Boletim - 339
Fevereiro de 2021
BOLETIM DO IBCCRIM: A VOZ DAS CIÊNCIAS CRIMINAIS

 

Data: 02/02/2021
Autor: IBCCRIM

Criado em 1993, o Boletim aos poucos se consolidou como uma das principais publicações brasileiras na divulgação das ciências criminais; ao mesmo tempo, tornou-se símbolo do próprio IBCCRIM. Sendo uma publicação mensal, com artigos curtos cuidadosamente selecionados, ao longo de seus mais de 27 anos de história contribuiu para a rápida divulgação de ideias, muitas vezes sendo a porta de entrada para discussões do porvir. Entretanto, em algum ponto, parece que nossa publicação entrou em descompasso não somente com sua própria essência, mas também com a nova forma de produção científica exigida pelo meio acadêmico-profissional brasileiro: era necessário retomar seu caráter dinâmico e atualizado, voltado a todos aqueles envolvidos com as ciências criminais em território nacional; práticas antigas, de tempos anteriores à “nova” era digital precisavam ser superadas, mas sem perder a qualidade e cientificidade das informações veiculadas. Porém, como lidar com tais questões ao falarmos de uma publicação tradicional, querida por todos dentro e fora do IBCCRIM, mas cientes de que o que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo?

Foi assim que, ao final de 2018, recebemos a importante missão de reformular o Boletim. Como primeiro passo, e tendo como norte não somente as regras da Qualis/CAPES, mas também as melhores práticas de editoração científica no mundo, instituímos o sistema de avaliação cega por pares, acompanhado pela adoção de procedimentos eletrônicos para submissão e avaliação de artigos, bem como pela indexação do periódico em bases de dados científicas. Como resultado, além de se tornarem mais justos e transparentes os critérios para escolha dos trabalhos publicados, tendo os autores seus artigos avaliados por alguém com titulação equivalente ou superior, alcançamos a tão estimada nacionalização e ampliação de nosso corpo de pareceristas, atualmente com cerca de 200 colaboradores – verdadeiros responsáveis, por tornarem possível a publicação mensal do periódico, em um processo de avaliação em fluxo contínuo.

Como próximo passo, olhamos para nosso caderno de jurisprudência, completamente reformulado por uma equipe dedicada à curadoria das mais relevantes decisões judiciais brasileiras, mas também responsável pela criação da coluna Cortes internacionais e suas decisões comentadas, dando aos leitores acesso a importantes ferramentas tão comumente negligenciadas no meio jurídico brasileiro. Por fim, voltamo-nos à remodelação do aspecto visual do Boletim: foi adotado um novo design gráfico, agora moderno, organizado e agradável à leitura, além de serem construídas capas temáticas para cada uma de suas edições.

Os resultados foram percebidos rapidamente: desde sua reformulação, o Boletim foi responsável pela publicação de um total de 238 artigos; foram editadas cinco edições especiais totalmente abertas ao público, buscando incentivar a produção e divulgação dos mais recentes temas em debate, inclusive tratando das mudanças legislativas referentes ao direito penal, ao processo penal, à criminologia e aos direitos humanos; retomamos o importante papel da academia nas discussões de cunho político, como no caso da edição especial sobre o Pacote Anticrime, distribuída a todos os congressistas visando contribuir com a discussão então travada; os grandes nomes voltaram a aparecer em nossas páginas e novos nomes surgiram, os quais estamos certos que em breve também se tornarão grandes.

Nesse momento, orgulhosos do que alcançamos, desejamos que o futuro traga novas mudanças ao Boletim – mas sem jamais retornar àquela roupa que não nos serve mais. Encerramos esse ciclo com um trabalho conjunto com a Rede Brasileira de Saberes Decoloniais, o Boletim Especial Descolonizar: as ciências criminais e os direitos humanos.

A nós parece que o tema aqui discutido coincide com os propósitos do próprio Boletim: relembrar que somos o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e, nesse caminho, precisamos produzir conhecimento científico brasileiro nas áreas de direito penal, processo penal, criminologia e política criminal, que se atente à nossa realidade e se adeque às nossas categorias; conscientizar que os mecanismos em meio aos quais atuamos em busca de justiça são também aqueles responsáveis por garantir a estável reprodução da desigualdade econômica, social, racial e de gênero; contribuir para a ampliação de horizontes, abrindo, para muitas e muitos, a porta que guarda os saberes decolonias.


Notas de rodapé

 

Descolonizar e deslocalizar: Radicalidades contra-jurídicas

Gabriel Antonio Silveira Mantelli

Professor de Direito na USJT, onde é pesquisador-líder do Núcleo de Direito e Descolonização (CNPq/USJT).

Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP e mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP, com período de pesquisa na Kent Law School.

Bacharel em Direito pela USP.

Julia de Moraes Almeida

Mestranda em Criminologia pela USP e pela Université de Lyon.

Bacharel pela USP, com período de intercâmbio na Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne.

Possui Licence pela Université de Lyon.

Data: 02/02/2021
Autor: Gabriel Antonio Silveira Mantelli e Julia de Moraes Almeida

A centralidade que o regime colonial europeu moderno ainda impõe é inquestionável. A descolonização, por seu turno, é a tentativa de rompimento, de indeferimento e de enfrentamento às múltiplas faces da modernidade/colonialidade. Descolonização traduzida nos corpos livres, nas lutas ou nas ciências, enquanto resistência, desobediência; enquanto encarnação de vozes veladas ou propositalmente descontinuadas pelo histórico genocídio que começou na invasão às terras de Abya Yala (desde 1500, tem mais invasão do que descobrimento), persistiu no crime à humanidade da escravização dos povos de África e que perdura na bala que mata a criança preta da periferia que não mais consegue chegar na escola. Ao direito, cabe o desafio desse encarnar-se despropositado, que alguns e algumas chamarão de crítica pós-colonial, de giro decolonial, de revolução anticolonial, de práxis rebelde. Nessas encruzilhadas, ao Direito, aos direitos humanos se encaixam a negação e a afirmação, a reprovação e o testemunho, a condição e o paradoxo, a anarquia e o uso estratégico, a política e a litigância.

Nesse sentido, esse Boletim Especial é também um chamamento à descolonização. Na necessidade de se pensar alternativas institucionais. As disponíveis carecem de materialidade e a crise – mais uma, de incontáveis incongruências e desigualdades, e não a última – ficará na conta do Sul Global. É um convite à história que a história não conta. O ciclo do açúcar é um espectro que ainda ronda a Europa. E resvala nos operadores do Direito. A maquinaria mudou, o desenvolvimento deixou aqui e lá suas ferramentas polidas; mas as engrenagens continuam as mesmas. Não há independência ou Estado-nação que fuja do macarrônico rule of law e seu aparato jurídico-institucional que corta, feito guilhotina, o povo do poder. Ingenuidade é olhar para o Outro com os olhos de Rousseau quando podemos fazê-lo com a potência de Toussaint L’Ouverture ou de Sônia Guajajara.

Que violência é essa que legitima a desigualdade, o feminicídio e o silêncio das Mães de Maio em junho, julho, agosto, setembro, todos os dias? Viver é muito perigoso, vida loka. Ainda não sabemos quem matou e quem mandou matar Marielle Franco. Ainda não sabemos quem matou Anderson Gomes, trabalhador brasileiro. As provas, os testemunhos, a perícia em sua arquitetura de morte: não há justiça divina nem legislação que seja capaz de curar o trauma colonial. Abram-se os caminhos, então, para um novo encantamento do Direito, que diga de onde vem e a que veio. Não há tempo a perder; estamos silenciados há mais de cinco séculos.

O Direito vem sendo colocado como ferramenta da neutralidade e da organização. Um método imposto pelo Norte Global, que não faz mais sentido nas regionalidades dos subalternizados e, no caso deste Boletim, na América Latina. Ovacionar o direito francês ou alemão como referências para curadoria dos conflitos sociais do Sul deve cessar. A Europa é indefensável. Passamos por violências histórico-culturais que não mais permitem fingir uma suposta ordem natural das coisas. A volta ao normal não existe; o padrão muito menos. A normalidade do capital não nos poupará. Que façamos alianças com nossos vizinhos latino-americanos para esquecer a dogmática inflexível pregada pelos tradicionais operadores dos sistemas jurídicos.

Da luta das mulheres, dos povos de terreiro, dos movimentos sociais contra-hegemônicos, dos trabalhadores precarizados, do teatro e da pedagogia dos oprimidos, do Atlântico negro, do sumak kawsay dos ditos corpos não conformes. Da Améfrica Ladina. Dos povos das florestas dizimados, da pichação contra os regimes ditatoriais, da denúncia da estrutura racionalizada do Estado que perpetua a violência colonial cotidianamente vêm a resistência para pensar teorias e estratégias contra-coloniais. A criminologia decolonial, por exemplo, pode existir a partir do momento que o interesse for por novos caminhos. A negação e rompimento das estruturas hoje vigentes ocorrerá quando as formas engessadas de dirigir as instituições e teorias do Direito caírem por terra. Para além da crítica, descolonizar é destruir as caixas até hoje instauradas. As instituições e ferramentas são falhas; faz-se necessário, portanto, reinventá-las. É este o objetivo das pessoas aqui presentes.

Isso dito, o lugar do Direito não pode ser outro que não o do comunitário, da igualdade, do aqui. As tentativas de jogá-lo lá longe não têm efeito positivo, pelo contrário, geram desigualdades. O transplantar-se corriqueiro das casas senhoriais, tática da branquitude, precisa acabar. Contra todos os importadores de consciência enlatada. Da arte (e também contra as categorias da arte), que tomemos ensinamento. As revoluções somente assim são quando perigosas, descobertas e inventadas. Mais que novas nomenclaturas e exercícios legais para transformar o óbvio em aplicável, o decolonial vem para deslocalizar o direito na abertura crítica do ainda desconhecido. Deslocalizar-se diz respeito à tontura que o real nos causa depois de uma baita gira. Descolonizar é deslocalizar na medida em que nossos nortes sejam invertidos, nossas periferias sejam reposicionadas e nossas métricas sejam destituídas.


Notas de rodapé

 

Reflexiones acerca de la infracción Jushumanita

Eugenio Raúl Zaffaroni

Jurista e magistrado argentino. Foi ministro da Suprema Corte Argentina de 2003 a 2014 e, desde 2015, é juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Professor emérito e diretor do Departamento de Direito Penal e criminologia na Universidade de Buenos Aires, é também doutor honoris causa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pela Universidade Federal do Ceará, pela Universidade Católica de Brasília e pelo Centro Universitário FIEO.

É vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal.[1]

Link Lattes: lattes.cnpq.br

Resumen: El texto pretende enfatizar al lector las normas del derecho penal en contraposición a las normas internacionales de derechos humanos y especialmente en lo que se refiere a su violación, explicando cómo funcionan los elementos del delito, atendiendo sus requisitos para caracterizar los delitos penales.

Palabras clave: Derecho Penal, Infracción Jushumanista, Derecho Internacional, Teoría del Crimen.

Abstract: The text intends to emphasize to the reader the rules of criminal law in contrast to the rules of international human rights and especially when it comes to its violation, explaining how the elements of the crime work, addressing its requirements to characterize criminal offenses.

Keywords: Criminal Law, Jushumanist Fffense, International Law, Crime Theory

Data: 02/02/2021
Autor: Eugenio Raúl Zaffaroni

Infracciones y teoría - Las violaciones a Derechos Humanos son infracciones a normas establecidas en las convenciones internacionales de Derechos Humanos, es decir, propias del derecho internacional de los Derechos Humanos (derecho jushumanista). En tal sentido, son infracciones jushumanistas. Hasta el momento la doctrina en la materia no parece haberse interesado en elaborar una teoría general de estas infracciones, con una sistematización de sus caracteres y, por consiguiente, una clasificación de sus respectivas eximentes. Cabe suponer que se debe a que no ha sentido esa necesidad, aunque algo puede no ser imprescindibles y, sin embargo, ser conveniente.

Ciencia jurídica y sistema - No puede negarse que la ciencia jurídica –en todas sus ramas- siempre tiende a elaborar un sistema que facilite el análisis para la solución racional y no contradictoria de los casos particulares. No es verdad que en la tradición anglosajona no se piense en términos de sistema, pues al menos en cuanto al delito, a la hora de ordenar los precedentes se elabora también un modelo parecido al de la tradición jurídica europea continental (actus reus y mens rea).

Utilidad de una teoría - Por otra parte, no puede ignorarse que una teoría general de la infracción permite una mejor completividad de la decisión y reduce la posibilidad de que queden cuestiones sin tratamiento. Si bien esta utilidad es generalmente reconocida en todo el derecho, lo cierto es que la construcción del sistema alcanza niveles de elaboración sutil en el derecho penal con su teoría del delito.

La adaptación de las categorías de la construcción dogmática de la infracción de una rama del derecho a otra no es novedosa, puesto que, al menos la principal distinción dogmática en la teoría del delito (entre injusto y culpabilidad) proviene del derecho privado, donde la enunció Rudolf von Jhering y de allí la recogió el penal.

Realismo o idealismo - Puestos a la tarea de intentar probar la viabilidad de esta adaptación, es necesario decidir y advertir de qué teoría del conocimiento se parte, porque no es para nada indiferente elaborar una construcción a partir del realismo (privilegio de la cosa o del mundo) que del idealismo (privilegio de la idea de la cosa o del mundo). Cuando nuestro objeto de conocimiento es la infracción jushumanista, se trata de una conducta que viola normas del derecho internacional, donde los protagonistas son los estados, que son personas jurídicas y, al respecto, no podemos obviar la bipolaridad teórica que nos viene del derecho privado: ¿Son ficciones o realidades?

Realidad o ficción de la persona jurídica - Así, conforme a la teoría de la realidad respecto de las personas jurídica (presupuesto idealista), cuando un estado viola una norma del derecho internacional y es sancionado por esa infracción, el sujeto infractor y el sancionado coinciden: se sanciona al que cometió la infracción y, por ende, el autor y quien responde por ella (responsable) son la misma persona.

Pero si nos inclinamos por la teoría de la ficción en materia de personas jurídicas (presupuesto realista), la sanción a un estado recae sobre todos sus habitantes y, por cierto, no han sido todos ellos los que cometieron la infracción. Como bien lo observó hace más de setenta años Kelsen, se está sancionando a terceros: los que cometieron la infracción son únicamente los gobernantes, pero la sanción, como puede ser una represalia en una guerra defensiva contra la agresión cometida por otro estado, recae sobre todos los habitantes. La persona del infractor una y quien soporta la sanción es otra: la autoría y la responsabilidad se separan. El principio de personalidad e intrascendencia de la pena no rige para la sanción del derecho internacional.

Kelsen asimilaba este efecto a la toma de rehenes por una fuerza de ocupación para disuadir de agresiones al ocupante, con lo que asumía la posición realista, desde la que consideramos correcto partir.

Derecho internacional tradicional - En el derecho internacional las infracciones de un estado contra sus ciudadanos y habitantes estaban reservadas al derecho interno, como atributo exclusivo de su soberanía y, por ende, fuera de cualquier otra competencia internacional. Tal era la situación hasta mediados del siglo pasado y aún después, hasta que los estados renunciaron a parte de su soberanía y el derecho internacional comenzó a ser competente en materia de infracciones cometidas por los estados contra sus propios ciudadanos o habitantes. Con este cambio revolucionario nació el derecho internacional de los Derechos Humanos o derecho jushumanista.

El derecho internacional jushumanista es, pues, una rama joven de lo jurídico internacional, que comenzó muy tímidamente con la Declaración Universal del 10 de diciembre de 1948.

Embrión de ciudadanía planetaria - Con este paso se creó una situación nueva en el derecho internacional, porque implica nada menos que el reconocimiento de una embrionaria ciudadanía planetaria, que hace entrar en juego a un nuevo protagonista: el ser humano (todo ser humano es persona).

Por ello, la infracción jushumanista es una violación al derecho internacional, pero que no tiene como sujeto pasivo a otro estado, sino a un ser humano, un ciudadano planetario al que se le reconoce la condición de sujeto del derecho internacional. Por otra parte, este sujeto pasivo tampoco es ajeno al estado autor de la infracción, porque por lo general es un ciudadano de ese estado o por lo menos un habitante, aunque más no fuere transeúnte.

Los autores son siempre personas - Los autores de la infracción jushumanista –desde la antes señalada perspectiva realista- también son personas reales, que ocupan posiciones de poder en el gobierno del estado infractor, como órganos de éste.

Son estas personas quienes, en su condición de órganos del estado, incurren en acciones u omisiones que eventualmente configuran infracciones jushumanistas que llevan ante la jurisdicción internacional a su estado, al que se responsabiliza con sanciones internacionales.

Estas sanciones deben cumplirlas también las personas que son órganos de ese mismo estado en el momento de serles impuestas por la jurisdicción, que pueden no ser los autores de las infracciones y, cuando se trata de sanciones reparadoras, las debe pagar el erario público del estado, que es patrimonio de toda su ciudadanía.

El esquema del delito - Veamos, pues, si es posible intentar adaptar las categorías básicas de la teoría del delito para ordenar los caracteres de las infracciones al derecho jushumanista.

El carácter genérico y más básico de la teoría del delito es la exigencia de que se trate de una conducta humana, a la que, como caracteres específicos, siguen la tipicidad (prohibición y violación a la norma), la antijuridicidad (ausencia de causas de justificación) y la culpabilidad (reprochabilidad).

Son estas las categorías que –convenientemente adaptadas- quizá sean útiles para la construcción de una teoría de la infracción jushumanista.

Toda infracción es conducta humana - Al igual que en el derecho penal, el primer paso para averiguar si nos hallamos ante una infracción consistirá en preguntarse si se trata de una conducta humana, porque los hechos de la naturaleza nunca pueden configurar una infracción jurídica.

Pero en cuanto a la conducta, debe notarse una diferencia básica con el derecho penal, pues desde el comienzo debe quedar claro que, si bien la infracción jushumanista es una conducta humana, no puede ser la de cualquier humano, sino únicamente de quienes operan como órganos de un estado.

Todas las infracciones son propria - A diferencia del derecho penal, aquí el círculo de personas debe estar determinado junto con el concepto de conducta como carácter genérico de la infracción, dado que en estas infracciones no se admite la clasificación entre las comunia y las propia, pues por definición son todas propria.

La calidad de órgano pertenece a la conducta - Como el carácter de órgano estatal es propio de la conducta de la posible infracción jushumanista, no depende de que el tipo lo exija, por lo que la calidad del autor no sería un requisito típico, sino un presupuesto para todos los tipos y, por ende, integrante del concepto de conducta en la teoría de la infracción jushumanista.

Ausencia de conducta - Este sería el carácter genérico, básico de cualquier infracción jushumanista, que sirve para descartar en un primer y elemental paso de análisis, lo que groseramente no corresponde seguir analizando: no hay infracción si no proviene de una conducta o si su autor no actúa como órgano del estado.

La tipicidad (prohibición) de la conducta - Los tipos de infracciones jushumanistas no se hallan escritos en la ley internacional (convenciones), que en general contienen normas que se expresan en forma preceptiva, pues impone a los órganos del estado deberes de protección o tutela.

En lugar de deducir la norma del tipo (prohibido matar, luego: no matarás) se deduce el tipo de un mandato (tutelarás la vida, luego no matarás).

A partir de esta observación, se podría pensar que todas las infracciones serían omisivas, o sea que, todas las infracciones jushumanistas serían omisiones de cumplimiento de los deberes (mandatos) impuestos por la ley internacional. Un normativismo extremo podría sostener este criterio constructivo.

No todas las infracciones son omisivas - La perspectiva realista es preferible, por ser la más acorde a la comprensión general, pues resulta por lo menos difícil explicar que clarísimas acciones lesivas de órganos de los estados sean sancionadas como omisiones: el derecho no debe apartarse demasiado de la realidad (no parece razonable que un fusilamiento ordenado por un órgano estatal sea una omisión). Por eso, desde una perspectiva inclinada al realismo, los sujetos activos violarían omisivamente las normas cuando no impidiesen las lesiones (dejasen morir, por ejemplo), pero lo harían activamente cuando éstos las causasen (matasen, por ejemplo).

Es bueno advertir que una norma puede enunciarse tanto preceptiva como prohibitivamente, pero su contenido siempre es prohibitivo. Puede decirse te prohíbo privar de libertad arbitrariamente a tus habitantes, o bien, tutela y protege la liberad de tus habitantes. En este sentido, siempre media una prohibición: en cualquier caso, prisionizar a un habitante fuera del derecho está prohibido.

Los tipos jushumanistas son jurisprudenciales - En el tipo penal la ley describe la conducta prohibida (matar a otro) o la conducta debida (prestar socorro) como figura o imagen legal, en tanto que los tipos jushumanistas deben deducirse a partir del enunciado preceptivo de tutela ( estado). Por esa razón, los tutelarás la vida tipos jushumanistas , le dice la ley internacional al deben ser construidos por los jueces. No son tipos legales, en el sentido de que –por lo general- no están expresos en la ley, sino que deben inferirse, o sea construirse deductivamente por la jurisprudencia.

Esto otorga un gran valor al precedente jurisprudencial, análogo al de la metodología penal anglosajona de otrora, que de este modo va creando un derecho común jushumanista.

El tipo siempre es lógicamente necesario - El tipo –sea legal o jurisprudencial- siempre es lógicamente necesario, porque aún cuando no haya tipos descriptos en la ley, por imperio de la lógica más elemental el juzgador deberá construir previamente la figura jurídica abstracta de lo prohibido, porque no hay otro modo de establecer en las circunstancias concretas de cada caso, si se da un supuesto de hecho prohibido fáctico (facticidad prohibida).

Por elementales razones de lógica, si el tipo no está dado por la ley, lo debe construir la jurisdicción, porque de lo contrario, quienes juzgan no sabrían qué conductas y qué cambio del mundo real deberán buscar como posible materia o facticidad prohibida.

El uso de la analogía - La integración analógica se prohíbe o se prescribe en el derecho, según la forma en que cada una de sus ramas provee seguridad jurídica. En el derecho penal está prohibida la construcción por vía de integración analógica, en razón del necesario carácter fragmentario de la punición; en el derecho civil, por el contrario, se impone la analogía, para que ningún conflicto quede librado a la violencia.

Imposibilidad de estricta legalidad - Para proveer a su particular forma de seguridad jurídica, en materia jushumanista no es posible pretender prever legalmente todas las circunstancias que deben formar parte de la constelación situacional en que una limitación resulta prohibida (implica una ofensa), por lo que se le impone acudir a la analogía.

Dicho más claramente: el deber ser en materia jushumanista no es absoluto (todo derecho admite limitaciones), sino que se traduce en el mundo (realidad) conforme a cierto estándar de realización, cuyo desconocimiento depende de datos mundanos que configuran el contexto político, social, económico, etc., o sea, de las circuntancias del caso.

La construcción judicial no es arbitraria - No obstante, el hecho de que los tipos jushumanistas deban ser judiciales no implica que su construcción deductiva se lleve a cabo arbitrariamente y sin ninguna seguridad jurídica para los estados, es decir, sin un mínimo de previsibilidad de las decisiones jurisdiccionales. Por ende, el proceso de construcción deductiva debe responder a pautas que imponen límites a la jurisdicción.

Estas pautas imponen a la jurisdicción el deber de decidir conforme a la racionalidad, que se traduce en proporcionalidad. La proporcionalidad es la traducción jushumanista de la regla de racionalidad a que debe estar sometido todo el derecho.

El derecho común jushumanista - Se ha ido formando y existe en el presente un considerable cúmulo de precedentes jurisprudenciales emanados de las diferentes jurisdicciones jushumanistas, que tienen la particularidad de alimentarse entre sí, construyendo precedentes judiciales en red, lo que va haciendo crecer un derecho común jushumanista de creación judicial no limitado a una jurisdicción, sino interjurisdiccional.

Esta jurisprudencia proporciona un alto número de supuestos de hecho prohibidos (tipos) ya decididos y afianzados, que serían los casos de infracciones sino obvias, al menos poco discutibles y que ofrecen un marco de previsibilidad de las decisiones.

Los tipos jushumanistas son circunstanciados - En el derecho penal, los tipos activos (que definen lo prohibido) pueden o no ser circunstanciados, en tanto que los omisivos siempre lo son.

En materia jushumanista, prácticamente todos los tipos –activos y omisivos- son circunstanciados; los no circunstanciados (que en cualquier circunstancia son infracciones) son muy excepcionales, limitándose por lo general a algunas conductas que al mismo tiempo son delitos internacionales (genocidio, tortura, etc.) y cuya tipicidad no es originaria del derecho jushumanista, sino que éste la recibe de la rama internacional del derecho penal.

Los tipos jushumanistas omisivos - En el derecho jushumanista no existen propias infracciones de omisión (en que puede incurrir cualquiera), sino que todas son impropias infracciones omisivas y, en consecuencia, todos sus tipos son necesariamente circunstanciados y, además, todos los autores deben hallarse en posición de garante respecto del derecho afectado.

Posición de garante y evitabilidad - Ante todo, en la tipicidad omisiva es necesario verificar que la persona haya obrado como órgano del estado, o sea, que haya estado en posición de garante respecto del derecho de que se trata: el estado debe tener el deber de garantizar ese derecho a su habitante dentro del estándar respectivo y la persona debía ser el órgano encargado de esa función.

Además, la tipicidad omisiva requiere el nexo de evitabilidad, o sea, que al agente como órgano del estado le haya sido posible evitar la producción del resultado, lo que sólo se puede verificar incorporando datos de la realidad acerca de las circunstancias.

Basta la negligencia - Las conductas típicas de infracciones jushumanistas pueden (a) estar dirigidas programáticamente hacia los resultados lesivos (dolosas) o bien (b) dirigirse a otros resultados, pero en que la causalidad haya sido proyectada con violación de elementales deberes de cuidado impuestos para no causar resultados ofensivos (negligentes).

Esta distinción subjetiva cobra relevancia en el derecho penal internacional, pero no en el derecho jushumanista, porque en éste basta con que los actores hayan actuado con negligencia.

La subjetividad típica jushumanista tendrá relevancia respecto de las medidas que disponga la jurisdicción al estado condenado –entre otras en cuanto a la llamada garantía de no repetición-, pero el dolo de quienes operaron como órganos estatales no es un requisito de su tipicidad, siendo suficiente su negligencia, siendo lo más común que la infracción responda a una pluralidad de acciones de operadores del estado en que unos actúen dolosamente y otros negligentemente.

