é a diferença fundamental entre os sistemas inquisitorial e acusatório.”

Pois bem, mesmo diante deste conflito dogmático presente no processo brasileiro, certo era: o Ministério Público acusa; o acusado se defende. Porém, hoje, esse sistema não é mais regra, uma vez que o Brasil agora faz parte de um movimento de expansão dos espaços de negociação, movimento este que não começou aqui.

Na Alemanha, por exemplo, a barganha teve seu início de forma não regulamentada, de modo informal, até que posteriormente, devido à sua importância, o legislativo passou a atuar (VASCONCELLOS, MOELLER, 2016, p. 15).

Até a década de 70, não havia qualquer vestígio da barganha no processo penal alemão, sendo que os acordos informais passaram a ocorrer principalmente após 1982, com a publicação de um artigo anônimo, levantando-se, então, o debate na doutrina acerca do instituto (VASCONCELLOS, MOELLER, 2016, p. 18). O motivo que levou ao início dos procedimentos consensuais/negociais na Alemanha se assemelha ao do Brasil. No país germânico, apontam-se algumas causas, contudo, segundo Vasconcellos e Moeller: “O motivo principal, porém, é visto na economia processual, ou seja, a barganha advém da sobrecarga do sistema jurídico alemão” (2016, p. 19).

Também na Europa, outro modelo de processo penal que adota mecanismos de aceleração processual é o italiano, no qual, na reforma processual de 1988, foram inseridos mecanismos de simplificação, uma vez que, de acordo com a doutrina majoritária, o modelo de justiça criminal era excessivamente moroso (VASCONCELLOS, 2015, p. 444-446). Sendo que o principal mecanismo de consenso é a aplicação da pena por requisição das partes (patteggiamento), que pela posterior alteração de 2003 pode ser aplicada a crimes cuja sentença se limite a 5 anos, com redução de um terço em benefício do réu (VASCONCELLOS, 2015, p. 444-446).

Além dos modelos europeus, talvez o maior expoente da justiça consensual/negocial no mundo sejam os Estados Unidos e a negociação no processo penal americano se faz basicamente com o uso do instituto plea bargaining.

Na tentativa de conceituar plea bargaining, a organização não-governamental Fair Trials aponta que o instituto é um acordo oferecido pelo promotor ao acusado, que deverá confessar sua culpa, abdicando de um julgamento, tanto de um juiz, quanto do júri, em troca recebendo alguns benefícios, como por exemplo, uma sentença reduzida ou o não oferecimento de algumas acusações (SOUSA, 2019, p. 93).

O plea bargaining divide-se em duas principais vertentes: podendo o acordo versar tanto sobre a remodulação da acusação, podendo mudar a imputação que lhe é feita (charge bargaining), ou sobre a diminuição da pena e o regime de seu cumprimento (sentencing bargaining) (SOUSA, 2019, p. 95).

Segundo Marllon Sousa (2019, p. 92), este modelo de justiça negociada é o grande responsável pelas condenações no sistema de justiça criminal americano, uma vez que no período de junho de 2016 a junho de 2017 foram acusadas 75.208 pessoas nas cortes federais, sendo que destas somente 6.321 não foram condenadas.

Gustavo Henrique Badaró (2018, p. 7) aponta ainda que mais de 90% dos processos são resolvidos por meio do plea bargaining.

Nota-se, portanto, tal qual no Brasil e na Alemanha, que novamente a utilização de instrumentos de abreviação do processo, por meio da barganha, tem um viés eminentemente utilitarista, vez que teria como objetivo a aplicação rápida e eficiente da legislação penal, punindo os infratores o mais rápido possível, mostrando à sociedade a eficiência do poder do Estado (SOUSA, 2019, p. 102).

2      Acordo de não persecução penal – da inconstitucionalidade formal à lei 13.964/19

A extrema judicialização de demandas é um dos principais problemas do Poder Judiciário, diminuindo de forma gradativa a qualidade da prestação jurisdicional. Em âmbito penal, talvez um de seus principais fatores seja o sistema criminal extremamente inchado e repressivo. Ocorre que, quando se fala de direito penal, o problema é muito mais grave, uma vez que neste se lida com direitos indisponíveis, bem como com os bens jurídicos mais importantes à sociedade. Podemos ver o resultado desse direito penal inflado na demora à prestação jurisdicional, que faz com que acusados presos preventivamente ocupem o sistema penitenciário por muito mais tempo, refletindo na condição dos presídios brasileiros, que são verdadeiras masmorras, com superlotação, fazendo jus ao seu status de coisa inconstitucional (BRASIL, 2015).

Sendo assim, o Brasil caminha para uma adoção do processo penal com viés utilitarista, abandonando o modelo epistêmico de processo, e passando-se a adotar um modelo consensual. Um dos expoentes dessa transição é o acordo de não persecução penal que inicialmente não possuía respaldo legislativo (stricto sensu), uma vez que se encontrava regulado somente pela Resolução 181/17, do Conselho Nacional do Ministério Público, alterado pela Resolução 183/18. Tal acordo surgiu para suprir a necessidade de acordos não só para crimes de pequeno potencial ofensivo, mas também para os de médio potencial, com vistas a dar maior celeridade à justiça penal, tal qual a Lei 9.099/95.

A motivação para tal medida confirma o seu viés utilitarista, conforme a própria Resolução 181/17: “Considerando a carga desumana de processos que se acumulam nas varas criminais do País e que tanto desperdício de recursos, prejuízo e atraso causam no oferecimento de Justiça às pessoas, de alguma forma, envolvidas em fatos criminais”.

Por conseguinte, esta medida é uma das propostas apresentadas por Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2019, p. 20), pois, segundo ele, deve ser feita uma eleição de prioridades, sendo os crimes mais graves submetidos à apreciação do juízo, e aqueles menos graves sendo resolvidos em âmbito extrajudicial.

A priori, o acordo levantou diversas discussões, a principal delas se tratava da inconstitucionalidade formal do instituto, uma vez que, nos termos do art. 22, inciso I, da Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre direito penal e processual, porém, tal problema foi sanado com o advento da Lei 13.964/19, que inseriu no Código de Processo Penal o art. 28-A, introduzindo de vez no ordenamento jurídico o acordo de não persecução penal.

Com a entrada em vigor deste importantíssimo “instituto de ampliação do espaço negocial” (LOPES JR, 2020, p. 314), surgem algumas questões imprescindíveis para a dogmática, e o intuito deste trabalho é tratar de duas delas, quais sejam: o instituto se aplica aos processos já em curso pela retroatividade da lei processual penal mista mais benéfica?; em relação aos crimes cometidos após a sua entrada em vigor, que porventura não façam jus ao acordo no início da persecução, mas que vierem a preencher os requisitos no curso da ação penal, terão direito ao acordo?

3      A retroatividade da lei processual penal mista mais benéfica e a incidência do acordo nos processos em curso

Afinal de contas, quando a lei irá produzir os seus efeitos? Bom, Cezar Roberto Bitencourt (2015, p. 205) aponta que a lei produz seus efeitos quando entra em vigor, regendo todos os atos a partir daquele momento. Portanto, a lei anterior, em regra, perde a sua vigência.

Pois bem, nessa seara será necessário diferenciar aspectos referentes à lei penal no tempo, bem como à lei processual no tempo. No primeiro ponto (lei penal), a regra (irretroatividade) encontra uma importante ressalva: a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o réu (retroatividade da lei penal benigna). Se trata não somente de um princípio, mas de uma regra, imposta pela Constituição Federal em seu art. 5º, inciso XL: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.” Nesse mesmo sentido é o art. 2º do Código Penal.

A lei mais benéfica não só retroage para beneficiar o réu, como também terá ultratividade e prevalecerá mesmo quando houver a vigência de uma lei nova (menos benéfica) (BITENCOURT, 2015, p. 207).

No segundo aspecto (lei processual), os efeitos temporais da lei são um pouco diferentes, senão vejamos. É consagrado pelo art. 2º([1]) do Código de Processo Penal o princípio tempus regit actum, ou seja, incide a aplicabilidade imediata, logo que a norma entra em vigor, não afetando os atos já praticados na vigência da lei anterior (LIMA, 2014, p. 100).

Aqui, porém, é de suma importância a lição de Aury Lopes Junior (2019, p. 116): “Por outro lado, a lei processual penal mais benéfica poderá perfeitamente retroagir para beneficiar o réu, ao contrário pelo defendido pelo senso comum teórico”.

Isso se dá porque é necessário distinguir as normas genuinamente processuais (essas sim abarcadas pelo art. 2º do CPP, não retroagindo, portanto) das normas processuais materiais ou mistas, que possuem natureza diversa, tanto processual quanto penal. Portanto, mesmo que um dispositivo legal esteja inserido na legislação processual, mas versar sobre matéria penal, deverá incidir a ultratividade e a retroatividade da norma mais benigna (LIMA, 2014, p. 101).

Sobre a temática Gustavo Henrique Badaró (2015, p. 95) adota a corrente ampliativa sobre as normas processuais de conteúdo material: “Todas as normas que disciplinam e regulam, ampliando ou limitando, direitos e garantias pessoais constitucionalmente assegurados, mesmo sob a forma de leis processuais, não perdem o seu conteúdo material”. Para o doutrinador, a regra de direito intertemporal deverá ser a mesma aplicada às normas de conteúdo material: a da anterioridade da lei, vedada a retroatividade da lex gravior.

Passamos agora à análise do acordo de não persecução penal. O referido instituto encontra supedâneo no art. 28-A do Código de Processo Penal, portanto; em diploma processual, porém, a sua natureza é mista, pois trata também de direito material. O maior exemplo talvez seja o §º13 do artigo, que assinala: “Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.”

Ora, como é sabido por todos, extinção da punibilidade é matéria penal prevista no artigo 107 do Código Penal. Sendo assim, “o ANPP adquiriu natureza mista de norma processual e norma penal, devendo retroagir para beneficiar o agente (art. 5º, XL, CF) já que é algo mais benéfico do que uma possível condenação criminal” (LOPES JUNIOR; JOSITA, 2019).

Temos ainda que, por instituto desencarcerador que é, o acordo de não persecução penal lida com o direito à liberdade, sendo este um dos pilares essenciais do Estado Democrático de Direito, encontrando alicerce privilegiado no caput do art. 5º da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”. E lidando com liberdade, bem jurídico de direito material, aliás afeto aos direitos da personalidade humana, sem dúvida que o Acordo de Não Persecução Penal deve retroagir para beneficiar os cidadãos jurisdicionados.

Analisando o direito comparado pela pena de Peluso (2011, p. 143-162), na Alemanha, no § 2º, III, do Código Penal alemão, encontra-se previsto que: “se a lei que rege na cominação do fato é alterada antes da decisão, então há de se aplicar a lei mais benigna”. Na Itália, por sua vez, em seu art. 3º, §§ 2º e 3º, do Código Penal italiano, é determinado que “se a lei vigente no momento da comissão do delito e a lei posterior forem distintas, se aplicará a que resulte mais favorável ao réu, salvo que se tenha pronunciado sentença irrecorrível”.

A regra na Espanha é muito mais severa, uma vez que de acordo com o art. 2.2 do Código Penal espanhol, a lei mais benéfica pode retroagir mesmo após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória: “não obstante, terão efeito retroativo aquelas leis penais que favoreçam ao réu, ainda que ao entrar em vigor tivesse recaído uma sentença firme e o sujeito estivesse cumprindo condenação. Em caso de dúvida sobre a determinação da lei mais favorável, será ouvido o réu” (PELUSO, 2011, p. 143-162).

Já em Portugal, a regra da retroatividade da lei penal benéfica encontra guarida na Constituição portuguesa, onde em seu artigo 29,4 consta expressamente que: “ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido” (PELUSO, 2011, p. 143-162).

Logo, por mais este motivo, qual seja, pela análise do direito comparado, a retroatividade deve ser aplicada ao novo instituto.

4      A possibilidade de aplicação do acordo durante o processo pela superveniência do preenchimento dos requisitos objetivos

Além do problema da retroatividade da lei aos casos já em trâmite, com processos iniciados antes da vigência da norma, há outro problema que buscaremos responder com este trabalho: e se, mesmo com o processo tendo iniciado após a vigência da norma que instituiu o acordo de não persecução penal, o acusado vier a preencher os requisitos para sua aplicação após o recebimento da denúncia?

Esclareceremos a problemática por meio de um exemplo: no momento do oferecimento da denúncia era imputado ao acusado o cometimento de crime com pena mínima superior a quatro anos, sendo assim, não fazendo jus à propositura do acordo. Porém, no momento da sentença há a desclassificação do delito para um de pena mínima inferior a quatro anos. Nesse caso, é possível a incidência do acordo mesmo após a prolação da sentença?

A resposta inegavelmente é positiva, e nesse caso, como analogia, deve-se aplicar a Súmula 337 do STJ, a qual assevera que: “É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva”. Ora, ambos os institutos são consensuais/negociais, com eminente viés despenalizador, com requisitos e condições parecidas. Portanto, parece-nos razoável que a solução jurídica para tal demanda seja a mesma.

5   Considerações finais

Pois bem, para concluir a presente pesquisa far-se-á o seguinte raciocínio: o acordo de não persecução penal possui inspirações internacionais, em mecanismos de consenso como, por exemplo, o alemão (§257c, StPO), o italiano (patteggiamento) e outros ordenamentos europeus de matrizes mais consolidadas que a brasileira. E no âmbito do direito comparado, demonstrou-se que, nesses países, assim como na Espanha e em Portugal, a retroatividade da lei penal benéfica é extremamente pacificada.

Tem-se, portanto, que em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro, bem como com os ordenamentos jurídicos europeus, o princípio da retroatividade da lei penal benéfica deve ser aplicado ao acordo de não persecução penal, que, como se demonstrou, muito embora se encontre esculpido em legislação processual, trata expressamente de preceitos materiais, configurando assim, norma processual mista/penal, devendo incidir nos processos em andamento iniciados anteriormente à vigência do art. 28-A do Código de Processo Penal.

Referências

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A colaboração premiada: meio de prova, meio de obtenção de prova ou um novo modelo de justiça penal não epistêmica? In: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Colaboração premiada. [S.l: s.n.], 2018.

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 20 fev. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 337. 09 de maio de 2007. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2012_28_capSumula337.pdf. Acesso em: 14 maio 2020.

BRASIL. Resolução nº 181, de 07 de agosto de 2017. Dispõe sobre instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público. Disponível em: <https://www.cnmp. mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-181-1.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2020.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADPF 347. Relator Min. Marco Aurélio, 09 de setembro de 2015. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ADPF%24%2ESCLA%2E+E+347%2ENUME%2E%29+OU+%28ADPF%2EACMS%2E+ADJ2+347%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/nh82k29. Acesso em: 14 maio 2020.

BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal.Disponível em:  <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm>. Acesso em: 06 mar. 2020.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 21. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015.

CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Um panorama sobre o Acordo de Não Persecução Penal (art. 18 da Resolução nº 181/17-CNMP, com as alterações da Resolução nº 183/18-CNMP). In: CUNHA, Rogério Sanches; BARROS, Francisco Dirceu; SOUZA, Renee do Ó; CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira (coord.). Acordo de Não Persecução Penal: Resolução 181/2017 do CNMP com as alterações feitas pela Res. 183/2018. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 19-45.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Não adianta punir os ricos para equilibrar a balança. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2010-jan-10/entrevista-jacinto-coutinho-especialista-processo-penal>. Acesso em: 02 mar. 2020.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 2. ed. Salvador: JusPodivm 2014.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

LOPES JUNIOR, Aury; JOSITA, Higyna. Questões polêmicas do acordo de não persecução penal. Conjur, 06 mar. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoes-polemicas-acordo-nao-persecucao-penal>. Acesso em: 07 mar. 2020.

PELUSO, Vinicius de Toledo Piza. A conjugação de leis penais sob a ótica constitucional. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 88, p. 143-162, 2011. São Paulo – SP.

SOUSA, Marllon. Plea Bargaining no Brasil. Savador: JusPodivm, 2019.

VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de; MOELLER, Uriel. Acordos no Processo Penal Alemão: descrição do Avanço da Barganha da Informalidade à Regulamentação Normativa. Boletín Mexicano de Derecho Comparado, v. 49, n. 147, p. 13-33, set./dez. 2016. Cidade do México – México.

VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de; CAMPPARELLI, Bruna. Barganha no Processo Penal Italiano: análise crítica do Patteggiamento e das alternativas procedimentais na Justiça Criminal. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, v. 15, p. 435-453, jan./jun. 2015. Rio de Janeiro – RJ.


Notas de rodapé

([1]) Art. 2o A lei processual penal aplicar-se-á, desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.


Pedro Faraco Neto

Doutor em função social do Direito pela FADISP e mestre em Direito pelo CESUMAR. Especialista em Direito e Processo Penal pela UEL. Graduado em Direito pela UEL. Professor de graduação e pós-graduação. Advogado criminalista.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8245-019X;

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0176886451257963.

pedrofaraconeto@hotmail.com

Vinicius Basso Lopes

Pós-Graduando em Direito e Processo Penal pelo IDCC. Graduando em Direito pela Faculdade Catuaí. Estagiário de advocacia;

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2462-055X;

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4904815698109837

vinibasso98@hotmail.com


Recebido em: 15.03.2020

Aprovado em: 02.05.2020

Versão final: 14.05.2020 


 




 




 




 




 




Colaborações premiadas: uma guinada rumo à legalidade

Resumo: O artigo analisa as mudanças legislativas da chamada Lei Anticrime (Lei 13.964/2019), que impactaram o regime dos acordos de colaboração premiada, apresentando uma análise crítica sobre o modelo de ampla negociação avistado na aplicação cotidiana do instituto, em especial no âmbito da Operação Lava Jato.

Palavras-chave: Processo Penal. Execução da Pena. Crime Organizado. Colaboração Premiada.

Abstract: The article discusses the enactment of the Anticrime Law (Law 13.964/2019) and its impact over the state’s evidence deal legal regime, offering a critical analysis of the broader-based bargaining agreement as seen on regular basis, specially in the context of the Car Wash Operation.

Keywords:  Criminal Procedure. Prison Sentence. Organized Crime. State's Evidence Deal.

Data: 31/05/2020
Autor: Felício Nogueira Costa

Colaborações premiadas: uma guinada rumo à legalidade

Em fevereiro de 2019, o Ministro da Segurança Pública e da Justiça, Sérgio Moro, apresentou ao Legislativo seu Pacote Anticrime, projeto de lei proposto para alteração de diversos dispositivos penais e processuais penais, visando ao combate à corrupção, ao crime organizado e aos crimes praticados com grave violência à pessoa. O trâmite legislativo da proposta, contudo, resultou em considerável transformação das disposições inicialmente formuladas. Exemplo disso foi a iniciativa da Câmara dos Deputados de acrescer ao projeto um novo conjunto de normas sobre a colaboração premiada, temática ausente na proposta inicial. Tal inovação legislativa alterou o regime jurídico das colaborações previsto na Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013)([1]), impactando nos limites de negociação da pena atenuada a ser aplicada ao colaborador, tema que será abordado com destaque no presente artigo.

De início, uma análise sistemática da promulgada Lei 13.964/2019 permite visualizar alterações em três campos, quais sejam: (i) proteção ao direito de defesa do delatado; (ii) aprimoramento do procedimento voltado à colaboração; e (iii) delimitação do espectro de negociação entre os celebrantes do acordo. No primeiro tema, o delatado tem assegurado o direito de falar no processo após o delator, bem como a garantia de que a palavra do colaborador não será o bastante para a imposição de medidas cautelares ou para o recebimento de denúncia. Em relação ao segundo ponto destacado, o procedimento da colaboração premiada, notável foi o influxo provindo da Orientação Conjunta 1/2018 do Ministério Público Federal, que estabeleceu parâmetros para elaboração e assinatura de acordos de colaboração premiada. O regulamento ministerial inspirou, em parte, as deliberações do Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados([2]) e resultou em regime procedimental mais bem estruturado para a tramitação de propostas de acordo.

O presente artigo tem como enfoque o terceiro tópico listado: a delimitação dos benefícios a serem negociados pelos celebrantes do acordo de colaboração premiada, aspecto que determina as balizas da amenização da pena do criminoso arrependido. Nessa temática, o Legislativo deixou de adotar o regime da citada Orientação ministerial, dando sinais evidentes de que não entende adequado o modelo de pactuação de benefícios até aqui empregado pelo Ministério Público Federal, cristalizado em sua norma interna e particularmente inspirado nas colaborações premiadas firmadas na esfera da Operação Lava Jato.([3])

No âmbito dessa operação, os acordos costumavam aplicar ao delator uma chamada “pena máxima unificada” que, segundo a já citada Orientação Conjunta, é negociada pelas partes visando a determinação de um “patamar máximo unificado de pena decorrente do somatório das sentenças condenatórias, o qual, ao ser atingido, levará à suspensão das demais ações e investigações em curso e seus respectivos prazos prescricionais”.([4]) Segundo a fórmula exposta, a título de exemplo, o doleiro colaborador Alberto Youssef contratou a pena máxima de 30 anos de prisão; outros conhecidos personagens dos noticiários brasileiros, como o antigo diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e o ex-senador Delcídio do Amaral, acordaram penas máximas de 20 e 15 anos, respectivamente.

Ocorre que, nesse modelo de acordo, a pena corpórea máxima estipulada não era cumprida pelo colaborador em sua inteireza,([5]) pois havia cláusulas indicando que apenas uma parte da pena inscrita em acordo deveria ser efetivamente executada. Essa reduzida fração de reprimenda rotineiramente era cumprida nos chamados regimes diferenciados,([6]) caracterizados pela prisão domiciliar, em que é abrandada a privação à liberdade.

É possível dizer que a disciplina da colaboração premiada contida na Lei Anticrime representou evidente repulsa ao modelo até então predominante de penas máximas e regimes diferenciados. A rejeição ao modelo observado, na prática, se deu especialmente em razão da norma do novo inciso II do §7º do art. 4º da Lei das Organizações Criminosa, que passa a determinar que só serão homologados os acordos cujos benefícios pactuados se adequem àqueles previstos em Lei.([7]) Em oposição ao superficial juízo de homologação até então avistado nas cortes pátrias, deve o magistrado, daqui em diante, declarar nulas as cláusulas que pactuem regime inicial de pena e sua progressão fora dos parâmetros da Lei Penal, repelida a pactuação que desfigure os regimes de cumprimento de pena privativa de liberdade.

Cabe dizer que a Lei das Organizações Criminosas originalmente não previu a possibilidade de que fossem firmados acordos versando sobre “pena máxima unificada” e regimes diferenciados, muito embora fossem eles corriqueiros no contexto jurídico nacional e aceitos principalmente pela Justiça Federal do Paraná, bem como, na maior parte dos casos, também pelo Supremo Tribunal Federal. Apesar da falta de previsão legal, formou-se uma corrente de juristas, que afirmava a possibilidade de ampla negociação entre celebrante de acordo e o colaborador; dentre eles se encontrava, por exemplo, Andrey Borges de Mendonça, segundo o qual a legalidade das penas não pode militar em prejuízo do acusado colaborador, devendo prevalecer a autonomia da vontade na pactuação do acordo.([8])

Em oposição a essa maneira de pensar, posta-se como posição mais razoável a adotada pela corrente oposta, segundo a qual apenas se pode aplicar ao delator os benefícios com previsão legal. Isso porque a colaboração premiada é meio de obtenção de provas, que deve ser empregado de maneira excepcional e no âmbito da criminalidade organizada, de tal forma que a expansão extralegal dos benefícios passíveis de negociação configuraria um desproporcional incentivo em matéria de direito premial. Não se pode esquecer a natureza pública do Direito Penal, o que fez Alamiro Velludo Salvador Netto afirmar, em recente artigo publicado nesse mesmo Boletim, que a “questão passa pela reafirmação da execução penal como um ambiente de cogência e legalidade, não havendo espaço possível para a elaboração particular de um estatuto específico para o caso concreto”.([9])

Antes mesmo da alteração normativa decorrente da promulgação da Lei Anticrime, era possível afirmar que a contratação de penas máximas não encontrava abrigo nas leis brasileiras, especialmente porque a Constituição da República estipula que não há pena sem prévia cominação legal. Tal atributo se exige de qualquer sanção penal, seja ela rígida ou abrandada.

A partir de agora, a Lei das Organizações Criminosas não deixa dúvidas de que apenas os prêmios com previsão legal podem ser dados aos colaboradores da justiça. Sai, então, de campo a possibilidade de penas máximas pré-definidas, pois a Lei citada prevê apenas a pactuação de uma redução percentual de pena, fração limitada a dois terços da pena cheia, benefício que costumeiramente incide na sentença condenatória. A diferença entre um e outro modelo é que, no primeiro deles, Ministério Público e Polícia tinham, na prática, um maior espectro para barganha da pena do delator.

Isso não significa que os acordos de colaboração premiada deixarão de ser atrativos a quem opte pela delação, pois o Ministério Público segue podendo oferecer o benefício máximo estipulado em lei, o não oferecimento de denúncia. O também chamado pacto de imunidade, que segue sendo excepcional - em ambos os sentidos da palavra -, foi negociado nos conhecidos acordos de colaboração firmados entre a Procuradoria-Geral da República e executivos da empresa J&F, dentre eles o empresário Joesley Batista.([10])

A alteração do regime das colaborações premiadas não era o intuito buscado pelo Pacote Anticrime inicialmente proposto. No entanto, parece claro que, nessa seara, a Lei ao fim promulgada teve como tônica o esforço de trazer o instituto de direito premial de volta ao prumo da legalidade[11], rejeitando o panorama de negociação imoderada da pena do colaborador premiado. O diploma normativo põe fim, portanto, a um interregno de anos nos quais se negociou acordos de colaboração generosos, mas, por vezes, sem previsão legal.


Notas de rodapé

[1]) A colaboração premiada pode ser definida como “um acordo realizado entre acusador e defesa, visando ao esvaziamento da resistência do réu e à sua conformidade com a acusação, com o objetivo de facilitar a persecução penal em troca de benefícios ao colaborador, reduzindo as consequências sancionatórias à sua conduta delitiva” (VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 62). A Lei 12.850/2013 é, atualmente, a principal norma a disciplinar a colaboração premiada, sem prejuízo doutros regimes legais, a exemplo daqueles previstos nas Leis dos Crimes Hediondos (8.072/90) e de Proteção a Vítimas e Testemunhas (9.807/1999).