Concurrencia de infracciones y de personas - Es frecuente que en los casos de jurisdicción internacional jushumanista se establezca la concurrencia de varias tipicidades (concurso ideal), lo que en esta materia no ofrece dificultades mayores en cuanto a sus consecuencias prácticas.

En cuanto a la concurrencia de personas, se presenta en forma casi necesaria en toda infracción, puesto que por lo general son varios los órganos que intervienen activa y omisivamente.

La concurrencia de personas en la infracción, dado que es suficiente con la imprudencia o negligencia, al igual que en el derecho penal cuando se trata de tipos con esta estructura, todos los intervinientes son considerados autores, cualquiera sea la forma en que hubiesen contribuido al hecho. No corresponde distinguir si esa contribución es a título de autor (con dominio del hecho, directo o mediato), de partícipe (cómplice o instigador) e incluso a posteriori de encubridor, como tampoco tiene relevancia la intervención no haya sido necesaria para a producción del resultado, siempre que haya contribuido a éste.

Ámbito normal de gobierno - Toda tipicidad jushumanista implica una ofensa (por lesión o por peligro) a uno o más derechos. Sin embargo, toda acción de gobierno limita derechos en alguna medida. El derecho jushumanista no puede dejar de reconocer un ámbito de conducta políticamente adecuada en las que, en situaciones normales, la acción política en forma inevitable provoca esas limitaciones al ejercicio de los derechos que garantizan las convenciones y que no implican permisos (no son causas de justificación) sino el necesario espacio de decisión para gobernar.

Adecuación política de la conducta - Esta adecuación política de la conducta es una valoración que se le impone siempre a la jurisdicción internacional, para respetar el espacio que se debe reconocer a cualquier acción política (de gobierno de la polis).

El criterio valorativo debe ser también aquí, ante todo, la racionalidad traducida en forma de proporcionalidad y la verificación del estándar democrático en comparación con otras acciones de gobierno, en especial de los estados que menos incurren en infracciones jushumanistas y donde el nivel de respeto a los Derechos Humanos resulta más alto.

Esta última comparación, aunque no pueda pretender imponer ese estándar a todos los estados, al menos, permite saber en qué medida la acción de gobierno se aparta de esos casos ejemplares, proporcionando de ese modo un criterio válido bastante certero.

Justificación - Verificar la tipicidad jushumanista implica dar por probada la violación a la norma, es decir, la prohibición de la conducta, pero el derecho jushumanista -como todo el derechodebe reconocer permisos para realizar conductas típicas en circunstancias especiales, que hacen que ésta no resulte en definitiva antijurídica: son las llamadas causas de justificación.

No tiene sentido preguntar por la eventual existencia de un permiso cuando no se ha violado la norma, o sea, que se trata de una prelación lógica y no de una relación de regla y excepción: esta última es un cálculo estadístico, pero que se interrogue antes por la norma y después por el permiso es una necesidad lógica.

La necesidad como razón de los permisos - Las causas de justificación del derecho jushumanista tienen por fundamento común la necesidad, que no puede confundirse con cualquier alegada razón de estado. Toda justificación está circunstanciada de un modo que imponga una necesidad de limitación de Derechos Humanos.

La necesidad no es el límite del permiso - Pero la necesidad es un fundamento –o razón de ser- del permiso, mas no su límite: el principio conforme al cual la necesidad no conoce ley no es válido para el derecho racional en general y menos aún para el jushumanista en particular.

Una conducta típica puede ser necesaria, en el caso de ser la única posible para evitar un mal, pero para que esa necesidad opere como justificación, será menester que no provoque una ofensa que sea a su vez por completo aberrante. Las situaciones son distintas, según se trate de una legítima defensa o de un estado de necesidad, pero de todos modos, el principio general de que nunca la mera necesidad marca el límite jurídico del permiso es válida para ambos casos.

En ningún caso pueden justificarse, invocando la necesidad, conductas tipificadas por el derecho penal internacional (tortura, genocidio, crímenes contra la humanidad)

La legítima defensa: sujeto activo - El orden jurídico de un estado como tal sólo puede defenderse a través de las acciones de las personas que operan como sus órganos. Otras personas pueden defender bienes de los estados (defender la propiedad estatal, por ejemplo), como también su existencia o integridad (frente a una agresión extranjera, por ejemplo) pero nunca al estado como estructura de poder jurídico (defender la vigencia del derecho estatal).

Toda defensa del orden jurídico del estado como tal, llevada a cabo por otras personas actuando autónomamente, o sea, sin control estatal, debe ser considerado un delito y el respectivo estado tiene el deber jurídico de evitarla y penarla y, de no hacerlo, incurre en una infracción jushumanista.

Agresión antijurídica - Toda defensa jurídicamente relevante como justificación presupone la existencia de una agresión, que debe ser una conducta humana antijurídica. Si la conducta no es antijurídica no es posible alegar ninguna defensa: no hay permiso para actuar contra quien actúa conforme al derecho.

La defensa jurídicamente relevante como permiso debe ser la necesaria y suficiente para neutralizar la agresión.

El estado no está obligado a soportar agresiones antijurídicas, pero las que importan ofensas de escasa magnitud no pueden ser neutralizadas a costa de la vida, por ejemplo, por mucho que en el caso concreto no sea posible otra conducta para neutralizarla.

Provocación intencional - El estado no puede defenderse jurídicamente cuando las personas en función de órganos hubiesen provocado intencional o dolosamente la agresión: el permiso para limitar Derechos Humanos no procede cuando se haya provocado el conflicto, porque se trataría de una agresión por parte del estado (lo que habilita al ciudadano a defenderse, no siendo admisible la legítima defensa contra otra legítima defensa) o bien cuando sus órganos lo hubiesen hecho para poder limitar los derechos de quienes protesten o resistan, pues se trata de una acción ilícita en su causa (actio illicta in causa).

Provocación negligente o imprudente - Tampoco podrá ser jurídicamente relevante como permiso para el estado, su defensa frente todas las agresiones provocadas negligente o imprudentemente por las personas que operan como sus órganos.

En estos últimos casos deberá tenerse en cuenta el grado de imprudencia con que actuaron esas personas, es decir, si la violación al deber de cuidado que les impone abstenerse de conductas provocadoras de conflictos y agresiones responde a una negligencia o imprudencia más o menos simple o bien altamente temeraria.

La defensa es legítima sólo contra el agresor - Debe quedar claro que la defensa sólo es legítima en cuanto ofende Derechos Humanos del agresor, pero no cuando lo hace respecto de terceros ajenos a la agresión.

Además, la necesidad del medio empleado debe valorarse estrictamente, puesto que, si se dispone de un medio menos lesivo, no resulta necesaria la defensa en esa medida y el estado incurriría en un exceso intensivo antijurídico.

Por último, la defensa cesa cuando cesa la agresión y, por ende, toda ofensa a Derechos Humanos del agresor posterior al cese de la agresión será una infracción, puesto que configura un exceso extensivo antijurídico.

Estado de necesidad - La pura necesidad (estado de necesidad) justifica sólo en la medida en que se ofenden derechos para evitar lesiones inminentes (no peligros lejanos o remotos) más graves en situaciones de emergencia y, siempre y cuando, los propios órganos del estado no hubiesen provocado la necesidad. En el supuesto de provocación, rigen las mismas reglas que señalamos para la legítima defensa.

Conductas no justificables por necesidad - A diferencia de la legítima defensa, los ciudadanos que ven ofendidos sus derechos en el caso del estado de necesidad, no han hecho nada contra el estado, pese a lo cual éste puede afectar sus derechos invocando una necesidad no provocada por el propio estado, pero para eso no puede lesionar la dignidad del ser humano, reduciéndolo a un medio o instrumento (a una cosa).

No puede admitirse la muerte de una persona ni siquiera para salvar la vida de otras, porque cada vida es un absoluto y en ese caso cada persona tiene el derecho a conservar la propia sin que pueda considerarse mayor o menor la ofensa en razón del número de personas que se sacrifiquen y las que se salven. Las ofensas contra la vida no se evalúan contablemente: no es justificante la acción del estado que da muerte a uno para salvar a diez.

El estado, en razón de mera necesidad, no dispone de ningún permiso jurídico para matar, torturar ni cometer delitos de lesa humanidad. En alguna circunstancia -y sólo respecto de la vida humana-, la conducta de sus órganos puede llegar a ser disculpable, pero nunca justificada.

Culpabilidad - La doctrina penal observó que hay conductas que no se justifican, pero que razonablemente tampoco pueden sancionarse: el que no sabe ni puede saber que lo que hace es antijurídico o el psicótico en brote, no tienen ningún derecho a realizar la conducta antijurídica, pero no es racional penarlos.

Cobrar la deuda - Para explicar que a alguien se le puede disculpar su acción, es necesario que la infracción requiera que al autor de lo pueda culpar, es decir, que la infracción requiere un nuevo carácter: la culpabilidad.

Este carácter exige, para que haya infracción, que al agente se le pueda cobrar su injusto, su falta, su deuda con el derecho.

Para construir el concepto de culpabilidad, el derecho imita la forma de la ética tradicional, concluyendo que se trata de la posibilidad de exigirle jurídicamente al autor del injusto, en esa circunstancia concreta, una conducta conforme al derecho (exigibilidad de otra conducta).

Por ende, la exculpación tendría lugar cuando no fuese posible exigirle jurídicamente otra conducta conforme al derecho (serían supuestos de inexigibilidad).

Culpabilidad en el derecho jushumanista - Es una buena pregunta saber si es posible que este concepto de culpabilidad funcione también en el derecho jushumanista, es decir, si hay situaciones en que a los estados no se les puede exigir otra conducta diferente que la del injusto jushumanista en que incurrió.

Hemos visto el problema en ciertos casos de muerte de personas, especialmente por omisiones impuestas por alguna emergencia, en que sus órganos deben operar selectivamente cuando hay vidas humanas en juego, o incluso cuando se presenten circunstancias imprevisibles y los órganos del estado se hallen faltos de medios y recursos: catástrofes, terremotos, naufragios, epidemias, etc. Los órganos del estado sólo pueden salvar algunas vidas, pero no todas las vidas.

Tampoco pueden descartarse tipicidades activas (desplazamiento de peligros), aunque son más extrañas.

Estado de necesidad exculpante - Por supuesto que esto sólo sería admisible (a) en casos que respondan a las situaciones de necesidad no provocadas intencionalmente ni tampoco por la propia negligencia de los órganos estatales, pues en caso contrario la conducta les sería reprochable. (b) Las circunstancias deberían ser imprevisibles o previsibles pero muy poco probables, puesto que, si fuesen previsibles y probables, se estaría incurriendo en negligencia. (c) Pero también debería probarse que los órganos del estado no han procedido arbitrariamente en la selección de personas, sino conforme a cierta priorización razonablemente explicable.

Responsabilidad en exculpación - La responsabilidad jushumanista se hace cargo también de la reparación civil, por lo cual, como en los casos de exculpación siempre existe de un injusto jushumanista (conducta típica y antijurídica de los órganos del estado), puesto que por tratarse de una conducta antijurídica, la exculpación no cancela la obligación de reparar del estado, lo que no ocurre en los casos de justificación. Por ende, en estos casos, el estado sigue siendo responsable por la lesión causada, aunque no configura una infracción, y la jurisdicción jushumanista debe condenarlo a la reparación.

Consideraciones provisionales - Por supuesto que, lejos de pretender haber llegado a destino, las presentes reflexiones únicamente aspiran a dejar abierta la cuestión, como un primer paso por un camino incierto. Por ende, estas consideraciones son eminentemente provisionales y tentativas, formuladas con el único objeto de iniciar un eventual debate científico.


Notas de rodapé

  

O tratamento jurídico-penal reservado aos indígenas sob a ótica intercultural e decolonial

Luiz Henrique Eloy Amado

Pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS).

Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ).

Advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9277948314977751

ORCID: 0000-0001-9073-6086

adv.luizeloy@gmail.com

Victor Hugo Streit Vieira

Graduando em Direito pela UFPR.

Membro do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH-UFPR).

Estagiário na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/2155461107301255

ORCID: 0000-0002-0262-0284

victorhsvieira@hotmail.com

Resumo: Mesmo após o advento da Constituição Federal de 1988, o tratamento jurídico-penal reservado a réus, acusados e condenados indígenas continuou invisibilizando as diferenças étnico-culturais, predominando uma interpretação etnocêntrica e eurocêntrica no ato de responsabilização penal do indígena. O presente artigo prima por uma abordagem intercultural e decolonial à matéria, consolidada na Resolução 287 do Conselho Nacional de Justiça.

Palavras-chave: Indígenas, Direito Penal, Direito Processual Penal, Interculturalidade, Decolonialidade.

Abstract: Even after the advent of the Federal Constitution of 1988, the legal-criminal treatment reserved for indigenous defendants, accused and convicts continued to make ethnic-cultural differences invisible, with an ethnocentric and Eurocentric interpretation prevailing in the act of criminal responsibility of the indigenous. This article strives for an intercultural and decolonial approach to the matter, consolidated in Resolution No. 287 of the National Council of Justice.

Keywords: Indigenous, Criminal Law, Criminal Procedural Law, Interculturality, Decoloniality


Data: 02/02/2021
Autores: Luiz Henrique Eloy Amado e Victor Hugo Streit Vieira

O Estado brasileiro foi erigido violentamente sobre a ideologia nacional da unidade cultural, tendo sido imposta durante cinco séculos uma política assimilacionista, cujo objetivo era a progressiva integração dos indígenas à chamada comunhão nacional. No entanto, apesar das mais variadas formas de repressão das diferenças culturais, o Brasil possui uma riqueza cultural e diversidade étnica, abarcando 274 línguas indígenas faladas por indivíduos de 305 etnias1, bem como diferentes formas de organização social e de sistemas jurídicos próprios, o que exige o reconhecimento dos costumes e tradições.

Rompendo com o paradigma integracionista da política indigenista brasileira, a Constituição Federal de 1988 reconheceu essa diversidade ao estabelecer um Estado Democrático de Direito de caráter pluralista e multicultural, além de uma nova política de autodeterminação dos povos indígenas, consagrada em seu art. 231. Ocorre que a legislação penal, assim como o próprio Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), não incorporou tais mudanças, restando diversas lacunas procedimentais no tratamento jurídico-penal de indígenas acusados, réus ou condenados por crimes.

Com base na política assimilacionista, a legislação, a doutrina, a jurisprudência e a prática da administração pública e do poder judiciário brasileiro passaram a ser recheadas de conceitos jurídicos etnocêntricos, monistas, autoritários e de cunho evolucionista, como “aculturação”, “integração” e “inimputabilidade e incapacidade indígenas”, de forma a negar direitos(2). Esse cenário se mantém até hoje, apesar da adoção da nova Constituição Cidadã e de normativas internacionais(3).A manutenção de tais conceitos se dá em boa parte pela permanência, no ordenamento jurídico pátrio, do Estatuto do Índio, elaborado durante o período ditatorial e que prevê o ideal integracionista já em seu art. 1º, em flagrante descompasso com a Carta Magna e as legislações internacionais adotadas posteriormente. Desta forma, no ato de responsabilização penal do indígena, o judiciário brasileiro majoritariamente invisibiliza as diferenças étnicoculturais. Predomina uma interpretação etnocêntrica e eurocêntrica, a qual, ao invés de examinar e decidir sobre conflitos interétnicos sob um viés intercultural, a ser adotado graças à identidade étnica desses acusados, na verdade nega ou suprime a existência de uma alteridade através da aplicação exclusiva do direito estatal(4). Tal atuação impositiva do direito penal e processual penal denota o racismo estrutural, que hierarquiza os indivíduos segundo suas identidades étnico-raciais, negando valor e reconhecimento à subjetividade indígena, vista como inferior(5).

Tédney Moreira da Silva (6), autor de dissertação paradigmática acerca da matéria, chamou de penalidade civilizatória a noção de que a criminalização de indígenas, conforme promovida pelas agências doutrinárias, judiciais e policiais contemporâneas, configura uma tática política de supressão ou neutralização da diversidade étnica existente, a qual seria elemento de oposição ou resistência à ordem econômico-social hegemônica. A aplicação da pena comunica que se completou a integração dos indígenas à dita “sociedade nacional”, culminando no desaparecimento destes sujeitos de direitos, sem que se aprofundem os questionamentos sobre sua culpabilidade, as funções da pena ou as diferenças culturais existentes. Diante dessa realidade, afirma-se a importância de que o tratamento jurídico-penal de indígenas, assim como todos os direitos relacionados a esses indivíduos, seja abordado a partir de um viés intercultural e decolonial, conforme se passará a expor.

Para fugir de abordagens interculturais que possam ser funcionais ao sistema dominante, Catherine Walsh (2012) cunhou a noção de interculturalidade crítica, a qual não parte do problema da diversidade ou da diferença em si, nem da tolerância ou inclusão neoliberal, mas do problema “estrutural-colonial-racial” e sua conexão com o capitalismo, questionando profundamente a lógica irracional e instrumental capitalista, bem como apontando para a construção de diferentes ordenamentos sociais(7).

Ainda por construir, essa interculturalidade entendida criticamente configura um projeto político, social, ético e epistemológico, que visa intervir na matriz da colonialidade, ou seja, transformar os dispositivos, condições e estruturas de poder, que mantém a racialização, subalternização e inferiorização tanto de seres quanto de saberes e modos de vida, naturalizando a diferença e ocultando as desigualdades estruturais(8).

Walsh é uma das principais membras do Grupo Modernidade/ Colonialidade (M/C)(9), constituído no final dos anos 1990 por intelectuais latino-americanos situados em diversas universidades das Américas(10) e que buscaram renovar as ciências sociais, de maneira crítica e utópica, na América Latina no século XXI. O movimento epistemológico do grupo radicalizou o argumento póscolonial no continente através da noção de giro decolonial, defendendo a decolonialidade epistêmica, teórica e política para compreender e agir em um mundo no qual permanece a colonialidade global em seus diversos níveis(11).

O termo giro decolonial, cunhado originalmente por Nelson Maldonado-Torres, representa tanto uma mudança de ótica e atitude encontrada nas práticas e formas de conhecimento de sujeitos colonizados quanto um projeto de transformação dos pressupostos e implicações da modernidade, o qual não envolve somente o fim das relações formais de colonização, mas um enfrentamento radical ao legado e à contínua produção da colonialidade em suas três dimensões (poder, saber e ser). Representa também um giro humanístico, que aspira o reconhecimento de todo ser humano como verdadeiro membro de uma mesma espécie(12).

Eixo central do pensamento decolonial, a colonialidade do poder é conceitualizada por Ramón Grosfoguel, seguindo o pensamento de Aníbal Quijano, como uma interseccionalidade de múltiplas e heterogêneas hierarquias globais de modos de dominação e exploração sexual, política, epistêmica, econômica, espiritual, linguística e racial, as quais nomeia “heterarquias”(13), sendo a ideia de raça e racismo o princípio organizador que estrutura todas as múltiplas hierarquias do sistema mundo.

Desta maneira, o projeto da interculturalidade, enquanto uma ferramenta de ação deliberada, contínua e insurgente, caminha junto ao projeto da decolonialidade, o qual não prosperará sem a articulação de seres, saberes e modos de vida em um projeto múltiplo e multiplicador, sustentando a possibilidade de convivência numa nova ordem de complementaridade das parcialidades sociais(14).

Aliada à decolonialidade, a interculturalidade se põe, então, como caminho para o reconhecimento da diversidade étnica e para a transcendência da política indigenista assimilacionista, do monismo jurídico e do paradigma etnocêntrico e eurocêntrico, predominantemente adotado pelo judiciário, que desconsidera a alteridade(15). Neste sentido, já há prenúncios de abertura à interculturalidade no cenário político-criminal brasileiro, a exemplo da edição da Resolução 287, em junho de 2019, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)(16).

Com o objetivo de regular o tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, bem como assegurar os direitos dessa população, a Resolução 287 marca o alinhamento desse tratamento à Constituição Federal de 1988 e aos tratados internacionais de direitos humanos.

Nesta normativa de caráter vinculante(17), o CNJ estabeleceu alguns princípios específicos, que devem ser levados em consideração pelos juízes para a completa aferição de responsabilidade criminal dos indígenas. Dentre eles, encontram-se: a) o reconhecimento da diversidade dos povos indígenas, vedando-se a reprodução automática de respostas genéricas em casos envolvendo-os; b) o dever de consultar as comunidades indígenas, considerando os efeitos do processo sobre toda a comunidade e respeitando seu direito de decidir sobre questões que a afetem; c) o respeito à língua, aos costumes, às crenças e tradições desses povos, bem como à sua organização social e suas estruturas jurídicas; d) a importância do direito ao território, reconhecendo os profundos vínculos culturais, espirituais e de saberes dos indígenas com aquele; e) o efetivo acesso dos indígenas à justiça estatal, assegurando que possam entender e ser entendidos em atos institucionais; f) a excepcionalidade do encarceramento indígena, devendo-se dar preferência a outros tipos de punição(18).

A partir dessa base, algumas das principais previsões da Resolução 287 se referem à identificação da pessoa como indígena por meio da autodeclaração (art. 3º), à previsão do acesso a intérprete (art. 5º) e a perícia antropológica (art. 6º), e à aplicação preferencial de mecanismos próprios da comunidade indígena, sendo possível o julgador homologar práticas tradicionais de resolução de conflitos e de responsabilização (art. 7º)(19). O pronto reconhecimento da identidade indígena por meio da autodeclaração é fundamental para se assegurar as garantias específicas desses indivíduos de maneira transversal em todos os atos processuais(20).

Outro aspecto importante da Resolução 287 foi a superação da invisibilidade dos povos indígenas no processo penal através do registro de sua identificação como indígena, língua e etnia nos sistemas informatizados do Poder Judiciário. O art. 4º prevê que essas informações devem constar no registro de todos os atos processuais, especialmente na ata de audiência de custódia. Até a aprovação desta norma, não havia previsões expressas e uniformes para identificar a presença de pessoas indígenas no sistema penal(21). Tal ponto da Resolução tem especial importância em crises como a atual pandemia do novo coronavírus, na medida em que a visibilidade dada ao indígena preso permite “saber acerca de sua saúde, de sua taxa de mortalidade dentro do sistema prisional, bem como saber orientar quanto à sua saída e retorno para sua comunidade sem risco de ser vetor do vírus”(22).

Um dos nortes da Resolução 287 é o resgate e empoderamento dos conhecimentos e cosmologias dos povos indígenas, o que se relaciona com a faceta epistemológica da colonialidade, ou seja, a colonialidade do saber, sendo necessário apontar que o eurocentrismo é uma lógica essencial para a sua reprodução, e diz respeito a um viés de conhecimento e uma forma de produzi-lo que revelam o caráter do padrão mundial de poder, qual seja: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado(23).

O saber epistêmico eurocêntrico é que dita a construção de subjetividade dos indígenas, vendo neles parâmetros de um atraso arcaico e qualidades utópicas de seres muito integrados à natureza, em oposição ao modelo hegemônico de produção e consumo capitalista(24). Assim, para haver um tratamento jurídico-penal mais garantista, é essencial que primeiro se supere o evolucionismo social presente na maior parte dos estudos jurídicos sobre os indígenas, não se referindo a povos civilizados ou a civilizar, primitivos, retardatários ou não desenvolvidos, pois tal discurso etnocêntrico é um método intencional de controle social informal que ratifica o exercício do poder tutelar sobre esses sujeitos de direito(25).

Em viés contrário ao paradigma intercultural, a jurisprudência brasileira é repleta de decisões que dispensam a produção de laudo antropológico, já que o magistrado entende possuir condições de verificar somente pela análise de elementos formais, como grau de escolaridade e fluência da língua portuguesa, atividades laborais desempenhadas, posse de documentos, ser eleitor, saber dirigir veículo, entre outros, se o indígena está “integrado à comunhão nacional” e se é, portanto, completamente capaz de entender o caráter ilícito dos fatos ou de determinar-se de acordo com tal entendimento. No entanto, já que o julgador não possui a expertise necessária para compreender as especificidades culturais dos diversos povos indígenas, aqueles aspectos externos e meramente formais são insuficientes para compreender a identidade indígena, pois não dizem nada, por si só, a respeito do grau de internalização e introjeção da cultura indígena nos costumes, valores e práticas do réu, o qual pode mostrar-se externamente apto a todos os atos da vida, mas sem compreender perfeitamente o caráter ilícito da conduta ou, mesmo entendendo a ilicitude, não podendo determinar-se diferentemente por exigência de sua cultura(26).

Superada a teoria que indagava sobre graus de integração à comunidade nacional, agora a identidade indígena deve ser definida pela autoidentificação, sendo esta suficiente para que, no processo penal, respeitem-se sua cultura, língua e organização social. A partir disso, o laudo antropológico e a consulta às comunidades indígenas são os instrumentos necessários para o juiz aferir a correspondência entre a conduta praticada pelo réu e os valores de sua comunidade, bem como para identificar a possibilidade de aplicação de  mecanismos indígenas de solução de conflitos(27).

O conhecimento, dentre as várias formas de poder da colonialidade, é um instrumento de poder e, portanto, o pensamento decolonial objetiva realizar um processo de descolonização do saber. É neste sentido que se encaixa uma “busca pela diversidade epistêmica e pelo empoderamento do saber e ser de grupos, comunidades e movimentos sociais que foram reprimidos e silenciados pela lógica da colonialidade”(28). Enquanto proposta de desobediência epistêmica com o objetivo de buscar saberes que fogem da racionalidade hegemônica, o pensamento decolonial ocupa posição de resistência face à imposição de conhecimentos eurocêntricos(29). Aqui se inserem o laudo antropológico e a consulta às comunidades.

A perícia antropológica, produzida por antropólogo, deve ser a base epistêmica sobre a qual o juízo analisa os delitos que envolvam indígenas, sem a qual se reforça o olhar etnocêntrico que formou as relações interétnicas até então produzidas(30). O laudo deve ser inserido no sistema de justiça como um instrumento intercultural, não servindo para a atribuição da identidade étnica, a qual deriva da autoidentificação, mas para ampliar o conhecimento sobre o contexto histórico e contemporâneo da diversidade, verificando a influência da identidade étnica na determinação da conduta ilícita e, assim, fornecendo ao juiz um quadro mais completo das variáveis envolvidas com a ação ou omissão humana e com a responsabilidade penal eventualmente atribuída(31).

Por sua vez, incluir a consulta às comunidades no tratamento jurídico-penal do indígena também é fruto da mudança de paradigma epistemológico e de metodologia decorrentes da Constituição Federal de 1988. Com sua dupla dimensão, enquanto direito coletivo à participação e direito individual à ampla defesa, a consulta possibilita que sejam tomadas decisões mais contextualizadas e bem fundamentadas, além de respeitar o direito da comunidade como um todo de ser ouvida, assegurando um papel ativo nos eventos em que se vê envolvida e fortalecendo suas instituições, culturas e práticas. Ainda que se volte contra a figura do indivíduo, o processo criminal afeta toda a comunidade de diversas formas, seja pela estigmatização por criminalizar a conduta de um membro, ou pelas funções que deixarão de ser cumpridas na comunidade caso o condenado venha a cumprir uma pena, entre outras(32).

A desobediência epistêmica envolve um pensamento crítico de fronteira capaz de formular respostas epistemológicas dos subalternos ao projeto eurocêntrico da modernidade, visando superar as relações de opressão, exploração e pobreza perpetuadas nas relações de poder internacional. Tal pensamento fronteiriço ressignifica a ideia de democracia pela ótica de outra cosmologia, o que envolve não necessariamente inventar novos conceitos, às vezes necessários, mas se trata especialmente de resgatar os “conhecimentos outros que foram silenciados e enterrados pela colonização ocidental e que agora saíram para o espaço público com os movimentos indígenas, os movimentos negros, etc”(33).

Há diversas formas de desumanização baseadas na ideia de raça, as quais tendem a manter o negro e o indígena como categorias preferenciais da desumanização racial na modernidade(34). O paradigma que privilegia o conhecimento e nega as faculdades cognitivas em sujeitos racializados é a base da negação ontológica. Há uma desqualificação epistêmica, que se configura num instrumento privilegiado de negação ou subalternização do ser. A ausência de racionalidade está ligada à ideia de ausência de “ser” nos sujeitos racializados(35). Assim, a dimensão colonial epistêmica também se relaciona com a colonialidade do ser, dimensão ontológica de inferiorização, subalternização e desumanização(36).

Essa subalternização do indígena no âmbito penal também se dá em relação à discussão sobre sua culpabilidade. Uma das formas como a questão é tratada no Brasil é pela utilização do pressuposto da inimputabilidade, baseado na noção do “desenvolvimento mental incompleto” destes sujeitos, de forma a atrelar sua situação peculiar com a inferioridade social e econômica. É flagrante o caráter assimilacionista da expressão, ainda que possa ser considerada louvável a intenção de proteger o indígena do aparato estatal(37).

Tédney Moreira da Silva(38) alerta para a imprudência de se determinar aprioristicamente o tratamento penal de investigados ou acusados indígenas, pois somente a casuística poderá determinar a incidência dos institutos já previstos na legislação. De acordo com o autor, é possível considerar um indígena inimputável caso seja menor de dezoito anos ou realmente apresente transtorno mental, não podendo-se, contudo, assim considerá-lo tão somente por ser indígena. O indígena também pode entender o caráter ilícito de sua conduta, mas sua cultura não lhe permite comportamento diverso.

A conduta ainda pode ser considerada atípica por sua comunidade ou mesmo ser atingida pelos efeitos do erro de proibição. Para a averiguação dessas variáveis, portanto, resta evidente a necessidade de mecanismos como o laudo antropológico e a consulta à comunidade. A conduta ainda pode ser considerada atípica por sua comunidade ou mesmo ser atingida pelos efeitos do erro de proibição. Para a averiguação dessas variáveis, portanto, resta evidente a necessidade de mecanismos como o laudo antropológico e a consulta à comunidade.

Diante de toda a realidade exposta, prima-se por um judiciário que conte com um corpo técnico especializado e multidisciplinar, atento para a realidade pluriétnica e multicultural brasileira. Aponta-se também a necessidade de novas pesquisas jurisprudenciais(39) que mapeiem se a Resolução 287 vem sendo efetivamente aplicada pelos tribunais.



Notas de rodapé

(1) IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. O Brasil indígena. [s. n.]: [(.], 2009. Disponível em: <https://www.gov.br/funai/pt-br/arquivos/conteudo/ascom/2013/img/12-dez/pdf-brasil-ind.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2020.

(2) BERRO, Maria Priscila Soares; RODRIGUES, Priscilla Cardoso. A autodeterminação como mecanismo de realização dos direitos culturais: uma análise da responsabilidade penal do indígena à luz do direito brasileiro. In: LEISTER, Margareth Anne; MORAIS, Fausto Santos de; SILVA, Juvêncio Borges (coord). Direitos fundamentais e democracia I. Florianópolis: CONPEDI, 2014. p. 37-38.

(03) A exemplo da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), principal tratado vinculante acerca da temática, e da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

(04) CASTILHO, Ela Wiecko V. de; MOREIRA, Elaine; SILVA, Tédney Moreira da. Os direitos dos acusados indígenas no processo penal sob o paradigma da interculturalidade. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 7, n. 2, p. 141-160, jun. 2020, p. 141.

(05) Ibidem, p. 158.

(06) SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: Criminalização de indígenas no Brasil. 2015. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constitui- ção) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília (DF), 2015, p. 16-17.

(07) WALSH, Catherine. Interculturalidad y (de)colonialidad: Perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, p. 61-74, jan./dez. 2012, p. 65.

(08 )Ibidem, p. 66.

(09) O nome do grupo deriva da ideia de que a colonialidade é o lado obscuro e necessário da modernidade, sua parte indissociavelmente constitutiva, não existindo modernidade sem colonialidade (BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, mai./ago. 2013, p. 100).

(10) Dentre os principais nomes do grupo também figuram Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Immanuel Wallerstein, Nelson Maldonado-Torres, Ramón Grosfóguel, Boaventura de Souza Santos e outros.

(11) BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, mai./ago. 2013, p. 89.

(12) MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (eds.): El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémico más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007, p. 160-161.

(13) GROSFOGUEL, Ramon. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 115-147, 2008, p. 126.

(14) WALSH, Catherine. Interculturalidad y (de)colonialidad: Perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, p. 61-74, jan./dez. 2012, p. 63.

(15) CASTILHO, Ela Wiecko V. de; MOREIRA, Elaine; SILVA, Tédney Moreira da. Os direitos dos acusados indígenas no processo penal sob o paradigma da interculturalidade. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 7, n. 2, p. 141-160, jun 2020, p. 155.

(16) Ibidem, p. 158.

(17)“[...] embora a Resolução do CNJ não seja uma ‘lei’ feita por meio do processo legislativo, ela tem ‘força de lei’, cabendo aos juízes a sua obediência. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é órgão de controle administrativo das atividades dos órgãos e membros do Judiciário, criado por meio da Emenda Constitucional nº 45/2004, sendo facultado a este a adoção de providências para o exato cumprimento da lei” (CARDOSO, Cristina Leite Lopes; RIBEIRO, Luis Antônio Cunha; RODRIGUES E SILVA, Sandra. Coronavírus, aprisionamento e saúde indígena: a invisibilidade do etno-genocídio de Estado. Confluências, Niterói, v. 22, n. 2, p. 311-334, ago./dez.2020, p. 316). O próprio Regimento Interno do CNJ explicita que: “art. 102. O Plenário poderá, por maioria absoluta, editar atos normativos, mediante Resoluções, Instruções ou Enunciados Administrativos e, ainda, Recomendações. (...) § 5º As Resoluções e Enunciados Administrativos terão força vinculante, após sua publicação no Diário da Justiça e no sítio eletrônico do CNJ.” (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 67 de 03 de março de 2009. Aprova o Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça e dá outras providências. Brasília, DF: CNJ, [2010])

(18) BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Manual Resolução 287/2019: procedimentos relativos a pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade. Brasília, DF: CNJ, 2019, p. 15-19.

(19) BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 287, de 25 de junho de 2019. Estabelece procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário. Brasília, DF: CNJ, 2019.

(20) BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Manual Resolução 287/2019: procedimentos relativos a pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade. Brasília, DF: CNJ, 2019, p. 13.

(21) Ibidem, p. 9.

(22) CARDOSO, Cristina Leite Lopes; RIBEIRO, Luis Antônio Cunha; RODRIGUES E SILVA, Sandra. Coronavírus, aprisionamento e saúde indígena: a invisibilidade do etno-genocídio de Estado. Confluências, Niterói, v. 22, n. 2, p. 311-334, ago./ dez.2020, p. 328.

(23) BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, mai./ago. 2013, p. 103.

(24) CASTILHO, Ela Wiecko V. de; MOREIRA, Elaine; SILVA, Tédney Moreira da. Os direitos dos acusados indígenas no processo penal sob o paradigma da interculturalidade. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 7, n. 2, p. 141-160, jun 2020, p. 155, p. 147.

(25) SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: Criminalização de indígenas no Brasil. 2015. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constitui- ção) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília (DF), 2015, p. 197.

(26) BERRO, Maria Priscila Soares; RODRIGUES, Priscilla Cardoso. A autodeterminação como mecanismo de realização dos direitos culturais: uma análise da responsabilidade penal do indígena à luz do direito brasileiro. In LEISTER, Margareth Anne; MORAIS, Fausto Santos de; SILVA, Juvêncio Borges (coord). Direitos fundamentais e democracia I. Florianópolis: CONPEDI, 2014. p. 54.

(27) BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Manual Resolução 287/2019: procedimentos relativos a pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade. Brasília, DF: CNJ, 2019, p. 27.

(28) AGNOLETTO, Vitória; ZEIFERT, Anna Paula Bagetti. O pensamento descolonial e a teoria crítica dos direitos humanos: saberes e dignidade nas sociedades latino-americanas. Revista Húmus, São Luís, v. 9, n. 26, p. 197-218, 2019, p. 201.

(29) Ibidem, p. 203.

(30) SILVA, Tédney Moreira da. A Necessidade de Perícia Antropológica de Indígenas no Processo Penal. In: AMADO, Luiz Henrique Eloy (org.) Justiça Criminal e Povos Indígenas no Brasil. São Leopoldo: Karywa, 2020, p. 9.

(31)CASTILHO, Ela Wiecko V. de; MOREIRA, Elaine; SILVA, Tédney Moreira da. Os direitos dos acusados indígenas no processo penal sob o paradigma da interculturalidade. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 7, n. 2, p. 141-160, jun 2020, p. 151.

(32) BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Manual Resolução 287/2019: procedimentos relativos a pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade. Brasília, DF: CNJ, 2019, p. 17.

(33) BUSSO, Hugo; MONTOYA, Angélica Montes. Entrevista a Ramón Grosfoguel. Polis [En línea], n. 18, p. 1-13, dez. 2013, p. 7-8.

(34) MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (eds.): El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007, p. 133.

(35) Ibidem, p. 145.

(36) WALSH, Catherine. Interculturalidad y (de)colonialidad: Perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, p. 61-74, jan./dez. 2012, p. 68.

(37) FILHO, Gabriel Barbosa Gomes de Oliveira. Panorama do tratamento penal dos povos indígenas no Brasil. In: AMADO, Luiz Henrique Eloy (org.) Justiça Criminal e Povos Indígenas no Brasil. São Leopoldo: Karywa, 2020, p. 248-249.

(38) SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: Criminalização de indígenas no Brasil. 2015. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constitui- ção) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília (DF), 2015, p. 199.

(39) A exemplo da dissertação de Tédney Moreira da Silva (Ibidem), na qual foi mapeada toda a jurisprudência relativa ao tratamento jurídico-penal reservado aos indígenas nos Tribunais de Justiça, nos Tribunais Regionais Federais, no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal.

Criminologia cautelar e decolonialidade: irrupções críticas em Abya Yala (América Latina)

Bernard Constantino Ribeiro

Mestre em Direito e Justiça Social pela FURG.

Jurista e Pesquisador CAPES-DS.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/1054067067029250

ORCID: 0000-0003-2618-922X

bconstantinor@gmail.com

Roberta Cunha de Oliveira

Mestra em Ciências Criminais pela PUCRS.

Defensora Pública do Estado da Bahia.

Link Lattes: lattes.cnpq.br

ORCID: 0000-0001-5921-2639

robertacunha86@gmail.com

Resumo: A interpretação do Direito baseada unicamente na compreensão da dogmática jurídica estrita, em torno dos problemas, impossibilita uma apreensão crítica da realidade, porque produz um distanciamento problemático entre os intérpretes deste campo jurídico e o objetivo perquirido, que influirá no juízo a ser produzido. Para enxergar-se saídas para tal problemática, faz-se necessário refletir acerca da colonialidade no Direito e sua relação com a violência.

Palavras-chave: Criminologia cautelar, decolonialidade, violência.

Abstract: The interpretation of the Law based only on the understanding of strict legal dogmatics around the problems, impedes and makes a critical apprehension of reality impossible, as it produces a problematic distance between the interpreters of this legal field and the pursued objective, which will influence in the judgment to be produced. In order to see ways out of this problem, it is necessary to reflect on the coloniality in Law and your relation with violence.

Keywords: Preventive criminology, decoloniality, violence.


Data: 02/02/2021
Autor: Bernard Constantino Ribeiro e Roberta Cunha de Oliveira

Introdução

As considerações a seguir dispostas sintonizam-se com uma proposta transgressiva, de desobediência epistêmica e ênfase no que se refere à apreensão de um Direito transformador, marcado por uma compreensão e leitura da realidade fático-jurídica latino-americana dos sujeitos espoliados e silenciados. A discussão se concentra em abordar a questão da irruptividade decolonial no Direito, bem como da configuração de uma dialogicidade crítica em relação à assunção de uma criminologia cautelar, para pensarmos sobre nossos problemas sociais, afeitos à questão da institucionalização e constituição da violência como regra em nosso contexto socioambiental. Objetivamos problematizar o Direito e a Criminologia, através de uma decolonialidade do conhecimento, uma vez que, através de uma abordagem metodológica analética, proposta por Enrique Dussel (2007), é possível conectar perspectivas contra-hegemônicas que se pautam pela transformação positiva da realidade socioambiental dos sujeitos.

Os resultados desta investigação apontam para uma assunção da decolonialidade como um paradigma potencializador e articulante das discussões promovidas na Criminologia Cautelar e no Direito Insurgente. O termo Abya Yala, cunhado pelo povo Kuna, significa Terra Amadurecida, em Florescimento, é considerado uma contraposição à nomeação colonial deste espaço (América Latina), conforme Carlos Walter Porto-Gonçalves (2009), sendo aqui adotado para criar a reflexão em torno do sentido único da história dos vencedores.

A irruptividade decolonial e o Direito: do estado da arte da decolonialidade a um Direito Decolonial

A construção epistemológica de uma ciência é uma tarefa complexa e sujeita a equívocos e recortes, que de certo modo podem não agradar os mais envoltos na cientificidade estrita (gênese do positivismo científico). É importante que se tenha em mente, que conhecimento científico e saberes tradicionais são faces de uma configuração humana adotada por organizações sociais, grupos, coletivos, povos, etc., ou não; e que, portanto, podem estar afeitos a outros caminhos, lugares, propósitos e possibilidades.

Muito embora seja o conhecimento científico um sedutor caminho para o progresso da ciência e tecnologia, é indispensável que se enxergue os seus impactos sociais no mundo, sobretudo na vida de outros sujeitos que não estão no antro civilizatório, como os povos originários, em diáspora, marginalizados, oprimidos e subalternizados. Dois mundos se chocam a todo momento: o vencedor e o vencido, o explorador e o explorado, o opressor e o oprimido (DUSSEL, 1993).

Ao se estabelecerem paradigmas, modelos, orientações universais a determinadas condutas, nasce a consciência de luta de classes, tendo em vista que se busca uma sociabilidade, convivência pacífica e paz perpétua, contudo, também se arquitetam violações, preconceitos, manipulações de massa e programas de controle daquilo que importuna e prejudica a manutenção do status quo.

O Direito não é um mecanismo de controle social alheio a estas questões, pelo contrário, é o meio pelo qual se operacionalizam muitas das aberrações jurídicas e das constantes e manifestas violações de direitos humanos em nosso contexto socioambiental. Não se vislumbra outra possibilidade, senão questionando a configuração dos processos de negação, obstaculização e apagamento das subjetividades do sujeito no ‘campo jurídico’ (STRECK, 2014). Assim, dentre as ramificações da colonialidade, concentramo-nos na reflexão da colonialidade do poder (QUIJANO, 2002), que implica no que se desenvolve no plano jurídico.

No que se refere a uma compreensão séria sobre este tema, é preciso de antemão uma pausa física e mental. Estamos acostumados e condicionados a uma execução quase que ininterrupta do Direito e, portanto, pouco ou quase nada refletimos em torno da sua construção enquanto Ciência normativa. Estabelecida tal premissa, demonstramos a perspectiva adotada para convergir esforços em torno de um Direito Insurgente, calcado num arcabouço teórico afeito ao pluralismo jurídico comunitário participativo (WOLKMER, 2007) e de uma de suas conformações político-jurídicas críticas (direitos humanos) na teoria crítica proposta por Joaquín Herrera Flores.

Como uma proposta irruptiva, de tensionamento e possível quebra epistemológica da imposição colonial, a decolonialidade demonstra, através do tensionamento de categorias hierarquizadas e condicionamentos, a imprescindibilidade de se debater questões atinentes à subjetividade e ao desenvolvimento da identidade dos sujeitos, frente às adversidades (RIBEIRO, 2018), subsistindo de certo modo uma dominação simbólica (BOURDIEU, 1989), quando não realizada esta ação.

A tarefa elementar consubstancia-se em revisitar de fato aquilo que entendemos estar dado como certo, como correto, posto que ‘aquela era a mentalidade da época’. É preciso retornar ‘à ferida’ para de fato criar o processo de cura, que passa por dialogar, debater e recontar a história através da fala, do posicionamento, da demonstração pública do impactado ou de seus ascendentes, descendentes. Uma cura construída a partir da restituição da voz ao oprimido. Precisamos conceber que Direito não significa apenas norma, “[...] é, antes, um conjugado de fatores sociológicos, normativos, políticos, ambientais e éticos” (RIBEIRO; FIGUEREDO; SPAREMBERGER, 2019, p. 994).

Raquel Fabiana Lopes Sparemberger adverte: “[...] se pode questionar como uma ciência como o Direito pode permanecer alheia a valores, se o princípio fundamental dessa área do saber é trabalhar com questões humanas, que são variáveis, jamais estáticas ou vinculadas à norma posta” (SPAREMBERGER, 2013, p. 90). Posto que, ao se pautar por um Direito Insurgente, é preciso reconhecer que devemos vislumbrar outros caminhos, conectando resiliências, resistências e transformações comprometidas, em relação à realidade socioambiental em que estamos alocados, devemos nos manter impermanentes, com abertura e reconhecimento.

Um Direito que se pretenda decolonial, deve partir de uma compreensão da transmodernidade (DUSSEL, 1993) e pluriversalidade (MIGNOLO, 2017) para enxergar-se como um fenômeno social, que está composto por pluralismos e cosmovisões que o tensionam e o demandam para acompanhar crítica e insurgentemente a transformação que se está processando mundialmente.

Criminologia marginal e a dialogicidade crítica: insurgências epistêmicas no Sul global

Desde a invasão colonial na América Latina, a permeabilidade dos efeitos perversos dos sistemas de controle sobre as subjetividades transformou a violência fundadora em estruturas desiguais de poder e de criação de ‘vidas que valem menos do que outras’: a dos ‘inimigos sociais’. Contudo, ainda que a criminologia crítica tenha se ocupado da análise da expansão do poder punitivo a partir da década de 1970, são recentes e escassos os estudos acerca de uma ‘criminologia cautelar’, capaz de prevenir os Crimes de Estado.

Nem toda violência institucional irá ser dessa magnitude, mas, quando a criminologia se ocupa dos crimes de massa, pode fornecer instrumentos teóricos e práticos que provoquem fraturas na espiral da violência ou ao menos um controle mais efetivo das práticas violadoras no cotidiano das agências punitivas. O conceito de Crimes de Estado apresenta diversos vieses: criminalidade macroeconômica, corrupção e criminalidade transnacional, crimes contra a humanidade, genocídios, massacres (ROTHE, 2013). Todavia, como convite à reflexão a partir do lugar de resistências, a perspectiva aqui adotada é a da descolonização na análise dos Crimes de Estado, a partir da crítica ao genocídio colonial (WOOLFORD, 2013, p. 147) e suas marcas na estrutura da violência institucional contemporânea.

No Brasil, o legado da violência autoritária, desde o etnocídio indígena e da escravidão, atualmente naturaliza o genocídio da população negra e possui uma relação intrínseca com o racismo e a desigualdade estruturantes da nossa sociedade. Percebese que a nossa ‘consolidação democrática’ ocorreu por meio do esquecimento oficial dos massacres como uma violência não elaborada coletivamente e que tende, patologicamente, a se repetir sob diferentes aspectos.

Tal continuidade recoloca a pauta da violência institucional enquanto violência fundadora. De forma que, as violações são ‘normalizadas’ na engrenagem da máquina estatal, como a tortura, grupos de extermínio e execuções extrajudiciais, configurando-se um ‘sistema penal paralelo’ (ZAFFARONI, 2011), o qual instrumentalizou o ‘estado penal subterrâneo’, através da ramificação das técnicas de expansão do medo.

Conforme apresentado no primeiro tópico, a América Latina, enquanto a “[...] outra cara da Modernidade” (DUSSEL, 2007, p. 138), ingressou no ocidente com a “negação originária do outro”. Dita construção do estereótipo do criminoso permeou os discursos da “guerra justa” colonial, transformando as colônias em verdadeiras ‘instituições de sequestro’ (ZAFFARONI, 1991). Outrossim, ao longo do século XX, os Estados produziram internamente quase o dobro de mortes do que as “guerras” internacionais e tal dado se acentua nos territórios de maior desigualdade social (WORSE THAN WAR, 2009 apud ZAFFARONI, 2011).

Destarte, o realismo penal marginal há muito tempo dialoga com os postulados éticos libertários de Enrique Dussel, pois prioriza a pessoa vitimada, com a responsabilidade do ‘responder por ela’. Ao analisar a realidade, a criminologia marginal de Zaffaroni ‘fala’ a partir dos mortos que ficam depois de cada massacre e é nessa voz que encontramos a criminologia cautelar (ZAFFARONI, 2011, p. 555).

Nesse sentido, o referido autor pauta duas formas preventivas da violência massiva: “a prevenção primária e a prevenção secundária”. A primeira, em muito se assemelha ao pressuposto ético das vítimas para as quais a ‘alteridade/outridade’ induz ao novo postulado de justiça. Já na segunda forma preventiva, Zaffaroni desenvolve a ideia de meios alternativos de resolução de conflitos ou modelos mais efetivos que o modelo tradicional, como “[...] os reparadores, reconstitutivos, terapêuticos e conciliadores, entre outros” (ZAFFARONI, 2010, p. 78).

Por outro lado, considerando que a violência ao ‘negar o outro’ é uma ‘violação ética’ (BENJAMIN, 1986), é a sua ‘potência mimética’, não natural, que normaliza o comportamento violento como algo inevitável (RUIZ, 2011, p. 115). Dessa forma, a naturalização da violência acaba por ‘normalizar as vítimas’ e inviabilizar uma justiça efetiva, apresentando um potencial contaminante que se retroalimenta (RUIZ, 2013, p. 85).

Algo de humanidade se esvai nestes contextos, não somente no âmbito privado, mas também no âmbito público, e dita perda precisa ser elaborada com a produção de memórias da violência pelos selecionados do sistema no campo dogmático e processual penal. Se cada penitenciária, no contexto brasileiro, é uma expressão do ‘campo’, o imperativo categórico de Theodor Adorno ‘para que não se repita Auschwitz’ e sua ‘ética negativa’ (SOUZA, 2004) não se restringe aos crimes contra a humanidade. A criminologia cautelar, enquanto ferramenta preventiva dos Crimes de Estado, carrega a carga de ‘não repetição’, em conjunto com a ‘responsabilização’, enquanto assunção da alteridade.

De tal forma que é necessário interromper a mimese da violência e sua espiral fundante. Eis a importância de uma ‘criminologia cautelar, preventiva’, através do reconhecimento e da assunção de responsabilidade pelo ‘outro violado’. Tal práxis vai ao encontro de uma ‘filosofia anamnética da justiça’ (MATE, 2005), a qual trata do conceito concreto de justiça, a partir das injustiças produzidas pelas hierarquias entre grupos humanos e que permite que se realize um ‘trabalho de memória’ (RICOUER, 2007).

A procedibilidade de uma justiça anamnética, através desta percepção, apresenta-se como uma das possibilidades à neutralização da mimese da violência, com a quebra do seu círculo vicioso, o qual permite ao poder político decidir acerca da expiação pela construção social dos grupos ‘inimigos’, possibilitando o reencontro constante com ‘a sua outra cara’. Portanto, essa ‘exigência de justiça’ necessita de uma justiça anamnética, ou seja, uma justiça que analise o passado como condição do presente e um ‘porvir’. Uma justiça que tenha como centro a memória da violência, com a interrupção da mimese da violência fundadora.

Considerações informativo-consultivas

Como o propósito desta reflexão é oferecer aos leitores informações teórico-críticas, entendemos que as intersecções entre o pensamento decolonial, criminologia e ‘memória coletiva da violência’ auxiliam a percepção da violência institucional como estrutura configuradora da nossa sociedade. Sendo assim, apontam-se considerações importantes para o desenvolvimento desta decolonialidade no campo jurídico.

1. Precisamos conceber o Direito como um fenômeno social, ou seja, não como um fim em si mesmo. 2. A colonialidade (como uma das interfaces imperiosas da modernidade) entremeou-se em todas as dimensões do ser, determinando assim o silenciamento, a institucionalização e a constituição da barbárie como regra. 3. A decolonialidade nomeia àquilo que já se consolidou e mantémse em consolidação em torno da irruptividade, frente às situações não desejadas e impostas colonialmente ao Sul global periférico. 4. Tal diálogo pode construir um conceito e uma práxis de justiça, a partir dos esquecidos, que têm sua dignidade saqueada. Cabe à criminologia, enquanto crítica da violência, se ocupar dos Crimes de Estado, com alternativas possíveis à prevenção dos crimes de massa contemporâneos. 5. Assim, uma justiça anamnética pela ‘dimensão pedagógica da memória’ possibilita o diálogo intergeracional, com a consequente assunção de responsabilidades para a consolidação de uma cultura de promoção dos direitos humanos, a qual reclama produzir memórias da violência como violação ética, que produz a ‘morte simbólica do outro’, sendo uma ferramenta que auxilia a criminologia cautelar enquanto preventiva dos massacres ao ‘dar voz’ aos excluídos e às vítimas transformadas em bodes expiatórios com o monopólio da violência pelo Direito.



Notas de rodapé

BENJAMIN, Walter. Crítica da violência: crítica do poder. São Paulo: Cultrix, 1986.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989.