([2]) O Relatório Final do Grupo de Trabalho – Legislação Penal e Processual Penal, instituído para analisar os Projetos de Lei 10.372/2018, 10.373/2018, e 882/2019, da Câmara dos Deputados, no tema colaboração premiada, retrata a preocupação do Legislativo com “lacunas que demandam urgente correção para que se evitem eventuais abusos” (íntegra disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/legislacao-penal-e-processual-penal/documentos/outros-documentos/Relatorio%20Final%20-%20GT%20Penal>. Acesso em: 9 abr. 2020).

([3]) Operação conduzida pela Polícia Federal e Ministério Público Federal originariamente voltada à apuração de delitos de corrupção e lavagem de dinheiro no âmbito da estatal Petrobras, iniciada no estado do Paraná, no ano de 2014 (disponível em: <http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/lava-jato/entenda-o-caso>. Acesso em: 9 abr. 2020).

([4]) Título I, Capítulo IV, Item 26.1, alínea “a”, da Orientação Conjunta 1/2018.

([5]) Conforme previsto no Título I, Capítulo IV, Item 26.1, alínea “b”, da Orientação Conjunta 1/2018, que permite a negociação da “pena que será efetivamente cumprida pela parte em regimes a serem definidos no acordo”. Vide, como exemplo, a cláusula 5ª, III, do acordo de colaboração premiada de Alberto Youssef, que estipula o cumprimento de até cinco anos de pena privativa de liberdade (disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2015/01/acordodela%C3%A7%C3%A3oyoussef.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2020).

([6])  Tais regimes são divididos em subcategorias análogas aos regimes de pena previstos em Lei, de tal forma que, costumeiramente, no chamado regime fechado diferenciado, o colaborador fica recluso em sua residência; no semiaberto diferenciado, pode trabalhar durante o dia, recolhendo-se à sua residência à noite e nos finais de semana; no regime aberto, sua liberdade somente é limitada no período noturno.

([7]) Lei 12.850: “Art. 4º (...) § 7º Realizado o acordo na forma do § 6º deste artigo, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: (...) II - adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§ 4º e 5º deste artigo, sendo nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do art. 33 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo § 5º deste artigo; (...)”

([8]) MENDONÇA, Andrey Borges de Mendonça. Os benefícios possíveis na colaboração premiada: entre a legalidade e a autonomia da vontade. In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; MOURA, Maria Thereza de Assis (Coord). Colaboração Premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. pp. 53-104.

([9]) SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Execução penal: ambiente de cogência ou espaço de dispositividade? Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 324, pp. 4-6, nov. 2019.

[10] Cuja delação teve grandes impactos na política nacional, por atingir diversos ex-Presidentes da República.

[11] Apesar da inserção de norma que permite a negociação quanto à proposição de cautelares (art. 3º-B, §3º, da Lei 12.850/2013, em sua nova redação). Destaque-se, que o dispositivo trata da negociação da mera proposição da medida, não a efetiva imposição de cautelares, que segue sendo matéria a ser decidida por magistrado.


Felício Nogueira Costa Mestre em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da USP. Advogado. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3643728591979504 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4635-1239 felicio.nogueira@gmail.com Recebido em: 15.03.2020 Aprovado em: 31.03.2020 Versão final: 17.04.2020

Felício Nogueira Costa

Mestre em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da USP. Advogado.

Latteshttp://lattes.cnpq.br/3643728591979504

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4635-1239

felicio.nogueira@gmail.com

Recebido em: 15.03.2020

Aprovado em: 31.03.2020

Versão final: 17.04.2020

Retroatividade da lei que alterou a natureza da ação penal nos crimes de estelionato

Resumo: A Lei Anticrime (Lei 13.964, de 2019) alterou a natureza da ação penal no crime de estelionato. O estelionato deixou de ser crime de ação penal pública incondicionada para ser crime de ação penal pública condicionada à representação da vítima, exceto quando esta for a Administração Pública, direta ou indireta, criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental ou maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz. Discute-se se essa norma deve retroagir para beneficiar o réu. Neste artigo, após uma análise abrangente da temática lei processual penal no tempo, desde seu nascedouro até o fim de sua vigência, concluímos que a Lei Anticrime, na parte que alterou a natureza jurídica da ação penal no estelionato, é norma híbrida, devendo retroagir, inclusive para ser aplicada aos processos atualmente em curso, aplicando-se, por analogia, o art. 91 da Lei 9.099/95.

Palavras-Chave: ação penal, estelionato, norma híbrida, retroatividade.

Abstract: The Anticrime Law (Law 13.964, of 2019) changed the nature of the criminal action in the crime of fraud. The fraud has ceased to be a crime of unconditional public criminal action to be a crime of public criminal action conditioned to the representation of the victim, except when this is the Public Administration, direct or indirect, child or adolescent, person with mental disability or over 70 (seventy ) years of age or incapacitated. It is debated whether that north should retroact to benefit the defendant. In this article, after a comprehensive analysis of the thematic criminal procedural law in time, from its birth to the end of its validity, we conclude that the Anticrime Law, in the part that changed the legal nature of the criminal action in the fraud, is a hybrid norm, and must be retroacted, even to be applied to the processes currently underway, applying, by analogy, art. 91 of Law No. 9,099 / 95.

Keywords: criminal action, fraud, hybrid rule, retroactivity.

Data: 31/05/2020
Autor: Matheus Tauan Volpi e Murilo Alan Volpi

1. Introdução

A Lei Anticrime (Lei 13.964 de 2019) alterou a natureza jurídica do crime de estelionato. O estelionato deixou de ser crime de ação penal pública incondicionada para ser crime de ação penal pública condicionada à representação da vítima, exceto quando esta for a Administração Pública, direta ou indireta, criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental ou maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.

Muito se tem discutido sobre a aplicação da lei aos crimes de estelionato praticados antes do início da sua vigência. Dessa forma, este artigo pretende fazer uma análise abrangente da temática lei processual penal no tempo, desde seu nascedouro até o fim de sua vigência, para analisar a retroatividade ou não da lei que alterou a natureza jurídica da ação penal no crime de estelionato.

Ao fim, concluímos que a lei que alterou a natureza jurídica da ação penal no estelionato é uma norma híbrida, devendo retroagir, inclusive para ser aplicada aos processos atualmente em curso. Para operacionalizar essa aplicação, deve ser aplicado, por analogia, o art. 91 da Lei 9.099/95.

2. Início da existência de uma lei

O processo legislativo é marcado por várias e complexas fases (MENDES; BRANCO; COELHO, 2010, p. 1003). Contudo, a partir de um momento específico, a sanção presidencial ou a derrubada do veto pelo Poder Legislativo, pode-se afirmar que uma lei existe. Desde esse instante, o “projeto de lei” deixa de existir e emerge em seu lugar a “lei”. É isso que se extrai da análise do art. 66, §7º, da CF, conforme será explicado abaixo.

O processo legislativo se desenvolve em três grandes etapas: fase de iniciativa, fase constitutiva e fase complementar. A fase de iniciativa é a etapa deflagradora de um procedimento, que poderá culminar ou não na edição de uma lei (SILVA, 2014, Pág. 528). A iniciativa pode ser concorrente, privativa ou compartilhada. A iniciativa é concorrente quando a atribuição de deflagrar o processo legislativo é atribuída a mais de um órgão ou pessoa. Constitui a regra geral.

Por sua vez, a iniciativa privativa é aquela atribuída, sob pena de vício formal de iniciativa, a determinadas pessoas ou órgãos. Possui competência privativa, por exemplo, o Presidente da República (art. 61, §1º, da CF).

Por fim, há hipóteses de iniciativa compartilhada, aquela que é partilhada entre dois sujeitos ou órgãos. Dá-se entre Procurador Geral da República e Presidente da República, em projeto de lei complementar de organização do Ministério Público da União (arts. art. 61, §1º, II, “d”, e 128, §5º, da CF), e entre o Procurador Geral de Justiça e Governador, no âmbito dos Estados, pela regra da simetria.

Superada a fase da iniciativa, avança-se para a fase constitutiva, em que o projeto de lei deixa de existir e a lei surge. A fase constitutiva é aquela em que se conjugam as vontades do Poder Legislativo e do Poder Executivo. É composta pela deliberação parlamentar, com discussão e aprovação nas casas legislativas, e pela deliberação executiva, com a sanção ou veto do projeto de lei. Inexistindo o veto pocket no ordenamento brasileiro, caso o Presidente da Republica vete o projeto de lei, este volta para a análise pelo Legislativo, encerrando-se a fase constitutiva (LENZA, 2019, p. 658).

Finda a fase constitutiva, inicia-se a fase complementar, fase final do processo legislativo, que compreende a promulgação e a publicação da lei. Pela promulgação, tem-se um atestado de que a lei existe e é válida, com a certificação do seu nascimento. Em seguida, opera-se a publicação da lei, realizada no Diário Oficial, e por meio da qual se leva ao conhecimento de todos o conteúdo da norma.

Nesse processo, o art. 66, §7º, da CF é claro ao apontar o momento de nascimento da lei. Com a sanção ou a derrubada do veto, deixa de existir o projeto e surge a lei. Isso se depreende porque o dispositivo é expresso ao afirmar que “a lei será promulgada”, e não “o projeto de lei”.

As fases do processo legislativo estão resumidas no quadro abaixo.

Quadro 1 – Fases do Processo Legislativo

3. Lei existente e lei em vigor 

A lei existe desde a sanção ou derrubada do veto (art. 66, §7º, da CF). Contudo, nem toda lei que existe está em vigor. A lei pode existir, mas ainda não ter entrado em vigor. Entrar em vigor é produzir efeitos jurídicos. Vigor é aptidão da norma jurídica em produzir seus efeitos jurídicos. Vigência, por outro lado, é o período em que essa norma produz efeitos, isto é, em que ela permanece em vigor.

Nem toda lei que existe está em vigor. Após a sanção ou derrubada do veto e, consequentemente, o nascimento da lei, ela ainda precisa ser promulgada e publicada. Ainda assim, em inúmeras hipóteses a lei não entra em vigor na data exata da sua publicação. Graficamente:

Quadro 2 – Diferença entre vigor e vigência

4. Início da vigência de uma lei 

Para se reconhecer o início da vigência de uma lei, é indispensável recorrer à Lei de Introdução às normas do direito brasileiro. As regras que disciplinam a vigência de uma lei, isto é, que esclarecem quando uma lei produz efeitos, estão na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). A LINB é uma lex legum. É uma lei sobre leis. Trata-se de norma de sobredireito. Uma norma que tem como objetivo regulamentar outras normas.

A LINDB prevê que uma lei pode trazer ou não a cláusula de vigência. Cláusula de vigência é a que indica a data a partir de quando uma lei entra em vigor. Existindo cláusula de vigência, a lei entra em vigor na data expressamente apontada na norma, a qual muitas vezes é a data da publicação. Contudo, na ausência dessa cláusula, a lei começa a vigorar em todo o país 45 dias depois de oficialmente publicada. Nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, inicia-se três meses depois de oficialmente publicada. O período entra a publicação da lei e sua entrada em vigor, quando existente, é chamado de vacatio legis.

5. Vacatio Legis

Vacatio legis é o período que medeia a publicação da lei e a sua entrada em vigor. Esse período tem como objetivo fazer com que os futuros destinatários da lei a conheçam e se preparem para bem cumpri-la quando da sua entrada em vigor.

A lei durante a vacatio legis ainda não está em vigor e não produz qualquer efeito, não podendo ser aplicada ao réu ainda que seja uma lei penal benéfica. Durante esse período, a lei não produz qualquer efeito jurídico.

6. Término da vigência de uma norma

Uma vez em vigor, a lei terá vigência até que outra a modifique ou a revogue. Vige o chamado princípio da continuidade das leis (art. 2º da LINDB). A revogação da norma pode se dar de diversas formas: expressa, tácita, total ou parcial.

A revogação, quanto à extensão, pode ser total ou parcial. A revogação total, também chamada de ab-rogação, ocorre quando uma lei revoga integralmente a outra. Por outro lado, a revogação parcial, também chamada de derrogação, dá-se quando uma lei revoga apenas parcialmente a outra.

Por outro lado, a revogação, quanto ao modo, pode ser expressa ou tácita. A revogação expressa (ou por via direta) ocorre quando a lei nova expressamente indica qual norma está revogando. Trata-se de uma regra imposta pelo art. 9º da Lei Complementar 95/1998, mas que nem sempre é observada. Por sua vez, a revogação tácita (ou por via obliqua) dá-se quando a lei posterior é incompatível com a lei anterior, sem haver previsão expressa de quais dispositivos foram revogados. Graficamente:

Quadro 3 – Revogação quanto à extensão


 

6. Irretroatividade e retroatividade

Uma vez em vigor, a lei se aplica, como regra, para o futuro. Em quase todos os ordenamentos jurídicos, tem-se a regra da irretroatividade. Vige a máxima de que as leis são feitas para o futuro e não para o passado. Normalmente, uma nova lei é editada quando a lei anterior não atende mais aos reclamos sociais. Nesses casos, a lei nova passa a ser aplicada para o futuro e não para abarcar fatos do passado. O direito regula comportamentos humanos, sendo pouco pertinente a busca por ações pretéritas.