DUSSEL, Enrique. 1492, O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.

DUSSEL, Enrique. Materiales para una política de la liberación. Madrid: Plaza y Valdés Editores, 2007.

MATE, Reyes. Memórias de Auschiwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.

MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Tradução de Marco Oliveira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, jun. 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v32n94/0102-6909-rbcsoc-3294022017.pdf. Acesso em: 27 out. 2020.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Entre América e Abya Yala – tensões de territorialidades. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 20, p. 25-30, jul./dez. 2009. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/made/article/view/16231/10939. Acesso em: 6 jan. 2021.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Revista Novos Rumos, Marília, ano 17, n. 37, 2002. Disponível em: http://www.educadores. diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/veiculos_de_comunicacao/NOR/NOR0237/ NOR0237_02.PDF. Acesso em: 27 out. 2020.

RIBEIRO, Bernard Constantino. Direito e decolonialidade: prefigurações contrahegemônicas e insurgentes em Abya Yala (América Latina). 2018. Dissertação (Mestrado em Direito e Justiça Social) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 2018.

RIBEIRO, Bernard Constantino; FIGUEREDO, Guilherme Augusto dos Santos;SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes. A insurgência decolonial frente a negação do diferente: a (re)constituição de um novo direito a partir da emersão das camadas sociais marginalizadas. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, ano 5, n. 2, p. 991-1014, 2019. Disponível em: http://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2019/2/2019_02_0991_1014. pdf. Acesso em: 27 out. 2020.

RICOEUR. Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.

ROTHE, Dawn L. Teoría criminológica y crímenes de estado: cuán lejos se puede llegar? Revista Crítica Penal y Poder. Barcelona, volumen especial, n. 5, p. 1-24, septiembre, 2013.

RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. O direito à verdade e à memória – por uma justiça anamnética: uma leitura crítica dos Estados de Exceção do Cone Sul. Relatório Azul. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do RS, Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, 2011.

RUIZ, Castor M.M. Bartolomé. (In)justiça, violência e memória: o que se oculta pelo esquecimento tornará a repetir-se pela impunidade. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (coord.). Justiça de Transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

SOUZA, Ricardo Timm de. Razões plurais: itinerário da racionalidade ética do século XX. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2004.

SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes. A ciência do Direito: uma breve abordagem. Revista Direito em Debate, Ijuí, v. 9, n. 14, 2013. Disponível em: https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/ view/803/521. Acesso em: 27 out. 2020.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: nuevo marco emancipatorio en América Latina. In: RANGEL, Jesús Antonio de la Torre. Pluralismo Jurídico: teoría y experiencias. Aguascalientes: Cenejus, 2007.

WOOLFORD, Andrew. La nueva generación: criminología, estudios sobre el genocidio y colonialismo de los colonos. Revista Crítica Penal y Poder, Barcelona, vo. especial, n. 5, p. 138-162, sept. 2013.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crímenes de masa. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ediciones Madres de la Plaza de Mayo, 2010.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: conferencias de criminología cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011.

Ebó criminológico: Malandragem epistêmica nos cruzos da criminologia da libertação negra

Luciano Góes

Doutorando em Criminologia na Universidade de Brasília (UnB).

Professor do curso de Pós-Graduação (especialização) em Criminologia do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Advogado Abolicionista Afrocentrado.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/6620359831455900

ORCID: 0000-0002-6033-4964

lucianogoesadvs@gmail.com

Resumo: A Criminologia é um saber de cruzos que na margem possui um potencial insurgente regido por Exú, orixá da comunicação (des)ordeira, que incorpora epistemes afrocentradas, forjadas em rodas onde Zé Pilintra risca a resistência malandreada, quebrando demandas do sistema de controle racial brasileiro, despachando carregos criminológicos e abrindo caminhos para uma Criminologia da Libertação Negra.

Palavras-chave: Criminologia da Libertação, Afrocentricidade, Exú, Zé Pilintra.

Abstract: Criminology is a knowledge of crosses that in the margin has an insurgent potential ruled by Exú, orixá of (un)orderly communication, that incorporates afrocentrics epistemes, forged in wheels where Zé Pilintra scratches the naughty resistance, breaking demands of the Brazilian system of the racial control, dispatching criminological loads and opening ways for a Criminology of Black Liberation.

Keywords: Criminology of Liberation, Afrocentricity, Exú; Zé Pilintra.

Data: 02/02/2021
Autor: Luciano Góes

1. INTRODUÇÃO

A Criminologia nasce do cruzamento do racismo com o positivismo, inaugurando um instrumento de dominação colonial cientifizado. Após mais de um século, o encontro entre teorias marxistas e filosofia de libertação falseam a criminalidade ontológica e fundamentam a Criminologia da Libertação que explicita a função ideológica programática do sistema de controle informal sobre o formal, de modo que, sem compreendermos sua transmissão, não entenderemos o funcionamento do plano formal, responsável pela socialização secundária, imposta quando a socialização primária fracassa (CASTRO, 2005, p. 39).

A violência física explícita, um dos nossos carregos criminológicos,2 escamoteia as violências informais no “subterrâneo”, onde manifestam a ideologia da classe dominante: “enquanto o sistema penal aparente formula expressamente o que é ‘mau’ nos códigos através das incriminações, o sistema penal subterrâneo é o que decretará o que é ‘bom’. E, consequentemente, quem são os “bons” do sistema social” (CASTRO, 2005, p. 128). No sistema informal encontramos a gestão de aceitação ou negação da ideologia dominante que condiciona integração à obediência, por isso o Cristianismo é fundamental, pois determina docilidade e acatamento: “aquele que obedece, isto é, que faz boa obra, não deve temer a autoridade. Produz-se assim uma confusão entre obediência e o bem, que nunca mais desaparecerá” (Ibid., p. 156).

Apesar da sedução em seus termos geo-políticos descoloniais e de sua imprescindível importância no apontamento às religiões populares para deslegitimar o princípio da defesa social, é preciso explicitar as armadilhas raciais que negligenciam o racismo nessa “libertação”, quebrando os grilhões impostos pela branquitude crítica - que mantém sua hegemonia e nossa objetificação enquanto negrotema (RAMOS, 1957, p. 171) - trazendo-a para o meio da roda marginal, onde seu corpo duro e passos descompassados são evidenciados pela marcação decolonial, ritmando o giro criminológico afrocentrado que inverte posições e nos conduz por caminhos imcompreensíveis e invísiveis para olhares coloniais e colonialidades modernizantes.

2. ENCRUZILHADA RACISTA: CARREGOS CRIMINOLÓGICOS NO SISTEMA DE CONTROLE RACIAL INFORMAL

A morte negra é sustentáculo da arquitetônica racista brasileira, manifestada no âmbito formal com o controle de nossos corpos através do uso da violência legítima, monopolizada pelo Estado e, por quase quatro séculos, legalizada pela escravidão. Com seu colpaso, nosso sistema de controle foi, imediatamente, reorganizado sobre pilares escravocratas pintados de democráticos através da “tradução” do arsenal racista da Criminologia Positivista que transformou o negro em “criminoso nato” com o paradigma racista-etiológico fundante do Direito penal do autor, promovendo a seletividade racial no Direito penal declarado, que inaugurou o encarceramento da massa preta, e continuando com o genocídio através do Direito penal paralelo, em termos de guerra racial estabelecida na “guerra contra as drogas”, inaugurada em 1830 e legitimada constitucionalmente (GÓES, 2016).

A natureza da “democracia racial”, monopolizada pela branquitude, se mantém pela capilaridade do sinhorismo que funcionaliza vários carregos criminológicos arriados em terreiro colonial – enunciando a programação racista de nosso aparato punitivo que tem o corpo negro enquanto pharmakon (MBEMBE, 2017) – demandando um sistema de controle protecionista contra seu revés, a reação pela condenação a sobreviver em incessante estado de violência manifestado pela necropolítica, estribada na inimizade racial (MBEMBE, 2018).

A necessidade da morte do Ser-negro diaspórico só pode ser compreendida se preenchermos as lacunas genéricas da necropolítica com as especificidades do genocídio do negro brasileiro, já que nessa morte se inscreve a perda de potência, esquecimento e desencantamento (RUFINO, 2019, p. 15). Assim, a amplitude do processo de branqueamento, elencada por Abdias Nascimento, ilumina múltiplos caminhos que emergem dos cruzos que nos constituem, conferindo um panorama atemporal da dimensão genocida que despotencializa existências pretas.

Desta forma, retorno à Criminologia da Libertação para riscar o ponto: a libertação negra começa pela deslegitimação da latinidade que renega sua matriz negra. Por isso o pretoguês de Lélia Gonzales (1988) alinha metodologia e práxis em uma política sankofaquiana3 que se instrumentaliza da reconceituação, conforme leciona Nego Bispo, já que uma das armas coloniais mais eficazes na denominação é o esvaziamento de sentidos pela abstração, nos enfraquecendo. É aí que a ancestralidade demonstra sua força, apossando-se da palavra e movimentando-a em nosso favor (SANTOS, 2019, p. 25).

O sistema de controle informal é integrado por um emaranhado de artimanhas, que “dissimula” a violência nas agências responsáveis pela sociabilidade primária (dentre elas educação e religião), que reproduz os valores da classe dominante acionando o Direito penal subterrâneo. Em nossa margem, tal processo se apresenta como branqueamento e assimilação, envoltos pelo epistemicídio na educação, mas principalmente pela religião cristã, fundamental para a escravização e manutenção da arquitetônica racista ao ser responsável pela reprodução da subserviência negra, disseminando a ideia de salvação única por mãos brancas, obstaculizando identificações arquetipadas consoante o panteão africano.

Assim, a demonização das religiões de matriz africana não foi sem propósito, mas um estratagema branco de dominação e, sobretudo, neutralização da resistência negra, que tem nos terreiros sua incorporação, refazendo passos das insurgências negras tão temidas por sociedades racistas.

3. MALANDREANDO ENTRE ESQUINAS E ENCRUZILHADAS: ESTRATÉGIAS NEGRAS MARGINAIS

Voltando à encruzilhada racista criminológica para despachar seus carregos (necropolítica, genocídio, presunção de periculosidade e epistemicídio), a insurgência negra rompe os aprisionamentos colonialistas com saberes forjados nas rodas cosmo-filosóficas diaspóricas, abrindo “novos” caminhos ao que é primordial para redimensionar os cruzos, transformar sentidos e subverter lógicas racistas, pois ali reside o dínamo da desordem, Exú, o movimento em deidade, o princípio de tudo e sem o qual nada é realizado, é senhor dos caminhos de nossa libertação.

O Orixá mais próximo a nós, elo entre polos cabaceiros, é o mais controvertido do panteão africano por ser o dono do verbo, mestre da comunicação e, portanto, da confusão (em sentido amplo) pelos ditos mal-entendidos, não compreendidos ou/e ignorados, cria ao desconstruir e ordena ao desordenar. Sua potência inventiva insubordinável a processos criminalizantes se manifesta enquanto episteme ao reger a lei orúnica do retorno, que transcende e transmuta corpos resignados em desobedientes, podendo recompensar, mas, também castigar, uma vez que sua metodologia é desprovida de qualquer resquício da moral cristã, e com ela, nos vingamos e saímos dando estrondosas e deliciosas, gargalhadas.

Ejaculando o poder da criação, Exú vadeia despachando carregos arriados nas encruzas criminológicas com potência transgressora, dinamizando inspirações ancestrais que fazem brotar possibilidades múltiplas na produção de instrumentos, estratégias, resistências e existências pelas quais é possível ver e caminhar por caminhos invisíveis, improváveis e impossíveis se mantida a postura opressora e violenta racista/colonial/colonialista que caracteriza a base do mundo branco e seu sistema de controle racial, que tem como premissa fundante o princípio do bem e mal.

Instituído na concepção simplória de relações contrapostas pelo dualismo excludente que reproduz continuadamente o conflito etéreo, seu funcionalismo como lição basilar do controle racial informal se relaciona com o olhar racista predisposto a outrificação, responsável pela propensão primitizante da cosmogonia africana. Tal normatização apequenada de compreensão do(s) mundo(s) é, desde logo, despachada por Exú, pois ele é o “Senhor da Terceira Cabaça” e em seus domínios tudo que pode ser bem, também pode ser mal; o silêncio pode ser discurso; o veneno pode ser a cura e o invisível fazer-se visível, e isso tudo ao reverso; enfim, todo ponto final pode ser reticencias, projetando infinitas formas de novos, e inesperados, inícios.

Crítico nato e radical, não foi sem propósito que Exú foi criminalizado, marginalizado e, por fim, demonizado, na tentativa de aprisioná-lo no cárcere infernal, neutralizando o manancial de força subversiva que é, tornando-se inimigo do Cristianismo que o apresenta como o mal incarnado, espelhando, assim, o processo phamakológico racista que foi alinhavado à pele preta. Invocar Exú é cantar para que a estratégia racista suba, se dissipe no ar, como a fumaça resultante do fogo que tacamos nas plantations do saber epistemicida (SIMAS; RUFINO, 2018), encrustado no racismo religioso que integra o sistema de controle racial informal, que manipula a gramática de violência inscrita em nossos corpos igualmente diabolizados.

Transformador, transfigurador e transitante entre nossas rodas (outrora criminalizadas pelo Direito penal declarado e hoje pelo paralelo), as filosofias de terreiro alimentam e sustentam nossa resistência, que se abrigou no sincretismo como estratégia de sobrevivência e aquilombamento, resultando na Umbanda onde Exú, de orixá a encantado, demarca nos cruzos o território do povo da rua que por aqui baixa. Chegando de viés pra sambar no miudinho, Zé Pilintra, nego velho bamba de berço e considerado em qualquer roda, leva nossas demandas ao centro da discussão, balançando no ritmo da canoa, envergando para não quebrar.

Símbolo máximo da malandragem, Seu Zé ensina que, para jogar com cartas marcadas num jogo que a banca racista sempre ganha, é imprescindível elaborar estratégias, subverter regras (im)postas, esconder cartas nas mangar, blefar e, obviamente, trapacear. Se a cartada final é fatal, seja qual for a nossa jogada, temos a obrigação de desobedecer às normas de um jogo injusto, cuja aposta é vidas pretas. Na pedagogia criminológica malandreada, invertese as investidas de controle sobre nossos corpos, produzindo contragolpes na malemolência abusada, ressignificando conceitos naturalizados pela branquitude, reinserindo conteúdo e direcionando a belicosidade inscrita em sua nova essência contra o sistema de controle racial, chumbando em seus pilares saberes palmarinos com poder de implosão.

Assim, no traçado que risca forte pontos no tapete, sambando no fio na navalha, Seu Zé faz girar fora dos prumos instrumentos de controle, (re)quebrando seus mandos em esquinas onde a malandragem, criativa e insubordinada, transformou vadiagem em vadiação (RUFINO, 2019) na categoria que lhe é peculiar, alinhando elegância (que encanta os olhos brancos pela estética eurocêntrica), sorriso sarcástico e periculosidade preta (encoberta por seu terno branco). Malandragem é o improviso diante do cerco, a criação de uma saída inexistente para revidar e revirar a imobilização a que somos sentenciados, ditando o vínculo entre antirracismo e anticapitalismo, demonstrando a destruição fundada no projeto branco de mundo e seus dogmas, incluindo sua ideia de “trabalho”, essencial a uma dignidade caracterizada pelo consumismo predatório.4

A malandragem reescreve, aqui, a marginalidade como geradora de estratégias inventivas, energias vivas e irresignadas ante o destino traçado pelo sistema de controle racial, ditando enredos sobre rasteiras sutis com as quais tomamos o lugar do centro, arrancando das mãos brancas o papel principal. Ao resgatar saberes ancestrais, altera substancialmente a perspectiva decolonial Sul-Sul em MorroAsfalto que evoca sediciosidade, insurgência e revide a cada “tapa” como fundamentos de legítima defesa e resistência negra.

4. EBÓ CRIMINOLÓGICO À GUISÁ DE CONSIDERAÇÕES INICIAIS: CORTES À NAVALHA NO TECIDO DEMOCRÁTICO RACISTA

Na margem de cá da Calunga grande,5 a arquitetônica racista tutela a branquitude e sua hegemonia, através da necropolítica, genocídio e encarceramento da massa preta, complementados pelo epistemicídio e branqueamento que integram seus processos de socialização, programas assimiladores que formam a rede de controle racial informal. Por sua “função reprodutora”, a demolição do sistema de controle racial formal só é possível se o sistema racial informal for desconstruído, cujo pré-requisito é arrancarmos as máscaras brancas de um sistema de controle racial para expor suas raízes racistas, e as feridas abertas pelas chibatadas seculares, enfatizando que seu modelo de socialização opera sob a forma de epistemicídio e branqueamento como métodos neutralizantes das insurgências pretas.


Exú se manifesta aqui como epistemologia que deslegitima todo sistema de controle racial informal, representado pelo racismo religioso, anunciando a Criminologia da Libertação Negra e, com ela, abrindo caminhos com o manuseio da lâmina em sua cabeça para denunciar as violências racistas e da ancestralidade, memórias coletivas que se entrelaçam nos assentamentos do projeto negro de mundo, estruturado na ética umbuntista6 que fundamenta uma democracia multirracial.

Nossa liberdade jamais virá pelas mãos brancas, mas pela epistemologia de Exú que transforma o fim em início, uma vez que sua essência é o movimento. Elegbará, enquanto Senhor da Vida e do corpo negro, é senhor de nossa resistência, que transforma as propostas brancas aprisionantes em programas emancipatórios pelos quais protagonismo e autodeterminação são sentidos obrigatórios, desvelando que nosso inferno é o branco, já que, na cosmologia africana, não existe esse tal inferno (muito menos esse deus de olhos azuis). Do cruzamento das rodas, rebentas de senzalas e quilombos, baixam existências que desafiam a racionalidade branca e (re)constroem inúmeros instrumentos para a (sobre)vivência negra.

É assim que a pedagogia malandreada abre a roda criminológica e com a qual se projeta o amanhã por passos traçados ontem. Bamba de berço, Zé leciona que devagar também é pressa e como transformar o fio da navalha racista em passarela ao redefinir o trabalho no sentido capitalista e sua obrigatoriedade dignificante cristã, não renegando a periculosidade, riscada em forma de indolência quilombista, mas a escondendo sob a “civilidade” elegante de terno e sapatos encarnados, bem alinhados, indiferenciando malandro e marginal, que já não pode ser mais entendida como sinônimo de “bandido”, mas atributo da personalidade de corpos forjados nas batalhas cotidianas traduzidas por vivência na exclusão das margens da margem brasileira, portadoras de potencial transformador pela ludibriação e postura desordeira.

A feitura de uma Criminologia malandreada, despachada nas encruzilhadas do terreiro marginal, inverte as normatizações que concretizam o genocídio negro em levantes quilombistas, individuais e coletivos, para derrubar discursos hegemônicos de nossa democracia racista que tenta anular existências vocacionadas à liberdade, reorganizar a gramática da violência em nosso favor ao saudar presenças que pulsam resistências, que mostram que quem gargalha, ri muito melhor de quem ri por último.

Com um sorriso malicioso e arteiro, alinham-se as navalhas de Exú, de Seu Zé e a minha; guardada sob o paletó bem aprumado, minha navalha é minha escrita... nossas vivências, nossos corpos não serão desconsiderados e ignorados sem uma “banda” que a branquitude nem saberá de onde veio. A roda é nosso mundo e, em meu convite para vir ao meio dela, pisa devagarinho, zé mané, a malandragem é minha guia e brincadeira tem hora. Saravá!


Notas de rodapé

1 “Exú, abre- me os caminhos, Eu me prosto em reverência.”

2 Carga multifatorial criminalizante, que programa a seletividade racial, atribuída a corpos negros e suportada por eles.

3 Sankofa, integra o Adrinka, conjunto de símbolos de origem Akan. Aqui, expressa o sentido de “voltar e resgatar a ancestralidade negada”.

4 Na pedagogia da malandragem, a concepção de trabalho é também reconceituada, dando lugar à vadiação que encanta no ponto: “trabalhar pra que, trabalhar pra que... se eu trabalhar eu vou morrer”!

5 Oceano Atlântico.

6 Derivada da filosofia africana Ubuntu.

CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertação. Tradução: Sylvia Moretzsohn. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

GÓES, Luciano. A “tradução” de Lombroso na obra de Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2016.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, nº. 92/93, Rio de Janeiro, jan./jun.1988.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 2ª edição. São Paulo, N-1 Edições, 2018.

______. Políticas da Inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.

NASCIMENTO. Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3ª ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.

RAMOS, Alberto. Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes Ltda, 1957.

RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.

SANTOS, Antonio Bispo dos. As fronteiras entre o saber orgânico e o saber sintético. In Garcia; NASCIMENTO, Wanderson Flor do. (Orgs). : OLIVA, Anderson Ribeiro; CHAVES, Marjorie Nogueira; FILICE, Renísia Cristina Tecendo redes antirracistas: Áfricas, Brasil, Portugal. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: as ciências encantadas das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.

A "pena de morte" no estado pós-colonial: O sistema carcerário sob a ótica da necropolítica e da injustiça social

Ana Paula de Mattos Calich

Mestre em Economia Política Internacional pela UFRJ.

Bacharel em Relações Internacionais pela UFRGS e bacharelanda em Direito pela UCSAL.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/1968328863974507

ORCID: 0000-0002-5723-3775

anapcalich@hotmail.com

Resumo: Ainda que a pena de morte seja expressamente vedada pelo ordenamento jurídico, pode-se mencionar sua ocorrência por meio de práticas do Estado brasileiro, notadamente o sistema carcerário. Por suas características singulares, o presente artigo apresenta o mesmo como “pena de morte ficta”. A possibilidade da sua ocorrência está diretamente vinculada à lógica da necropolítica, do colonialismo e da injustiça social, que marcam significativamente a sociedade e a história do país.

Palavras-chave: Pena de Morte, Necropolítica, Injustiça Social, Sistema Carcerário.

Abstract: It can be argued that the death penalty, although expressly prohibited by the Brazilian legal system, occurs through the prison system. Due to its unique characteristic, this article presents it as the “assumed death penalty”. The possibility of its occurrence is linked to the logic of necropolitics, colonialism and social injustice that mark the country´s society and history.

Keywords: Death Penalty, Necropolitics, Social Injustice, Prison System.

Data: 02/02/2021
Autor: Ana Paula de Mattos Calich

INTRODUÇÃO

A realidade social brasileira, fortemente marcada pela iniquidade social e pelo racismo estrutural, faz com que se perceba um afastamento significativo entre as circunstâncias fáticas vividas e o dever-ser jurídico. Este afastamento é tão severo que, ainda que expressamente proibida em nossa Constituição Federal, possa-se falar, de forma alusiva, na existência da “pena de morte” no país ao se abordar o sistema carcerário.

Assim sendo, o presente trabalho parte da hipótese de que a pena de morte existe faticamente no Brasil, ainda que não seja tutelada pelo ordenamento. Seu objeto é, assim, o sistema carcerário à luz da necropolítica e da iniquidade social. O objetivo, então, é explicitar como esta prática pode ser equiparada à pena de morte.

A metodologia utilizada para a realização da pesquisa será de caráter hipótetico-dedutivo, partindo de uma  análise teórica que compreende aspectos da necropolítica e da iniquidade social no país, e da empiria do sistema penitenciário. A justificativa do presente trabalho, destarte, parte da percepção de que não é possível o estudo do direito penal sem abordar tais temas e de que existe uma realidade no Brasil que o ordenamento jurídico simplesmente ignora (e, como tal, também não combate) de violação de um dos direitos mais caros constitucionalmente, qual seja, o direito à vida, e que tal debate não pode ser desprezado, em especial quando se trata de um país em que se diz viver em um Estado Democrático de Direito.

1. A “PENA DE MORTE” NO BRASIL COMO UMA FACETA DA NECROPOLÍTICA E DA INJUSTIÇA SOCIAL

O ordenamento político brasileiro veda expressamente a denominada pena de morte já no artigo 5º da Constituição Federal, que versa: “XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada [...]”. Ainda que o país não se encontre em estado de guerra declarada, contudo, algumas práticas de extermínio de parte da população são perpetuadas de forma corriqueira, sem a imposição de qualquer constrangimento real do sistema jurídico, sendo a norma instrumentalizada, inclusive, para viabilizá-las.

Esta realidade fática, ignorada pelo ordenamento, pode ser compreendida sob a ótica da teoria da necropolítica. Tal termo, cunhado pelo autor camaronês Achille Mbembe, busca compreender as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte. Para Mbembe (2015), a necropolítica consistiria em um constante Estado de exceção, o que implica a produção constante da morte – “a ‘paz’ assume a face de uma ‘guerra sem fim’” (MBMEBE, 2015, 132). Seria dessa forma que o Estado moderno e pós-colonial expressaria sua soberania, outro conceito-chave na obra do camaronês.

É digno de nota o marco conceitual do autor, que parte de uma análise do Estado pós-colonial. No presente artigo, parte-se da interpretação que, para realmente compreender a sociedade brasileira e seus fenômenos, é imprescindível partir de uma base teórica cuja origem seja o Sul global, tendo em vista as especificidades da formação destes Estados, o que tem implicações inseparáveis da lógica da violência neles A falta de abrangência teórica para explicar uma realidade como a brasileira, tanto quando falamos nas teorias criminológicas quanto, de modo mais geral, nas teorias da justiça, explicam-se pelas abordagens universais e universalizantes com relação ao sujeito, o que leva à sua obliteração (CUNHA; ASSY, 2017). Assim apontam Cunha e Assy (2017, p.194) quando explicam que “um dos preços dessa abstração é a negação da atribuição de valor teórico às experiências de injustiça”.

A soberania, portanto, seria a capacidade de definir quem importa e quem não importa dentro de um Estado (MBEMBE, 2015, p.135). Ou seja, soberania seria o exercício do poder de matar. Pode-se pensar, então, em um regresso à ideia de criação de um “inimigo” como elemento de coesão social. Aqui, contudo, esta criação perpassa a desumanização de parcela da própria população, relativizando-se a ideia de cidadania, uma vez que, mesmo cidadãos, alguns possuem mais direitos do que os demais. Isto, segundo Mbembe (2015), estaria diretamente vinculado à ideia de Estado de exceção. A emergência da “ameaça do inimigo”, portanto, é o que justifica a tomada de medidas drásticas e totalitárias.