Só excepcionalmente, contudo, a depender do conteúdo da norma, é que poderá existir a retroatividade. É o que ocorre, por exemplo, no Direito Penal em relação às normas que beneficiem o agente (art. 5º, XL, da CF). Nesse caso, por inúmeros motivos que transbordam o objeto deste trabalho, a norma retroage para atingir fatos passados, quando beneficiar o agente.

7. Irretroatividade da Lei Processual Penal

A lei processual penal situa-se na regra geral e não retroage, como regra, para beneficiar o réu. Tratando-se de normas puramente processuais, não haverá retroatividade mesmo que benéfica ao acusado. Em matéria processual penal vige o princípio do tempus regit actum (o tempo rege a forma como o ato deve ser praticado). Nos termos do art. 2º do CPP, “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.

Em outros termos, o art. 2º prevê que, caso sobrevenha nova lei, os atos processuais já realizados no processo são validos normalmente. Contudo, os próximos atos serão praticados observando a nova lei editada. Não existe, portanto, como regra, a retroatividade (BADARÓ, 2016, p. 102). Caso contrário, o legislador teria dito que os atos anteriores eram inválidos. O que existe é a aplicação imediata.

Há grande diferença entre normas processuais penais e normas penais no conflito de leis no tempo conforme sintetizado no quadro abaixo.

Quadro 5 – Diferença entre normas penais e processuais penais no conflito de leis no tempo


Registre-se que, quando já existe um processo em andamento no momento de surgimento de uma nova lei, há algumas dificuldades. É preciso saber se esse processo continua a ser regidos pela lei velha até o fim ou se passa a ser regido pela lei nova. Para resolver esse problema, surgiram três sistemas: sistema da unidade processual, sistema das fases processuais e sistema de isolamento dos atos processuais.

Pelo sistema da unidade processual, uma lei única deveria reger todo o processo. Dessa forma, se ele iniciou em uma lei deve terminar nela, mesmo que posteriormente revogada. A lei antiga seria ultra ativa.

Segundo o sistema das fases processuais, separam-se as fases processuais (postulatória, ordinatória, instrutória, decisória, recursal) e uma lei deve ser aplicada integralmente à fase. Encerada a fase processual, é possível a aplicação da lei nova para a fase seguinte.

Por fim, seguindo-se o sistema do isolamento dos atos processuais, admite-se que cada ato processual seja disciplinado por uma lei. Dessa forma, a lei nova pode ser aplicada desde logo. Esse é o sistema adotado pelo ordenamento brasileiro (art. 2º do CPP). Ressalva-se, de toda forma, que, estando o prazo processual em curso, ele continua pela lei antiga se o prazo na lei nova for menor.

8. Normas híbridas ou heterotrópicas

A complexidade do tema aumenta em razão da existência de normas heterotrópicas e de normas híbridas. Normas heterotrópicas são aquelas que estão em local diverso do habitual (AVENA, 2019, p. 51). São, por exemplo, normas com conteúdo penal inseridas no CPP ou normas processuais existentes no CP. Nesse caso, independentemente de onde estejam, serão regidas conforme sua natureza. Se com conteúdo penal, poderão retroagir para beneficiar o réu. Se de conteúdo processual, não (tempus regit actum).

Já as normas híbridas ou mistas são aquelas que possuem conteúdo de direito material e de direito processual. Embora normalmente tratadas no contexto de processo penal, tem forte conteúdo de direito penal. A elas aplicam-se as regras de direito penal sobre lei penal no tempo, isto é, poderão ser retroativas (art. 5º, XL, da CF). Existe divergências sobre o conceito de normas mistas ou normas processuais materiais. Há corrente restritiva e corrente ampliativa.

Segundo a corrente restritiva, normas híbridas são aquelas que, embora disciplinadas em diplomas processuais, regulam o conteúdo da pretensão punitiva. É o caso, por exemplo, das normas que disciplinam o direito de queixa, representação, prescrição, decadência, perdão, perempção etc. (BADARÓ, 2016, p. 103).

Já a corrente ampliativa, por sua vez, preconiza que são normas híbridas toda e qualquer norma que discipline matéria que tenha como conteúdo assunto que seja direito ou garantia constitucional do cidadão. Abrange, por exemplo, normas que disciplinam competência, meios de prova, eficácia probatória, modalidades de execução da pena, graus de recurso, prisão provisória, flagrante etc. (BADARÓ, 2016, p. 103).

Com razão, a corrente restritiva recebe maior prestígio, exceto quanto às normas que disponham sobre prisão cautelar (art. 2º da Lei de Introdução ao Processo Penal), em relação às quais não há consenso quanto à natureza jurídica.

9. Natureza da norma que alterou a Ação Penal no crime de estelionato

Norma que altera a natureza da ação penal tem evidente natureza híbrida, influindo fortemente no direito de punir. Portanto, a elas aplicam-se as regras de direito penal sobre lei penal no tempo, isto é, poderão ser retroativas (art. 5º, XL, da CF).

Nesse sentido, analisando temática diversa, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que norma que altera a natureza da ação penal não retroage, salvo para beneficiar o réu. (STJ. 6ª Turma. HC 182714-RJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19/11/2012).

Nesse contexto, tratando-se norma híbrida, não se mostra adequado fundamento de que o oferecimento da denúncia tornaria precluso o ato (art. 102 do CP), fazendo que não incida a nova lei quanto à necessidade de representação. Esse argumento apenas seria válido se estivéssemos diante de uma lei processual pura. Por se tratar de norma híbrida, inadequado mostra-se esse entendimento.

A norma, portanto, deve retroagir aos processos em curso. A fim de operacionalizar a colheita da representação, diante da lacuna normativa sobre a maneira de se proceder, a solução mais adequada é recorrer ao emprego da analogia conforme permite o art. 3º do CPP.

A analogia é forma de integração do ordenamento jurídico, aplicável na ausência de normas disciplinando o assunto. Fundamenta-se na ideia de, onde há a mesma razão, aplica-se o mesmo direito (ubi eadem ratio ibi idem jus). Exige, para sua aplicação, a falta de uma disposição normativa para solução do caso e igualdade de razões entre o caso a decidir e um caso regulado.

Em relação à norma que alterou a natureza da ação penal no estelionato, diante da lacuna normativa sobre a maneira de se proceder, a solução mais adequada é recorrer ao emprego da analogia, com a aplicação do art. 91 da Lei 9.099/95, intimando-se o ofendido ou seu representante legal para oferecer representação no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.

10. Conclusão

Após uma análise abrangente da temática lei processual penal no tempo, desde seu nascedouro até o fim de sua vigência, concluímos que a lei que alterou a natureza jurídica da ação penal no estelionato é uma norma híbrida, devendo retroagir, inclusive para ser aplicada aos processos atualmente em curso. Para operacionalizar essa aplicação, deve ser aplicado, por analogia, o art. 91 da Lei 9.099/95.

AVENA, Norberto. Processo Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal : parte geral v. 1. 25. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

GRAU, Eros Roberto. Direito, conceito e normas jurídicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 23. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120) – vol. 1. 13. ed. São Paulo: MÉTODO, 2019.

MENDES, GILMAR FERREIRA; BRANCO, PAULO GUSTAVO GONET; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 38. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.


Notas de rodapé

Matheus Tauan Volpi

Mestre e Especialista em Direito Tributário pela USP. Professor de Direito Penal e Processo Penal na UNIP-São José do Rio Preto/SP. Analista Jurídico do Ministério Público (MP/SP)

Lattes: http://lattes.cnpq.br/0111272040274580

Orcid:

volpi.mt@gmail.com

Murilo Alan Volpi

Mestre em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie e Especialista em Direito Tributário pela USP. Professor em cursos preparatórios para concurso. Promotor de Justiça (MP/PR).

Lattes: < http://lattes.cnpq.br/1183964859259783>.

Orcid:

vmvolpi@gmail.com


Recebido em: 15.03.2020

Aprovado em: 08.05.2020

Versão final: 14.05.2020 

Organizações Criminosas e Lei anticrime: a inconstitucionalidade da cassação genérica de direitos na execução penal (art. 2º, § 9º, da Lei 12.850/13)

Resumo: O objetivo desse breve ensaio é apresentar, de um lado, uma hipótese explicativa e, de outro, argumentos jurídicos pela inconstitucionalidade e inadequação político-criminal em referência ao novo art. 2º, § 9º, da Lei 12.850/2013, dispositivo de redação confusa e que constitui provavelmente a alteração mais gravosa e impactante, para a execução penal dentre todas as promovidas pela Lei 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”). A hipótese explicativa seria a reiteração de adesão ideológica à versão mais contestada dentre as teorias da dissuasão, bem como a utilização de uma maleável teoria de execução penal como ponto fulcral para o recrudescimento dos institutos criminais promovido pela Lei 13.964/2019. Os fundamentos para arguição de inconstitucionalidade seriam, principalmente, a violação aos princípios da individualização, da taxatividade e da proporcionalidade.

Palavras-chave: Pacote anticrime. Progressão de regime. Lei de Organização Criminosa. Execução da pena. Inconstitucionalidade.

Abstract: The aim of this brief study is to present, on the one hand, an explanatory hypothesis, and on the other, legal arguments for the unconstitutionality and the criminal policy inadequacy of the new article 2, § 9, of Law 12.850/13, which contains confusing wording and probably constitutes the most serious change in the theme of prisoners’ rights, among all those promoted by Law 13.964/2019 (“Anticrime brazilian Bill”). The explanatory hypothesis would be the reiteration of ideological adherence to the most contested version among the theories of deterrence, as well as the use of a malleable theory of prison law as a focal point for the upsurge of criminal institutes promoted by the Law 13.964/2019. The grounds for claiming unconstitutionality would be, mainly, the violation of the principles of individualization, taxativity and proportionality.

Keywords: Prison law; parole. Criminal organizations. Unconstitutionality.

Data: 31/05/2020
Autor: André Ribeiro Giamberardino, Luis Renan Coletti e Paula Martins Caçola

O objetivo desse breve ensaio é apresentar, de um lado, uma hipótese explicativa e, de outro, argumentos jurídicos pela inconstitucionalidade e inadequação político-criminal em referência ao novo art. 2º, § 9º, da Lei 12.850/13, provavelmente a alteração mais gravosa e impactante, para a execução penal, dentre todas as promovidas pela Lei 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”).

O parágrafo discretamente incluído, distante das alterações na Lei de Execução Penal e no Código Penal, dispõe que: “O condenado expressamente em sentença por integrar organização criminosa ou por crime praticado por meio de organização criminosa não poderá progredir de regime de cumprimento de pena ou obter livramento condicional ou outros benefícios prisionais se houver elementos probatórios que indiquem a manutenção do vínculo associativo”.

A hipótese explicativa para se compreender que tipo de crença se coloca por detrás de medidas como essa é facilitada pela notícia de que os departamentos penitenciários receberiam cartazes e seriam orientados a pintar a frase “diga não à facção” nas paredes das unidades prisionais.([1])

A crença em questão é aquela velha conhecida do sistema de justiça criminal no Brasil e no mundo: a de que o comportamento humano reage racionalmente a expectativas de custos e benefícios, determinando suas ações a partir desse tipo de cálculo. Elevar os custos e/ou reduzir os ganhos estimularia alterações de comportamento, o que potencialmente conduziria à prevenção de crimes e, no caso específico em tela, à decisão de “não aderir” às facções no interior do sistema penitenciário.

As teorias da “deterrence” ou prevenção geral negativa remetem ao utilitarismo de Beccaria (1764) e Bentham (1789), tendo ganho novo fôlego com a abordagem de Gary Becker dois séculos depois (1968). Há debates complexos e pesquisas empíricas longamente conduzidas nos últimos cinquenta anos, com resultados controversos e que podem ser consultados em revisões bibliográficas como a de Nagin (2013).

Nagin (2013) sustenta fortemente, como já havia feito Beccaria (1764), que há evidências de maior efetividade no efeito preventivo quando o foco recai sobre a certeza da resposta, não havendo argumentos consistentes para se associar efeitos preventivos ao incremento da severidade, inclusive dentro do complexo debate sobre os efeitos dissuasórios da pena de morte. A elevação de custos que guarda algum potencial de efetividade, se é que guarda, estaria assim no aumento da percepção da probabilidade de sanção, qualquer que seja, não servindo como justificativa para a elevação dos parâmetros abstratos de severidade: atribuição de natureza hedionda, requisitos para progressão de regime, regras sobre regime de cumprimento. Ou seja: são os próprios estudos sobre o efeito intimidatório das leis penais, que rejeitam a asserção de que o incremento na severidade tem efetividade, a premissa que parece estar na base de praticamente todas as alterações promovidas pela Lei 13.964/2019.

No Brasil, com efeito, a crença na deterrence vem desacompanhada de dados ou de qualquer estudo mais sério: é senso comum, doxa, referência genérica, ideológica, é aposta rasteira que olha mais para o apelo populista das medidas do que para a sua efetividade e suas consequências. Se o objetivo, afinal, é evitar que as facções prisionais continuem se alimentando ativamente da política estatal de superlotação carcerária e violação de direitos, é preciso compreender como funcionam tais dinâmicas.([2]) Qual efetividade se espera de uma nova hipótese legal de violação de direitos e de um conjunto de medidas destinados a agravar o quadro crônico de superlotação?