A lógica da colonização, portanto, é o que permite, inicialmente, falar sobre necropolítica no Brasil. Lembra-se que a matriz colonialista é essencialmente conflitiva  (CUNHA; ASSY, 2017), o que faz rever a ideia de “democracia racial”, que ignora nosso processo histórico e as relações de poder nele contidas e perpetuadas ao longo dos anos. Nesta lógica, repara-se que os espaços de acordo (ou de Pacto Social) não passam de uma realidade fictícia e teórica, importada de outros contextos, mas que pouco explicam o contexto social brasileiro. É nesta lacuna que insere-se a teoria da necropolítica, que tem a possibilidade de iniciar uma explicação mais fidedigna ao que aqui sucede, em especial, por ser uma teoria também oriunda do Sul global, e não advinda de países cuja história foi marcada pela homogeneidade e hegemonia (frente à heterogeneidade e colonização do Sul).

A percepção da existência do “outro” como ameaça, no Brasil, reiterase, é essencialmente vinculada com questões de raça e classe. Assim, a política de morte no país é diretamente destinada a negros, pobres e periféricos, cujo papel à margem da sociedade é tamanho, que tais mortes não são somente silenciadas, mas muitas vezes naturalizadas. A eliminação biofísica do outro tido como inimigo, então, reforça a percepção de vida e de segurança dos demais (MBEMBE, 2015), fazendo com que haja inclusive narrativas justificacionistas destas ações. Isto comporia um dos “imaginários da soberania” (MBEMBE, 2015, p. 128-129).

Vale lembrar que colônia representa o lugar em que a “soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei [...] Da negação racial de qualquer vínculo comum entre o conquistador e o nativo provém a constatação de que as colônias possam ser governadas na ilegalidade absoluta” (MBEMBE, 2015, p. 132-133). É a transferência da lógica colonial e escravocrata para parcela da população brasileira que pode justificar a política de extermínio perpetrada como a de combate a um inimigo, que pode ser submetido à “pena de morte” sem a necessidade do devido processo legal.

Deve-se apontar, outrossim, que os escritos de Mbembe (2015) derivam das ideias de Michel Foucault. Para Foucault (2015), o biopoder seria a expressão do fazer viver e deixar morrer. Isto seria possibilitado pela subdivisão da população, gerando o que o autor chama de racismo. “Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é ‘a condição para a aceitabilidade do fazer morrer’” (MBEMBE, 2015, p. 128).

Cunha e Assy (2017) apontam, ademais, aspectos relevantes para enquadramos tal teoria na realidade brasileira, principalmente a invisibilização de tais problemas em nosso ordenamento. Para tais autores, a questão inicia-se com o conceito de igualdade formal, que traz uma pretensão abstrata de inclusão para a própria concepção do Estado Democrático de Direito. A narrativa normativa jurídica, contudo, “carrega uma baixa capacidade para apreender o evento concreto da injustiça” (CUNHA; ASSY, 2017, p.196). Assim, a invisibilização do problema passa também pela invisibilização e desumanização dos sujeitos que são alvos tanto das injustiças sociais quanto das políticas de extermínio, tornando-os, assim, “sujeitos fictícios em um sistema geral de equivalência formal de direitos e deveres” (CUNHA; ASSY, 2017, p. 195).

Lembra-se que a doutrina jurídica brasileira utilizava a expressão “homem médio” como parâmetro de conduta. Interessante notar que a nomenclatura, outrora normalizada e que segue sendo usada em muitas peças judiciais, aparenta basear-se muito mais em um padrão de socialização de homens de classe média e da cor branca do que realmente em qualquer dado estatístico do que seria o brasileiro médio – realidade esta que parece ter sido sumariamente desprezada pelo nosso ordenamento jurídico. Assy e Cunha (2017, p.207) pontuam que isto permite “revelar o quanto violento pode ser o princípio de neutralidade da abstração ao não visibilizar a situação de precariedade e vulnerabilidade aos quais seus não-sujeitos de direito estão submetidos”.

Cunha e Assy (2017) lecionam que a injustiça é inseparável de sua temporalidade, sendo, portanto, um estado de urgência constante. Aqui é interessante notar as duas faces da urgência que podem ser apresentadas ao se equiparar tais autores: a urgência aparente decorrente da ameaça do “inimigo” e a urgência decorrente da injustiça. Assim sendo, a percepção de emergência para todos os lados envolvidos é um dos elementos que ajudam a elucidar a opção por alternativas extremadas e violentas – que, manifestadamente, afeta o lado mais fraco de maneira muito mais premente e dura. Há, destarte, como será visto mais adiante, uma assimilação de temporalidade própria. Assim, a proteção seletiva de parte da população – e o consequente beneplácito ao extermínio da outra – é também uma forma de manter as vulnerabilidades socioeconômicas (CUNHA; ASSY, 2017) sobre as quais se sustentam o próprio sistema capitalista, principalmente em sua forma periférica.

Vincular as injustiças sociais àqueles que são alvos da necropolítica auxilia a entender, também, a lógica de responsabilização do indivíduo pela omissão do Estado – em função da própria omissão estatal, estes indivíduos são marginalizados e vulnerabilizados, narrativa esta que faz parte da justificação da política de morte destes mesmos indivíduos. Ao analisar o sistema carcerário, resta clara a obliteração do sujeito, haja vista a completa invisibilização e demonização daqueles que são clientes do sistema.


2. SISTEMA CARCERÁRIO: A PENA DE MORTE FICTA

Existem formas de “morrer em vida” e a destituição da dignidade humana as permeia. É sob esta ótica que o presente trabalho propõe analisar o sistema carcerário brasileiro, compreendo-o como um meio que destitui de dignidade aqueles que por lá passam, ceifando tanto o presente quanto o futuro dos clientes do sistema penitenciário.

Nesta linha, Mbembe assinala que, no mundo contemporâneo, há a “criação de ‘mundos de morte’, formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de ‘mortos-vivo’” (2015, p.146). O cárcere é, sem dúvida, um dos lugares no qual essas condições são reproduzidas. Silvio Almeida (2019) as chama de morte existencial, que é exatamente a impossibilidade de projeção de um futuro diferente no devir, e estas seria produzida pelo encarceramento.

Tal situação deve-se, em grande medida, pelas condições em que o sistema prisional brasileiro se encontra, verificando-se superlotação, condições sanitárias precárias e exposição diária à violência dos agentes carcerários como regra. As condições violentas do sistema fazem não só com que a vida dentro dele seja intolerável, como é também retroalimentadora da própria violência urbana.

Por todos estes fatores, pode-se pensar que as prisões engendram a produção de um tempo linear-existencial diverso daquele percebido aos que estão fora dela, a ponto de ser possível a equiparação a uma pena de morte. Ademais, as condições prisionais produzem a morte da subjetividade individual. Walter Benjamin (MOSÉS, 2009, p.105apud CUNHA; ASSY, 2017, p. 209) substitui a ideia de um tempo linear objetivo pela experiência subjetiva do tempo qualitativo. Disto, inferese que a referida morte da subjetividade, que passa invariavelmente pela obliteração dos sujeitos nestes espaços, perpassa o tempo do cárcere, tendo implicações para o devir daqueles que passaram pelo sistema, acentuando a lógica da seletividade e da estigmatização, sendo esta indissociável da experiência de classe. Há, portanto, uma morte social, aqui entendida como a dissociação brusca da pessoa de qualquer conexão com a coletividade e com a própria condição de ser-humano, uma vez que quase todos os seus direitos básicos acabam por ser tolhidos na prática.

O sistema é, outrossim, seletivo. Como mencionado, Zaffaroni (2019) vincula tal seletividade diretamente à criação de estereótipos, que no Brasil são indissociáveis da marginalidade associada aos jovens, pretos e pobres. Zaffaroni (2019) salienta que o “selecionado” nunca foi aquele que comete os delitos mais gravosos, mas sim exatamente aqueles que a sociedade estereotipiza como “riscos”. O magistrado indica, outrossim, que a maioria dos presos no subcontinente são condenados por crimes patrimoniais ou tráfico de drogas; estes, contudo, derivam de forma inequívoca da redução do âmbito de autodeterminação da população que está exposta à iniquidade social e que, portanto, a reprovação da conduta com o uso do direito penal deveria ser revista. Ocorre, na verdade, uma revitimização daqueles que já são socialmente vitimados. Relatórios divulgados pela Defensoria Pública do Estado da Bahia demonstram a importância da questão da raça para adentrar no sistema prisional. Entre 2015 e 2018, 98% dos presos em flagrante na comarca de Salvador eram negros (DPE-BA, 2019). Nas CASEs feminina e masculina de Salvador, 96,6% dos adolescentes cumprindo medidas socioeducativas se autodeclararam pretos ou pardos (DPEBA, 2020).

Relatórios divulgados pela Defensoria Pública do Estado da Bahia demonstram a importância da questão da raça para adentrar no sistema prisional. Entre 2015 e 2018, 98% dos presos em flagrante na comarca de Salvador eram negros (DPE-BA, 2019). Nas CASEs feminina e masculina de Salvador, 96,6% dos adolescentes cumprindo medidas socioeducativas se autodeclararam pretos ou pardos (DPEBA, 2020).

Zaffaroni (2019) frisa, igualmente, que cada sentença judicial é um ato político, constituindo o exercício do poder soberano. Sendo assim, se compreendemos as decisões judiciais condenatórias dentro da ótica de soberania de Mbembe (2015), podemos traduzilas como o poder de dizer quem pode viver e quem deve morrer, mesmo que de maneira ficta. Isto se corrobora, uma vez que a taxa de expansão da população carcerária é maior do que o aumento da taxa de criminalidade (TRINDADE, 2018).

Deve-se lembrar, também, como aponta Shimizu (2018), que própria ideia de ressocializar após o cárcere é fictícia e faz parte da morte em vida do sujeito que passou pelo sistema prisional. Relacionandose ao que foi abordado acerca do “homem médio”, o padrão de ressocialização normatizado é pautado pela internalização de valores burgueses, que só podem seralcançados por uma minoria, até porque os egressos das prisões regressam às mesmas comunidades das quais vierem, via de regra periféricas e pobres, e nas quais as condições materiais de vida permitem outras poucas alternativas, se é que alguma. Assim, é impossível pensar que um jovem que trafica drogas em um contexto de uma sociedade capitalista para conseguir renda não só está perfeitamente socializado, como exercendo o único papel que a sociedade lhe ensinou a ter (SHIMIZU, 2018).

As condições do cárcere e a “reintrodução” dos egressos na sociedade fazem com que, mesmo que a vida biofísica persista, seja possível a alusão a uma pena de morte. De maneira ficta, aqueles que tiveram sentença penal condenatória e são submetidos à pena de reclusão passam por um sistema que aniquila qualquer dignidade humana e, quando saem, são ainda reesteriotipizados. Toda esta situação de violência produz mortos-vivos em nossa sociedade que, sem qualquer projeção diferente de futuro, são eternamente submetidos a uma condição de sub-humanidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pluralização punitiva, por meio do cárcere, é indissociável do papel racista e seletivista da atuação de agentes estatais, chancelados, ainda que tacitamente, pelo próprio poder legislativo e judiciário. Ainda que de maneira ficta, portanto, cidadãos brasileiros são cotidianamente submetidos a penas de morte, ainda que ela seja expressamente vedada no país.

O presente artigo, assim, fez o esforço de enquadrar o sistema carcerário nesta categoria, analisando-o sob a ótica da necropolítica e da injustiça social. Acredita-se que, ainda de maneira exígua e dentro do escopo que um trabalho acadêmico pode alcançar, é importante nomear tais práticas para tirá-las da invisibilidade, assim como classificá-las devidamente como o são: penas de morte – e não coincidências ou efeitos colaterais.

De tudo o que foi explanado, portanto, e, haja vista que nosso ordenamento prevê a individualização e a dosimetria da pena, o que ocorre na prática é pior que a institucionalização da pena de morte, sendo privados aqueles que a ela são “condenados” de qualquer forma de devido processo legal. Assim, ainda que a primeira discussão deva abordar a não tutela de uma pena, pois é o que cabe ao ordenamento jurídico, estamos diante de uma política de extermínio que transpassa o limiar de qualquer Estado Democrático de Direito.


Notas de rodapé

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

BRASIL.  Constituição  (1988).  Constituição  da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988.BAHIA. Defensoria Pública do Estado. Relatório das audiências de custódias na comarca de Salvador/BA: anos de 2015-2018. Salvador: Esdep, 2019. Disponível em: https://www.defensoria.ba.def.br/wpcontent/uploads/2019/09/relatorio-audiencia-de-custodia.pdf. Acesso em: 01 jun. 2020.

BAHIA. Defensoria Pública do Estado. Relatório sobre o perfil dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas nas Cases Salvador - Ba. Salvador: Esdep, 2020. Disponível em: https://www.defensoria.ba.def.br/wp-content/uploads/2020/03/ relatorio-cases.pdf. Acesso em: 25 maio 2020.

CUNHA, José Ricardo; ASSY, Bethania.  Teoria do Direito e o Sujeito da Injustiça Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios: revista do ppgav/eba/ufrj, Rio de Janeiro, v. 32, n. -, p.123-151, dez. 2016.

SHIMIZU, Bruno. Criminologia Clínica. São Paulo: Edepe, 2018. Curso de Extensão em Criminologia.

TRINDADE, Lígia.  Política de Drogas e Encarceramento Feminino. São Paulo: Edepe, 2018. Curso de Extensão em Criminologia.

ZAFFARONI, Raúl.  Saber Penal y Criminología. Buenos Aires: Asociación Latinoamericana de Derecho Penal y Criminología, 2019.

Limites e possibilidades do diálogo entre a criminologia crítica latinoamericana e as epistemologias do sul

André Carneiro Leão

Doutor em Direito pela UFPE.

Professor da Faculdade Damas.

Defensor Público Federal.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4199409480089535

ORCID: 0000-0002-6238-7402

andrecarneiro.dpu@gmail.com

Resumo: O presente artigo busca apresentar as linhas mais gerais da pesquisa sobre os limites e as possibilidades de diálogos entre as Epistemologias do Sul e a Criminologia Crítica Latino-Americana. São delineadas algumas categorias essenciais ao pensamento descolonial sistematizado por Boaventura de Sousa Santos e, em seguida, serão discutidos os pontos de divergência que podem dificultar esses diálogos. Ao fim, indicam-se aqueles pontos de contato que podem constituir uma agenda de pesquisa.

Palavras-chave: Epistemologias do Sul, Criminologia Crítica, Exclusão Abissal.

Abstract:  This article presents the first steps of research on the limits and possibilities of dialogues between Epistemologies of the South and Latin American Critical Criminology. Some essential categories to the decolonial thinking, systematized by Boaventura de Sousa Santos, are outlined. The essay also discusses the obstacles to these dialogues and indicates some topics that may constitute a research agenda.

Keywords: Epistemologies of the South, Critical Criminology, Abyssal Exclusion.


Data: 02/02/2021
Autor: André Carneiro Leão

Pensar em novos horizontes para as pesquisas no campo da criminologia crítica a partir da realidade do Sul Global é o objetivo desta reflexão. As diferenças significativas na formação das sociedades subalternizadas impedem qualquer pretensão, comum no pensamento europeu, de universalizar leituras sobre processos de criminalização que se estruturaram em contextos bem distintos. Justificam-se, assim, novos ensaios, novos experimentos, novos olhares sobre os fenômenos criminológicos que não desprezem essa diversidade constitutiva das estruturas sociais. Propõe-se, aqui, a criação de uma zona de contato entre as categorias que conformam os estudos das Epistemologias do Sul, sistematizadas, particularmente, por Boaventura de Sousa Santos, e o objeto de estudo da criminologia crítica latino-americana.

Serão examinadas, assim, primeiramente, as ideias de razão indolente e das sociologias das ausências e das emergências. Em seguida, apresentar-se-ão três argumentos que poderiam servir como possibilidades do diálogo entre as epistemologias do Sul e a criminologia crítica latino-americana e três pontos de aparente divergência. Na sequência, mesmo ciente dos limites deste espaço, intenta-se propor uma agenda de pesquisa que utilize ferramentas conceituais como linha abissal, exclusão radical e fascismo social como lentes que possibilitam ler e melhor compreender fenômenos criminológicos observáveis, especialmente no contexto dos países latino-americanos.

Após dialogar com o movimento Modernidade/Colonialidade latinoamericano e com pensadores pós-coloniais de diversos países do Sul Global, Boaventura de Sousa Santos constrói uma metodologia de pesquisa em ciências sociais, que pode contribuir para (re)pensar os problemas do Sul Global com atenção para suas peculiaridades.

Os contornos dessa metodologia podem ser identificados na obra Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transition (1995), a partir da qual outras foram desenvolvidas como a Crítica da Razão Indolente (2002), primeiro volume de uma série de outros trabalhos que consolidariam a ideia de repensar e criticar explicações universalizantes sobre o funcionamento da sociedade mundial oriundas da perspectiva do Norte global.

No segundo volume dessa série, A Gramática do Tempo (2006), são apresentados diversos conceitos que serão aqui utilizados. A primeira dessas categorias diz respeito ao papel do sociólogo e da própria pesquisa sociológica (e quiçá criminológica), especialmente daquelas produzidas no Sul global. Olhar para os ausentes, isto é, para aqueles que têm sua existência frequentemente ocultada, para aqueles cujas ações sociais e saberes coletivamente produzidos são ignorados, tornados irrelevantes, é um primeiro passo para a produção de um conhecimento alternativo e para reconhecer e superar desigualdades. A sociologia das ausências busca enfrentar o epistemicídio de que é vítima o conhecimento produzido no Sul – e pelos do Sul – como um efeito do colonialismo.

A referência a esse método aparece tanto em A Gramática do Tempo como na coletânea Conhecimento Prudente para uma vida Decente (2003). O problema, para Boaventura de Sousa Santos, não é a inexistência de alternativas, mas o desperdício da experiência provocado por uma racionalidade (narcísica) por ele denominada de razão indolente, que esconde ou desacredita as alternativas ao pensamento dominante. Seria preciso, na visão do sociólogo português, desenvolver uma razão cosmopolita, o que poderia ser feito por meio de um conjunto de ferramentas compreendidas nos conceitos de sociologia das ausências, sociologia das emergências e de um trabalho de tradução (SANTOS, 2006).

A razão indolente é aquela que subjaz à colonialidade do poder1 no processo de constituição da modernidade. Ela é composta pela razão impotente (determinismo, realismo); razão arrogante (livre arbítrio, construtivismo); razão metonímica (a parte tomada pelo todo); razão proléptica (o domínio do futuro sob a forma do planejamento da história e do domínio da natureza).

A crítica da razão metonímica é imprescindível para recuperar a experiência desperdiçada. Para Sousa Santos, é preciso ampliar o presente, para aprender com experiências outras que a noção de contemporaneidade não permite perceber ou pior oculta conscientemente. Para tanto, o procedimento a ser utilizado é o de proliferar totalidades que coexistirão com a totalidade da razão metonímica e reconhecer que as partes de uma totalidade são heterogêneas e podem ter vida fora dela.

Nas palavras de Boaventura, a sociologia das ausências é uma investigação que busca demonstrar que “o que não existe é, na verdade, activamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe” (SANTOS, 2002b, p. 246). O objetivo é transformar objetos impossíveis em possíveis, ausências em presenças, o que pode ser feito por meio da sociologia das emergências. Ainda nas palavras de Sousa Santos, “enquanto a sociologia das ausências expande o domínio das experiências sociais já disponíveis, a sociologia das emergências expande o domínio das experiências sociais possíveis” (SANTOS, 2002b, p. 258).

As desigualdades que estruturam a sociedade contemporânea são anunciadas no pensamento de Boaventura de Sousa Santos por meio da metáfora da linha abissal, segundo a qual haveria uma linha imaginária que divide o mundo em dois lados profundamente separados. Foi essa racionalidade, estruturada na divisão classista, racista e sexista da sociedade, que fundamentou a exclusão radical dos que estão do outro lado da linha abissal e é ela que serve de justificativa, no plano da consciência coletiva, para a tolerância que se observa nos processos de desumanização dos corpos de negros, de mulheres e de quem está na periferia na sua relação com o Sistema de Justiça Criminal.

O particular funcionamento do sistema de justiça criminal nos países da América Latina constitui, aliás, o objeto de estudo da denominada criminologia crítica latino-americana. Apesar das divergências internas nessa linha de pensamento, em seu conjunto, ela se caracteriza pela influência da criminologia crítica europeia, de forte viés marxista, e pelo olhar para os problemas típicos das agências de controle dos países dessa região do globo, a partir justamente das relações de classe.

Inobstante a influência europeia, não era possível ignorar que, enquanto no Atlântico Norte (nos EUA e na Europa ocidental, particularmente), vivia-se o período de afirmação dos direitos civis, políticos e sociais; aqui, enfrentávamos ou convivíamos, em diversos países da região, ainda com regimes autoritários.

Tortura, desaparecimentos, criminalização da dissidência política, criação de tribunais especiais para fatos tidos como subversivos, repressão de manifestações políticas e ampliação da jurisdição militar para civis são exemplos de ações praticadas nesse contexto de regimes autoritários.

O saber criminológico, portanto, não poderia ficar imune a esse contexto diferenciado e a práticas punitivas significativamente diversas daquelas prometidas normativamente. Para Lola Aniyar de Castro, por exemplo, foram os estudos sobre a história do controle social na América Latina que permitiram compreender as racionalidades de instituições de política criminal (CASTRO, 2005, p. 26). Ela afirmava, ainda, que esse conhecimento histórico permitiu entender como os discursos racistas produzidos no positivismo da Europa e aqui reproduzidos “conformaram um estereotipo de delinquente que era justamente o das pessoas que haviam sido submetidas aos diversos processos de colonização” (Ibidem).

Eugénio Raúl Zaffaroni, embora não tenha participado desde o início do grupo de criminólogos críticos latino-americanos, passou, posteriormente, a integrar o Grupo de Criminologia Comparada. De fato, ao lado de outros(as) pesquisadores(as) do Grupo Latinoamericano de Criminologia Comparada como Lola Anyar de Castro, Rosa del Omo, Esther Kosovski, Juarez Cirino, Luis Marcó del Pont, Roberto Bergalli, entre outros(as), Zaffaroni despontou como um dos pesquisadores que percebeu nitidamente as diferenças e as particularidades na operacionalidade do sistema penal na América Latina. Da vasta obra de Zaffaroni, são particularmente úteis para o diálogo que aqui pretendemos realizar os conceitos de realismo criminológico marginal e de colônia como instituição de sequestro.2

Feitos esses esclarecimentos, é necessário, agora, identificar os argumentos que permitem pensar nas possibilidades de diálogo entre as epistemologias do Sul e a criminologia crítica latino-americana. Em primeiro lugar, as duas linhas de pensamento deitam olhos sobre fenômenos sociais com a perspectiva das particularidades do Sul Global. Além disso, tanto a criminologia crítica latino-americana como as epistemologias do Sul permitem perceber que as estruturas sociais decorrentes do colonialismo provocam exclusões sociais e a seletividade sancionatória. Por fim, as duas linhas de pensamento postas aqui em diálogo ressaltam que, neste lado da margem (ou deste lado da linha abissal), as instituições de controle atuam com particular truculência sobre os subalternizados.

Com efeito, a ideia de Sousa Santos de que, de um lado da linha abissal, prevalece a lógica da emancipação e da regulação e de que, do outro lado, na zona de exclusão colonial, prevalece a lógica da apropriação e da violência ajuda a compreender o porquê do funcionamento diferenciado do “sistema penal subterrâneo” (Lola Aniyar de Castro) entre nós. Podem, do mesmo modo, ser repensados os fundamentos coloniais do etiquetamento jurídico, tanto a partir da noção da colônia como instituição total de sequestro (Zaffaroni) como a partir da ideia da linha abissal (Sousa Santos), esta última desenvolvida, como visto, pela compreensão da forma como a razão indolente (moderna e colonial) promoveu uma justificação para a exclusão radical dos corpos tidos por descartáveis.

Por outro lado, por em diálogo o pensamento criminológico crítico e a proposta de sociologia crítica do direito de Boaventura de Sousa Santos não é algo que pode ser feito sem atentar para alguns riscos de desentendimento. Os limites desse diálogo perpassariam (1) pela possível divergência em relação à base marxista da criminologia crítica latino-americana; (2) pela percepção nas Epistemologias do Sul de que a sociedade (e, por conseguinte, o sistema de justiça criminal) neste lado da margem está estruturada não apenas nas relações de classe, mas também (e sobretudo) nas relações étnico-raciais e de gênero; (3) a ausência de um olhar dedicado especificamente à questão criminal por parte de Sousa Santos.

Efetivamente, a criminologia crítica foi fundada com as fortes vigas do marxismo. Embora também tenha sido influenciado pela teoria marxista, já na sua tese doutoral, Boaventura promoveu adaptações que não são unanimemente aceitas.3 Além disso, a influência culturalista do pensamento pós-colonial distanciou-o ainda mais da viga-mestra. Não se vislumbra, contudo, nesse ponto, uma ruptura inconciliável. Sousa Santos continua considerando que o capitalismo está na base das desigualdades sociais. Em sua visão, a incompletude do pensamento marxista está no fato de desconsiderar que o racismo e o patriarcado também estruturam a linha (abissal) que divide a sociedade.

É possível observar, por outro lado, uma tendência na criminologia crítica contemporânea de incorporar também a crítica decolonial e a crítica feminista ao instrumental de análise do funcionamento das instâncias formais do sistema de justiça criminal. Os possíveis desentendimentos tendem, pois, a ser reduzidos.4

Há, ainda, uma possível objeção ao diálogo aqui proposto assentada no fato de o fenômeno criminológico não se constituir no objeto de pesquisa de Boaventura de Sousa Santos e, assim, não ter sido esse diálogo sequer cogitado pelo autor. Em verdade, o tema da justiça criminal não é integralmente estranho às pesquisas de Sousa Santos. Em manual de criminologia bastante difundido no Brasil, Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade indicam como representativos de estudos de criminologia crítica em Portugal justamente dois textos de Boaventura de Sousa Santos.5 De qualquer sorte, a eventual conclusão no sentido de não ser ele propriamente um criminólogo não impede que algumas de suas contribuições para a sociologia crítica do direito possam sim ser utilizadas e debatidas no campo mais específico da criminologia crítica latino-americana.

É possível, por exemplo, profanar o conceito de pluralismo jurídico para verificar as diversas normatizações, formais e informais, que regulamentam as relações sociais nas prisões (a lei de execução penal, as regras disciplinares informais impostas pelos agentes penitenciários/polícia penal; os códigos de convivência definidos entre os presos etc.).

Do mesmo modo, não é despropositado enxergar o fenômeno da privatização das prisões e da segurança pública como um reflexo do que Sousa Santos chama de fascismo social.