Em realidade, dentre as alterações legislativas promovidas pela Lei 13.964/2019, o recrudescimento dos institutos que envolvem a execução das penas privativas de liberdade se destaca pelo seu potencial impacto no sistema carcerário. A execução penal se tornou terreno fértil para a concretização do Pacote Anticrime: o silêncio que se estruturou diante da espantosa indeterminação sobre a natureza jurídica e conteúdo desta área deu azos à maleabilidade, à instabilidade e à precariedade de seus conceitos.([3])

No plano jurídico-constitucional, vedar a progressão de regime, o livramento condicional e “outros benefícios prisionais” se houver “elementos probatórios que indiquem a manutenção do vínculo associativo” com organização criminosa é previsão frágil tanto do ponto de vista dos requisitos que traz, como do prisma da consequência final.

São dois os requisitos para incidência do veto geral. Primeiramente, o reconhecimento expresso em sentença de que se trata de integrante de organização criminosa ou de que o crime foi praticado por meio de organização criminosa. Desde logo, em caso de pluralidade de condenações e unificação de penas, é ilegal cogitar ampliar a vedação às condenações nas quais não conste esse reconhecimento expresso.

Em segundo lugar, exige-se a existência de “elementos probatórios” que “indiquem a manutenção do vínculo associativo”. Parece haver aqui confusão conceitual, restando dúvidas acerca da natureza do elemento cognitivo apto a ensejar a vedação à progressão: afinal, trata-se de prova ou de indícios? De toda forma, a lei não explica como se produziriam os “elementos probatórios indicativos” da “manutenção do vínculo associativo”. Obviamente só há natureza de prova se houver contraditório e intervenção judicial, com respeito ao procedimento legal, nos casos de utilização de “informantes” ou interceptações telefônicas.

Mas haverá um procedimento de instrução em paralelo ao processo executório? Exigir-se-á a assinatura de um termo de compromisso de que a pessoa presa está saindo da organização? Quem assinaria, diante dos novos riscos decorrentes desse ato? Como se conferirá validade formal às técnicas ilegais usualmente utilizadas de interceptações telefônicas sem autorização judicial ou utilização de “informantes” em troca de benefícios, sem qualquer registro ou controle? Certamente, não poderá ser validado como “elemento probatório” mera declaração unilateral do agente público.

Olhando para a consequência final - a radical suspensão da possibilidade de progressão, livramento condicional ou quaisquer outros benefícios prisionais -, há argumentos consistentes pela incompatibilidade da regra legal com princípios constitucionais.

O primeiro óbice é o princípio da individualização da pena. A previsão legal contraria entendimento do Supremo Tribunal Federal, diversas vezes manifesto, contrário às previsões de hipóteses genéricas de vedação a progressão de regime (HC 82.959-7/SP, j. 23/2/2006), a liberdade provisória (HC 10.433-9/SP, j. 11/5/2012), a pena restritiva de direitos (HC 9.725-6/RS, j. 01/9/2010) ou a regime inicial distinto do fechado (HC 11.184-0/ES, J. 27/6/2012). Em todas as ocasiões, considerou-se haver violação à individualização da pena porque ela também está prevista na vinculação à fixação do regime, em cotejo às circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal, como entendeu o Ministro Relator Marco Aurélio, ao argumentar que a atenção à individualização da pena, prevista no art. 5º da Constituição Federal, deve também se aplicar à fase  de execução da pena, sendo inviável afastar a possibilidade de progressão do respectivo regime de cumprimento.

Em segundo lugar, o princípio da taxatividade. A redação confusa e truncada do artigo 2º, parágrafo 9º, da Lei 12.850/2013 traz 46 (quarenta e seis) palavras sem qualquer vírgula ou pontuação que as interliguem, causa incompreensões e evidencia inconsistências capazes de produzir grande insegurança jurídica. A expressão “condenado expressamente em sentença”, por exemplo, gera dúvidas se a disposição se aplicaria a sentenças com execução provisória, com pendência da interposição e julgamento de recursos. É certo que a vedação à progressão de regime e outros benefícios é punição das mais graves que a legislação penal brasileira preceitua, restando inadmissível que seja aplicada em caráter provisório, até que seja resolvido o caso penal. Além disso, em se tratando de “condenado”, é exigível, por evidência, o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, sob pena de violação direta do preceito constitucional do artigo 5º, inciso LVII, confirmado pelo STF no julgamento conjunto das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54.

Ainda, a nova previsão não delimita adequadamente o conceito de “crime praticado por meio de organização criminosa”, quando diferente do próprio crime de integrar organização criminosa (art. 2º, caput, da Lei 12.850/2013), tendo como consequência, assim, ainda maior indeterminação jurídica e ampliação do arbítrio na execução penal.

E, por fim, o dispositivo não esclarece o que seria “outros benefícios prisionais”, expressão cujo conceito é de todo inexistente na LEP, sendo evidente – mas é preciso dizer – que não inclui as obrigações de assistência previstas na LEP e todos os direitos não atingidos pela condenação (art. 3º e 41 da LEP).  Mas a vedação englobaria o desenvolvimento de estudo e trabalho no interior da unidade prisional, sua respectiva remição de pena, visitas, pátio de sol, autorizações de saída? A vagueza dos termos utilizados, no caso, inviabiliza por completo sua aplicação.

Em realidade, os direitos previstos ao apenado no curso da execução de sua pena jamais podem ser considerados “benefícios”, como se pudessem ser concedidos e suprimidos de acordo com a discricionariedade do juiz ou da autoridade administrativa. A transmutação de direitos em meros benefícios cria o que já se chamou “espaço livre de direito”, em que a administração prisional e o juízo de execução penal agem como se tivessem poderes disciplinares sem qualquer tipo de controle ou limite, justificando e legitimando constantes desrespeitos aos direitos fundamentais no interior das prisões. Assim, a redação do dispositivo legal, ao vedar genericamente a concessão de “benefícios”, cria hipótese de autorização –completamente inconstitucional – de contenção de direitos do apenado de toda sorte.

E, por fim, a regra viola o princípio da proporcionalidade, no sentido de adequação entre meios e fins. Não há o que justifique permitir que um condenado por crime gravíssimo – um estupro de vulnerável com morte, por exemplo – possa ter direito à progressão de regime e seu colega de unidade prisional, condenado por crimes mais leves não possa, porque lhe é atribuída a imputação de vínculo associativo com organização criminosa.

Em suma, o novo art. 2º, § 9º, da Lei 12.850/13 viola os princípios da individualização, taxatividade e proporcionalidade ao embarcar na versão mais medíocre e sem respaldo empírico dentre as teorias da dissuasão: aquela que acredita que o incremento da severidade das penas e o “tratamento duro” na custódia alcançarão como resultado a alteração de comportamento desejada dentre os agentes que lhes são destinatários.

Um exemplo de quão sem sentido e contraproducente pode ser o tratamento dessa questão como cruzada moral é a Operação Alexandria no Estado do Paraná. Entre dezembro de 2015 e fevereiro de 2016, a Polícia Civil do Estado do Paraná deflagrou a Operação, destinada a identificar pessoas envolvidas com determinada organização criminosa. Além de extensas horas de interceptações telefônicas registradas, a autoridade policial apreendeu dez cadernos, contendo, ao menos, novecentas e trinta páginas do que reputou serem registros da organização – daí, inclusive, o nome da Operação. Como resultado, 778 (setecentas e setenta e oito) pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público do Estado como incursas nas sanções do artigo 2º da Lei 12.850/2013, com a decretação de prisão preventiva para grande parcela dos imputados – muitos dos quais já tinham respondido criminalmente por delitos diversos ou já estavam segregados por outros motivos no momento da deflagração da Operação.

A Operação Alexandria ainda hoje produz graves e contraditórias consequências no sistema prisional paranaense, que, apesar de imerso em estrutural quadro de superlotação carcerária, teve de recepcionar um número ainda maior de integrantes de organizações criminosas e de pessoas que, por qualquer motivo que seja, tinham seu nome anotado a caneta em alguma dentre as mais de novecentas páginas dos cadernos apreendidos.([4]) Diante do volume de réus processados, houve casos em que a prisão cautelar durou quase quatro anos até que sobreviesse sentença penal.([5])

Não há notícia, em 2020, de que a Operação tenha resultado em impacto significativo nos objetivos propostos de enfraquecimento da referida organização criminosa, na redução de crimes como tráfico de drogas ou relacionados à violência urbana. Pelo contrário, evidenciou as contradições do sistema prisional e fortaleceu organizações criminosas que atuam justamente a partir do quadro de violação sistemática de direitos no cárcere.

Da mesma forma, a cassação genérica dos direitos de execução penal, como toda política pública não fundada em evidências, não cumprirá seus objetivos político-criminais, além de constituir medida reconhecidamente inconstitucional. Não há, finalmente, possíveis vitoriosos nessa “nova cruzada”. Não há saída sem a compreensão honesta das dinâmicas que levaram ao próprio surgimento e expansão das organizações criminosas, íntima e inegavelmente relacionados ao processo de encarceramento em massa desde a década de 1990 e à violência estatal levada a cabo fora e – especialmente – no interior dos estabelecimentos prisionais.

Referências

ADORNO, Luís. ‘Não à facção’: Com cartazes, MJ quer convencer preso a não integrar bandos. UOL, São Paulo, 18 fev. 2020. Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/02/18/ campanha-diga-nao-a-faccao-em-presidios-comecara-na-semana-do-carnaval.htm >. Acesso: 12 mar. 2020.

BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. Tradução de Lúcia Guidicini, Alessandro Berti Contessa, Revisão de Roberto Leal Ferreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005 [1764].

BECKER, Gary S. Crime and Punishment: An Economic Approach. Journal of Political Economy 76 (2), pp. 169–217, 1968.

BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. Tradução de Luiz João Baraúna. 3ª Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984 [1789].

CACICEDO, Patrick. Notas críticas sobre a execução penal no Projeto “Anticrime”. Boletim IBCCRIM, v. 27, abr. 2019, pp. 21-22.

DIAS, Camila Nunes; MANSO, Bruno Paes. “PCC, sistema prisional e gestão do novo mundo do crime no Brasil”. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v. 11, n. 2, pp. 10-29, 2017.

NAGIN, Daniel S. Deterrence in the Twenty-First Century. Crime and Justice, Chicago, v. 42, n. 1, pp. 199-263, 2013.

PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Autos de Ação Penal nº. 0000537-77.2016.8.16.0013. 8ª Vara Criminal de Curitiba/PR.

ROIG Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2017.


Notas de rodapé

([1]) ADORNO, Luís. ‘Não à facção’: Com cartazes, MJ quer convencer preso a não integrar bandos. UOL, São Paulo, 18 fev. 2020. Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/02/18/ campanha-diga-nao-a-faccao-em-presidios-comecara-na-semana-do-carnaval.htm >. Acesso: 12 mar. 2020.

([2]) Sobre o tema, vide, por exemplo, DIAS, Camila Nunes; MANSO, Bruno Paes. PCC, sistema prisional e gestão do novo mundo do crime no Brasil. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v. 11, n. 2, 10-29, ago./set. 2017, p.24-26.

([3]) ROIG Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2017, p. 55.

([4]) A ausência de individualização das condutas na Operação Alexandria foi contestada nos Tribunais Superiores. Em 29 de maio de 2018, o STJ determinou o trancamento de uma das ações penais, reconhecendo a inépcia da denúncia (HC 396.020/PR, Rel. Min. Nefi Cordeiro).

([5]) Por exemplo, a ação penal 0000537-77.2016.8.16.0013, desmembrada da mesma Operação, ainda tramita na 8ª Vara Criminal de Curitiba/PR e processa 26 pessoas por integrar organização criminosa. Dos denunciados, 17 pessoas tiveram prisão preventiva imediatamente decretada, sendo que, em 10 casos, o mandado de prisão preventiva foi cumprido em 17/12/2015. Tais indivíduos responderam todo o processo presos, tendo sido prolatada sentença somente em 11/10/2019, de modo que a prisão cautelar perdurou ao menos por cerca de 3 anos e 10 meses, portanto. Das 26 pessoas denunciadas, 21 receberam sentença penal condenatória, 1 foi absolvida, 1 faleceu no decorrer da instrução e 3 tiveram seus processos desmembrados. O único indivíduo absolvido permaneceu toda a instrução preso, entre 17/12/2015 e 11/10/2019.


André Ribeiro Giamberardino

Defensor Público do Estado do Paraná e Professor dos Programas de Pós-graduação em Direito e em Sociologia da UFPR. Coordenador da Clínica de Acesso  à Justiça e Educação nas Prisões da UFPR e do Núcleo de Política Criminal e Execução Penal da DPPR. Visiting Scholar" na Columbia Law School.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0997816643711510

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4018-7730

andre.giamberardino@defensoria.pr.def.br

Luis Renan Coletti

Mestrando em Direito pela UFPR. Bacharel em Direito pela UFPR. Membro-autor da Clínica de Acesso à Justiça e Educação nas Prisões da UFPR.

Link Lattes:http://lattes.cnpq.br/7795772839583305

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3904-5703;

coletti.renan@gmail.com

Paula Martins Caçola

Pós-Graduanda lato sensu em Direito Penal e Direito Processual Penal pela ABDConst. Bacharel em Direito pelo UNICURITIBA.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/2429542915308017

ORCID:  https://orcid.org/0000-0001-5925-453X

paulamartinscacola@gmail.com


Recebido em: 15.03.2020

Aprovado em: 08.05.2020

Versão final: 17.05.2020 

 



A expressa positivação da estrutura acusatória no processo penal brasileiro e a revogação tácita de dispositivos inquisitórios

Resumo: O presente artigo tem por objeto analisar os impactos da expressa positivação da estrutura acusatória, por meio do art. 3.º-A do CPP, introduzido pela Lei 13.964/2019, no processo penal brasileiro. Com a introdução deste dispositivo, reforçando a matriz adotada pela Constituição Cidadã de 1988, resquícios inquisitórios, já não recepcionados pela nova Constituição da República ou inconstitucionais, no caso das alterações legislativas posteriores, devem ser considerados tacitamente revogados, obstando sua aplicação pelo juiz. Assim, o presente artigo analisará, de modo não exaustivo, alguns dispositivos inquisitórios do CPP, a fim de tentar compatibilizar o processo penal brasileiro com a estrutura acusatória.

Palavras-chave: Sistema acusatório. Positivação da estrutura acusatória. Revogação tácita de dispositivos inquisitórios. Lei 13.964/2019.

Abstract: The purpose of this article is to analyze the impacts of the express positivation of the accusatory structure, through art. 3rd-A of the CPP, introduced by Law n.º 13.964/2019, in the Brazilian criminal process. With the introduction of this device, reinforcing the matrix adopted by the citizen Constitution of 1988, inquisitorial remnants, not received by the new Constitution of the Republic or unconstitutional, in the case of subsequent legislative changes, must be considered tacitly revoked, hindering its application by the judge. This article will analyze, in a non-exhaustive way, some inquisitorial devices of the CPP, in order to try to make the Brazilian criminal process more compatible with the accusatory structure.

Keywords: Accusatory system. Positivation of the accusatory structure. Tacit revocation of inquisitorial devices. Law 13.964/2019.

Data: 31/05/2020
Autor: Pedro Couto Gabrig

A Lei 13.964/2019, promulgada durante conturbado período democrático, surpreendeu a todos com positivas alterações na legislação ordinária, dentre as quais merece destaque a expressa positivação da estrutura acusatória, enxertada no art. 3.º-A do Código de Processo Penal.

Tanto a doutrina quanto a jurisprudência eram uníssonas em reconhecer que a Constituição de 1988 adotou, implicitamente, o sistema acusatório, ao prever um extenso rol de garantias fundamentais nos incisos de seu art. 5.º, como a ampla defesa, o contraditório, o devido processo legal, o juiz natural, a inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos, a publicidade dos atos e a presunção de inocência.([1])

Sabe-se que a estrutura adotada pelo sistema de justiça criminal de um país dialoga diretamente com as escolhas políticas daquela nação, sendo certo que, em países de feição democrática, seu ordenamento jurídico tenderá a prever mais direitos e garantias fundamentais que o conjunto legislativo de países de matriz autoritária.

No Brasil, o atual CPP, concebido durante a ditadura do Estado Novo, é reconhecidamente um código autoritário, inspirado no CPP fascista de Mussolini, no qual a rápida leitura de sua exposição de motivos descortina a ideologia de “superioridade do coletivo sobre o individual, mas o ‘coletivo’ não equivalia à sociedade civil e sim ao Estado”.([2]) Esse contexto deu origem a um código voltado para a perseguição do inimigo, ou seja, aqueles que se contrapunham ao declarado “autoritarismo democrático” de Francisco Campos,([3]) Ministro da Justiça de Getúlio Vargas e principal jurista autoritário do período, e como forma de reação à Constituição liberal de 1934.([4])

Com o advento da nova Constituição da República, é de se reconhecer a incompatibilidade de alguns dispositivos originários com o novo texto constitucional pelo que devem ser considerados não recepcionados.([5]) A nova diretriz democrática demandava o abandono das amarras inquisitoriais existentes no CPP que serviu a duas ditaduras, com a consequente elaboração e promulgação de um novo conjunto de normas procedimentais capazes de adequar o processo penal brasileiro aos ditames constitucionais, como ocorreu nos demais países da América Latina.([6])

Entretanto, não foi essa opção adotada pelo legislador pátrio, que preferiu incidir em reformas pontuais que, apesar de terem trazido aspectos positivos, não lograram êxito em romper com a estrutura inquisitorial preexistente, tampouco em expurgar a mentalidade inquisitória tão enraizada na cultura jurídica brasileira.

Conforme destaca Jacinto Coutinho, a estrutura de todo e qualquer sistema de justiça criminal será sempre determinada por um princípio unificador, seja acusatório ou inquisitório.([7]) É esse princípio unificador, portanto, que norteará não só a elaboração do texto normativo, como sua interpretação em concreto. Logo, se o princípio unificador adotado pelo atual CPP é o inquisitório, como originalmente foi, não há como reformas pontuais modificarem substancialmente a lógica do sistema, que, na prática, procurará a reafirmar o seu propósito originário.([8])

Há quem sustente a equivocada posição de que o Brasil supostamente teria adotado um sistema “misto” – inquisitório na investigação e acusatório no processo.([9]) Contudo, com base nos ensinamentos de Jacinto Coutinho, rechaça-se tal posicionamento. A uma, pois não existe um princípio unificador “misto”, de modo que a estrutura processual tenderá à inquisitorialidade ou à acusatoriedade; e a duas, pois nenhum sistema na atualidade é essencialmente puro, na forma clássica como estruturados. ([10]) Daí porque, para identificar qual princípio unificador foi adotado, deve-se recorrer ao ponto cerne de distinção: a gestão da prova.([11])

Na estrutura acusatória, o juiz situa-se em posição imparcial, equidistante das partes, sem qualquer interesse no resultado condenatório ou absolutório do processo. O julgador é mero espectador, destinatário da prova produzida pelas partes e a quem caberá exercer a barreira de limitação do poder punitivo e garantir direitos fundamentais. Desse modo, a incidência da pena e o consequente afastamento do estado de inocência só é autorizado a partir da comprovação do enunciado fático acusatório acima de uma dúvida razoável, mediante a aplicação de standard probatório exigido em países de cultura democrática.

Retomando à recente alteração legislativa, vê-se que o legislador pátrio reincidiu em seu errôneo expediente de promover reformas pontuais, que não extinguem por completo o sistema anterior e mantêm vivo o princípio unificador. Melhor seria que tivesse avançado na tramitação do projeto do novo código (PLS 156/2009), atualmente na Câmara dos Deputados, promovendo, assim, a tão aguardada “refundação” do processo penal brasileiro.([12]) Todavia, apesar da escolha política adotada, é inegável que a expressa positivação do sistema acusatório na legislação brasileira representa um importante passo dado em direção à Constituição, sendo certo que dispositivos inquisitoriais originários da redação de 1941 – já não recepcionados pela nova CR –, bem como dispositivos inquisitoriais que foram inseridos a posteriori por meio de reformas pontuais – inconstitucionais desde seu nascedouro –, devem ser considerados tacitamente revogados diante da previsão contida no novo art. 3.º-A, o que implica na necessidade de reestruturação de todo o processo penal brasileiro, sob pena de fazer letra morta da lei.

É o caso, por exemplo, dos artigos que conferem poderes de ofício ao juiz, seja para produção probatória, questões procedimentais ou em relação a medidas cautelares. O juiz, imparcial e equidistante das partes, deve ser provocado para decidir no caso concreto, sendo-lhe defeso, pois, atuar de ofício e sem provocação, de modo a preservar sua imparcialidade. Vejamos alguns dispositivos inquisitoriais, sem a pretensão de esgotar o debate sobre outros artigos do CPP.

O art. 156, cuja redação foi alterada pela Lei 11.690/08, confere poderes instrutórios ao magistrado, facultando-lhe a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes antes mesmo de iniciada a ação penal, além de permitir seja determinada a realização de diligência de ofício, “para dirimir dúvida sobre ponto relevante”. Como dito, sob a égide da estrutura acusatória, a atividade probatória é tarefa exclusiva das partes, cabendo ao juiz a valoração do conjunto probatório e não a sua produção. Afora isso, o estado de inocência inaugura a situação processual penal, como uma espécie de manto protetor sobre o réu, no qual a carga probatória recai exclusivamente sobre a acusação.([13]) Por essa razão, o julgador que determina a realização de diligência de ofício está, ainda que veladamente, se alinhando à tese acusatória e escancarando seu desiderato pela condenação, visto que o estágio de dúvida é mais que suficiente para a absolvição. Diga-se o mesmo em relação ao art. 209, que permite a figura das “testemunhas do juízo”, bem como ao art. 196, que autoriza a determinação de novo interrogatório de ofício, dissociado de qualquer requerimento das partes – dispositivos não raro invocados com o pretenso intuito de buscar a inalcançável “verdade real” dos fatos, cuja obsessão patológica é característica de sistemas inquisitórios.([14])

No art. 385, de redação originária, por meio do qual o julgador condena quando há pedido absolutório do Ministério Público ou reconhece agravantes na inexistência de requerimento expresso nesse sentido, a violação ao sistema acusatório é patente, diante da substituição da atividade acusatória pelo julgador. O Parquet, titular da ação penal pública (art. 129, I, CR), é o órgão com atribuição constitucional para definir os contornos da acusação, vale dizer, o enunciado fático qualificado juridicamente a ser confirmado ou refutado após a produção probatória. Assim, se ao término da fase instrutória o Ministério Público requerer a absolvição, não poderá o juiz condenar o réu e reconhecer circunstâncias agravantes, sob pena de inverter os papeis dos agentes processuais e subverter a lógica acusatória.([15])

De igual modo, tampouco poderá o julgador aplicar a emendatio libeli (art. 383, com redação dada pela Lei 11.719/08) sem oportunizar o contraditório prévio às partes. O princípio da não-surpresa, corolário do contraditório, impõe que o julgador dê vista dos autos ao Ministério Público e à defesa antes de sentenciar alterando a capitulação jurídica do fato.([16])

Além disso, modificações substanciais na tese acusatória, que alterem completamente o objeto da prova, precisam ser expressamente requeridas pelo titular da ação penal, rechaçando-se a errônea concepção de que o acusado somente se defende dos fatos. Como aduz a doutrina, o fato natural, ao ser qualificado juridicamente, dá origem ao fato processual, no qual a tipificação da conduta na correspondente norma penal incriminadora integra a imputação veiculada na denúncia.([17]) Por esse motivo, não poderá o juiz acolher a pretensão acusatória e condenar o réu em tipo penal diverso do imputado, vilipendiando o princípio da correlação, sem que seja previamente facultada a possibilidade de reação.([18])

No que toca às medidas cautelares pessoais, bem andou a Lei 13.964/2019 ao retirar do texto positivo a previsão de decretação de ofício, mantendo-se a atuação de ofício exclusivamente para garantia de direitos, como no caso de revogação ou substituição “quando verificar a falta de motivo para que subsista” (art. 282, § 5.º). Permanecem inalteradas, entretanto, as disposições inquisitórias relacionadas às medidas cautelares patrimoniais, sobretudo o sequestro e a busca, cujos artigos 127 e 242, ambos de redação originária, autorizam a decretação de ofício pelo julgador.

Da mesma forma, não pode mais ser admitida a determinação de diligências de ofício antes do sentenciamento do caso penal, como prevê o art. 404, alterado pela Lei 11.719/08, novamente sob pena de fulminar a imparcialidade do julgador e comprometer a qualidade epistêmica da prestação jurisdicional.

Portanto, se com o advento da Constituição Democrática de 1988 já havia razões mais que suficientes para considerar a não recepção ou a inconstitucionalidade destes e outros dispositivos – a depender do aspecto temporal de entrada em vigor no ordenamento jurídico –, agora, com a expressa positivação da estrutura acusatória no processo penal brasileiro, forçoso será o reconhecimento de sua revogação tácita, como explica Lopes Jr.: “Diante dos inúmeros traços inquisitórios do processo penal brasileiro, era necessário fazer uma ‘filtragem constitucional’ dos dispositivos incompatíveis com o princípio acusatório (como os arts. 156, 385 etc.), pois são “substancialmente inconstitucionais” (e, agora, estão tacitamente revogados pelo art. 3º-A do CPP, com a redação da Lei 13.964).”([19])

No entanto, ao tempo da redação do presente artigo, o art. 3.º-A encontra-se suspenso por força de liminar do e. Min. Luiz Fux nos autos das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6305, concedida em sobreposição à liminar do Presidente do STF, e. Min. Dias Toffoli. Essas ADIs postulam o reconhecimento da suposta inconstitucionalidade da figura do juiz de garantias, face à alegada violação de regra de organização judiciária.

Ainda que fosse pertinente a suspensão temporária do referido instituto, inexistem motivos plausíveis para suspender o art. 3.º-A, que reproduz exatamente o texto constitucional. Em outras palavras, além de se sobrepor à decisão da Presidência do STF, o e. Min. Luiz Fux vislumbrou possível inconstitucionalidade em artigo que reafirma a letra da Constituição. Espera-se, contudo, que o Plenário do STF reconheça a constitucionalidade do artigo em comento, conferindo-lhe plena e irrestrita aplicabilidade.