Por fim, há um campo aberto para pensar as alternativas às políticas de segurança pública punitivistas e ao encarceramento em massa não apenas a partir das reflexões dos assim definidos intelectuais de vanguarda, mas também desde a perspectiva da produção do saber daqueles e daquelas que são mais diretamente atingidos(as) pelo sistema de justiça criminal. Nesse sentido, as experiências e o conhecimento que estão sendo produzidos nas Conferências Populares de Segurança Pública e nos Fóruns Populares de Segurança Pública, no Brasil, não devem ser desperdiçados. Eles podem sim ser transformados em agenda de pesquisa comum entre pesquisadores(as) das Epistemologias do Sul e criminólogos(as) críticos(as), desde que observados alguns dos limites destacados neste ensaio.


Notas de rodapé

1 Na concepção de Aníbal Quijano, a “colonialidade sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder [o capitalismo]” e opera em “todos os planos da existência social cotidiana”. (QUIJANO, 2010, p. 73).

2 Cf.: ZAFFARONI, Eugénio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. E ainda: ZAFFARONI, Eugénio Raúl. Criminología: aproximacion desde uma margen. Bogotá: Temis, 2003.

3 Confira-se, por exemplo, a crítica às leituras que Sousa Santos faz da obra de Marx em: NETTO, José Paulo. De como não ler Marx ou o Marx de Sousa Santos. O Diário.info, 17 set. 2008. Disponível em: https://www.odiario.info/decomo-nao-ler-marx-ou-o-marx-de-sousa-santos/. Acesso em: 31 out. 2018. Também as há em: GONÇALVES, Maurício Bernadino. Boaventura de Sousa Santos e a “Pós-moderninade de contestação”: algumas anotações marxistas. Aurora, ano 5, n. 8, ago. 2011. Confira-se, por exemplo, a tentativa de se pensar uma Criminologia do Sul em: CARRINGTON, Kerry; HOGG, Russell, SOZZO, Máximo. Southern Criminology. The British Journal of Criminology, v. 56, n. 1, p. 1-20, jan. 2016. Ou, ainda, a proposta de uma Criminologia Feminista: MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2017.

4 Cf.: DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 58. Os textos referidos por Figueiredo Dias e Costa Andrade são decorrentes da tese de doutorado de Sousa Santos, na qual ele pretendeu elaborar “os prolegomena de uma teoria marxista do direito com especial atenção ao tema da retórica jurídica”. A primeira versão resumida dela é publicada, em 1977, na Law & Society Review, com o título The Law of the Oppressed: the Construction and Reproduction of Legality in Pasargada. Uma versão em português dá lugar à publicação do livro Direito dos Oprimidos. Cf.:SANTOS, Boaventura de Sousa.

5 O direito dos oprimidos: sociologia crítica do direito. Coimbra: Almedina, 2015, p. 21. O crime e a reação social não são o objeto específico desse trabalho. Não há uma análise detida do funcionamento dos mecanismos de reação social e nenhuma referência a outros estudiosos do campo da criminologia crítica, por exemplo.

CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

CARRINGTON, Kerry; HOGG, Russell, SOZZO, Máximo. Southern Criminology. The British Journal of Criminology, v. 56, n. 1, p. 1-20, jan. 2016.

DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997.

GONÇALVES, Maurício Bernadino. Boaventura de Sousa Santos e a “Pósmoderninade de contestação”: algumas anotações marxistas. Aurora, ano 5, n. 8, ago. 2011.

MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2017.

NETTO, José Paulo. De como não ler Marx ou o Marx de Sousa Santos. O Diário.info, 17 set. 2008. Disponível em: https://www.odiario.info/de-como-nao-ler-marx-ou-omarx-de-sousa-santos/. Acesso em: 31 out. 2018.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Toward a New Legal Common Sense: Law, Science and Politcs in the Paradigmatic Transition. New York: Routledge, 1995.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2002a.

SANTOS, Boaventura de Sousa.  Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 237-280, out. 2002b.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente. Porto: Afrontamento, 2003.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos: sociologia crítica do direito. Coimbra: Almedina, 2015.

ZAFFARONI, Eugénio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

ZAFFARONI, Eugénio Raúl. Criminología: aproximacion desde uma margen. Bogotá: Temis, 2003.


Sistema penal, colonialidades e a localização da magistratura no genocídio antinegro no Brasil

Luciana Costa Fernandes

Doutoranda do PPGD da PUC-Rio.

Professora substituta da UFRRJ.

Pesquisadora do IPEA.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3551554985011228

ORCID: 0000-0003-1364-7420

lucianafernandesppa@gmail.com

Resumo: Através de revisão bibliográfica, busco dar destaque àquilo que considero como um “branco-tema”: a relação entre a atuação de juízes(as), racismo e sistema penal. Nesse sentido, epistemologias decoloniais podem localizar a magistratura como estrutura que, desde a sua fundação, representou os interesses das elites coloniais cisheteropatriarcais, burguesas e branco dominantes no país, trazendo às luzes como a branquitude informa suas práticas.

Palavras-chave: Branquitude, Colonialidades, Magistratura.

Abstract: Through bibliographic review, I seek to highlight what I consider to be a “white-theme”: the relationship between the judiciary, racism and the penal system. In this sense, decolonial epistemologies can locate judiciary as an structure that, since its foundation, has represented the interests of the dominated cisheteropatriarchal, bourgeois and white colonial elites in Brazil, bringing to light how whiteness informs their practices.

Keywords: Colonialities, Magistracy, Whiteness.

Data: 02/02/2021
Autora: Luciana Costa Fernandes

INTRODUÇÃO

A proposta da discussão de atividades que envolvem o poder de punir, no Brasil, coloca em destaque diferentes agências e sujeito(a)s que atuam no controle de corpos e na produção de mortes, sobretudo de pessoas negras, pobres, jovens e periféricas no país. Embora menos implicada e remetida a este processo, a magistratura ocupa um lugar de protagonismo, atribuindo a chancela e legitimidade políticojurídica fundamentais ao genocídio antinegro no país (FLAUZINA, PIRES, 2020, p. 09) que não se esgota, mas se manifesta de forma singular através dos processos de criminalização e seus efeitos imediatos. Ao atribuir a responsabilização criminal preferencialmente contra corpos não brancos e condutas atreladas às condições engendradas e racializadas da pobreza em nosso território, juíze(a)s tornam-se responsáveis pelo projeto do encarceramento massivo, que tem nas condições de desumanidade dos cárceres e nas razias e letalidade sanguinárias das políticas criminais em prática a representação final da forma como o sistema penal está comprometido pela divisão da sociedade brasileira em duas zonas opostas, inconciliáveis, conformadas pelo racismo.

Como ensinou Frantz Fanon (2008), o colonialismo teria produzido um mundo compartimentado. A linha de corte, uma linha de cor, fundamental para as torturas e explorações coloniais, destinou aos corpos não brancos o estado da zona do não ser, condenando (FANON, 1968) povos e culturas à subjugação na relação com a zona que reivindicou para si um padrão de humanidade: a zona do ser. Fixando-se como representativa do humano, a burguesia branca, europeia, cristã, cisheteropatriarcal e não deficiente estabeleceu uma divisão definitiva, locupletando-se das violências estabilizadas contra a zona do não ser. Assim, promoveu o esvaziamento de sociedades, instituições, terras, religiões, culturas e sujeitos de si próprios, porque não brancos e, por isso, representados como não humanos.

Essa estrutura, que fixou a matriz colonial, está ainda hoje capilarizada nas diferentes relações de poder que imbuem territórios fundados e marcados pela hierarquização social pautada nesses termos, nas incomensurabilidades. Considerando as colonialidades1 como “lógica global de desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência de colônias formais” (MALDONADO-TORRES, 2019, p. 36), as elites mantêm-se nas diferentes escalas hegemônicas, e sob diferentes formulações na América Latina, pautando-se pelo racismo.

Considero as colonialidades não como uma herança mantida, uma memória social compartilhada da violência do passado. Sim, como uma lente de observação para uma pequena parte da possível produção contemporânea dos seus próprios aparelhamentos. Nesse sentido, entendo que o projeto epistêmico da decolonialidade, em uma acepção ampla (BERNARDINO-COSTA; MALDONADOTORRES; GROSFOGUEL, 2019, p.09), permitirá pensar em estruturas institucionais, envolvendo (também) o sistema jurídico. Quer dizer, como uma chave analítica para se pensar sobre a elite branca instalada sob a ordem colonial e mantida em práticas que informam o judiciário contemporaneamente.

Neste breve artigo, procuro expandir as reflexões acima enunciadas, a partir da revisão teórica dos temas em debate, para pensar sobre as possibilidades que epistemologias decoloniais2 oferecem para a pesquisa sobre a relação entre o judiciário e o sistema de justiça criminal. Ainda, busco colocar em pauta a importância em se encarar as vantagens nomeadas e não nomeadas de instituições como a magistratura, quer dizer, a branquitude assente ao sistema de justiça, como posicionada à historicização (colonial) desta instituição.

A magistratura no contexto de violências produzidas pelo sistema penal

Há um legado de produção na chamada crítica criminológica e da sociologia da violência hegemônicas que discutem, preferencialmente, atividades legislativas e executivas a partir da denúncia das clivagens de classe que determinam a seletividade essencial aos processos de criminalização. Ou ainda, quando nomeados padrões relacionados ao classismo, incluem-se as opressões de raça a partir de referenciais que não dão conta à análise das colonialidades, incorrendo em uma enunciação retórica, mantendo sujeitos e privilégios brancos intocados (PIRES, 2018, p. 547).

O próprio âmbito preferencial de pesquisa nesse campo, envolvendo sobretudo instituições prisionais, policiais e debates sobre atuação legislativa, é tendencioso em reforçar a blindagem de certas estruturas, respondendo à manutenção de vantagens que determinadas elites envolvidas no aparelhamento da burocracia do Estado possuem. Isso porque, enquanto não posicionados nos órgãos de poder, grupos constituídos pelas hegemonias branco cisheterodominadas mantêmse como se orgânicos ao próprio funcionamento do Estado. Aí se localiza o judiciário e, especialmente, a magistratura brasileira, que embora guarde estreita relação com a atuação das demais esferas, conferindo-lhes legitimidade e respaldo fundamentais, continua menos questionada.

A aderência social às discursividades produzidas em torno da ideia de que se integra um sistema de justiças, povoado pela neutralidade e igualdade, comunica uma primeira dificuldade: a de perceber e nomear práticas institucionais envolvendo juíze(a)s como parte das programações genocidas em território brasileiro. Nesse sentido, anos de tradição liberal-moderna, que atribuem legitimidade à atividade judicante, confabulam sujeito(a)s e agendas políticas bastante próprios. Sob a roupagem de uma aparência de imparcialidade, o conservadorismo de normas e autoritarismo daquele(a)s que são responsáveis pela sua aplicação tem sido disfarçado, sendo lugar onde o terror racial se transforma, com facilidade, em retórica de “aplicação da lei”.

Além disso, hegemonicamente, quando a magistratura é investigada, a escolha pelo marco teórico sobretudo de autores brancos da Europa Central acaba descentralizando aspectos fundamentais na organização das relações de dominação em território latinoamericano. Assim, parte das produções acabam contribuindo para o fundo estratégico da desconsideração do eixo do sistema mundo moderno/colonial enquanto constitutivo e constituinte das hierarquizações neste país. Consequentemente, silencia-se sobre as matrizes coloniais da elite burguesa, cisheteropatriarcal branco dominada que se espraia nesta instituição, reproduzindo o narcisismo próprio da branquitude (BENTO, 2002).

Nesse sentido, entendo a importância da localização da magistratura aos privilégios sistêmicos que estruturam a branquitude em nosso território, compreendendo as vantagens nomeadas e não nomeadas da instituição como alinhadas ao racismo essencial do sistema penal brasileiro. E, ainda, a marcação desta como burocracia estatal imbuída pelas colonialidades, que tomam o racismo como princípio organizador ou “lógica estruturante de todas as configurações sociais e relações de dominação da modernidade” (GROSFOGUEL, 2019, p. 59).

Sob esse recorte epistêmico, é possível historicizar o judiciário nas conformações do colonialismo estatal, com o que a enunciação do racismo e da branquitude, evidenciados nas práticas de extermínio do sistema penal, tomam forma e condição sistêmica estrutural.

Burocracias de Estado, magistratura e o colonialismo brasileiro

A fundação da burocracia estatal brasileira esteve relacionada com a necessidade de constituição de um instrumental que garantisse a manutenção das cortes e dos interesses imperiais. Isto é, “a aliança política formada entre a aristocracia da coroa portuguesa e as elites agrárias possibilitou a construção de um modelo de Estado voltado para manutenção e defesa dos próprios interesses, o que se manteve após a independência” (WOLKMER, 2015, p. 53-54). Marcados pela expropriação e pela escravização, aos poderes constituídos tornouse fundamental fixar as bases do racismo na própria distribuição dos organismos de Estado.

Nesse sentido, o direito cumpriu um importante papel, sendo responsável por fornecer um arcabouço que aparelhou o Estado, institucionalizou o colonialismo escravista e tornou ainda mais viscosas, uma vez que conviventes com um discurso de igualdade, as dinâmicas de incomensurabilidade narradas. Como afirma Thula Pires (2019, p. 71): “Com a transição da economia feudal para o capitalismo na Europa, o direito se constitui para possibilitar a consolidação do regime capitalista, a manutenção da ordem, a centralização do poder, a unificação de territórios e o monopólio da produção normativa pelo Estado. O direito que resulta desse empreendimento foi transposto aos territórios colonizados. O sistema jurídico reproduzido no Brasil não só estava intimamente ligado ao empreendimento colonial e às categorias de pensamento que decorriam dele, como desempenhou um papel central na sua consolidação.”

Assim, a atuação executiva, legislativa e judiciária, no Brasil, refletia, em variados níveis, o projeto político da branquitude aparelhado pelo sistema jurídico. No caso da magistratura, eram estamentos burocráticos ocupados, integralmente, pelas pessoas que acessavam os cursos de direito e que passavam a integrar os organismos de Estado, membros das oligarquias rurais e classes dominantes interessados na cristalização dos seus privilégios. Se o sistema judicial em geral assim estava posicionado, destacouse ainda mais aquele integrado ao sistema penal pela facilidade com que, a partir de dispositivos legais,3 possibilitava a gestão dos corpos negros. Se o controle e o extermínio de pessoas não brancas transitavam entre o público e o privado durante escravismo institucionalizado, pós abolição e república, as burocracias do sistema de justiça criminal passaram a responsabilizar-se pelo implemento do continuum genocida (VARGAS, 2010, p. 49).

Assim, embora a historicização em si não reflita de forma acabada todas as conjecturas assentes ao racismo que imbui a atuação de magistrado(a)s neste campo, serve para implicar corpos posicionados desde o colonialismo às estruturas racistas de nossa sociedade e àquilo o que lhe nutre: a branquitude. Entender a burocracia estatal como reflexo e dinamizadora da supremacia branca em nosso território e o comprometimento, a nível institucional, que a magistratura sempre teve na manutenção do terror racial é um dos caminhos possíveis que a lente das colonialidades pode oferecer.

CONCLUSÃO

Grande parte das críticas sobre o sistema penal produzidas na última década têm trabalhado com base em um acúmulo de produções recentes que diagnosticam as relações entre racismo e seletividade no país – sobretudo após trabalhos cuja importância representaram verdadeiros marcos (DUARTE, 1998; FLAUZINA, 2017) e as edições do INFOPEN, que deixaram evidente como pessoas negras são desproporcionalmente criminalizadas. Mas ainda são poucas as produções que problematizam os dados a partir da leitura dos efeitos do encarceramento em massa para a ordem dos privilégios brancos no Brasil.

Quer dizer, também nesse campo o reforço do “negro-tema” ofuscou – e tem ofuscado – a dimensão relacional das opressões raciais e, sobretudo, os efeitos para a manutenção das vantagens históricas que o grupo branco obtém em uma sociedade racista. Assim se perpetuam as estruturas de dominação que pressupõem a naturalização de uma série de questões, incluídas, discursivamente: i) o padrão de humanidade situado no racismo, com a neutralização do componente racial “branco”; ii) bem como seus efeitos de normatização de ordem social, já que assim não se analisam as condições de base para as geografias de exclusão.

Isto faz com que sigam intocadas as reflexões sobre as hegemonias fundantes e estruturais do país, que permitem que as desvantagens sistêmicas contra o povo negro sejam descritas apenas como um dado, não como uma estratégia política. E aqui reside a relevância das análises sobre e a partir do o sistema de justiça criminal, especialmente os cargos que concentram poder como o judiciário.

A compreensão do racismo enquanto organizador das instituições hegemônicas branco dominadas é fundamental para pensar sobre a instância judiciária. A percepção de que na arquitetura das burocracias estatais, dentre as quais se destaca a magistratura, residem as bases das economias escravistas, das relações de poder e dos instrumentos geopolíticos de extermínio de pessoas não brancas no país é ponto de partida para refletir sobre as persistências e ubiquidades da branquitude no presente dessas instituições.

Além disso, a consideração da magistratura enquanto lugar ocupado, desde a sua origem, majoritariamente por homens brancos da elite brasileira, implicados ao projeto colonial, rompe com os silêncios sobre o chamado “branco-tema”4 nos estudos sobre racismo e a sociedade brasileira. Quer dizer, visa a quebrar com os pactos que ofuscam simbólica e concretamente o papel do(a)s branco(a)s em torno da situação das desigualdades raciais no Brasil, protegendo os interesses do grupo em jogo e perpetuando o círculo concêntrico da branquitude, que se espalha e ramifica (BENTO, 2002, p. 32).

Dessa forma, o conceito de branquitude como dispositivo analítico em sintonia com o pensamento decolonial e afrodiaspórico podem auxiliar na historicização e discussão da localização da magistratura no genocídio que o sistema penal empreende, tocando em assuntos que há tanto fazem dessa instituição basilar para os anseios da supremacia branca.


Notas de rodapé

1 O termo colonialidade traz em si a ideia da permanência e longa duração do fenômeno que descreve. Estou grifando o plural notando e enunciando as dimensões da colonialidade do ser, poder e gênero, que pelas limitações formais do presente não conseguirei desenvolver. Utilizo a expressão para dar destaque ao seu conteúdo de longa duração, entendendo ser “nascida com a expansão capitalista antes da colonização, atravessando o período colonial para persistir ainda hoje em vastas partes do planeta” (CAHEN, 2018, pp. 51-52).

2 Considero a grafia “descolonial” como referente a momentos historicamente situados, de insurgências contra o império, na luta pelos processos de independência. Já o vocabulário “decolonial” como referente “à luta contra a lógica da colonialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos” (MALDONADO-TORRES, 2019, p.35).

3 Como a criminalização da capoeiragem, vadiagem, mendicância, curandeirismo, espiritismo e pito do pango.

4 Segundo Bento, haveria um legado deixado pelas análises feitas sobre as desigualdades raciais no Brasil que focaram no chamado “negro tema”, cujo efeito imediato foi não implicar, nos processos, grupos e sujeitos racialmente hegemônicos. Nesse sentido, pesquisas voltadas para a discussão das questões raciais na sociedade brasileira passaram a investigar pessoas e populações negras, destacando o efeito das opressões racistas em diferentes campos: subjetivo, identitário, social, econômico, político entre outros. Porém, o foco esteve excessivamente voltado ao diagnóstico das exclusões vividas por negro(a)s, sem alcançar o seu alicerce fundamental: o sistema de vantagens vividas por branco(a)s. Na apresentação da noção de pacto, Bento ensina: “Tudo se passa como se houvesse um pacto entre brancos, aqui chamado de pacto narcísico, que implica na negação, no evitamento do problema com vistas à manutenção de privilégios raciais. O medo da perda desses privilégios, e o da responsabilização pelas desigualdades raciais constituem o substrato psicológico que gera a projeção do branco sobre o negro, carregada de negatividade.” (BENTO, 2002, p. 07).

REFERÊNCIAS

BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos Narcísicos no Racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.

CAHEN, Michel; BRAGA, Ruy. O que pode ser e o que não pode ser a colonialidade: uma abordagem “pós-póscolonial” da subalternidade. In: CAHEN, Michel; BRAGA, Ruy (Org.). Para além do pós(-) colonial. 1.ed. São Paulo: Alameda, 2018.

DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e Racismo. Introdução ao processo de recepção das teorias criminológicas no Brasil. 2002. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de São Catarina, Florianópolis, 1998.

GROSFOGUEL, Ramón. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda ocidentalizada. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze;

MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón (Org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, p. 27-53. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

FANON, Frantz . Pele Negra, Máscara Branca. Salvador: EDUFBA, 2008.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Brasília: Brado Negro, 2017.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; PIRES, Thula. Roteiros previsíveis: racismo e justiçamentos no Brasil. Trincheira democrática. Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP), Salvador, ano 3, n. 08, p. 8-10, abril/2020.

MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADOTORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón (Org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, p. 27-53.

PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica criminológica apreensível em pretuguês. Revista brasileira de Ciências Criminais, n. 135, p. 541-562, 2018.

PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Direitos humanos e Améfrica Ladina: Por uma crítica amefricana ao colonialismo jurídico. Latin American Studies Association, v. 50, n. 3, p. 69-74, 2019.

VARGAS, João Costa. A diáspora negra como genocídio: Brasil, Estados Unidos ou uma geografia supranacional da morte e suas alternativas. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), v. 1, n. 2, p. 31-66, 2010, p. 49.

WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

Antinegritude, sexo/gênero e território: O caso Luana Barbosa dos Reis

Laysi da Silva Zacarias

Mestranda em Direitos Humanos e Cidadania pela UnB.

Link Lattes: lattes.cnpq.br

ORCID: 0000-0003-4792-9610

laysizacarias@gmail.com

Cinthia de Cassia Catoia

Doutoranda em Direito da UnB.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3804284069351245

ORCID: 0000-0002-8006-106X

cinthia.c.catoia@gmail.com

Evandro Piza

Professor da Faculdade de Direito da UnB.

Doutor em Direito pela Universidade de Brasília UnB.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/5003630503816604

ORCID: 0000-0002-0077-0297

evandropiza@gmail.com

Resumo: Propõe-se neste artigo, a partir do “Caso Luana”, olhar a letalidade policial a partir de novos ângulos, privilegiando a análise de morte de mulheres negras e LBTQIA+, e a mobilização política em torno dessas mortes. A reflexão evidencia a complexa intersecção que se tece entre antinegritude, sexo/gênero e território. Deste modo, permitiu problematizar os limites do campo atual de estudos sobre violência policial no Brasil.

Palavras-chave: “Caso Luana”, Antinegritude, Interseccionalidade, Sexo/gênero.

Abstract: This article proposes, from the “Luana Case”, to look at police lethality from a new point of view, highlighting the analysis of the death of black women and LBTQIA +, and the political mobilization around these deaths. The analysis focus on the complex intersection between anti-blackness, sex / gender and territory. In this way, it allowed discussion of the limits of the current field of studies on police violence in Brazil.

Keywords: “Case of Luana”, Anti-blackness, Intersectionality, Sex/Gender.


Data: 02/02/2021
Autores: Laysi da Silva Zacarias, Cinthia de Cassia Catoia e Evandro Piza

1. Introdução

O perfil de vítimas de homicídios no Brasil se inscreve nas qualificadoras: jovem, homem e negro, com destaque para os casos de homicídios por arma de fogo (WAISELFISZ, 2016). Todavia, neste e em tantos outros casos de produção de dados estatísticos, a ausência de recortes mais aprofundados sobre gênero e sexualidade, tende a produzir a incompreensão de parte do problema (LAGES; DUARTE, 2019) do mesmo modo que essa incompreensão tende a produzir ausências de dados sobre gênero e sexualidade. A produção de dados sobre população LGBTQI+, por exemplo, é demasiada escassa. A produção de dados importantes, como o número de mortes provocadas por lgbtfobia, é garantida pelos esforços de movimentos sociais1 (LAGES; DUARTE, 2019).

Os movimentos de mulheres negras e LGBTQIA+ têm denunciado que mulheres negras – e mulheres LBTQIA+ – também são mortas por meio do policiamento repressivo.2 O alerta desses movimentos sugere a necessidade de pensarmos o emaranhado de complexidades existentes quando refletimos sobre o empreendimento genocida do estado brasileiro contra corpos negros (FLAUZINA, 2008).

A partir da identificação dessas ausências, propõe-se discutir o “Caso Luana” e olhar a letalidade policial a partir de novos ângulos, privilegiando a análise de morte de mulheres negras e LBTQIA+ e a mobilização política em torno dessas mortes. Propõe-se analisar o caso a partir das categorias antinegritude (VARGAS, 2017), interseccionalidade (COLLINS, 2000) e colonialidade de gênero (LUGONES, 2008). Analisar o genocídio do povo negro, a partir de outras mortes que não do arquétipo privilegiado (homem negro, cisgênero e heterossexual), permite, sobretudo, potencializar a compreensão das múltiplas faces do genocídio do povo negro no Brasil (FLAUZINA, 2008, p. 135), e refletir sobre o campo de estudos da violência no Brasil.

Em termos metodológicos, o artigo utilizou-se da revisão da literatura sobre antinegritude e estudos sobre violência e policiamento e da análise documental de materiais jornalísticos e vídeos produzidos sobre o “Caso Luana” disponíveis nas mídias sociais.

Em caráter exploratório, pretende-se trazer à tona a violência sofrida por mulheres negras e LBTQIA+, como aquela forjada a partir da imbricada relação entre antinegritude, sexo/gênero e território, ampliar o entendimento dos processos de violência estatal sobre os corpos negros e contribuir para a compreensão de um fenômeno que as estatísticas oficiais ocultam. Se há o privilégio da “branquitude” de ser vítima (FLAUZINA; FREITAS, 2017), do ponto de vista de sexo/gênero, os movimentos LGBTQIA+ têm destacado o privilégio heterocisnormativo de fazer parte das estatísticas em geral, e das estatísticas de morte, especialmente nos casos de assassinatos de pessoas transexuais.

A categoria antinegritude amplia a compreensão das violências perpetradas contra corpos negros, bem como das estratégias de resistência, a categoria da interseccionalidade, em diálogo com a perspectiva descolonial, ela pode, por sua vez, nos dar pistas de como a antinegritude reatualiza as violências contra performances de sexo/gênero não hegemônicas no Brasil. Entende-se aqui que a categoria interseccionalidade “exige orientação geopolítica para se manter em diálogo com epistemologias do Sul” (AKOTIRENE, 2018, p. 27), de modo a ser interpelada pelos estudos descoloniais, que buscam mostrar as imbricadas relações entre as estruturas de opressão contidas na modernidade/colonialidade (LUGONES, 2008).