Conclui-se, portanto, que o legislador pátrio buscou positivar a estrutura acusatória sem enfrentar resquícios inquisitoriais, reincidindo no velho equívoco de promover reformas pontuais, que verdadeiramente não rompem a estrutura, o princípio reitor do sistema. De toda forma, é bem-vinda a expressa positivação da estrutura acusatória, que deve ser interpretada irrestritamente, de modo a considerar tacitamente revogados todos os dispositivos de caráter inquisitorial existentes no CPP, diante da evidente incompatibilidade com o modelo consagrado pela Constituição e agora expressamente previsto no Código de Processo Penal.

Referências

BADARÓ, Gustavo. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002.

CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal. 6. ed. São Paulo, Saraiva, 2014.

CHOUKR, Fauzi Hassan. Permanências Inquisitivas no Processo Penal brasileiro – aspectos determinantes nos 30 anos de vigência da CR/1988. In: SANTORO, Antonio E. R. (et. al.) (Orgs.). Crise no processo penal contemporâneo: escritos em homenagem aos 30 anos da Constituição de 1988. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2018.


COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da (Org.). Observações sobre os sistemas processuais penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. As reformas parciais do CPP e a gestão da prova: segue o princípio inquisitivo. In: COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da (Org.). Observações sobre os sistemas processuais penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro, vol. 1. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. O garantismo inquisitório brasileiro: continuidades do discurso autoritário no pensamento processual penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. (Org.). Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil: diálogos sobre o processo penal entre Brasil e Itália: volumes 1 e 2. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019.

KHALED JUNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2016.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

MELCHIOR. Antonio Pedro. O projeto de Código de Processo Penal trinta anos após a Constituição da República: um novo entulho inquisitivo? In: SANTORO, Antonio E. R.; MALAN, Diogo R.; MADURO, Flávio M. (Orgs.). Crise no processo penal contemporâneo: escritos em homenagem aos 30 anos da Constituição de 1988. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018.

MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeira de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Por uma teoria da ação processual penal: aspectos teóricos atuais e considerações sobre a necessária reforma acusatória do processo penal brasileiro. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018.


Notas de rodapé

([1]) MELCHIOR. Antonio Pedro. O projeto de Código de Processo Penal trinta anos após a Constituição da República: um novo entulho inquisitivo? In: SANTORO, Antonio E. R.; MALAN, Diogo R.; MADURO, Flávio M. (Orgs.). Crise no processo penal contemporâneo: escritos em homenagem aos 30 anos da Constituição de 1988. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 40.

([2]) PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeira de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p 25.

([3]) “O Estado brasileiro, sendo democrático, é também autoritário, cabendo ao Presidente da República a autoridade suprema, exercida em nome do povo e no interesse do seu bem-estar, da sua honra, da sua independência e da sua prosperidade.” (CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002, p. 126).

([4]) GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro, vol. 1. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, pp. 35/36.

([5]) CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal. 6. ed. São Paulo, Saraiva, 2014, pp. 34/35.

([6]) SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Por uma teoria da ação processual penal: aspectos teóricos atuais e considerações sobre a necessária reforma acusatória do processo penal brasileiro. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 352.

([7]) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da (Org.). Observações sobre os sistemas processuais penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 36.

([8]) GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. O garantismo inquisitório brasileiro: continuidades do discurso autoritário no pensamento processual penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. (Org.). Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil: diálogos sobre o processo penal entre Brasil e Itália: volumes 1 e 2. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019, p. 458.

([9]) Cf.: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 119.

([10]) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz..., op. cit., pp. 36-37.

([11]) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. As reformas parciais do CPP e a gestão da prova: segue o princípio inquisitivo. In: COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da (Org.). Observações sobre os sistemas processuais penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, pp. 262-263.

([12]) CHOUKR, Fauzi Hassan. Permanências Inquisitivas no Processo Penal brasileiro – aspectos determinantes nos 30 anos de vigência da CR/1988. In: SANTORO, Antonio E. R. (et. al.) (Orgs.) Crise no processo penal contemporâneo: escritos em homenagem aos 30 anos da Constituição de 1988. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2018, p. 135-136.

([13]) MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 463-465.

([14]) KHALED JUNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2016, p. 64.

([15]) BADARÓ, Gustavo. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 174.

([16]) PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 237-238.

([17]) LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, pp. 1.122-1.123.

([18]) BADARÓ, Gustavo. Correlação entre acusação e sentença..., op. cit., p. 172.

([19]) LOPES JR., Aury. Op. cit., pp. 65-66.


Pedro Couto Gabrig

Pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra em parceria com o IBCCRIM. Pós-graduando em Processo Penal e Garantias Fundamentais pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst/RJ). Membro do IBCCRIM. Advogado.

Lattes:  http://lattes.cnpq.br/7414539845763859.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7601-7165

pgabrig@gmail.com.


Recebido em: 15.03.2020

Aprovado em: 03.04.2020

Versão final: 14.05.2020

Os rumos da política criminal pós-neoliberal

Resumo: Os grandes movimentos político-criminais do período pós-Segunda Guerra constituem o objeto geral de abordagem neste artigo. E, de modo específico, as tendências da política criminal contemporânea sob a ainda marcante influência do penalismo neoliberal de matriz estadunidense do último quarto do século XX. O objetivo central é discutir os rumos da política criminal global em meio à crise do modelo neoliberal e da política brasileira, tendo como pano de fundo a recente Lei 13.964/19 (Pacote Anticrime).

Palavra-chave: Política criminal – globalização – penalismo neoliberal – penalismo pós-neoliberal – Pacote Anticrime

Abstract: The general object of study in this article are the major political-criminal movements of the post-World War II period. Specifically, the trends of contemporary criminal policy under the significant influence of neo-liberal penalism - of North American origin - in the final quarter fo the 20th century. The central objectives are first, to discuss the new direction of global criminal policy in the midst of the crisis of the neo-liberal model, and second, Brazilian policy in the context of the recent Law n. 13.963 (the “Anti-crime Bill”).

Keywords: Criminal policy - globalization - neoliberal penalism - post-neoliberal penalism – Anti-crime Bill.

Data: 31/05/2020
Autor: Plínio Leite Nunes

1.      Uma aproximação ao conceito de política criminal

 A política criminal constitui uma das dimensões da política de Estado ou governamental([1]) (como a política social, ambiental, econômica etc.). Representa, assim, ato de poder e decisão (nos campos administrativo, legislativo e judicial). Trata-se de um conjunto de decisões ou medidas de Estado, não necessariamente jurídicas nem de cunho exclusivamente criminal, voltadas ao tratamento da questão criminal em sentido amplo (isto é, relativamente ao crime, ao criminoso, à vítima e ao processo). Seu objetivo declarado é, segundo os valores e a realidade de cada ordem social, controlar os níveis de criminalidade, prevenindo-a ou contra ela reagindo de modo a mantê-la em níveis toleráveis e necessários à convivência social livre e ordenada.

2.      Movimentos político-criminais

Embora desde o século XIX tenha assumido status científico, a maturidade epistemológica da política criminal apenas se conforma, verdadeiramente, ao longo do século XX, a partir das experiências norte-americana e europeia no período pós-Segunda Guerra e do aporte teórico das doutrinas que emergem da filosofia liberal do século XVIII e do positivismo criminológico do século XIX. Todo esse caldo cultural, filosófico e jurídico viria a se refletir de modo não linear e não necessariamente homogêneo nas práticas e no discurso jurídico-penal da segunda metade do século XX até os dias atuais. Nos últimos sessenta anos, ao menos quatro grandes movimentos político-criminais se tornaram hegemônicos no mundo ocidental: a) o previdenciarismo penal; b) a política criminal de incapacitação seletiva; c) a política criminal neoliberal; e d) a política criminal pós-neoliberal.

2.1.            Política criminal ressocializadora

O primeiro desses grandes movimentos se desenvolve ao longo dos anos 50 e 60 sob as bases do estado de bem-estar social, do predomínio do modelo fordista-keynesiano ancorado no trabalho estável na fábrica e em um contexto de baixos níveis de criminalidade. Esse “mundo inclusivo, uno e concorde”, como designou Jock Young,([2]) cuja tônica estava na assimilação das faixas cada vez mais amplas da sociedade (a baixa classe operária, mulheres e jovens), forneceu as condições ideias ao aperfeiçoamento e consolidação da concepção ressocializadora da pena.

Neste modelo, que se desenvolve sob as premissas do paradigma científico positivista, a ênfase do controle social do crime se projeta sobre a pessoa do sujeito desviante (prevenção especial positiva), tendo na execução penal seu espaço de operatividade. Sua ideia-força: a possibilidade de correção ou reabilitação (adaptação artificial) do infrator através de uma pena individualizada.

No previdenciarismo penal,([3]) há uma destacada simbiose entre teoria e prática, ciência e justiça. Há, por assim dizer, uma gestão compartilhada do problema criminal entre o sistema de justiça criminal e a administração pública. Nessa articulação, exercem função central as sentenças indeterminadas com o benefício da parole([4]) (liberdade antecipada do condenado). O modelo opera da seguinte maneira: a) fase judicial: apura-se o crime e, se condenado o acusado, é-lhe aplicada uma pena indeterminada (com mínimo de cumprimento) ou de longa duração; b) fase de execução penal (fase desjurisdicionalizada): o condenado se sujeita a um programa penal individualizado e a avaliações periódicas por parte de comissões administrativas penitenciárias (parole board). A elas, e não a um juiz, cabe decidir sobre o retorno do apenado ao convívio social, segundo cálculos de risco de reincidência criminal.([5])

Embora tenha influenciado outros muitos sistemas de justiça criminal ao redor do planeta – inclusive o Brasil, ao inspirar as reformas penais de 1984 (e, de modo particular, a Lei de Execução Penal) –, essa tendência político-criminal perderia força a partir da metade dos anos 70.

2.2.            Política criminal da incapacitação seletiva

O segundo grande movimento político-criminal surge a partir de meados da década de 70 em substituição ao paradigma penal-previdenciarista. Ele se caracteriza, fundamentalmente, como um modelo político-criminal do controle e da incapacitação seletiva, centrado nas “classes perigosas” e delinquentes habituais. Nos EUA, o modelo seria moldado por duas forças fundamentais: a descrença na eficácia ressocializadora da pena e o declínio do clima de conformidade social e estabilidade econômica que marcou os anos dourados.

Os anos 70 se notabilizaram pelo rescaldo dos movimentos sociais (direitos civis, igualdade racial, dentre outros), pelas pressões internas e externas pelo fim da Guerra do Vietnã e pelo início da cruzada bélica e moralizante contra as drogas em nível global, sob liderança dos EUA. Foi também o período que mergulhou o mundo ocidental (e os EUA, em particular) numa grave crise econômica. A alta da inflação, acentuada queda das bolsas e o aumento acelerado do desemprego produzidos pela crise foram acompanhados pelo aumento substancial dos níveis de criminalidade violenta e juvenil do período. Não demoraria muito para que, nesse instável ambiente e sob massiva e sensacionalista propaganda comunicacional, a elevação das taxas de criminalidade fosse rapidamente associada à “benevolência” do sistema criminal e à “incapacidade” dos órgãos de persecução e execução penal de contê-la. Nesse mesmo contexto, o medo do crime e a sensação generalizada de insegurança instigada pela mass media dariam um tom emocional ao problema criminal, agora encarado como problema social “de primeira magnitude e como uma característica da cultura contemporânea.”([6])

Essa ambiência se tornou propícia ao recrudescimento de movimentos conservadores forjados no seio da nova direita americana em torno do tríptico mercado livre/responsabilidade individual/valores patriarcais.([7]) Na esteira desses movimentos, o crime passaria a ser visto como “o lado patológico do convívio social, a criminalidade como uma doença infecciosa e o criminoso como um ser daninho”.([8]) A ênfase político-criminal, assim, deslocou seu centro de gravidade para práticas de controle do crime baseadas na repressão e inocuização seletiva por meio da gestão policial e judiciária da pobreza, vista como o foco das incivilidades, dos desvios e das desordens de ruas.

Diante desse cenário, o processo de formulação das políticas de controle do crime se tornou profundamente politizado e populista. O crime foi redramatizado. A prisão, revigorada, passou a ser vista como instrumento legal de defesa social e contenção (incapacitação) das “classes pobres e perigosas”.

2.3.            Política criminal neoliberal

A penalidade neoliberal representa o terceiro grande movimento político-criminal da segunda metade do século XX. Suas bases são forjadas a partir da nova mentalidade punitiva que emergiu sob a lógica eficienticista da incapacitação seletiva, realimentada a partir da década 80 pelos processos de transnacionalização da guerra às drogas e o avanço da globalização e do modelo neoliberal (nos EUA e no Reino Unido).

O penalismo neoliberal alia a visão mercadológica do globalismo econômico (“mão invisível” do mercado) com a perspectiva encarceradora (“mão forte” do Estado). Com o início do desmonte do estado social de bem-estar rumo ao estado mínimo e desregulado, o aumento da desigualdade social e a precarização do trabalho responsável pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano, o sistema penal se tornou uma importante engrenagem no modelo neoliberal, sendo basicamente duas as funções que desempenha: preservar as condições estruturais da ordem capitalista e, ao mesmo tempo, manter o controle sobre as grandes massas pauperizadas.

Nesse contexto, a penalidade neoliberal, enquanto dura resposta à erosão social e às desordens provocadas pela desregulamentação da economia, reflete-se no endurecimento das práticas de controle e repressão à criminalidade urbana, baseado no binômio exclusão-castigo dos indesejáveis. A gestão da miséria, neste processo, tem como eixos principais a superestruturação das agências oficiais de controle, a radicalização da política de criminalização das drogas no governo Reagan – a mais ampla, violenta e devastadora política criminal de que se tem notícia na história – e o encarceramento em massa.