2. Nenhuma Luana a Menos: O caso Luana Barbosa dos Reis

Mulher negra, periférica, mãe e lésbica, Luana Barbosa, no dia 9 de abril de 2016, teve seu corpo brutalizado naquilo que se alega ter sido uma abordagem policial. Luana estava levando seu filho para a aula de informática quando, pela segunda vez no dia, foi abordada pela polícia militar, e não demorou muito para a família ser avisada: “Corre, vão matar Luana” (ALVES, 2017).

A politização da morte de Luana denunciou uma trama complexa: ao mesmo tempo que corpos negros são associados à reprodução da violência, é negado, a esses mesmos corpos, o direito de reclamar a violência sofrida (FLAUZINA, FREITAS, 2017). O território torna-se também importante categoria pela qual “o urbano é vivido, imaginado e percebido no contexto da violência letal” (ALVES, 2011, p. 109). Na simbiose “espaço-raça”, produz-se os territórios da violência: violência cotidiana expressa na própria segregação espacial das cidades brasileiras, que historicamente formaram as regiões precárias de infraestrutura urbana, as periferias e as favelas, os “territórios negros”. Nesses territórios são produzidas dinâmicas de “performance da violência” (FLAUZINA, 2015, p.138) específicas, pois “a morte aparece como parte do cotidiano de seus moradores” (ALVES, 2011, p. 118) e o genocídio, em suas múltiplas dimensões, se incorpora como privilegiada estratégia de controle e gestão social.

Após a morte de Luana, foram realizadas diferentes ações estratégicas como forma de apoio e suporte à família de Luana na luta por justiça. Essa mobilização foi a responsável por dar existência ao ato de violência responsável pela morte de Luana. A “Campanha Nenhuma Luana a Menos” investiu na dimensão narrativa da existência do ato de violência para aqueles que não o vivenciaram ou o presenciaram. Daí a relevância das narrativas da campanha, que conferiram inteligibilidade a Luana como vítima, de modo a possibilitar que sua perda fosse sentida. Significou o enfrentamento não apenas do crime cometido contra Luana, mas da violência como “inadmissibilidade histórica, como aquilo que não pode se repetir” (EFREM FILHO, 2017, p. 28), para que nenhuma outra vida, como a de Luana, seja perdida: “nenhuma Luana a menos”.

3. “Mulher negra, lésbica e periférica”: a intersecção entre antinegritude, sexo/gênero e território

A antinegritude é o princípio que funda o racismo antinegro na modernidade.4 Tal estrutura torna objeto, tudo aquilo, supostamente, ligado à negritude, ao mesmo tempo em que torna não lugar todo espaço físico, ontológico, social, estético, normativo e político marcado por ela.

Nesse processo, a pessoa negra, que ocupa a posição incomunicável da inumanidade, e por isso, está fora da norma, convive, continuamente, com a violência estrutural (VARGAS, 2020). A Campanha “Nenhuma Luana a Menos” denunciou o caráter estrutural dessa violência que ocorre, não porque um ato criminoso foi praticado, mas porque a violência é o próprio policiamento que busca manter “o lugar de negro” na sociedade brasileira. No caso de Luana, resta evidente a tentativa de encontrar, após a criminalização, uma justificativa “racional” para a violência: “Luana tinha passagem pela polícia” ou “Luana era uma ameaça”, temendo-se uma reação dos familiares contra a violência ilegítima e ilegal dos policiais. Tal complexidade foi traduzida nas palavras de Roseli Barbosa, em entrevista: “Lésbica, negra e periférica com passagem pela polícia, ela já era considerada culpada” (BOVO, 2019, n.p.).

Mulher negra lésbica masculinizada, Luana teve que se afirmar como mulher: “eu sou mulher [...] quero ser revistada por uma policial”(ALVES, 2017, n.p). Depois das primeiras agressões, Luana continuou tentando mostrar que era uma mulher. A brutalidade do corpo de Luana pelo ato de violência merece uma analítica atenta acerca da intersecção entre antinegritude e sexo/gênero, Argumenta-se aqui que tal brutalidade esta imbricada ao fato de Luana ter sido lida, a partir do signo da lésbica negra, masculinizada e periférica. Mulheres lésbicas apresentam uma performatividade que afronta a inteligibilidade do regime binário de sexo/gênero e da heterossexualidade compulsória, pois desestabiliza uma ordem cultural, a qual, fundada na modernidade colonial de gênero (LUGONES, 2008), exige dos sujeitos uma coerência entre um corpo – um sexo5 –, um gênero e um desejo (heterossexual)6 (BUTLER, 2006).

Oyewùmí (2002) assinala que, na modernidade ocidental, ao corpo é dada uma lógica própria, que “revela” a psique do sujeito e determina seu lugar social no mundo. O corpo é o local e a causa de diferenças e hierarquias, “consagradas nos corpos masculinos e femininos hierarquicamente ordenados, diferencialmente colocados em relação ao poder, e espacialmente distanciados um do outro” (OYĚWÙMI, 2002).

Mulheres lésbicas, ao fugirem da lógica de inteligibilidade cultural, engendram uma ruptura discursiva. Não por acaso, as lésbicas são, sobretudo as que têm uma performance masculinizada, constantemente acusadas de “desejar” ser homem, e a violência que sofrem, por sua vez, é justificada como forma de punição a esse desejo que transgride o regime político da heteronormatividade (BUTLER, 2006). O feminino masculinizado é uma ameaça, pois denúncia a fragilidade do masculino masculinizado e do próprio binarismo sexo/gênero. Logo, Luana trouxe para a cena política a pluralidade das vidas das mulheres de periferias, vidas que contestam a norma reguladora de sexo/gênero.

A ação policial contra Luana é uma expressão institucional de um fenômeno amplo, pois Luana, em sua performance, também viola, desde o ponto de vista do racismo, os estereótipos de subalternidade sexo/gênero e raça (GONZALEZ, 1984). Luana não é reconhecível para uma economia da representação que torna os corpos de mulheres negras “disponíveis” em sua sexualidade, trabalho e/ou afeto. Ao se confrontar no espaço público, “de forma masculina”, questionando a “autoridade policial” e reagindo legitimamente à violência, representa uma ameaça ao modo como esses corpos são geridos no espaço da cidade.

Importa assinalar a relevância da perspectiva interseccional, pois corpos negros ganham uma resposta mais acentuada a essa ininteligibilidade de sexo/gênero. Ressalta-se que as potencialidades analíticas e políticas da interseccionalidade são observadas quando de sua estreita relação com a teorização e luta de mulheres negras (COLLINS, 2000) e articuladas com as reflexões propostas pelos estudos descoloniais.

Conforme Lugones (2008), na modernidade/colonialidade de gênero, as distinções hierárquicas dicotômicas, incluindo aquela entre homens e mulheres, são atravessadas pela dicotomia entre humano e não humano. Se sexo/gênero, como categoria histórica e cultural, produziu no ocidente uma ontologia, ou seja, uma essência e uma verdade do ser “sobre a qual outras categorias sociais foram erguidas” (OYĚWÙMÍ, 2002), como categoria colonial de gênero (LUGONES, 2008), produziu um substrato que conferiu substância e “verdades” distintas a corpos que estão fora da zona do ser. Deste modo, sexo/gênero tem efeitos subjetivos, sociais e políticos distintos, pois não está fora da raça e de outros sistemas de hierarquia social (OYĚWÙMÍ, 2004).

4. Considerações finais

O significativo no “Caso Luana” foi refletir como os atos de violência praticados pelos policiais e a resistência política a esses atos trouxeram novas perspectivas interpretativas sobre violência. De fato, a violência praticada contra Luana não foi um ato único de violência; existia antes e perpetuou-se depois dessa prática, sobretudo, nas narrativas mobilizadas para “legitimar” tais atos de violência e negar a dor e o sofrimento negro. Além disso, alerta-nos sobre a necessidade de enfrentamento analítico e político das relações que conformam as disputas em torno do sentido de violência e permitem ou não a narrativa do ato de violência, da vítima como vitimável e dos acusados – os policiais (e o próprio Estado) – como acusáveis. A historicidade das representações e das práticas de violência contra mulheres negras permite deslocar os estudos sobre violência policial do âmbito da discricionariedade policial e da falta de treinamento adequado como “os problemas” a serem enfrentados.

O presente artigo encerra-se com novo questionamento: Como transformar as mulheres negras e LBTQIA+ em vítimas reconhecíveis da violência estatal? Para formulação de possíveis respostas a essa pergunta, é preciso destacar que os movimentos sociais não reivindicam apenas a condição de “vítima”, mas de humanidade que lhe é negada por sua inclusão na zona do não ser. A importância do movimento “Nenhuma Luana a menos” consiste em, sobretudo por colocar em cena na disputa pelo direito à humanidade, um sujeito que ainda não tem lugar no interior do quadro teórico sobre a violência urbana e a violência estatal brasileira.


Notas de rodapé

1 Entre esses esforços destacam-se os relatórios sobre assassinatos de pessoas LGBTQIA+ ,produzidos pelo Grupo Gay da Bahia e os dossiês anuais sobre assassinatos e violência contra pessoas trans, organizados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA.

2 Dossiê “A Situação dos Direitos Humanos das Mulheres Negras no Brasil (2016)” identificou na análise de assassinatos de lésbicas, travestis e transexuais negras a existência de uma invisibilidade nos dados sobre violências que atingem a população LBTQIA+ negra no Brasil (WERNECK, NILZA, 2016).

3 Luana foi levada para o 1º Distrito Policial, onde teve que assinar um termo circunstanciado afirmando que agrediu os policiais. No dia seguinte, Luana deu entrada na Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, seu quadro piorou. Em dia 13 de abril de 2016, Luana não resistiu e morreu (ALVES, 2017, n.p).

4 O racismo antinegro como valor, sentimento, efeitos que, juntamente a práticas institucionais e cotidianas, que produzem subalternidades para povos negros na contemporaneidade, constituem “a tradução imperfeita desse princípio fundante” (VARGAS, 2020, p. 21). Judith Butler (2006) compreende que o corpo se torna sexuado a partir dos discursos que se criam sobre a sexualidade e esses discursos marcam a criação do conceito de um “sexo natural”. Tais discursos fazem parte, portanto, de um complexo de poder que atribui significados aos corpos, a suas funções biológicas e suas afetividades.

5 Segundo Butler (2006, pp.38-39), a heterossexualidade do desejo requer e institui a produção de oposições discriminadas e assimétricas entre ‘feminino’ e ‘masculino’, em que estes são compreendidos como atributos expressivos de ‘macho’ e de ‘fêmea. Quem foge a essa matriz regida por “leis culturais que estabelecem e regulam a forma e o significado da sexualidade”, é uma “impossibilidade lógica” ou constitui uma “falha de desenvolvimento”, porque não condiz com as normas de inteligibilidade cultural.

REFERÊNCIAS

ALVES, Alê. Tribunal de Justiça reabre investigação sobre a morte de Luana Barbosa. Ponte Jornalismo, 14 abr. 2017. Disponível em https://ponte.org/tribunalde-justica-reabre-investigacao-sobre-a-morte-de-luana-barbosa/. Acesso em 16 de mar. de 2020.

ALVES, Jaime Amparo. Topografias da violência: Necropoder e governamentalidade espacial em São Paulo. Revista do Departamento de Geografia-USP, v. 22, p. 108- 134, 2011.

ALVES, Jaime Amparo. Inimigo público: imaginação branca, o terror racial e a construção da masculinidade negra em “Cidade de Deus”. In: VARGAS, João; PINHO, Osmundo. Antinegritude: o impossível sujeito negro na formação social brasileira. Cruz das almas: EDUFRB, 2016.

AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Editora Letramento, 2018. (Coleção Feminismos Plurais).

BOVO, Cassiano Martines. “Caso Luana faz três anos”. Justificando, 2 abr. 2019. Disponível em https://www.justificando.com/2019/04/02/caso-luana-barbosafaz-tres-anos/. Acesso em 10 de abr. de 2020.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2006.

COLLINS, Patrícia Hill. Black Feminist Thought:Knowledge, Conciousness and the Politics of Empowerment. New York: Routledge, 2000.

EFREM FILHO, Roberto. A reivindicação da violência: gênero, sexualidade e a constituição da vítima. Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades e Violências. Cadernos Pagu, v. 50, 2017.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. 2008. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Lei Maria da Penha: entre os anseios da resistência e as posturas de militância. In: FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; FREITAS, Felipe; VIEIRA, Hector; PIRES, Thula. Discursos Negros: legislação penal, política criminal e racismo. Brasília: Brado Negro, 2015.

FLAUZINA, Ana Luiza P.; FREITAS, Felipe da Silva. Do paradoxal privilégio de ser vítima: terror de Estado e a negação do sofrimento negro no Brasil. Revista Brasileira De Ciências Criminais, v. 135, p. 15-32, 2017.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. ANPOCS, Ciências Sociais Hoje, São Paulo, p. 223-244, 1984.

LAGES, Vitor. Nunes; DUARTE, Evandro Piza. Narrativas judiciais de violências contra LGBT em decisões sobre danos morais nos tribunais de justiça (2012- 2015). Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 157, p. 357, 2019.

LUGONES, Maria. Colonialidad y género. Tabula Rasa, Bogotá, Colombia, n. 9, p. 73-101, jul./dic. 2008. Disponível em: http://www.revistatabularasa.org/numero_ nueve/05lugones. pdf. Acesso em: 30 mar. 2020.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. Tradução para uso didático de: OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceptualizing Gender: The Eurocentric Foundations of Feminist Concepts and the challenge of African Epistemologies. African Gender Scholarship: Concepts, Methodologies and Paradigms. CODESRIA Gender Series, Volume 1. Dakar: CODESRIA, 2004.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. Visualizando o Corpo: Teorias Ocidentais e Sujeitos Africanos. Tradução para uso didático de Visualizing the Body: Western Theories and African Subjects in: COETZEE, Peter H.; ROUX, Abraham P.J. (eds). The African Philosophy Reader. New York: Routledge, 2002.

VARGAS, João H. Costa. Por uma mudança de Paradigma: Antinegritude e antagonismo estrutural. Revista de Ciências Sociais: RCS, v. 48, n. 2, p. 83-105, 2017.

VARGAS, João H. Costa. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Revista em Pauta, Rio de Janeiro, v. 18, n. 45, p.16-26, 2020.

WAISELFISZ, Júlio Jacobo. no Brasil. Brasília: Flacso Brasil, 2016. Mapa da Violência 2016 – homicídios por armas de fogo

WERNECK; J; IRACI, N. A situação dos direitos das mulheres negras no Brasil: violências e violações. Criola-Geledés, São Paulo, 2016.

Das realidades prisionais à resistência: Por uma decolonização da Execução Penal

Bruna Hoisler Sallet

Mestranda no PPGD pela UFPel.

Bolsista CAPES. Pesquisadora do Libertas (PPGD/UFPel).

Link Lattes http://lattes.cnpq.br/0631669744646017

ORCID: 0000-0002-5448-1474

bhsallet@gmail.com

Bruno Rotta Almeida

Doutor em Ciências Criminais pela PUCRS.

Pós-Doutor em Criminologia e Sociologia Jurídico-Penal pela Universidade de Barcelona.

Professor da Faculdade de Direito e do PPGD da UFPel.

Coordenador do Libertas (PPGD/UFPel).

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9101474140548790

ORCID: 0000-0001-6715-4299

bruno.ralm@yahoo.com.br

Thais Bonato Gomes

Mestranda no PPGD pela UFPel. Bolsista PIB-MD UFPel.

Pesquisadora do Libertas (PPGD/UFPel).

Advogada.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0483612047123391

ORCID: 0000-0003-2915-0582

thaisbonatog@gmail.com

Resumo: O artigo analisa a potencialidade do giro decolonial para refletir as sistemáticas violações no sistema prisional brasileiro. Aborda inicialmente a importância do estudo crítico e também o respectivo giro decolonial. Em seguida, apresenta as marcas coloniais das realidades nas prisões do país. Por fim, conclui sobre a imprescindível decolonização da execução penal como resistência à gramática carcerária desumana.

Palavras-chave: Execução Penal, Decolonialidade, Resistência.

Abstract: The article analyzes the potential of the decolonial turn to reflect the systematic violations in the Brazilian prison system. It initially exposes the importance of critical study and also the respective decolonial turn. Then it presents the colonial marks of realities in the country’s prisons. Finally, it concludes on the essential decolonization of criminal execution as a resistance to inhuman prison grammar.

Keywords: Criminal execution, Decoloniality, Resistance.

Data: 02/02/2021
Autores: Bruna Hoisler Sallet, Bruno Rotta Almeida e Thais Bonato Gomes

A análise crítica da execução penal não pode abandonar a indagação do passado, entendido como aquilo que compõe as condições e os contingenciamentos iniciais. A execução penal brasileira está constituída por estruturas da própria prática carcerária, de uma sociedade fundamentada na escravidão, cujas gramáticas refletem as desumanidades do autoritarismo, da violência, da repressão, da burocracia, do clientelismo, da violação de direitos fundamentais, da seletividade e da desigualdade social (ALMEIDA, 2019a).

Vera Regina Pereira de Andrade (2016, p. 273) aponta que “dialetizando-se com a pena oficial de prisão – a pena vertebral da modernidade – aparece a pena de morte subterrânea para a colonialidade”. Segundo a autora, em sociedades latino-americanas como a brasileira, que têm em sua tecnologia punitiva e mecanismo de controle social o uso de maus-tratos, tortura e extermínio, os corpos, sobretudo de pobres e mestiços, indígenas e negros, nunca saíram de cena como objeto da punição. Para ela “não parece, de modo algum, haver uma descontinuidade ou ruptura, como sustentado pela historiografia (evolucionista) oficial, entre o passado (concebido como pré-moderno) e o presente (moderno)”

Nesse sentido, Mbembe (2017, p.295) pondera que a exclusão, a discriminação e a seleção em nome da raça permanecem fatores estruturantes da desigualdade, da ausência de direitos e da dominação contemporânea, inclusive nas democracias. Traça, portanto, crítica às democracias contemporâneas, pois ainda contêm fortemente o elemento da discriminação, assim como explora o conceito de descolonização radical, cuja principal característica é a força de recusa e oposição ao hábito, momento primeiro do político e do sujeito.

Em contrapartida a esse alarmante quadro, os movimentos sociais têm importante protagonismo na denúncia e enfrentamento de desigualdades sociais. Silvio Almeida (2019b, p. 148) compreende que “a experiência política e intelectual dos movimentos sociais serviu para inspirar práticas pedagógicas inovadoras que contestaram firmemente os fundamentos do racismo”. Tais ensinamentos influenciam diretamente os historicamente oprimidos e explorados, que se utilizam de ferramentas do direito nos seus modos de vida, estratégias de sobrevivência e resistência (ALMEIDA, 2019b, p. 148).

Por um lado, o Direito pode ser compreendido como uma relação social inserida em uma estrutura racista, com a qual não é capaz de romper. Por outro, pode ser entendido como uma ferramenta de resistência dos povos oprimidos (ALMEIDA, 2019b). A resistência é uma das mais interessantes maneiras de pensar a contribuição cultural do Direito. A resistência contra o Direito, resistência através dele e resistência que redefine o seu significado, exercidas por movimentos sociais em momentos de confronto ou de negociação (MERRY, 1994, p. 14-16). Portanto, o Direito legitima a colonialidade do controle social, mas, ao mesmo tempo, também pode ser um importante instrumento de lutas sociais contra-hegemônicas. Diante desse duplo papel do Direito, é preciso refletir sobre a decolonização da execução penal, a fim de buscar outras formas de pensar o sistema de justiça criminal brasileiro e a potencialização dos direitos das pessoas privadas de liberdade no país.

GIRO DECOLONIAL

O giro decolonial proposto pelo grupo Modernidade/Colonialidade/ Decolonialidade (MCD) propõe um olhar alternativo à realidade imposta pela modernidade e pela colonialidade ao refletir as formas de exploração e dominação que construíram as relações sociais na América Latina. Afinal, a colonialidade sobrevive ao colonialismo (GROSFOGUEL, 2007, p. 219). Ela se constitui como um padrão de poder que opera através da naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas, possibilitando a (re)produção de rela- ções de dominação (RESTREPO; ROJAS, 2010. p. 16).

A colonialidade do poder é o modelo hegemônico global de poder, instaurado desde as invasões coloniais, que articula raça e trabalho, local e povo, para o benefício eurocêntrico (QUIJANO, 2005, p. 116). Nesse sentido, a ideia de raça é o instrumento mais eficaz de dominação social inventado. A colonialidade do poder é a mais profunda e duradoura forma de colonialismo. Apesar de o racismo não ser a única manifestação da colonialidade do poder, sem dúvida, é a forma mais perceptível e onipresente (QUIJANO, 1999).

A partir da percepção histórica hegemônica narrada pelos conquistadores, houve a invisibilização e marginalização dos conhecimentos, linguagem e dos próprios povos originários. Sendo assim, reafirma-se a Europa como o sujeito teórico soberano de todas as histórias e delega-se aos países não-europeus a posição de subalternidade. Os estudos Decoloniais inspiram-se nos póscoloniais, os quais estão inseridos os estudos Subalternos. Spivak faz parte dessa corrente. A autora refere como subalterno aquele cuja voz não pode ser ouvida, representando “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal e da possibilidade de se tornarem membros plenos do estrato dominante” (SPIVAK, 2010, p. 12).

Mignolo (2017. p. 1-3) sintetiza: o lado oculto e mais obscuro da modernidade é a colonialidade, sendo esta constitutiva daquela. A história dos Estados modernos latino-americanos é marcada pela baixa intensidade de realização do princípio da igualdade, propiciando que o Direito moderno nesses países, mais que representar a passagem de um sistema de juridicidade difusa para um sistema técnico e racional de direitos, significou a passagem de um sistema disciplinar difuso para um sistema punitivo técnico e racional (FOUCAULT, 1999). Nesse contexto, a expansão do poder e da regulação do Estado moderno não pode ser entendida como uma expansão dos direitos e das garantias, mas sim como a expansão do controle e da disciplina social (LAURIS, 2013, p. 55).

A análise contemporânea do sistema prisional remonta a uma política de exploração que está sendo aplicada desde o período colonial, onde o racismo surgiu como elemento justificante para a exploração. O sistema de justiça criminal brasileiro é nítido exemplo da colonialidade, uma vez que a colonização e justificativas racistas para exploração requereram a construção ideológica do racismo (MIGNOLO, 2007, p. 40).

COLONIALIDADE E REALIDADES PRISIONAIS

A execução penal está constituída por estruturas que estão na base de uma sociedade cuja gramática reflete o autoritarismo, a violência, a repressão, a violação de direitos fundamentais, a seletividade e sobretudo a desigualdade social e o preconceito. A busca por perspectivas relacionadas aos silenciados e afetados torna-se fundamental na luta contra o encarceramento massivo. As violências ocultadas podem ser melhor (re)avaliadas a partir da compreensão do impacto colonial na própria dinâmica prisional.

No Brasil, há 1.390 indígenas presos, de acordo com dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (BRASIL, 2019). Entretanto, os dados levantados pelo INFOPEN são subdimensionados pela descaracterização étnica e invisibilidade legal dos indígenas (ABA, 2008). Não há uma padronização na coleta de informações penitenciárias pelos gestores responsáveis das unidades prisionais e, muitas vezes, o critério da autoidentificação não é utilizado (BRASIL, 2016, p. 32). Entre as 1.420 unidades prisionais no Brasil, 112 informaram que há indígenas presos, entretanto, apenas 46 estabelecimentos souberam informar a qual povo essas pessoas pertenciam e seu idioma (BRASIL, 2014, p. 52).

Entre as mulheres presas, os três estados com as maiores taxas de encarceramento em 2017 foram: Rio Grande do Sul (26), Mato Grosso do Sul (14) e Bahia (13). Entre os homens, no mesmo ano, as maiores taxas foram: Rio Grande do Sul (242), Mato Grosso do Sul (197) e Santa Catarina (60) (NOLAN; BALBUGLIO, 2020, pp. 81-82). Os dados, quando analisados em uma perspectiva percentual, indicam sobrerrepresentação indígena. No estado de Mato Grosso do Sul, por exemplo, estimando-se uma população de 50 mil integrantes dos Povos Indígenas Kaiowá e Guarani, a média da taxa encarceramento alcança 520 presos por 100 mil habitantes. Isso representa, aproximadamente, o dobro da média nacional e três vezes a média mundial (MENDES; ALMEIDA, 2020, p. 182).

A referida taxa de encarceramento assemelha-se ao cenário australiano, onde a prisão dos aborígenes e nativos do Estreito de Torres é crescente. Dados de 2018 apontam que, apesar de representarem apenas 2% da população australiana, estão super-representados com 28% da população carcerária (AUSTRALIAN BUREAU OF STATISTICS, 2019). Russell Hogg (2001, p. 355) sustenta que o advento do alto encarceramento indígena coincide com a cessação das políticas abertamente segregacionistas, sendo ele o responsável pela perpetuação da marginalização social das pessoas aborígenes no país.

O exercício discriminatório de controle dos corpos racializados, além dos povos indígenas, atinge também a população negra brasileira. A branquitude revela-se como um lugar de privilégio, de poder, vantagem sistêmica nas sociedades estruturadas pela desigualdade e dominação racial (SCHUCMAN, 2012, p. 102). Nesse sentido, ser negro é uma “zona do não-ser” (FANON, 2008) no Brasil, onde as hierarquias raciais legitimam a operacionalização do controle social sobre determinadas pessoas.

A seletividade penal é um fator determinante para a escolha de quais atos, classificados como crime na lei penal, serão vistos, fiscalizados, perseguidos e punidos. Flauzina (2006) afirma a ligação entre a seletividade e o racismo como forma de cumprimento da agenda genocida do Estado. Os dados oficiais confirmam isso. Existe uma clara política de encarceramento em massa. De 2000 a 2019, houve um crescimento do aprisionamento feminino em aproximadamente 660%, já do aprisionamento masculino de cerca de 260% (BRASIL, 2019). O público masculino ainda corresponde a 96% dos custodiados (BRASIL, 2019).

A maior parte das pessoas presas é jovem, negra e com baixa escolaridade. Os crimes de roubo e de tráfico de drogas foram os responsáveis pelo maior número de prisões no país. Para as mulheres, o perfil se repete, tendo forte protagonismo o crime de tráfico de drogas. Conforme aponta o levantamento, 63,6% da população carcerária nacional é negra, enquanto os negros correspondem a 55,4% da população brasileira (BRASIL, 2019). Logo, há uma sobrerrepresentação da população negra nos presídios nacionais. Isso quer dizer que, em termos percentuais, existem mais pessoas negras encarceradas do que pessoas negras em liberdade no país. Os dados confirmam a existência da intersecção de raça, classe e, nos últimos tempos, de gênero, que permeiam as discussões do sistema penitenciário do país.

A MODO DE ENCERRAMENTO E RESISTÊNCIA: POR UMA DECOLONIZAÇÃO DA EXECUÇÃO PENAL

As informações penitenciárias registram um Estado deficiente e violador de direitos fundamentais e sociais, além de compor um cenário de vitimizações sistemáticas e habituais, que vulnera as pessoas privadas de liberdade. O desenvolvimento punitivo por meio da prisão demonstra o impacto das heranças autoritárias e repressivas nas dinâmicas penitenciárias da atualidade. Nesse sentido, o giro decolonial possui expressiva potência para um agir de resistência às constantes violações. Assim, o artigo contribuiu para pensar a decolonização da própria execução penal.

Diante da colonialidade da punição, cumpre citar recente instrumento redutor de vulnerabilidade de pessoas indígenas no processo e execução penal no Brasil. Trata-se da Resolução 287/2019, do Conselho Nacional de Justiça, que estabelece medidas no tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade. O conjunto de disposições dá sustentação para a atuação de magistrados na homologação de práticas de resolução de conflitos e de responsabilização conforme os costumes e normas próprias das comunidades indígenas, assim como para a utilização de mecanismos não encarceradores. Sinaliza-se, portanto, uma aproximação ao diálogo intercultural e ao pluralismo jurídico, repensando o próprio direito e reconhecendo a impregnação da colonialidade que ainda explora, violenta e silencia as comunidades indígenas.

Apesar da narrativa dos dominadores nem sempre retratar abertamente as articulações sociais, são elas que possibilitam mudanças radicais. Além disso, é também necessário compreender a luta dos movimentos sociais enquanto alternativa para a decolonização da execução penal, uma vez que o sistema penitenciário é nítido exemplo de como a colonialidade do poder, do saber e do ser operam na continuidade da subjugação de pessoas marginalizadas socialmente.

A decolonização da execução penal possui potencialidade para se localizar nos espaços que produzem a violência da violação dos direitos fundamentais, e reproduzem a SUA naturalização. Tal intervenção decolonial possui instrumentos para desafiar a base que sustenta sociabilidades autoritárias, segregacionistas e excludentes, além de propor verdadeiras rupturas, sobretudo institucionais, que possam desmoronar as bases de um Estado sustentado em exclusão social e desumanidades, em direção à superação da própria opção segregacionista.



Notas de rodapé

REFERÊNCIAS


ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA (ABA);. Criminalização e Situa- ção Prisional de Índios no Brasil. Edital Projeto de Pesquisa ESMPU nº 19/2006. Relatório Final. Brasília: ABA, 2008. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/ files/file/PIB_institucional/Criminalizacao_2007.pdf Acesso em: 20 set. 2020.

ALMEIDA, Bruno Rotta. Prisão e desumanidade no Brasil: uma crítica baseada na história do presente. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 74, pp. 43-63, jan./ jun. 2019a.

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019b.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Criminologia Crítica na América Latina e no Brasil: em busca da utopia adormecida. In: LEAL, Jackson da Silva; FAGUNDES, Lucas Machado (org.). Direitos humanos na América Latina. Curitiba: Multideia, 2016.

AUSTRALIAN BUREAU OF STATISTICS. Prisioners in Australia, 2018. Disponível em: https://www.abs.gov.au/ausstats/abs Acesso em: 20 set. 2020.

BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen - junho de 2014. Brasília: DEPEN, 2016. Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/ sisdepen/infopen Acesso em: 20 set. 2020.

BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen - junho de 2016.

Brasília: DEPEN, 2016. Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/ sisdepen/infopen Acesso em: 20 set. 2020.

BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen – dezembro de 2019.

Brasília: DEPEN, 2019. Disponível em: Acesso em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen 26 set. 2020.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Traduzido por Renato da Silveira. EDUFBA, 2008.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito)- Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

GROSFOGUEL, Ramon. The epistemic decolonial turn: beyond political-economy paradigms. Cultural Studies, 21(2-3):211-223, mar. 2007.

HOGG, Russell. Penality and Modes of Regulating Indigenous Peoples in Australia. Punishment & Society, v. 3, n. 3, p. 355–379, jul. 2001.

LAURIS, Élida. Acesso para quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece - Dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas do acesso à justiça no Brasil e em Portugal. 2013. Tese (Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global) - Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2013.

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.

MENDES, Karla; ALMEIDA, Marco Antonio Delfino de. Super-representação dos Kaiowá e Guarani no sistema penitenciário: um pedaço da Austrália em Mato Grosso do Sul. In: AMADO, Luiz Henrique Eloy (Org.). Justiça Criminal e Povos Indígenas no Brasil. São Leopoldo: Karywa, 2020.

MERRY, Sally Engle. Resistance and the Cultural Power of Law. Law & Society Review, v. 29, n. 1, 1995.

MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Tradução de Marco Oliveira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, 2017.

MIGNOLO, Walter. La ideia de América Latina. La herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Editorial Gedisa, 2007.

NOLAN, Michael Mary; BALBUGLIO, Viviane. “Se não há índios, tampouco há direitos”: uma análise de dados sobre pessoas indígenas em situação de prisão no Brasil a partir do uso dos mecanismos da lei de acesso à informação. AMADO, Luiz Henrique Eloy (Org.). Justiça Criminal e Povos Indígenas no Brasil. São Leopoldo: Karywa, 2020.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.) La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Colección Sur Sur. CLACSO: Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2005.

QUIJANO, Aníbal. !Que tal raza!. Ecuador Debate, n. 48, 1999.

RESTREPO, Eduardo; ROJAS, Axel. Inflexión decolonial: Fuentes, conceptos y cuestionamientos. Popayán, Colombia: Editorial Universidad del Cauca, 2010.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. 2012. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Almeida Marcos Feitosa e André Feitosa. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

Caso Fernandez Prieto & Tumbeiro Vs. Argentina e a Filtragem Racial no Brasil

Isadora Brandão Araujo da Silva

Defensora Pública Coordenadora do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP).

Doutoranda em Direitos Humanos (USP).

ORCID: 0000-0001-5707-5263

ibsilva@defensoria.sp.def.br

Resumo: Sentença da CIDH no caso 12.315: Fernández Prieto & Tumbeiro VS. Argentina (01.09.2020). Corte reconheceu que as detenções dos Srs. Prieto e Tumbeiro foram ilegais e arbitrárias. Ausência de mandado judicial, de situação de flagrante delito e não comprovação, por meio de critérios objetivos, da “atitude suspeita” alegada por agentes policiais para justificar a abordagem. Ação policial discriminatória. Violação dos direitos à liberdade pessoal, à proteção da privacidade, à igualdade, aos recursos eficazes e à proteção judicial. Interpretação dos direitos da Convenção vincula o Brasil. Dever de fortalecimento do quadro normativo da “fundada suspeita” para prevenir a filtragem racial.

Palavras-chave: Corte Interamericana de Direitos Humanos, Detenções Ilegais e Arbitrárias, Controle de Convencionalidade, Filtragem Racial, Racismo Institucional.

Abstract: Sentence of the IACHR in the case 12.315: Fernández Prieto & Tumbeiro VS. Argentina (01.09.2020). Court recognized that the arrests of Mr. Prieto & Mr. Tumbeiro were illegal and arbitrary. Absence of a court order, a situation of flagrante delicto and failure to prove, through objective criteria, the “suspicious attitude” alleged by police officers to justify the detention. Discriminatory police action. Violation of the rights to personal liberty, to privacy, to equal protection, to a fair trial and judicial protection. Interpretation of convention rights legally forces Brazilian State. Duty to strengthen the normative framework for “founded suspicion” to prevent racial profilling .

Keywords: Inter-American Court of Human Rights, Illegal and Arbitrary Detentions, Conventionality Control, Racial Profilling, Institucional Racism.

Data: 02/02/2021
Autor: Isadora Brandão Araujo da Silva

Em 14 de novembro de 2018, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu à jurisdição da Corte o caso Fernández Prieto & Tumbeiro versus Estado da Argentina. O caso está relacionado às detenções ilegais e arbitrárias do Sr. Prieto, no ano de 1992 e do Sr. Tumbeiro, no ano de 1998, por agentes policiais.

A Comissão, em seu Relatório de Mérito, “(...) considerou que ambas as detenções foram realizadas sem ordem judicial ou estado de flagrante delito e indicou que em nenhum dos casos foi estabelecida de maneira detalhada, na respectiva documentação oficial, quais foram os elementos objetivos que deram origem a um grau de razoável suspeita da prática de um crime”.1 A Comissão concluiu que as detenções e revistas realizadas não obedeceram ao padrão de legalidade e de não arbitrariedade. Ademais, destacou que as autoridades judiciárias não garantiram os recursos eficazes e a proteção judicial devida aos peticionários, pois deixaram de exigir razões objetivas para o exercício da faculdade legal de deter pessoas com base em “atitude suspeita”, além de validar integralmente as razões apresentadas pelos agentes da polícia para as providências adotadas.

Especificamente em relação ao Sr. Tumbeiro, a Comissão indicou que a explicação dos agentes policiais para justificar a detenção e busca pessoal, relacionada ao “estado de nervosismo” e à “inconsistência” entre sua vestimenta e o perfil do bairro em que ele se encontrava, possivelmente expressou conteúdo discriminatório.

O Sr. Prieto foi abordado em 26 de maio de 1992, por volta das 19:00, por um inspetor e dois sargentos da Polícia da Província de Buenos Aires que estavam “exercendo suas funções em patrulhamento” e avistaram, em uma área quase inabitada da cidade de Mar de Plata, um veículo ocupado por “três sujeitos em seu interior em atitude suspeita”, dentre eles o Sr. Prieto, comerciante de 45 anos. Após a interceptação do veículo, os agentes de segurança determinaram que os passageiros desembarcassem e realizaram uma busca no veículo, onde teriam encontrado tabletes de maconha e armas. Todos os ocupantes do veículo foram detidos e conduzidos à Delegacia de Polícia. A Defesa do Sr. Prieto pediu sua absolvição e a declaração da nulidade do processo, argumentando que a busca veicular foi arbitrária, diante da inexistência de indícios veementes que demonstrassem a “atitude suspeita”. Apesar disso, o juízo federal de primeiro grau condenou o Sr. Prieto ao cumprimento de pena de 5 anos de prisão e ao pagamento de multa de 3.000 pesos pelo crime de transporte de entorpecentes. Na ocasião, o juízo salientou que os agentes policiais agiram em conformidade com suas atribuições legais diante de uma situação suspeita. Houve recurso de defesa, porém a Câmara Federal de Apelações de Mar de Plata o indeferiu, ratificando que a revista não violou qualquer garantia ou direito individual, porquanto alicerçada em estado prévio de suspeita, em um contexto em que era impossível a obtenção de ordem judicial para o ato. A Câmara Federal consignou que o acolhimento do raciocínio da Defesa implicaria obstaculizar o trabalho de prevenção ao crime por parte dos agentes policiais. O caso foi levado até a Corte Suprema, que manteve a condenação, respaldada pela jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos a respeito das exceções que legitimam prisões e revistas sem ordem judicial, concluindo que a “atitude suspeita” apresentada pelos ocupantes do veículo gerava a “presunção do cometimento de um crime”,2 presunção esta que teria restado corroborada pela posterior apreensão das drogas e descoberta de outros indícios de envolvimento com o tráfico.

No tocante ao Sr. Tumbeiro, eletricista de 44 anos, consta que foi abordado para “identificação”, em 15 de janeiro de 1998, por volta do meio-dia, por agentes da Polícia Federal Argentina, enquanto transitava por uma rua da Cidade de Buenos Aires. Durante a abordagem, ao ser questionado sobre o que fazia no local, ele respondeu que procurava equipamentos eletrônicos de reposição e apresentou seu documento de identidade. A atitude do Sr. Tumbeiro foi considerada “suspeita” pelos agentes policiais porque “sua vestimenta era incomum para a área e por mostrar-se evasivo e nervoso perante a presença da viatura”.3 O Sr. Tumbeiro, que trajava calça jeans e camisa, foi “convidado” a ingressar na viatura até que fosse checada a sua identidade e obrigado a abaixar as calças e sua roupa íntima no interior da viatura. A polícia alegou ter encontrado cocaína no interior do jornal que o Sr. Tumbeiro portava, fato que ele negou ter ocorrido. Entretanto, foi condenado à pena de 1 ano e 6 meses, com o cumprimento suspenso, e pagamento de multa de 150 pesos por incurso no crime de porte de entorpecentes. A defesa interpôs recurso perante a Câmara de Cassação, que o admitiu para reconhecer que abordar pessoa para fins de identificação e mantê-la em viatura a pretexto de realizá-la caracteriza verdadeira detenção. Também consignou que o alegado “nervosismo”, por si só, não autorizava a abordagem e que a detenção para averiguação de antecedentes não se justificava diante da ausência de fundamentação razoável, indicando que as circunstâncias do caso concreto permitiam presumir o cometimento de um delito ou duvidar da identidade do cidadão. Após recurso do Procurador Geral Federal, a Corte Suprema restabeleceu a condenação, utilizando-se, mais uma vez, da referência à jurisprudência da Suprema Corte estadunidense sobre “causa provável”, “suspeita razoável” e “situações de urgência”,4 as quais seriam aplicáveis ao caso em tela, pois a descoberta do entorpecente relatada pelos policiais teria validado as providências por eles adotadas. Tal decisão foi mantida pela Câmara Nacional de Cassação Penal após recurso do Sr. Tumbeiro.

Os casos foram submetidos à Comissão pela Defensoria Geral da Nação Argentina,5 reforçando a importância da Resolução nº 2656 aprovada pela Assembleia Geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), que recomenda a todos os Estados membros a instalação de Defensorias Públicas dotadas de autonomia e independência funcional.

Uma vez que as recomendações do Relatório da Comissão não foram implementadas pela Argentina, restou a sua submissão à Corte, que foi instada a declarar a responsabilidade internacional do Estado pelas violações apontadas no documento.

O Estado Argentino acolheu todas as conclusões da Comissão, reconhecendo a sua responsabilidade internacional. Em sua manifestação, admitiu que as detenções e buscas dos Srs. Prieto e Tumbeiro não são fatos isolados, fazendo parte de um contexto geral de prisões realizadas sem ordem judicial ou flagrante delito. Assim, pontuou que o caso: ‘“(...) constitui um emblema do que foi conhecido em nosso país, durante a década de 90, como o ‘olfato policial’, que implicava em ações policiais descontroladas, incentivadas por políticas de segurança pública baseadas em operações discricionárias de prevenção, sem investigação ou ações de inteligência prévias, e, portanto, profundamente ineficientes’. Da mesma forma, o Estado pontuou que ‘este tipo de prática policial foi promovido por políticas de segurança que foram definidas sob o paradigma da chamada ‘guerra às drogas’ o que, ‘ademais, estava amparado por um controle judicial inadequado ou inexistente’”.6

A CIDH concluiu que esse padrão de violações é permanente, ressaltando que, após visita à Argentina em 2003, o Grupo de Trabalho da ONU sobre detenções arbitrárias instou o país a: “supervisionar estritamente as ações dos policiais” e sancionar “qualquer desvio para comportamento racista, xenofóbico, homofóbico ou outro incompatível com a plena observância dos direitos humanos que a polícia tem o dever de garantir”.7

Em caráter conclusivo, a Corte reconheceu que houve invasão indevida na vida privada dos peticionários, sendo ela albergada pela “Proteção da Honra e da Dignidade”. Dado que a privacidade é protegida contra ingerências abusivas ou arbitrárias, sejam as protagonizadas por terceiros, sejam as praticadas por autoridades públicas, a Corte concluiu que tanto a busca veicular, no caso do Sr. Prieto, quanto a revista pessoal, no caso do Sr. Tumbeiro, realizadas sem ordem judicial prévia e fundamentada e sem amparo na legislação nacional vigente – que não define com a segurança necessária as hipóteses de urgência em que tais procedimentos ficariam excepcionalmente autorizados – configuraram violação do artigo 11 da Convenção.

Após analisar o regime legal vigente na Argentina, a Corte considerou que não foi apresentada uma justificativa para a detenção do Sr. Fernández Prieto fundada em qualquer uma das causas legais, o que caracteriza inobservância ao requisito da legalidade. Assim, reconheceu que houve violação do direito à liberdade pessoal previsto pelo artigo 7 da Convenção.

No tocante ao Sr. Tumbeiro, a Corte considerou que a sua detenção temporária para fins de identificação descumpriu a legislação nacional a respeito do tema, pois não foi fundamentada em circunstâncias que permitissem presumir que o Sr. Tumbeiro havia cometido ou viria a cometer ato criminoso ou contravencional, conforme parâmetros estabelecidos pela legislação nacional. Avançando, a Corte concluiu que as razões para a detenção do Sr. Tumbeiro não foram objetivas e sim arbitrárias, pois fundadas em preconceitos e estereótipos atribuídos a determinados grupos sociais e, consequentemente, a respeito de como devem se vestir, o que devem fazer em determinada localidade e como devem se comportar perante agentes policiais. E acrescentou: “Na ausência de elementos objetivos, a classificação de determinada conduta ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, obedece às convicções pessoais dos agentes intervenientes e às práticas das próprias forças de segurança, os quais comportam um grau de arbitrariedade que é incompatível com o artigo 7.3 da Convenção Americana. Quando, adicionalmente, essas convicções ou avaliações pessoais são formuladas sobre preconceitos a respeito das características ou comportamentos supostamente típicos de uma determinada categoria ou grupo de pessoas ou de sua condição socioeconômica, podem acarretar uma violação dos artigos 1.1 e 24 da Convenção".8

Demais disso, a Corte considerou que tanto Código de Procedimentos, com base no qual foi interceptado o veículo em que viajava o Sr. Prieto, como o Código Processual Penal da Nação e a Lei 23.950, que fundamentaram a detenção do Sr. Tumbeiro para fins de identificação, padeciam de deficiências normativas na regulamentação das hipóteses que supostamente autorizavam tal ação policial. Salientou que as disposições normativas que prevejam uma hipótese permissiva da prisão sem ordem judicial ou em situação que não a de flagrante delito devem observar não apenas os requisitos da “finalidade legítima”, “idoneidade” e “proporcionalidade”, como também prever parâmetros objetivos que impeçam que os preconceitos que informam o “tirocínio” policial sirvam para lastrear detenções arbitrárias.

Diante da assunção pela Argentina de sua responsabilidade, a Corte também reconheceu a violação do direito ao devido processo (artigo 8), assim como a falta de um recurso judicial eficaz nos procedimentos contra os peticionários (artigo 25). Na parte dispositiva da sentença, para além da fixação de indenização por danos materiais e imateriais em benefício dos sucessores dos peticionários – já falecidos –, destaca-se que a Corte estipulou que o Estado a) fará os ajustes necessários em seu ordenamento jurídico interno no que tange às normas que permitem a detenção, inspeção de veículos ou revista pessoal sem ordem judicial, b) implementará plano de formação da Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário e c) adotará um sistema de coleta de dados relativos a abordagens.

Sabemos que a parte dispositiva da sentença da CIDH é aplicável exclusivamente ao Estado Argentino, por envolver obrigações restritas às partes envolvidas no caso concreto. Por outro lado, a interpretação que a Corte Interamericana realiza dos direitos previstos pela Convenção Americana é juridicamente vinculante para os Estados-partes que tenham ratificado a jurisdição obrigatória da Corte, como é o caso do Brasil. Nesse sentido, a leitura que a Corte realiza dos direitos previstos na Convenção Americana, segundo a qual a ausência de parâmetros objetivos para caracterização da “atitude suspeita” torna ilegais e arbitrárias as detenções, revistas e buscas realizadas por agentes policiais, deve ser observada pelo Estado brasileiro, seja por força do princípio da boa-fé, seja em razão do seu dever de conferir plena efetividade às decisões da Corte.9

No precedente, nem as partes, nem a Corte atrelaram a conduta possivelmente discriminatória dos agentes policiais a estereótipos raciais. Todavia, é inegável que, à luz do entendimento estabelecido pelo tribunal, a pertença racial não pode ser legitimamente mobilizada por agentes policiais, em caráter exclusivo, para a formação de suspeição e motivação de abordagens, revistas e buscas, sob pena de violação dos direitos previstos na Convenção. No Brasil, numerosos dados demonstram o impacto desproporcional da política de “segurança pública” para a população negra, o que está fortemente relacionado com os vieses inconscientes, o racismo institucional e com a aposta no patrulhamento ostensivo em detrimento do investimento no trabalho investigativo e do planejamento das ações policiais. De fato, a aposta no policiamento ostensivo favorece largamente a filtragem racial, permitindo a reprodução contínua da visão do potencial criminoso como sendo o pobre, negro e jovem”.10

A Comissão Interamericana definiu a filtragem racial como o estabelecimento de perfis raciais como parte de uma ação repressora que pretende se legitimar através de supostas razões de segurança pública, porém, na prática, é motivada por estereótipos de raça, cor, etnicidade, etc. Os perfis raciais tendem a singularizar indivíduos e grupos racializados de forma discriminatória, com base na errônea suposição de que esses são mais propensos à prática de determinados delitos.11

O Comitê para Eliminação da Discriminação Racial da ONU, por meio da Recomendação Geral 31, sustentou que os Estados devem tomar medidas para impedir os interrogatórios, as detenções e as buscas baseadas, exclusivamente, na pertença de indivíduos a um grupo racial ou étnico, mesmo que formalmente sejam empregadas outras justificativas.

Assim, a sentença da Corte no caso Fernández Prieto & Tumbeiro Vs. Argentina estabelece um parâmetro de suma importância para que o Estado brasileiro seja instado a: i) definir juridicamente com maior precisão o conceito de “fundada suspeita”; ii) promover alterações na legislação processual penal que trata das hipóteses autorizadoras da prisão sem ordem judicial; iii) rever as políticas de segurança pública e os investimentos correlatos para privilegiar ações investigativas em detrimento do policiamento ostensivo; iv) reavaliar os métodos de policiamento ostensivo adotados nos estados; v) instituir protocolos rigorosos para nortear as abordagens policiais prevendo a obrigação de exposição por escrito e de forma circunstanciada, pelos policiais, da motivação de toda e qualquer abordagem, revista e busca; vi) realizar capacitações para os(as) agentes que compõem o sistema de (in) justiça a respeito da filtragem racial e sua relação com a perpetuação do racismo institucional e estrutural; vii) aprimorar os sistemas de produção de dados por parte das instituições de segurança pública a respeito de abordagens, detenções, prisões, revistas pessoais e buscas como forma de monitorar o seu funcionamento e embasar a formulação de políticas públicas antirracistas, dentre outras medidas de caráter antidiscriminatório.

Ademais, o entendimento da CIDH de que as detenções realizadas sem ordem judicial ou situação de flagrante delito e sem a demonstração criteriosa dos elementos objetivos que caracterizam a fundada suspeita da prática de um crime são ilegais e arbitrárias, além de ineficazes,12 não se justificando em nome da pretensa “prevenção ao crime”, tampouco sendo possível a sua validação a posteriori, quando delas resulte a descoberta de indícios da prática de crime (argumento consequencialista), deve ser instrumentalizado no cotidiano da defesa criminal, considerando o controle de convencionalidade que compete ao Poder Judiciário realizar. Trata-se de um precedente que poderá embasar pleitos absolutórios e de cassação das condenações baseadas em abordagens originadas de suspeita policial juridicamente imotivada (tão frequentes em acusações de tráfico de drogas). Ele vem incrementar nosso arsenal de luta em defesa dos grupos vulneráveis, aqueles “que não são embora sejam”, “que não têm nome, têm número”, “os filhos de ninguém, os donos de nada”, os “que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local”. 13 Descolonizar as ciências criminais passa, necessariamente, pelo resgate da sua humanidade que, como nos diz Galeano, insistem em sequestrar.





Notas de rodapé

1 Vide CIDH – CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Fernández Prieto e Tumbeiro vs. Argentina. CIDH, 1 set. 2020. Disponível em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/ Senten%c3%a7a%20Fernandez%20Prieto%20Tumbeiro%20Vs%20Argentina%20Abordagem%20Policial.pdf. Acesso em: 09.01.2021

2 Idem, p. 16.

3 Idem, p. 17.

4 Idem, p. 18.

5 Os casos foram encaminhados pela Defensoria da Nação Argentina à Comissão em datas distintas, sendo posteriormente reunidos pela Comissão em virtude da similitude fática dos eventos.

6 Idem, p. 10.

7 Idem, p. 12.

8 Idem, p. 28.

9 O princípio da boa-fé e o dever de conferir efetividade foram destacados pelo Prof. Thiago Amparo (FGV) durante palestra proferida no evento organizado pelo Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (NCDH), em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), cuja programação pode ser acessada através do link: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=2825. Acesso em 09.01.2021

10 Para mais informações, conferir a pesquisa “Policiamento ostensivo e rela- ções raciais”, disponível no sítio: http://www.gevac.ufscar.br/wp-content/ uploads/2020/09/policiamento-ostensivo-rel-raciais-2020.pdf.Acesso em 09.01.2021

11 Vide Relatório sobre “La situación de las personas afrodescendentes en las Americas”, disponível no sítio: https://mail.google.com/mail/u/0/#inbox/QgrcJHsHrSdjwXvvRcDxRPBFtQnTHrDLXCv?projector=1&messagePartId=0.5 Acesso em: 09.01.2021

12 A ineficácia vem corroborada por dados publicados pela Secretaria de Segurança Pública (SSP), que indicam que a Polícia Militar realizou, até setembro de 2013, cerca de três milhões de abordagens na  capital paulista, que resultaram na prisão de pouco mais de 35 mil pessoas. O número representa cerca de uma prisão a cada cem abordagens. Os dados permitem o questionamento da eficácia das abordagens como método para combater a criminalidade.

13 Galeano, Eduardo. O livro dos abraços. Ed: PM. 2012.

Nosso website coleta informações do seu dispositivo e da sua navegação por meio de cookies para permitir funcionalidades como: melhorar o funcionamento técnico das páginas, mensurar a audiência do website e oferecer produtos e serviços relevantes por meio de anúncios personalizados. Para saber mais sobre as informações e cookies que coletamos, acesse a nossa Política de Privacidade. Para falar sobre envie um e-mail para: privacidade@ibccrim.org.br