Nessa conjuntura, a prisão consolida-se como referencial das respostas punitivas ao crime, passando a servir a três funções que pouco têm a ver com o controle da criminalidade: abrigar as frações excedentes da classe operária (mão-de-obra desqualificada que não pode ser absorvida pelo mercado); forçar as frações da classe trabalhadora pós-industrial a aceitar o trabalho assalariado precário (afinal, seria preferível sujeitar-se a condições humilhantes de trabalho à vida prisional); e confinar seus elementos mais perturbadores e descartáveis. Nessas condições, como afirmou Zygmunt Bauman, o confinamento é, antes de tudo, uma “alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considerável da população que não é necessária à produção e para a qual não há trabalho (...)”.([9])

2.4.            Política criminal pós-neoliberal

Quase meio século depois, o modelo neoliberal emite sinais de esgotamento. O liberalismo econômico corroeu as bases do estado social, tornando-o frágil e incapaz de responder à complexidade e aos novos desafios da sociedade globalizada. No capitalismo financeiro, as disparidades sociais se aprofundaram: tornou os ricos mais ricos; os pobres, mais pobres. E descartáveis (os ricos já não precisam da mão-de-obra operária como antes). Neste sentido, produziu e consolidou o desemprego estrutural, condenando bilhões de pessoas a sobreviverem de subempregos e em condições degradantes de exploração laboral. Nesse mesmo capitalismo – volátil e especulativo –, as riquezas já não são produzidas no âmbito fechado das fábricas, mas no ambiente virtual das bolsas de valores. A maximização do lucro, por sua vez, já não depende da força do trabalho, mas da capacidade de consumo massivo.

Os graves efeitos e disparidades sociais gerados pelo globalismo econômico parecem ecoar, nas últimas duas décadas, na multiplicação de movimentos sociais de contestação ao establishment e às premissas que dão sustentação à estrutura de poder das elites econômicas. Estimulados pelo estrangulamento socioeconômico, o aumento da repressão e da opressão, e pela descrença na política e no sistema representativo atual (cuja estrutura preserva o poder nas mãos dos políticos de sempre), esses movimentos populares, plurais e de vários espectros ideológicos, opõem-se fundamentalmente: ao estado mínimo, ao grande capital financeiro; aos privilégios das elites econômicas; à exploração e precarização do trabalho; à estrutura política tradicional; à opressão de regimes oligárquicos.

Nesse mesmo contexto, conformou-se uma nova ordem social. Na era digital, as sociedades globalizadas se tornaram exacerbadamente individualizadas, polarizadas e intolerantes (com o outro). Os laços comunitários, que antes as uniam, foram desfeitos no ambiente virtual das redes sociais. No seio dessa mesma sociedade, emergem o nacionalismo exacerbado e o repúdio a imigrantes em contraste com os movimentos sociais que se ampliam em torno da defesa da igualdade racial e de gênero.

Diante dessa nova e complexa configuração global, a economia do castigo precisou se reinventar, combinando velhos métodos de um passado distante (pré-capitalista) com técnicas inovadoras de controle e vigilância, de sorte a manter os níveis de punitividade elevados e, ao mesmo tempo, responder à crescente demanda por mais direito penal (para o outro) e às disparidades produzidas pelo capitalismo sem emprego.

A velha-nova política criminal do terceiro milênio, assim,   preserva a matriz ideológica e o núcleo duro da penalidade neoliberal dos anos 80 e 90: segue reativa, seletiva e simbólica. Não obstante, caracteriza-se pela tendência à diversificação e antecipação das formas de controle (para além do sistema penal), que articula incapacitação seletiva, necropolítica e prisionfare.

Nessa velha-nova forma de tratar a questão criminal, uma parte expressiva da massa dos indesejáveis segue vigiada, selecionada, capturada e rapidamente incapacitada pelo sistema. Nesse processo, a prisão cautelar e a justiça negociada exercem um papel crucial, uma vez que permitem antecipar o momento punitivo (prisão provisória) e legitimar, no menor tempo e menor custo possíveis, a criminalização dos mais débeis (plea bargaining). Outra parte da grande massa, capturada pelo radar das agências de segurança, mas que não pode ou não interessa ser absorvida pelo sistema, será simplesmente eliminada. A necropolítica combina métodos pré-capitalistas (pena capital), gerencialismo (redução de custos) e solução final para aqueles que já são invisíveis socialmente ou, quando não, são vistos como entes perigosos, que precisam ser eliminados ao menor custo possível. Ela tem sido uma alternativa eficaz e mais barata em regiões periféricas do planeta, nas quais a “guerra às drogas” ainda constitui o eixo central da política de segurança pública, interna e transnacionalizada.

Há, ainda, uma outra parte dos indesejáveis, que o próprio estado policial não terá condições de alcançar pelos métodos usuais de criminalização primária e secundária: a) porque não se encaixam no estereótipo de inimigos sociais; b) porque o custo da criminalização é maior do que o seu benefício. Para esta parcela, a sistemática vigilância do estado é o método. Ele se baseia naquilo que Löic Wacquant denomina de prisionfare.([10]) Conforme observa, a penalização não está mais limitada ao encarceramento. Ela se estende de forma similar para além dele, nos mais diversos campos das relações sociais. Assim ocorre, por exemplo, em relação aos programas modernos de assistência social aos mais pobres nos EUA e Europa, que obrigam a participação forçada dos assistidos em subempregos como condição para o recebimento de apoio público (workfare) e exigem deles o cumprimento de certas regras e padrões comportamentais sob permanente supervisão. Segundo Wacquant, o workfare e a prisão neutralizante seriam guiados pela mesma filosofia de comportamento moral e empregariam as mesmas técnicas de controle, incluindo o estigma, a vigilância, restrições punitivas e sanções graduais com o fim de “corrigir” a conduta de seus clientes. Assim, considera que “o bem-estar transformado em workfare e a prisão despida de suas pretensões reabilitadoras formam, agora, uma única malha organizacional lançada sobre os pobres de acordo com uma divisão do controle por gênero: o workfare dá conta das mulheres e crianças e o prisonfare cuida de seus homens, isto é, os maridos, irmãos e filhos dessas mesmas mulheres”.([11])

O conceito de prisonfare, por analogia com bem-estar social, designa, assim, um fluxo das políticas públicas – que abrange categorias, programas e discursos –, que enfrenta as doenças urbanas lançando mão da polícia, dos tribunais, das cadeias, das prisões e de suas extensões. O que também inclui o livramento (parole) e a liberdade condicional (probation) que, hoje, colocam sob tutela da Justiça milhões de indivíduos nos EUA, que se somam aos mais outros milhões de indivíduos trancafiados.

3.      A política criminal brasileira pós-regime militar

No Brasil (e, de resto, na própria América Latina), a influência desses grandes movimentos político-criminais se revelou tardia. A hegemonia da doutrina da segurança nacional e a própria instabilidade política gerada por sucessivos golpes militares (Brasil, Argentina, Chile, dentre outros) durante os anos 60-70 interditaram qualquer forma de debate livre e científico em torno de programas político-criminais, que efetivamente respondessem às necessidades desses países.

No caso brasileiro, porém, as últimas décadas evidenciam que a filosofia garantista e reabilitadora da pena que norteou as reformas penais de 1984 foi completamente abandonada pelos programas político-criminais que se seguiram à reabertura democrática. Independentemente da coloração partidária e do espectro ideológico dos governos que se sucederam nos últimos trinta anos, a trajetória da política criminal brasileira foi e continua marcada pela ênfase repressivista, simbólica e criminalizadora da pobreza e dos segmentos mais vulneráveis em uma sociedade marcadamente desigual, patriarcal e racista.

Considerada a política criminal em suas três dimensões fundamentais (legislativa, executiva e judicial), observa-se, grosso modo, uma tendência ao autoritarismo cool que caracteriza as práticas e o discurso punitivo da América Latina: expansão do direito penal (criminalização primária); incremento da repressão violenta e genocida (criminalização secundária), sobretudo em relação à criminalidade patrimonial e às drogas; endurecimento do sistema de execução penal; mitigação de garantias processuais; forte apelo midiático.

Longe de impactar nos níveis de criminalidade – que, de um modo geral, se elevaram –, as práticas político-criminais inspiradas na retórica da “guerra total” à delinquência se tornaram, elas próprias, um problema social: aumentaram exponencialmente os gastos públicos nas áreas de segurança pública e prisional, agravaram a superlotação prisional e produziram um aumento expressivo da violência policial contra as populações negra e jovem das periferias do país, alvos preferenciais do sistema.  

4.      Política criminal e pacote anticrime: uma tragédia anunciada

Ignorando o fracasso dessa política de “guerra total” ao crime (ou simplesmente pretendendo ampliá-lo e perpetuá-lo), o Congresso Nacional brasileiro aprovou o assim denominado Pacote Anticrime, convertido na Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019. O Pacote Anticrime nasce sob o signo do “combate à criminalidade dos poderosos”. Ele reforça e reafirma velhas e comprovadamente ineficazes práticas político-criminais amparadas no recrudescimento punitivo, na incapacitação seletiva (crimes violentos, patrimoniais e de drogas), no superdimensionamento dos poderes das agências de controle, na ampliação dos meios de intervenção do estado penal e na relativização de direitos e garantias fundamentais no âmbito do processo penal.

Nada há de novo no horizonte. Em realidade, a retórica de “combate à corrupção” esconde o reforço na punitividade dos débeis e da massa de despossuídos (os clientes de sempre do sistema). Enquanto brada pela moralização nas relações do poder público e o “fim” dos privilégios e da tolerância com a criminalidade das elites dominantes, imuniza e deixa intocável o panteão dos poderosos.

A Lei 13.964/19 repete os mesmos erros de outras legislações de índole marcadamente punitivista. É o que faz, por exemplo, ao endurecer o regime de cumprimento da pena privativa de liberdade, ampliando o tempo máximo de execução para 40 anos (autêntica prisão perpétua!) e fixando requisitos mais rigorosos para obtenção de benefícios no curso da execução penal. Com efeito, a Lei 8.072/90 já nos mostrou, e da pior forma possível, qual o preço que se paga quando criamos graves entraves à libertação de condenados no âmbito da execução da pena: o colapso do sistema.

Outros muitos pontos, já objeto de acerbas críticas em textos publicados neste Boletim, também são dignos de questionamento, seja porque reforçam uma tendência repressivista, seja porque tendem a agravar problemas já crônicos do sistema (prisional e judicial): a criação de causas suspensivas da prescrição; ampliação do instituto da justiça negociada e os meios de intervenção do estado penal; e a institucionalização da violência policial sob a roupagem da legítima defesa, dentre outros.

5.      Conclusões

A evolução das práticas político-criminais no Brasil, do presente e de um passado não muito distante, evidencia de modo mais ou menos seguro o viés repressivista e incapacitante que caracteriza o controle do crime no contexto brasileiro pós-regime militar. Da forma como articuladas ao longo das décadas, elas têm aprofundado a contradição entre os fins declarados da política criminal (manter a criminalidade em níveis toleráveis) e o exercício do poder punitivo na realidade social.

Apesar de alguns avanços importantes obtidos como a Lei 12.403/11 (que introduziu medidas alternativas à prisão) e a introdução das audiências de custódia no processo penal brasileiro, os níveis de punitividade ainda se mostram elevados e fora de controle. No caso específico da Lei 13.964/19, embora seus efeitos ainda não possam ser sentidos na prática, algo parece inegável: estamos, de fato, diante de uma tragédia anunciada.


Notas de rodapé

([1]) Cf. SANZ MULAS, Nieves. Manual de política criminal. Trad. Luiz Renê G. do Amaral e Marna Franco Lopes M. Filizola. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2019. p. 15.

([2]) YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002. pp. 18-19.

([3]) GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Trad. André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

([4]) DIETER, Mauricio Stegemann. Política criminal atuarial: a criminologia do fim da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013. p. 52.

([5]) Op. cit., p. 52.

([6]) GARLAND. David. A cultura..., op. cit., p. 22.

([7]) WACQUANT, Löic. As prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Revan, 2001. pp. 24-25.

([8]) Cf. SILVA FRANCO, Alberto. Crimes hediondos. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2010. p. 85.

([9]) Cf. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. pp.119-120.

([10]) LÖIC, Wacquant. The Wedding of Workfare and Prisonfare Revisited. In: Social Justice 38, 1-2 (2011-12), pp. 203-221.

([11]) Op. cit.


Plínio Leite Nunes

Doutor em Direito Penal pela USP e mestre em Direito Penal pela UFPE. Advogado criminal em Pernambuco.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9823-9049

plinio.nunes@hotmail.com


Recebido em: 15.03.2020

Aprovado em: 07.05.2020

Versão final: 12.05.2020 

Nosso website coleta informações do seu dispositivo e da sua navegação por meio de cookies para permitir funcionalidades como: melhorar o funcionamento técnico das páginas, mensurar a audiência do website e oferecer produtos e serviços relevantes por meio de anúncios personalizados. Para saber mais sobre as informações e cookies que coletamos, acesse a nossa Política de Privacidade. Para falar sobre envie um e-mail para: privacidade@ibccrim.org.br